Revista de Ciências Sociais - Política & Trabalho
Programa de Pós-Graduação em Sociologia
Centro de Ciências Humanas, Letras e Artes
Universidade Federal da Paraíba
Publicação semestral do PPGS/UFPB
54 - Janeiro/ Junho de 2021
ISSN 1517-5901 (online)
CONSELHO EDITORIAL
César Barreira (Brasil), Christian Azais (França), Cynthia Lins Hamlin (Brasil), Edgard Afonso Malagodi (Brasil), Emília Araújo (Portugal), Howard Caygill (Reino Unido), Frédéric Vandenberghe (Brasil), Jacob Carlos Lima (Brasil), Joanildo A. Burity (Brasil), José Arlindo Soares (Brasil), Julie Antoinette Cavignac (Brasil), Lee Jonathan Pegler (Holanda), Marie-France Garcia-Parpet (França), Paulo Henrique Martins (Brasil), Regina Novais (Brasil), Rubens Pinto Lyra (Brasil), Sandra J. Stoll (Brasil), Theophilos Rifiotis (Brasil), Vera da Silva Telles (Brasil), Zhou Zhiwei (China).
EDITORIA
Roberto Véras de Oliveira, UFPB, Brasil
Miqueli Michetti, UFPB, Brasil
COMITÊ EDITORIAL
Roberto Véras de Oliveira, UFPB, Brasil
Miqueli Michetti, UFPB, Brasil
Mauricio Rombaldi, UFPB, Brasil
Simone Magalhães Brito (coordenadora do PPGS) UFPB, Brasil
Rogério de Souza Medeiros (vice-coordenador do PPGS) UFPB, Brasil
Assessoria Editorial
Ana Carolina Costa Porto (Bolsista PNPD)
REVISORA
Ana Carolina Costa Porto (Bolsista PNPD)
DESIGN GRÁFICO
Projeto gráfico de capa: Miqueli Michetti
Fotografia utilizada na capa retirada da Wikipedia
link: https://en.wikipedia.org/wiki/File:Heleieth_Iara_Bongiovani_Saffioti_died_2010.png
Diagramação: Brunos Gomes
A apresentação de colaborações e os pedidos de permuta e/ou compra devem ser encaminhados ao PPGS/UFPB:
Universidade Federal da Paraíba – Programa de Pós-Graduação em Sociologia
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POLÍTICA & TRABALHO
Revista de Ciências Sociais
Publicação do Programa de Pós-Graduação em Sociologia
da Universidade Federal da Paraíba
(Campus I - João Pessoa)
Ano XXXVIII
Número 54
Janeiro/Junho de 2021
ISSN 1517-5901 (online)
Programa de Pós-Graduação em Sociologia - UFPB
indexação
Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)
Biblioteca Central - Campus I - Universidade Federal da Paraíba
CENTRO DE CIÊNCIAS HUMANAS, LETRAS E ARTES
Diretora: Mônica Nóbrega
Vice-Diretor: Rodrigo Freire
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM SOCIOLOGIA
Coordenadora: Simone Magalhães Brito
Vice-Coordenador: Rogério de Souza Medeiros
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R449 Revista Política e Trabalho / Programa de Pós-Graduação em
Sociologia – Vol. 1, Ano 38, n. 54 (jan./jun. 2021). João Pessoa, 2021.
245p.
1517-5901 (online)-1. Ciências Sociais. 2. Política. 3. Trabalho.
UFPB/BC CDU: 32
UNIVERSIDADE FEDERAL DA PARAÍBA
Reitor: Valdiney Gouveia
Vice-Reitora: Liana Filgueira
Pró-Reitor de Pós-Graduação e Pesquisa: Fernando Guilherme Perazzo Costa
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SUMÁRIO
Editorial
DOSSIÊ
REVISITANDO HELEIETH SAFFIOTI: aportes para pensar a atualidade de seus conceitos
APRESENTAÇÃO: Revisitando Heleieth Saffioti – aportes para pensar a atualidade de seus conceitos | Daniele Motta, Elaine Bezerra
A MULHER NA SOCIEDADE DE CLASSES | Eleanor Leacock
A CATEGORIA “ORDEM PATRIARCAL DE GÊNERO” NO PENSAMENTO DE HELEIETH SAFFIOTI: aproximações introdutórias | Leonardo Nogueira
GÊNERO E VIOLÊNCIA NA EXPERIÊNCIA DAS TRABALHADORAS DA INDÚSTRIA DO VESTUÁRIO | Mariana Pereira de Castro
UM DIÁLOGO COM OS ESTUDOS SOBRE VIOLÊNCIA DE GÊNERO DE HELEIETH SAFFIOTI: a produção de conhecimento e a ação profissional militante | Mônica Vilaça
ARTIGOS
CONTRATO DE TRABALHO INTERMITENTE: o “empregado desempregado” entre a razão neoliberal e a pandemia | Súllivan Pereira, Renata Dutra
PEJOTIZAÇÃO E RELAÇÕES DE TRABALHO | Vanessa Rocha Ferreira, Murielly Nunes dos Santos
O DISPOSITIVO NA PRÁTICA: os usos do estatuto do MEI por designers gráficos sob a perspectiva da zona cinzenta | Thays Wolfarth Mossi, Júlia Carlos de Matos, Caetano Lisboa Garcia
EMPREENDEDORISMO E IDEOLOGIA NEOLIBERAL NO BRASIL: A transição do perfil empreendedor na Revista Pequenas Empresas Grandes Negócios | Samyama Tavares Monteiro, Cristiano Monteiro
AS POLÍTICAS PÚBLICAS DE JUVENTUDE NO BRASIL PÓS-GOLPE DE 2016:
o cenário de ataque aos direitos sociais | Tarcisio Augusto Alves Silva
“EU ESPERAVA MAIS DO BRASIL”: vivências no trabalho de imigrantes no Brasil | Patrícia Henrich, Janine Kieling Monteiro, Anelise Schaurich dos Santos, Vanessa Ruffatto Gregoviski
“UMA VESTE PROVAVELMENTE AZUL”: dominação e ditadura | Nelson Lellis, Ricardo Ramos Shiota
ENTREVISTA
MEMÓRIAS DE AFETO, POLÍTICA E FORMAÇÃO: o encontro entre Maria Aparecida de Moraes Silva e Heleieth Saffioti | Daniele Motta, Elaine Bezerra
TRADUÇÃO
REPRODUÇÃO, HABITUS, CAMPO: como Bourdieu pensa o trabalho? | Maxime Quijoux
RESENHA
MASCULINIDADES PETROLEIRAS: Trabalho e Gênero na Argentina | Guillermo Stefano Rosa Gómez, Manoel Cláudio Mendes Gonçalves da Rocha
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CONTENTS
Editorial
DOSSIER
REVISITING HELEIETH SAFFIOTI: contributions to think about the relevance of her concepts
PRESENTATION: Revisiting Heleieth Saffioti – contributions to think about the relevance of her concepts | Daniele Motta, Elaine Bezerra
WOMEN IN CLASS SOCIETY | Eleanor Leacock
THE CATEGORY “PATRIARCHAL GENDER ORDER” IN HELEIETH SAFFIOTI’S THOUGHT: introductory approaches | Leonardo Nogueira
GENDER AND VIOLENCE IN THE WOMEN WORKERS EXPERIENCE OF THE GARMENT INDUSTRY | Mariana Pereira de Castro
A DIALOGUE WITH STUDIES ON GENDER VIOLENCE BY HELEIETH SAFFIOTI: the production of knowledge and militant professional action | Mônica Vilaça
ARTICLES
INTERMITTENT LABOR CONTRACT: the “employee unemployed” between neoliberal reason and pandemic | Súllivan Pereira, Renata Dutra
HIRING FREE OF LABOR RIGHTS AND WORK RELATIONS | Vanessa Rocha Ferreira, Murielly Nunes dos Santos
THE DEVICE IN ACTION: uses of the MEI status by graphic designers from a grey zone perspective | Thays Wolfarth Mossi, Júlia Carlos de Matos, Caetano Lisboa Garcia
ENTREPRENEURSHIP AND NEOLIBERAL IDEOLOGY IN BRAZIL: the transition in the entrepreneurial profile of magazine Pequenas Empresas, Grandes Negócios | Samyama Tavares Monteiro, Cristiano Monteiro
PUBLIC POLICIES FOR YOUTH IN BRAZIL AFTER THE 2016 COUP: the scenario of attack on social rights | Tarcisio Augusto Alves Silva
“I EXPECTED MORE FROM BRAZIL”: work experiences of immigrants in Brazil | Patrícia Henrich, Janine Kieling Monteiro, Anelise Schaurich dos Santos, Vanessa Ruffatto Gregoviski
“A PROBABLY BLUE VEST”: domination and dictatorship | Nelson Lellis, Ricardo Ramos Shiota
TRANSLATION
REPRODUCTION, HABITUS, FIELD: how does Bourdieu think work? | Maxime Quijoux
INTERVIEW
MEMORIES OF AFFECTION, POLICY AND EDUCATION: the meeting between Maria Aparecida de Moraes Silva and Heleieth Saffioti | Daniele Motta, Elaine Bezerra
REVIEW
PETROLEUM MASCULINITIES: Work and Gender in Argentina | Guillermo Stefano Rosa Gómez, Manoel Cláudio Mendes Gonçalves da Rocha
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EDITORIAL
A Revista Política & Trabalho, em seu número 54, apresenta o dossiê Revisitando Heleieth Saffioti: aportes para pensar a atualidade de seus conceitos, organizado por Daniele Motta e Elaine Bezerra. Heleieth Saffioti, socióloga de formação marxista e militante feminista, marcou os estudos sobre a condição e o papel das mulheres na sociedade brasileira, cujo ponto de partida foi seu já clássico livro A mulher na sociedade de classes, publicado em 1969. Ressignificando (em uma perspectiva feminista) o conceito de “patriarcado”, incorporando o de “gênero”, desenvolvendo a ideia de “nó” (que articula gênero, raça/etnia e classe) e exercitando com maestria uma perspectiva multidisciplinar de abordagem (envolvendo Sociologia, História, Antropologia, Ciência Política, Estudos de Gênero, entre outras áreas), deu grande ênfase nos seus estudos à problemática articulada das desigualdades e da violência de gênero (em sentido simbólico, moral, físico e sexual), tendo-a (tal problemática) como dimensões centrais da dominação e exploração de classe na sociedade. Ao mesmo tempo, por tal prisma, propôs um diálogo crítico com a tradição do pensamento social brasileiro, cujos autores considerados clássicos são majoritariamente masculinos. Com o presente dossiê, a Revista P&T pretende prestar uma homenagem a essa destacada socióloga e feminista e, simultaneamente, contribuir com as reflexões sobre suas contribuições e sobre sua incorporação nos estudos atuais de gênero. Para uma apresentação mais detalhada sobre os textos que constituem o dossiê, ver a Apresentação elaborada pelas organizadoras.
Compõem este número, ainda, mais sete artigos do fluxo contínuo, uma entrevista, uma tradução e uma resenha. Inicia essa sequência o artigo Contrato de trabalho intermitente: o “empregado desempregado” entre a razão neoliberal e a pandemia, de Súllivan Pereira e Renata Dutra, que versa sobre o contrato de trabalho intermitente, uma inovação trazida com a Lei da Reforma Trabalhista, de 2017, mas que na verdade institucionaliza uma modalidade de contratação atípica. Os autores usam a categoria de “empregado desempregado” para melhor caracterizar a condição do trabalhador submetido a tal tipo de contrato, expressão por excelência dos efeitos de desregulamentação do trabalho formal, que traz incerteza quanto à remuneração e insegurança quanto ao vínculo. O artigo evidencia o quanto com a pandemia da covid-19, desencadeada no início de 2020, a condição de “empregado desempregado” do trabalhador intermitente se mostra em todas as suas fragilidades, mesmo com as medidas governamentais emergenciais de auxílio social e de contenção do desemprego.
O artigo que segue, intitulado Pejotização e relações de trabalho, de autoria de Vanessa Rocha Ferreira e Murielly Nunes dos Santos, detém-se sobre o fenômeno da pejotização no ordenamento jurídico brasileiro, situação em que o empregador substitui o contrato de trabalho de seus trabalhadores por contratos de prestação de serviços por pessoa jurídica. Baseando-se em pesquisa bibliográfica e jurisprudencial, discute a importância de se levar em conta os princípios fundamentais do Direito do Trabalho (pondo em relevo o da “primazia da realidade”), para tecer uma sistemática crítica às práticas que se inscrevem em tal fenômeno, caracterizando-a como fraude à legislação trabalhista, o que tem como consequência prática a negação a tais trabalhadores de seus direitos trabalhistas e previdenciários.
O terceiro artigo do fluxo contínuo, O dispositivo na prática: os usos do estatuto do MEI por designers gráficos sob a perspectiva da zona cinzenta, é assinado por Thays Wolfarth Mossi, Júlia Carlos de Matos e Caetano Lisboa Garcia. Discute como os designers gráficos se utilizam do estatuto jurídico do microempreendedor individual (MEI), em um ambiente no qual não há uma regulação institucional da profissão. Configura-se, por esse meio, uma forma híbrida, zona cinzenta, quanto às possibilidades de inserção no mercado de trabalho, uma “formalidade irregular” de institucionalização das relações de trabalho, nos termos dos autores.
Com Empreendedorismo e ideologia neoliberal no Brasil: a transição do perfil empreendedor na Revista Pequenas Empresas Grandes Negócios, Samyama Tavares Monteiro e Cristiano Monteiro apresentam um estudo descritivo-documental e sob a perspectiva da Sociologia Econômica. A análise recai prioritariamente sobre a transição dos perfis empreendedores brasileiros propagados pela revista Pequenas Empresas Grandes Negócios, entre as décadas de 1990 e 2010, cujas reportagens de capa cada vez mais se voltam a comportamentos e valores, sob o primado da ideologia neoliberal como prática normativa da vida social.
As políticas públicas de juventude no Brasil pós-golpe de 2016: o cenário de ataque aos direitos sociais, de Tarcisio Augusto Alves Silva, completa a série de artigos do fluxo contínuo. O autor identifica e debate, por meio de análise documental (leis, normas, documentos e declarações oficiais), as implicações do impeachment de Dilma Rousseff, em 2016, quanto às políticas públicas de juventude, especialmente implementadas a partir de 2003, tendo essas sido fortemente ancoradas na participação social. O período que se inaugura a partir de 2016 produz uma inflexão total nessa trajetória, quando passam a prevalecer os “ataques aos direitos sociais pelas políticas de austeridade desenvolvidas no Brasil”.
O penúltimo artigo tem como título “Eu esperava mais do Brasil”: vivências no trabalho de imigrantes no Brasil, assinado por Patrícia Henrich, Janine Kieling Monteiro, Anelise Schaurich dos Santos e Vanessa Ruffatto Gregoviski. O artigo analisa as experiências de inserção profissional e de trabalho de jovens imigrantes, oriundos do Senegal e Haiti, que se estabeleceram no Rio Grande do Sul. O estudo evidencia o caráter precário que predomina na inserção ocupacional desses imigrantes.
Para finalizar, contamos com “Uma veste provavelmente azul”: dominação e ditadura, de autoria de Nelson Lellis e Ricardo Ramos Shiota. Trata-se de uma interpretação sociológica do conto “Uma veste provavelmente azul”, de Caio Fernando Abreu, pelo prisma da dominação. Para tanto, estabelece um diálogo com abordagens que analisaram as relações políticas e sociais do Brasil no contexto da ditadura empresarial-militar iniciada em 1964.
Este número conta também com uma entrevista, uma tradução e uma resenha. A entrevista foi concedida por Maria Aparecida de Moraes Silva a Daniele Motta e Elaine Bezerra, a qual se intitula Memórias de afeto, política e formação: o encontro entre Maria Aparecida de Moraes Silva e Heleieth Saffioti. Na ocasião, a entrevistada foi convidada a recuperar a presença e influência de Heleieth Saffioti na sua trajetória de pesquisadora, assim como discutir sobre a contemporaneidade das contribuições de Saffioti para os estudos de gênero. Esta entrevista se amplia e completa o leque de abordagens que integra o dossiê Revisitando Heleieth Saffioti: aportes para pensar a atualidade de seus conceitos.
A tradução se refere ao texto Reprodução, habitus, campo: como Bourdieu pensa o trabalho?, de Maxime Quijoux, tendo sido realizada por Maurício Rombaldi. O artigo busca preencher uma lacuna no estudo do pensamento de Bourdieu, ao discutir como seus principais conceitos, “reprodução”, “habitus” e “campo”, podem ser aplicados à análise do mundo do trabalho e, sobretudo, dos trabalhadores. Evidencia que uma abordagem bourdieusiana dos trabalhadores permite pensar sobre suas subjetividades, vistas em uma dinâmica de longo prazo, assim como sobre as lutas simbólicas que envolvem a definição e a legitimidade de cargos e profissões.
A resenha Masculinidades petroleiras: trabalho e gênero na Argentina, escrita por Guillermo Stefano Rosa Gómez e Manoel Cláudio Mendes Gonçalves da Rocha, versa sobre o livro La producción de la masculinidad en el trabajo petrolero, de autoria de Hernán Palermo. O livro tratou de uma etnografia realizada junto a trabalhadores petroleiros na Argentina, no contexto da privatização da empresa petroleira estatal YPF. Sob uma referência gramsciana e da história social feminista, o autor discute o tema da masculinidade como um fenômeno social que se constitui a partir do ambiente familiar e dos espaços de trabalho. Nesses últimos, reconstitui os nexos entre a disciplina empresarial no trabalho e as relações de gênero, observados especialmente em um contexto de reestruturação produtiva.
Boa leitura!
Os editores
ISSN 1517-5901 (online)
POLÍTICA & TRABALHO
Revista de Ciências Sociais, nº 54, Janeiro/Junho de 2021, p. 9-11
Dossiê
Revisitando Heleieth Saffioti:
aportes para pensar a atualidade de seus conceitos
REVISITANDO HELEIETH SAFFIOTI:
aportes para pensar a atualidade de seus conceitos
REVISITING HELEIETH SAFFIOTI:
contributions to think about the relevance of her concepts
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Daniele Motta (Unesp)
Elaine Bezerra (UFCG)
Introdução
É com grande satisfação que entregamos ao público leitor mais um dossiê sobre o pensamento de Heleieth Saffioti, socióloga de peso para entendermos não apenas as relações de gênero, mas as desigualdades sociais como um todo. Seu pensamento foi base para a formulação dos textos presentes neste dossiê que acompanham, ainda, uma entrevista com Maria Aparecida de Moraes Silva, em que rememora sua relação com Heleieth, e uma tradução inédita da introdução de Eleanor Leacock na ocasião da publicação da edição em língua inglesa de a “Mulher na sociedade de classes”, no ano de 1978, pela Monthly Review.
O dossiê se ancora no resgate da formulação de Heleieth sobre as relações de gênero a partir da leitura do patriarcado e seu vínculo com as violências sofridas pelas mulheres. A ideia do patriarcado nunca foi abandonada pela autora, mesmo quando muitas(os) intelectuais, ao absorver o conceito de gênero, abriram mão do patriarcado, acusando-o de a-histórico e universal.
Heleieth Saffioti, a partir de sua forte formação marxista, nunca deixou de historicizar toda a teoria que formulava, os conceitos que trabalhava e não deixaria de fazê-lo com o patriarcado. Neste sentido, em vez de abandoná-lo, ela o situou em suas especificidades. É por isso que ela o entende como um fenômeno social em constante transformação, uma ordem social de dominação anterior ao capitalismo que se moldou para coexistir e potencializar o processo de dominação/exploração.
O não abandono do patriarcado foi fundamental para as suas pesquisas e ganhou força nos estudos sobre a violência de gênero. Para a autora, não é possível entender a endêmica violência que assola as mulheres sem a devida compreensão da estrutura patriarcal.
Sobre o Patriarcado e violência
A ideia de patriarcado é antiga. Segundo Delphy (2009), existem três sentidos para essa ideia: 1) o religioso, para quem “os patriarcas são os primeiros chefes de família que viveram antes e depois do Dilúvio” (p. 174); 2) o de modo de produção, em que pequenas comunidades agrícolas compostas de unidades de produção familiar são regidas pelo chefe de família, autoridade que é passada hereditariamente, de pai para filhos. O terceiro e último sentido é o feminista, para quem o patriarcado é um regime de dominação-exploração das mulheres pelos homens, uma formação social em que os homens detêm o poder, ou ainda, o poder é dos homens; ressaltando a opressão sofrida pelas mulheres.
No Brasil, muitas interpretações acerca da sociedade colonial e escravista se basearam na ideia da funcionalidade da família patriarcal para a ordem social escravocrata, tal qual a segunda concepção, todavia, mais especificamente apoiada na tradição weberiana, a dominação patriarcal é um tipo de dominação tradicional, com um sistema de normas baseado na tradição, na autoridade de um senhor, do chefe de família. Foi ancorada nessa ideia de dominação que diversos autores escreveram sobre a família patriarcal como o sustentáculo do Brasil colonial, baseada na ideia do senhor de terras como o patriarca, que centralizava o poder e a autoridade. O poder patriarcal é caracterizado por Max Weber (1991) como um sistema de normas baseado na tradição.
Heleieth Saffioti, em seu primeiro livro “A mulher na sociedade de classes” (1969), faz uma leitura que dialoga com a tradição do pensamento brasileiro, mas ressalta a posição que as mulheres ocupam na sociedade, já apresentando uma inovação no olhar para a questão. Segundo Motta (2020, p. 8), a leitura que Saffioti faz sobre “a relação de exploração/dominação como duas faces do mesmo processo, já a afasta da leitura de Weber, para quem as esferas (sociais, econômicas, políticas e culturais) devem ser analisadas de forma separada”.
A ideia de patriarcado mais bem elaborada por Saffioti tem um pressuposto feminista e entendemos que sua contribuição deve ser situada entre o diálogo da concepção feminista do patriarcado, a partir da leitura sobre a dominação das mulheres pelos homens, e as interpretações do pensamento social brasileiro, pois ela está preocupada em desvendar as desigualdades de gênero no Brasil. Mesmo em diálogo constante sobre a realidade brasileira, a autora está no campo dos estudos de gênero e é a partir da concepção feminista que defende o uso concomitante de gênero e patriarcado. Por isso, é preciso diferenciar o patriarcalismo (baseado na ideia de dominação weberiana) de patriarcado na acepção feminista, para que possamos prosseguir com o entendimento de tal concepção na obra da autora.
Duas importantes influências feministas para a leitura de patriarcado da Heleieth Saffioti são: Gerda Lerner e Carole Pateman. De Gerda Lerner (2019), a autora traz algumas concepções históricas sobre o embrião do patriarcado, tentando responder quando e como começou a dominação das mulheres pelos homens. De Carole Pateman (1993), Saffioti traz a concepção do patriarcado como um sistema político moderno, mostrando-o como uma relação não só privada (no âmbito da família), mas também civil. Para Pateman (1993, p. 40), “abandonar o conceito significaria a perda de uma história política que ainda está para ser mapeada”.
Segundo Heleieth Saffioti (2015), o conceito de gênero não explicita, necessariamente, uma desigualdade entre homens e mulheres; da mesma forma, o patriarcado não pressupõe uma relação de exploração. Por isso, é importante para a autora trabalhar gênero e patriarcado conjuntamente, pois são duas dimensões que constituem faces de um mesmo processo de dominação-exploração. Salienta que a dimensão econômica do patriarcado não está apenas na desigualdade salarial, ocupacional e na marginalização dos importantes papéis econômicos e políticos, mas inclui o controle da sexualidade e a capacidade reprodutiva das mulheres. O olhar para tais questões foi fundamental para o desenrolar da teoria feminista de viés marxista, pois “não há de um lado dominação patriarcal e, de outro, a exploração capitalista, não existe um processo de dominação separado de outro de exploração” (SAFFIOTI, 2015, p. 138).
Assim, para Saffioti, a violência é o elemento de manutenção da ordem patriarcal, pois é um dos mecanismos acionados pelo patriarcado para a manutenção dos privilégios masculinos e das desigualdades. As formas como as desigualdades de gênero se expressam no dia a dia são diversas: no trabalho, na política, na família, nos meios de comunicação, nos espaços de lazer etc. A expressão mais gritante da desigualdade de gênero é a agressão sofrida, que pode chegar ao extremo, como o feminicídio. Na atualidade, algumas intelectuais feministas têm sugerido a existência de uma “nova caças às bruxas”, levando a uma nova escalada da violência contra as mulheres. Essa ofensiva tem como base a articulação existente entre os homens, a família patriarcal, o Estado e os agentes do capital (BEZERRA, 2019). É com o olhar sobre como o patriarcado atinge as mulheres que Saffioti relaciona patriarcado e violência a partir das suas interfaces: simbólica, moral, física e sexual. Ao advogar pela manutenção do uso do termo patriarcado para interpretar essas relação, Heleieth oferece a seguinte síntese: é uma relação civil; dá direitos sexuais aos homens sobre as mulheres, praticamente sem restrição; apresenta relações hierárquicas, que invadem todos os espaços da sociedade; tem base material, ancorada na divisão sexual do trabalho; é uma estrutura de poder baseada tanto na ideologia como na violência (SAFFIOTI, 2015).
Assim, os textos que compõem este dossiê retomam essas contribuições de Heleieth Saffioti sobre a relação entre patriarcado e violência e as enriquecem com reflexões contemporâneas, os quais apresentaremos a seguir.
O primeiro texto que compõe o dossiê é uma tradução inédita da introdução feita pela antropóloga marxista Eleanor Leacock à publicação de “A mulher na sociedade de classes” em inglês pela Monthly Review Press, no ano de 1978. Eleonor chama a atenção para a importância da contribuição de Heleieth Saffioti no “esforço de definir as relações entre a questão da mulher e a luta de classes” e nos apresenta um potente diálogo a partir das formulações feitas por Saffioti. Ela organiza a obra em seis pontos centrais que aborda desde a tese central do livro, que é a marginalização da mulher na sociedade capitalista e a função da família na organização do capitalismo, passando pelo debate sobre as relações de sexo, raça e classe, ciência e ideologia, a organização das mulheres nos países centrais e no terceiro mundo e a luta pelo socialismo.
No texto seguinte: “A categoria ordem patriarcal de gênero no pensamento de Heleieth Saffioti: aproximações introdutórias”, Leonardo Nogueira destaca o pioneirismo de Heleieth Saffioti que teve que construir “veredas” teórico-metodológicas para interpretar a situação da mulher em um momento em que ainda não havia um campo de estudos consolidado. Também apresenta duas questões que considera como sendo um movimento articulado empreendido por Saffioti. A primeira é a utilização do materialismo histórico-dialético como método e sua coerência explicativa. A segunda é que esse recorte metodológico proporcionou a Heleieth chegar a uma interpretação que considera o patriarcado como uma estrutura de dominação e exploração das relações de gênero, raça/etnia e classe social em uma determinada época e território. Para o autor, a partir desse escopo, Saffioti considera impossível deduzir autonomia entre gênero e patriarcado na sociedade contemporânea e nega o caráter a-histórico do patriarcado, pois esse vive e organiza, também, o presente.
O texto da Mariana Pereira “Gênero e violência na experiência das trabalhadoras da indústria do vestuário” traz os resultados de uma pesquisa sobre os processos de violência vivenciados pelas trabalhadoras do setor de vestuário brasileiro. As contribuições das categorias gênero, patriarcado e violência, conforme elaborada por Saffioti, conduzem a análise que se centra especificamente na violência sofrida no ambiente de trabalho. As próprias características do trabalho que ainda é bastante taylorizado, com controles rígidos do tempo e da produção, é apresentado pela autora como mecanismos que impõem um exercício laboral perpassado pela violência. Os achados da pesquisa apontam que a principal violência relatada pelas trabalhadoras é o assédio moral, mas também aparece assédio sexual como uma prática ainda recorrente. Embora a violência seja um fenômeno feminino na indústria do vestuário, conforme aponta Mariana, isso não inviabiliza as práticas de resistência e a possibilidade da agência das mulheres. Esse é um apontamento importante, uma vez que dialoga com uma das principais críticas direcionadas ao conceito de patriarcado, bem como ao abandono de sua utilização.
O texto “Um diálogo com os estudos sobre violência de gênero de Heleieth Saffioti”, de autoria de Mônica Vilaça traz para o dossiê uma importante contribuição para refletirmos sobre os estudos que Heleieth faz sobre a violência de gênero, a partir da década de 1980, mostrando as influências, os diálogos estabelecidos e a reflexão metodológica para visibilizar as relações de dominação-exploração sofridas pelas mulheres.
Um dos pontos destacados pela autora é a relação entre a reflexão teórica e a ação prática, pensando como a crítica que Heleieth exerce sobre a falta de estudos e de estatísticas acerca da violência de gênero passa pela necessidade de construção de políticas públicas para combater tal situação. A construção do artigo relaciona a teoria do nó desenvolvida por Saffioti como base importante para a análise da violência contra as mulheres. Dessa forma, Monica Vilaça mostra como as relações de gênero-raça-classe são fundamentais para entendermos como elas estabelecem “condições para a produção de uma subjetividade capaz de reproduzir e suportar as práticas violentas”. Mônica ainda destaca a importância do método da autora ao estudar as mulheres em situação de violência, através de relatos e experiências de vida, que rompem com o silenciamento da situação. O texto reitera a importância de Saffioti para a pesquisa e a atuação junto ao Estado no combate à violência de gênero, mostrando toda a força de sua contribuição nessa tema de pesquisa e destacando sua análise genuína e compromissada.
O dossiê encerra com a entrevista Memórias de afeto, política e formação: o encontro entre Maria Aparecida de Moraes Silva e Heleieth Saffioti feita por nós (Daniele Motta e Elaine Bezerra) com Maria Aparecida de Moraes. A entrevista mostra a aproximação da entrevistada com Heleieth Saffioti; com sua dimensão professora (e inspiradora), colega, profissional e pesquisadora, permeadas por sua forte personalidade, que, segundo a entrevistada, “não se curvava a ninguém”.
O ponto de encontro de Heleieth com Maria Aparecida de Moraes foi a sala de aula. Enquanto estudante, trouxe suas memórias de uma professora dedicada e compromissada, que apesar de o contexto ditatorial em que lecionava não deixava de instigar seus alunos e alunas com os dilemas que vivenciavam. Entre as memórias de Maria Aparecida, as lembranças de uma graduação em Ciências Sociais em meio à ditadura militar instigam a leitura da sua entrevista.
O ponto alto desse diálogo com Maria Moraes é quando articula as reflexões de suas pesquisas na área da Sociologia Rural com as questões de gênero, a reflexão sobre o patriarcado e a ideia do nó de Heleieth Saffioti. Os detalhes da pesquisa de Maria Aparecida, mostrando o cotidiano de trabalho das mulheres no campo, estão relacionados com a teoria desenvolvida por Heleieth de maneira que nos auxilia a entender ainda mais suas formulações. Maria Aparecida Moraes nos dá uma verdadeira aula nessa entrevista! Por fim, a entrevistada avalia os desafios dos tempos atuais e ainda nos presenteia com um pouco mais do seu contato pessoal com Heleieth, enfatizando as relações que ela estabelecia com seu marido e sua mãe.
Os textos presentes no dossiê ajudam a recuperar a importância da formulação de Heleieth Saffioti para a análise dos dilemas sociais ainda hoje presentes.
As recentes contribuições da teoria feminista marxista destacam o patriarcado como uma noção importante para a análise, para a reflexão sobre as desigualdades de gênero no capitalismo e a importância de investigar o trabalho desempenhado pelas mulheres. Dessa forma, entendemos que, no Brasil, Heleieth Saffioti teve um importante papel, não só de pesquisa e difusão das desigualdades estruturais sofridas pelas mulheres, mas também de não deixar a noção de patriarcado cair no esquecimento, colocando-a na disputa da teoria social feminista.
Bruna Della Torre (2021, n.p) aponta que
o patriarcado foi historicamente a forma social que garantiu a exploração do trabalho reprodutivo: é preciso manter as mulheres em casa, controlar suas capacidades reprodutivas e sua sexualidade ingovernável, produzir subjetividades que desejem esse arranjo e, principalmente, tornar invisível esse tipo de trabalho.
Essas leituras contemporâneas, que se reivindicam feministas e marxistas, trazem à tona novamente a importância do patriarcado, situando-o não como um sistema autônomo, mas enovelado ao capitalismo (para usar uma expressão de Heleieth). Tais escritos, ainda que apresentem distinções da autora aqui estudada, dão força para as formulações de Saffioti, para quem gênero e patriarcado deveriam ser utilizados conjuntamente e no interior do processo social capitalista, dialogando, por sua vez, com as desigualdades de classe e raça. É por isso que defendemos que, enquanto houver capitalismo, é necessário analisar o patriarcado, e, portanto, retomar os ensinamentos deixados pela saudosa Heleieth Saffioti.
Referências
BEZERRA, Elaine. A nova escalada da “caça às bruxas” e a reprodução do capital em jogo. Teoria e Debate, São Paulo, ed. 191, 17 dez. 2019. Disponível em: https://teoriaedebate.org.br/estante/a-nova-escalada-da-caca-as-bruxas-e-a-reproducao-do-capital-em-jogo/. Acesso em: 07 out. 2021.
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ISSN 1517-5901 (online)
POLÍTICA & TRABALHO
Revista de Ciências Sociais, nº 54, Janeiro/Junho de 2021, p. 13-18
A MULHER NA SOCIEDADE DE CLASSES1
WOMEN IN CLASS SOCIETY
____________________________________
Eleanor Leacock*
Resumo
Tradução da introdução de Eleanor Leacock na ocasião da publicação do livro de Heleieth Saffioti, Women in class Society, no ano de 1978, nos Estados Unidos. Agradecemos à Monthly Review Press pela autorização para a publicação e a tradução do texto em português.
Palavras-chave: Mulher e capitalismo. Feminismo. Marxismo. Heleieth Saffioti
Abstract
Translation of the introduction by Eleanor Leacock on the occasion of the publication of the book by Heleieth Saffioti, Women in class Society, in 1978, in the United States. We thank Monthly Review Press for authorizing the publication and translation of the text in Portuguese.
Keywords: Woman and capitalism. Feminism. Marxism. Heleieth Saffioti
É importante para leitores falantes de inglês ter disponível a análise de Heleieth Saffioti sobre a mulher na sociedade capitalista. Essa análise, escrita há mais de uma década, por uma mulher latino-americana e com uma perspectiva latino-americana, foi uma contribuição para o esforço de definir as relações entre a questão da mulher e a luta de classes. Ademais, o livro não só apresenta um quadro de argumentação teórica sobre a opressão à mulher e a perpetuação das relações capitalista em geral, mas lida com a mulher em um país, Brasil, em um contexto detalhado que é necessário para todas as áreas.
No presente2, o que mantém o poder burguês é a divisão dentro da classe trabalhadora, e entre seus potenciais aliados. Nacionalmente, regionalmente e localmente, pessoas estão sendo colocadas umas contra as outras de acordo com sua raça, sexo, nacionalidade, religião e, cada vez mais, idade também. Uma forte coalizão internacional de viés socialista que trate da questão das mulheres poderia ter um papel importante para ajudar a explicar e superar essas divisões. Para construir essa coalizão, contudo, é preciso entender as variações nas posições das mulheres em países diferentes e classes diferentes. Esse entendimento, por sua vez, necessita de estudos e discussões que têm o escopo e o rigor do trabalho de Saffioti.
O problema apresentado em a “Mulher na Sociedade de Classes” pode ser agrupado em seis tópicos: (1) a marginalização econômica da mulher na sociedade capitalista; (2) funções mantidas pela organização familiar (ou parentesco, como coloca Saffioti) na sociedade capitalista; (3) relações entre sexo, raça e classe; (4) A organização da mulher nos países centrais e nos países de terceiro-mundo; (5) a ciência e a ideologia da “mística feminina”; e (6) a mulher e a luta pelo socialismo. Como Saffioti escreve no prefácio desta edição, uma grande parte dos seus trabalhos, empíricos e teóricos, nessa problemática da mulher, foram feitos na década seguinte da primeira edição de seu livro. Logo devo comentar sobre o significado dos pontos principais de Saffioti na relação com os seis tópicos, como eu os entendo, e observar algumas das direções de análises subsequentes que têm sido feitas.
A Marginalização da Mulher na Sociedade Capitalista
O ponto central de Saffioti é que a marginalização da mulher se deve à inabilidade da economia capitalista em empregar todas as trabalhadoras potenciais, e sua necessidade por um exército industrial de reserva que pode ser utilizado ou deixado de lado de acordo com as exigências econômicas. A posição da mulher não é tão somente baseada na demanda de família, como se concebe comumente, a estrutura familiar é baseada na marginalização da mulher, que é essencial para o capitalismo. Essa realidade é racionalizada pelo “complexo de masculinidade” e pela “mística feminina”, que socializam os sexos para seus papéis e os ajudam a se conformarem com a exploração de seu trabalho. Embora as lutas para reformar o status da mulher terem sido importantes, a liberação completa da mulher é impossível sem a participação igual na produção e na socialização concomitante dos afazeres domésticos. Esses objetivos são atingíveis somente na economia coletiva; consequentemente a libertação da mulher está intrinsecamente ligada à emancipação do homem. Contudo, Saffioti aponta que, enquanto o status da mulher tem melhorado consideravelmente nos países socialistas contemporâneos, a igualdade completa não é de forma alguma assegurada, mas requer uma luta contínua.
Traçando a história da mulher no Brasil, Saffioti explica mais dois pontos que são relevantes para entender a situação internacional da mulher. Primeiro, ao contrário da presunção comum, o capitalismo não tem sido o responsável por levar a mulher para dentro da produção. Ao contrário, com o desenvolvimento do capitalismo, a função produtiva formal das unidades familiares é adotada pela organização das indústrias e as mulheres são forçadas para fora da produção pública. Segundo, o Brasil, assim como outros países da América Latina, não pode ser comparado com a Europa feudal, como uma área subdesenvolvida que está agora sendo “modernizada”. O Brasil pode ser entendido somente em termos de formação deliberada de países de subdesenvolvimento capitalista pelos países de sistema capitalista central. A posição marginalizada do Brasil significa que o processo pelo qual a mulher foi empurrada para fora da produção pública, conforme o capitalismo se desenvolveu, tem sido mais extremo do que nos países centrais. E as ideias de docilidade das mulheres e autoridade masculina são definidas com respeito às mulheres brancas de classe alta, as quais eram mantidas rigidamente sob a “ordem senhorial escravocrata”.
Saffioti, então, está entre os acadêmicos que falam a partir do olhar sobre o subdesenvolvimento, projetado do mundo neocolonial, e tem explorado as implicações concretas desse na exploração das mulheres. A redução das atividades produtivas das mulheres, que ocorre quando os países coloniais são atraídos para uma economia totalmente capitalista, e a concomitante restrição das áreas nas quais elas exercem certo controle, tem sido documentada para outras áreas além do Brasil. Desenvolvimentos paralelos – e contraditórios que precisam ser avaliados em suas especificidades em cada país –, a atuação de algumas mulheres na burocracia governamental aponta para os problemas relativos à equalização da posição social e legal da mulher, sendo indevidamente mal paga por parte das corporações multinacionais.
A Família na Sociedade Capitalista
A estrutura de parentesco baseada no núcleo da família economicamente independente, na qual o assalariado masculino é associado ao sustento da sua esposa e filhos, é economicamente, socialmente, e ideologicamente de primeira importância para o capitalismo e, sem muitas evidências do contrário, o núcleo familiar é comumente apresentada como humano “natural” universal. No presente trabalho, e em outros3, Saffioti discute as múltiplas funções atribuídas à família capitalista. Economicamente, a família mantém a mulher como uma força de trabalho reserva que pode ser manipulada de acordo com as exigências econômicas: enquanto não são inseridas nas funções produtivas, trabalham de maneira desvalorizada e não remunerada para manter a produtividade do homem e para educar e socializar as gerações sucessoras de trabalhadores; socialmente, isso funciona como um amortecedor, mitigando a competição intensa do sistema capitalista; e ideologicamente, mistifica a marginalização econômica da mulher através da ficção de que a estrutura familiar flui naturalmente a partir dos atributos do homem e da mulher, e a presunção de que o salário do homem é suficiente para manter a família.
Esclarecimentos adicionais de organizações da família capitalista e da história de seu surgimento estão sendo oferecidos agora por diversas áreas e em períodos diferentes. A riqueza de novos dados sobre a mudança na função familiar, assim como as reinterpretações de antigos dados, estão sendo produzidos. Na tentativa de categorizar esses estudos, encontramos cinco limites de investigação: (1) análise de relações de produção em sociedade de “comunidade primitiva”, na qual grupos multifamiliares ou de parentes, em vez de núcleos familiares, são a base econômica e unidade reprodutiva; (2) reconstrução histórica do processo ligado por ambas as diferenciações de classe e relações de patriarcado entre os sexos; (3) estudos de trocas de funções familiares e da relação econômica entre homem, mulher, e crianças na transição para o capitalismo; (4) interpretação de parentesco e família entre os trabalhadores mais severamente explorados, tanto em nações colonizadas quanto entre povos racialmente oprimidos em nações colonizadoras, onde a forma de família nuclear idealizada é frequentemente menos praticável do que a poligamia e amplas redes de parentesco; e (5) exames de relações entre trabalhadoras femininas e migração e função familiar4.
Em cada área, o esforço tardio para definir a mudança de posição da mulher em termos de economia política levou a importantes discussões e debates. A formulação de Saffioti sobre a organização das funções múltiplas da família na sociedade capitalista é aparentemente direcionada contra posições que consideram que a liberação completa da mulher deve ser atingida através de reformas educacionais, ocupacionais ou políticas familiares, em vez de através da transformação social fundamental. Ela reafirmou recentemente que não é a família que coloca a mulher em posição inferior na força de trabalho e na sociedade, mas a necessidade do papel marginalizado da mulher como trabalhadora não remunerada e reprodutora da força de trabalho que é responsável pela organização da família e seu correspondente psicossocial. “A Instituição, família, a qual é vista como um obstáculo para a situação de desenvolvimento da mulher na direção paralela ao desenvolvimento do sistema econômico da sociedade de classes, não é nem um dos principais meios através do qual o sistema econômico pode sobreviver.5”
Em outro artigo recente, Saffioti explicita o problema com a formulação de Mariarosa Dalla Costa, cujo trabalho não pago da mulher na família produz diretamente uma mais-valia – nos termos precisos de Marx, Saffioti afirma, o processo é indireto – e também critica a alternativa de formulação da Ira Gerstein, em que a produção de poder de trabalho pelas famílias é “simples produção de insumos”, por meio da qual as pessoas controlam a distribuição de seus produtos. Ao contrário, Saffioti enfatiza a especificidade histórica da forma da família capitalista como “uma instituição social que é altamente adaptável à produção capitalista.” Ela também reitera a importante distinção a ser feita entre possibilidades disponíveis para a mulher em países capitalistas centrais, onde investimentos massivos em área não produtivas é possível, e em países periféricos, onde é o nascimento da sobrecarga de exploração do capitalismo6.
Relações entre Sexo Raça e Classe
Saffioti aponta que a categoria natural de raça, como a de sexo, é dimensionada pelo capitalismo, não somente para aumentar lucros, mas também para ocultar a natureza de exploração fundamental da classe. Talvez a contradição mais dolorosa na cena da política contemporânea está no fato de que as pessoas que compartilham o mesmo interesse principal de classe são consideravelmente colocadas umas contra as outras em virtude de sua raça ou sexo. A responsabilidade central para os leitores de Marx deve ser interpretar a interrelação de opressão por raça, classe e sexo em qualquer situação que eles estão tratando, para ajudar a alcançar o potencial revolucionário da luta em comum contra os três. É trágico, contudo, que o reconhecimento da exploração de classe como base comum foi exigido de maneira mecânica que ignora a opressão por raça e sexo e anula o poder da luta contrária a isso. Em outra ocasião, eu me referi à tendência prevalente em imaginar o capitalismo como um desenvolvimento europeu interno, centrado inteiramente na exploração de homens e brancos7. A consequência dessa visão é que a opressão dos não brancos, de forma dura e brutal, é de algum modo periférico ao modo de exploração dominante. Historicamente, todavia, foi a união da exploração de classe e raça em escala mundial que fez o triunfo da burguesia europeia possível. O tratamento histórico de Saffioti sobre as mulheres reafirma o fato de que a dupla opressão da mulher da classe trabalhadora e a tripla opressão das mulheres não brancas da classe trabalhadora é, e seguirá sendo, fundamental para a exploração do capitalismo. Facilmente observável dado que as condições refletem na realidade analítica8.
No Brasil, assim como nos Estados Unidos, a relação entre a opressão de raça e de sexo é reconhecida pelas primeiras feministas que se pronunciaram contra a escravidão. Contudo, embora as feministas no Brasil conseguiram ganhos importantes para as mulheres na educação e nas reformas legais, como mostra Saffioti, a maioria delas não superaram as ligações com seus privilégios de status de classe alta. A lacuna entre as mulheres de classe baixa e alta na América Latina colonial era enorme, não somente a respeito do padrão de vida, mas também à organização familiar e ao estilo de vida. Saffioti descreve a posição polarizada de mulheres brancas de classe alta e mulheres negras escravizadas definidas pela ordem senhorial escravocrata (Elinor Burkett forneceu recentemente dados similares sobre a elite indiana e mulheres negras no Peru colonial9).
Mulheres brancas das classes senhoriais no Brasil se casaram na adolescência. Elas foram criadas para honrar status patrimonial, assim como suas mães, e o luxo que possuíam era restrito ao confinamento de seus status em famílias de patriarcado rigoroso. Enquanto algumas poucas dentre elas, rebeldemente, tinham amantes ou usavam suas energias como gerentes habilidosas e capazes (para isso são sujeitos que incentivam mais pesquisas), a maioria delas foram pressionadas ao estilo social de dependência modesta, ainda que forrado por manipulações de seduções, dentro do padrão aceito para o comportamento feminino. A posição restrita da mulher na família de classe alta foi compensada pelo papel de chefe da casa, com poder de mando sobre a mulher escravizada. Como o chefe da família comumente reconhecia e se interessava pelo seu filho não legítimo, a família de classe alta estava em poligamia efetiva, embora a mulher não tivesse voz de fato e nem autoridade sobre seus filhos e seus empregados.
A estrutura familiar da classe alta pressupunha necessariamente uma estrutura familiar diferente entre os escravizados. Além disso, essa estrutura familiar era uma impossibilidade para as famílias brancas pobres, e Saffioti aponta que as filhas das famílias brancas pobres frequentemente seguiam o caminho da prostituição para se manter. Saffioti se refere à instabilidade e às leis do casamento que se tornaram características formais da família da classe trabalhadora. As efetivas estruturas de relações familiares das famílias trabalhadoras, a importância da ampla ligação de parentesco, o significado de mais liberdade pessoal para mulheres, diferenças entre negros e brancos, e as mudanças com o tempo são todos importantes temas para a investigação detalhada. A natureza da estrutura de parentesco nas comunidades independentes de escravos fugidos que seguiam se formando nas fronteiras brasileiras devem ser examinadas também, na medida em que os raros dados permitam, assim como os momentos em que as mulheres negras foram promovidas a posições de liderança, em sociedades afro-indígenas10.
Considerando que a diferença extrema entre a classe alta e a classe baixa da mulher brasileira foi modificada com o fim da escravidão, e o crescimento do proletariado urbano e da classe média, as líderes do movimento feminista em desenvolvimento seguiram em relações de contradições, entre os interesses delas como parte de uma elite e seus interesses como mulher. Essas contradições foram e são importantes em todo o mundo capitalista. Contudo, acredito ser justo dizer que tem havido um reconhecimento crescente entre as mulheres acadêmicas, profissionais e outras mulheres da classe média ou da elite, de que não é suficiente abordar as questões das mulheres dessa forma, e que, para se alcançar uma organização eficaz, é preciso encontrar maneiras de colocar o conhecimento e os recursos dessas mulheres no processo de aliança ativo.
Saffioti escreve sobre a divisão na organização da classe trabalhadora que resultou do viés masculino contra a mulher trabalhadora, principalmente nos sindicatos. Junto com as dificuldades práticas das mulheres em encontrar tempo além do trabalho e da família, e os efeitos de sua socialização como idealmente independentes, Saffioti aponta que essas atitudes negativas dos homens desencorajam mulheres a se organizar, embora elas fossem geralmente militantes o suficiente quando faziam greves. Quanto às contradições nos programas feministas, esse padrão é também contemporâneo e difundido. Ademais, esses programas coexistem com a divisão causada por discriminação racial institucionalizada e atitudes de supremacia branca.
É impossível não11 acentuar a importância dessas divisões no capitalismo contemporâneo. Trabalhadores, homens e mulheres ao redor do mundo estão sendo explorados diretamente pelas mesmas redes de empresas capitalistas. O capitalismo europeu agora depende da mesma mão de obra que construiu o capitalismo dos Estados Unidos: imigração em massa de trabalho dos países de terceiro-mundo, o que fornece trabalho barato, e evita o custo social de reproduzir a força de trabalho nacional, e pode ser usado para dividir a classe trabalhadora politicamente. A mulher constitui uma atividade importante no trabalho dos migrantes. Concomitantemente, corporações multinacionais localizadas em países de capitalismo central estão exportando indústria para países de periferia onde os trabalhadores podem ser mal remunerados, e esses trabalhadores são geralmente mulheres. Em suma, um verdadeiro proletariado internacional é construído em ritmo acelerado, e as mulheres são parte integrante nisso. Dado esse fato central no mundo contemporâneo, é de se imaginar que os detentores do poder usam todo o necessário em seu alcance para perpetuar o conflito e a discórdia, em estruturar relações competitivas entre trabalhadores por raça e sexo, e ver que essas relações são fortalecidas com declarações ideológicas de uma dependência “natural” da mulher e da inferioridade ou a irresponsabilidade dos não brancos.
Organizações Feministas
Em sua história, compassiva, mas crítica, da atividade feminista no Brasil, Saffioti oferece materiais valiosos com os quais os leitores que falam inglês não estão acostumados. Sua discussão da distinção entre feminismo burguês e feminismo socialista indica um passo extremamente importante para entender a posição da mulher economicamente e sua relevância para a organização que estava sendo formada no momento da escrita. Nos meus dias de estudante, em 1940, feminismo significava feminismo burguês na terminologia de esquerda, pelo menos nos Estados Unidos. Se bem me lembro, a suposição que foi difundida era a de que a organização dos problemas das mulheres tinha natureza contraditória em relação à organização dos interesses da classe trabalhadora. No entanto, muitas mulheres marxistas foram convencidas de que uma orientação feminista, que claramente envolve a vasta maioria das mulheres e suas necessidades, não é somente compatível com os objetivos da classe trabalhadora, mas é essencial para a sua realização. A análise de Saffioti sobre a importância da posição da mulher na família capitalista, que reproduz as relações capitalistas, é uma das declarações principais que subscreve essa convicção12.
Não que a definição de socialismo ou marxismo feminista resolva o problema de como construir uma unidade entre as mulheres de classe média (ou uma ocasional classe alta) e mulheres da classe trabalhadora, mas o problema é colocado em uma perspectiva viável. O próprio tratamento de Saffioti sobre o relacionamento de classe entre mulheres é puramente histórico, parando pouco antes do período contemporâneo, e falta informações sobre o estilo de vida contemporâneo e as atitudes de mulheres da classe trabalhadora. Ela vem conduzindo pesquisas sobre o trabalho de mulheres domésticas e nas indústrias13, o que irá preencher essa14 lacuna. No presente, existem trabalhos, debates e discussões contínuas entre mulheres do campo do marxismo ou um drástico compromisso sobre questões que são fundamentais para unir mulheres de classe média ou de elite e mulheres da classe trabalhadora, a nível local e nacional, e mulheres de nações capitalistas e coloniais, a nível internacional. Boletins informativos, matérias de estudos, assim como artigos formalmente publicados, estão discutindo as relações entre opressão por sexo e opressão por raça (Entendo que o maior problema aqui a ser superado são atitudes chauvinistas por parte de mulheres brancas e ajudá-las a reconhecer a necessidade de respeitar a liderança e a fala dos negros, de pessoas de outras raças e de nacionalidades de mulheres oprimidas); as diferentes direções e objetivos de curto prazo das mulheres em diferentes classes com relação à vida no trabalho e na família; os entendimentos diferentes entre objetivos de curto prazo e luta de longo prazo para o socialismo nas nações imperiais e nas nações que devem se juntar à luta para a libertação nacional; e as medidas a serem adotadas contra a discriminação no trabalho, em suas diversas formas, contra violência e brutalidades com mulheres, por cuidado infantil digno, escolas, moradia, e seus problemas imediatos, e construir uma direção de classe consciente entre as mulheres15.
Ciência e Ideologia
Saffioti desenha, dentro da estrutura marxista, a perspectiva holística da Antropologia, assim como o que ela acredita ser útil na Sociologia weberiana e na teoria de psicanálise freudiana: na análise de como se pratica a socialização, atribuições de personalidades e como sistemas ideológicos são formados em conformidade com as necessidades do capitalismo. Sua discussão de ciência como uma ideologia ilumina o processo consciente e inconsciente nos quais os conhecimentos científicos são usados para controlar ao invés de liberar. Os conhecimentos científicos são usados, efetivamente, para manipulação ideológica, e a fragmentação de seu esforço contribui para que isso seja possível. Saffioti aponta que a formulação determinante de Helene Deutsch na personalidade feminina deveria ter sido impossível na visão do conhecimento intercultural de antropólogos que estavam disponíveis no momento de sua pesquisa. O mesmo padrão está sendo repetido hoje: mesmo com a evidência clara do contrário, uma série de trabalhos argumentam que a dominância masculina e a submissão feminina, juntamente com a dupla norma para o comportamento sexual, são baseadas universalmente e biologicamente. Triste dizer, muitos antropólogos estão contribuindo para essa linha de argumentação.
Afirmações contemporâneas de dominação masculina como biologicamente baseadas e/ou universais têm várias funções além da de racionalizar diretamente o status quo. Elas normalmente representam uma regra matriarcal de mulheres oprimindo homens como uma alternativa à regra patriarcal de homens oprimindo mulheres no passado histórico. Desse modo, eles ocultam a natureza recíproca de relações de sexo igualitárias ou sociedade de “comunismo primitivo”, e a imagem de organização social como necessariamente envolvendo estruturas de dominação e submissão é perpetuada. Segundo, a imagem dos humanos, e principalmente dos homens, como basicamente agressiva e competitiva, é reforçada. Terceiro, a noção de igualdade de sexo é apresentada como ocidental e estranha às tradições de países de terceiro-mundo, quando, na verdade, a reciprocidade igualitária entre os sexos é encontrada em muitas culturas pré-coloniais16.
Duas outras linhas importantes de ataques ideológicos a mulheres merecem uma breve menção aqui. A primeira, o ataque a mulheres negras estabelecido por Patrick Moynihan. Ele construiu, a partir do conceito de cultura de pobreza de Oscar Lewis, o argumento de que as dificuldades dos homens negros eram, em grande parte, causadas pela força das mulheres negras. A segunda, um ataque às organizações de mulheres em geral, que vem crescendo rapidamente desde que o livro de Saffioti foi escrito. Isso foi difundido pela mídia com o jargão Women´s lib17, uma frase que distorce e trivializa os estágios iniciais do que necessariamente virá a ser o componente central na luta contra todos os tipos de opressão.
A Luta pelo Socialismo
Como eu já havia apresentado muitas vezes, a essência fundamental da análise de Saffioti é a de que a luta contra a opressão das mulheres e a luta pelo socialismo são inseparáveis. “Preconceitos que na superfície parecem atrasar o progresso da ordem do capitalismo se mostram no fundo ser fatores de peso que ajudam a mantê-lo”, ela escreve. Será preciso unir forças dos dois sexos, se “tornando consciente da tradição da época em que eles vivem e os meios de superação,” para erradicar a propriedade privada e a estratificação por sexo que a fundamenta. Somente na economia coletiva é possível a socialização das mães.
Saffioti escreve sobre a necessidade de mais desenvolvimento teórico para completar a luta contra a opressão de sexo nos países socialistas. Nesse sentido, reforço a importância de desenvolver a discussão de Engels de como a produção de comodities em si e a família como uma união econômica estavam historicamente ligadas. De acordo com essa afirmação, somente através da total erradicação de ambos a libertação das mulheres seria realmente atingida, ou, para colocar de uma outra maneira, o socialismo seria totalmente realizado. Contudo, ao mesmo tempo em que é importante ter um entendimento geral de porque isso é assim, para melhor compreender desenvolvimentos em países politicamente comprometidos com o socialismo, nossas preocupações imediatas nos Estados Unidos são o contrário. Nós ainda temos que definir precisamente a relação das mulheres com a produção, atitudes e objetivos em diferentes setores e da classe trabalhadora, e dentro dessa mistura de trabalhadoras e da pequena burguesia, facilmente confundida com a classe média, convergir interesses pela organização efetiva para a construção do entendimento revolucionário.
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Recebido em: 03/11/2020
Aceito em:: 02/01/2021
1 Tradução de Maria Roman. E-mail: maroman21@gmail.com. Revisão técnica da tradução: Daniele Motta e Elaine Bezerra.
* Eleanor Burke Leacock foi uma importante antropóloga feminista e marxista dos Estados Unidos, que viveu entre os anos de 1922 e 1987. Lecionou a cadeira de Antropologia na Brooklyn Polytechnic Institute, na New York University, e foi responsável por construir o Departamento de Antropologia da City College of New York, em 1972, onde permaneceu até a sua morte. Eleanor Leacock dedicou-se a pesquisas sobre populações nativas da América do Norte, sendo pioneira na reflexão de que essas sociedades só poderiam ser concebidas por meio de um olhar que levasse em consideração as consequências do processo de colonização sofrida por elas.
2 Todas as vezes que a autora tratar, no texto, do tempo presente, contemporâneo, refere-se à data da publicação do texto (1978), não aos dias de hoje, 2021 (nota das revisoras).
3 Os artigos recentes de Saffioti publicados em língua inglesa são Female Labor and Capitalism in the United States and Brazil, Women Cross-Culturally, Change and Challenge e Women, Mode of Production, and Social Formations.
4 Não é possível aqui dar mais do que uma amostra da literatura que, além dos trabalhos citados acima e dos livros conhecidos, como os de Sheila Rowbothan, levarão o leitor a outra recente biografia, pesquisa e debate. No primeiro e segundo tópicos, veja Mina Davis Caulfield, Universal Sex Oppression? A Critique from Marxist Anthropology; Eleanor Leacock, Women´s Status in Egaitarian Society: Implications for Social Evolution; os capítulos de Leacock e Ruby Rohrlich-Leavitt: Becoming Visible, Wanda Minge-Kalman; Household Economy During the Peasant to Worker Transition in the Swiss Alps e The Industrial Revolution and the European Family: The Institutionalization of Childhood as a Market for family Labor; Joan Scott e Louise Tilly, em Women, Work and the Family; e Eli Zaretsky, em Capitalism, the Family, and Personal Life. Para a discussão sobre a comunidade negra enquanto classe trabalhadora, ver Carol Stack, All Our Kin. Para migração, ver a edição especial do Anthropological Quarterly on Women and Migration. Mais materiais citados acima em “Mulheres e Desenvolvimento”.
5 Heleieth Saffioti, na obra Female Labor and Capitalism (p. 92).
6 Saffioti, em Women, Mode of Production, and Social Formations (p. 32-36).
7 Eleanor Leacock, em Class, Commodity, and the Status of Women.
8 Para mulheres negras nos Estados Unidos, ver Frances Beal, Double Jeopardy: To be Black and Female.
9 Elionor C. Burkett, em Dubious Sisterhood: Race and Class in Spanish Colonial South America.
10 Além do material de rodapé fascinante que Saffioti oferece, existem também referências úteis em C. R. Boxer, Women in Iberian Expansion Overseas, e Ann M. Pescatello, em Power and Pawn, The Female in Iberian Families, Sociesties, and Cultures. Para uma descrição personalizada da mulher no século XX, na Bahia, ver Ruth Landes, The city of Women; para informações sobre comunidades de escravos rebeldes e para referências sobre mulheres negras líderes, ver Richard Price, em Maroon Societies.
11 A palavra “não” está ausente do texto no original, foi incluída para a versão da tradução que segue. O objetivo, com o acréscimo da palavra, é dar um sentido para a frase que dialogue com o que a autora fala em seguida (nota da tradutora).
12 A influência de Mariarosa Dalla Costa foca na significância do trabalho feminino em casa e deve ser notado aqui (Mariarosa Dalla Costa & Selma James, na obra The Power of Women and the Subversion of the Community).
13 Refere-se às seguinte obras de Heleieth Saffioti, publicadas posteriormente: “Emprego Doméstico e Capitalismo”; “Do Artesanal ao Industrial: A Exploração da Mulher” e “Mulher Brasileira: Opressão e Exploração” (nota das editoras).
14 Saffioti e Helen Safa estão realizando um estudo comparando contextos, atitudes, estilo de vida e organização familiar das mulheres trabalhadoras de fábrica em São Paulo e na região metropolitana da cidade de Nova Iorque.
15 Os artigos citados, além do trabalho mencionado anteriormente, são: Mina Davis Caufield, em Imperialism, the Family, and Cultures of Resistence; Selma James, Sex, Race and Working Class Power; Diane K. Lewis, na obra A Response to Inequality: Black Women, Racism, and Sexism; e Helen Safa, Class Consciousness Among Working Class Women in Latin America: A Case Study in Puerto Rico.
16 Adicionalmente a alguns de meus artigos citados anteriormente, eu descrevo esses argumentos e dados em Society and Gender.
17 Women´s lib foi o movimento de emancipação das mulheres, que surgiu no fim de 1960 e seguiu até os anos 1980, principalmente nos países mais industrializados, e que imprimiu grandes mudanças políticas, intelectuais e culturais em todo o mundo (nota da tradutora).
ISSN 1517-5901 (online)
POLÍTICA & TRABALHO
Revista de Ciências Sociais, nº 54, Janeiro/Junho de 2021, p. 19-29
A CATEGORIA “ORDEM PATRIARCAL DE GÊNERO”
NO PENSAMENTO DE HELEIETH SAFFIOTI:
aproximações introdutórias
THE CATEGORY “PATRIARCHAL GENDER ORDER”
IN HELEIETH SAFFIOTI’S THOUGHT:
introductory approaches
__________________________________
Leonardo Nogueira1*
Resumo
Heleieth Saffioti é uma das principais intelectuais feministas do Brasil. Sua vasta contribuição se insere no âmbito do pensamento social brasileiro, nos estudos de gênero, na Sociologia do Trabalho e no debate sobre a violência contra as mulheres. Neste trabalho, procura-se enfatizar o caráter pioneiro de Saffioti ao articular gênero e patriarcado sintetizado na categoria “ordem patriarcal de gênero”. A partir de uma pesquisa bibliográfica, contemplando ensaios de Saffioti e de suas interlocutoras, apresenta-se a construção teórico-metodológica da categoria “ordem patriarcal de gênero”, tematizando a articulação entre o patriarcado, o racismo e o capitalismo, e o balanço crítico sobre gênero e patriarcado.
Palavras-chave: Gênero. Patriarcado. Ordem patriarcal de gênero. Heleieth Saffioti.
Abstract
Heleieth Saffioti is one of the leading feminist intellectuals in Brazil. Her vast contribution falls within the scope of Brazilian social thought, in gender studies, in the sociology of work and in the debate on violence against women. This work seeks to emphasize Saffioti’s pioneering character in articulating gender and patriarchy synthesized in the category patriarchal gender order. Based on a bibliographic research, covering Saffioti’s essays and her interlocutors, the theoretical-methodological construction of the gender patriarchal order category is presented, with the articulation between patriarchy, racism and capitalism and the critical balance on gender and patriarchy.
Keywords: Gender. Patriarchy. Patriarchal order of gender. Heleieth Saffioti.
Introdução
Qualquer leitora(o) ao se aproximar do pensamento de Heleieth Saffioti se indaga sobre a grandeza intelectual e o amplo alcance de sua produção no âmbito do pensamento social brasileiro e dos chamados estudos de gênero. Do seu estudo inaugural, intitulado “A mulher na sociedade de classes: mito e realidade”, ao último livro de sua trajetória, “Gênero, patriarcado, violência”, Saffioti nos legou uma capacidade singular ao colocar em diálogo os textos clássicos da teoria social crítica e as abordagens contemporâneas. Heleieth Saffioti foi uma intelectual marxista destacada ao atualizar a contribuição do diverso campo de estudos intitulado “feminismo socialista”. Sua vasta produção teórica adensou o estudo da produção e da reprodução social no capitalismo ao evidenciar o papel que as mulheres (e as relações de gênero) desempenham na totalidade social.
1* Assistente social, professor do departamento de Serviço Social da Universidade Federal de Ouro Preto e doutorando em Serviço Social na Universidade Federal do Rio de Janeiro. E-mail: leonardonogueira@ufop.edu.br
ISSN 1517-5901 (online)
POLÍTICA & TRABALHO
Revista de Ciências Sociais, nº 54, Janeiro/Junho de 2021, p. 30-48
Mesmo podendo incorrer em omissões, considera-se que o esforço teórico-metodológico da autora propiciou dois movimentos umbilicalmente articulados. O primeiro movimento consiste numa sagaz apropriação do método materialista histórico e dialético. Realizando uma exegese de sua célebre tese “A mulher na sociedade de classes: mito e realidade”, após décadas de acúmulo das teorias feministas de fácil acesso hoje, afirmar-se que Saffioti dissecou o conteúdo das relações de gênero subordinadas à lógica patriarcal na formação social brasileira. Assim, empreendeu um salto de qualidade na produção teórica no campo de estudos feministas ao discutir a hegemonia patriarcal nas relações de gênero a partir do debate da formação social brasileira.
O segundo diz respeito à compreensão da relação entre gênero e patriarcado. Para Saffioti, as relações de gênero possuem um caráter materialista-ontológico, enquanto o patriarcado, compreendido como relações de dominação-exploração, deveria ser compreendido como uma categoria historicamente situada. Enquanto gênero não designaria imediatamente relações de dominação-exploração, o patriarcado só pode ser compreendido como uma estrutura de dominação e exploração das relações de gênero, raça/etnia e classe social, ou seja, o patriarcado determina o modo de ser em uma determinada época e território.
Se para Pinto (2014), há na elaboração de Saffioti um “feminismo bem-comportado”, em razão de sua defesa e filiação ao materialismo histórico-dialético, neste trabalho procura-se visibilizar a radicalidade e o apreço pela crítica, inclusive, das interlocuções teóricas que empreendeu. Afinal, Saffioti foi uma intelectual insurgente que incorporou e questionou de Marx a Foucault, a exemplo de suas críticas à perspectiva socialista (SAFFIOTI, 2013) e a recusa ao poder na concepção foucaultiana (SAFFIOTI, 2004), afirmando o caráter dialético do seu processo de investigação.
Nesse sentido, Saffioti precisou construir autênticas “veredas” teórico-metodológicas para interpretar o significado e os fundamentos da dominação-exploração das mulheres na sociedade brasileira. No esforço de compreensão da realidade social, buscava entender a particularidade da exploração-dominação das mulheres em uma sociedade peculiar, sem, com isso, enveredar pelos esquemas comuns em algumas abordagens marxistas e os sedutores conceitos pós-estruturalistas que, per si, pouco dão conta de processos históricos concretos, mediatizados, necessariamente, pelo que a autora entende por formação econômico-social.
Para discorrer sobre a “ordem patriarcal de gênero” na formulação de Saffioti, divide-se este texto em duas seções, afora as considerações finais e a introdução. Na primeira seção, apresenta-se, fundamentalmente, o debate sobre a situação das mulheres na particularidade brasileira e o desenvolvimento da articulação entre gênero, raça/etnia e classe social, posteriormente apresentada como “nó” entre o patriarcado, o racismo e o capitalismo. Na segunda seção, apresenta-se o debate sobre gênero e patriarcado na perspectiva da autora e seus embates na apreensão ontológica-materialista do gênero e a determinação patriarcal.
A exigência histórica da articulação entre gênero, raça/etnia e classe social
nos estudos sobre mulheres no Brasil
Na década de 1960, após diversos intelectuais brasileiros travarem debates calorosos sobre o significado da colonização, da formação do povo brasileiro e sobre a transição à sociedade capitalista, ainda havia uma lacuna na elaboração: a condição das mulheres na sociedade brasileira, em especial após a desagregação da ordem escravocrata-senhorial e a constituição de uma ordem social competitiva, termos cunhados por Fernandes (2020). Ademais, outra lacuna abissal se apresentava à pesquisadora: a ausência de uma crítica radical ao papel que as mulheres cumprem e o lugar que elas ocupam nas sociedades capitalistas, em especial no capitalismo dependente. Até aqui, também, vale ressaltar que na década de 1960 não havia nenhuma formulação teórica de fôlego sobre o que hoje podemos designar como relações de gênero e patriarcado (evidentemente, me refiro às perspectivas feministas sobre patriarcado).
Nas reflexões travadas em sua tese de livre-docente, “A mulher na sociedade de classes”, pode-se observar o pioneirismo de Saffioti que, além de incontestável, é reconhecido por diversas intelectuais feministas que vão desde Helena Hirata à Lélia Gonzales. 1 A tese de Saffioti, sem dúvidas, “faz parte daquelas obras que permanecem na História” (GONÇALVES, 2013, p. 25).
Saffioti (2013) observou que o capitalismo exacerba as condições de apropriação privada dos meios de produção e do produto do trabalho já existente em outras formações sociais, evidencia o processo histórico de inserção das mulheres no que há de mais típico na sociedade burguesa: a relação de assalariamento e o mercado de trabalho. Em sua pesquisa, Saffioti demonstrou que as mulheres, assim como as(os) negra(o)s, não foram (ou foram tardiamente) absorvidas em ocupações marginais e precárias no mercado de trabalho formal assalariado (COSTA, 2019).
A autora considera que alguns aspectos, que “aparentemente” haviam sido superados de formações sociais anteriores, podem persistir no capitalismo, a exemplo da mobilização social de “fatores de ordem natural, tais como sexo e etnia” (SAFFIOTI, 2013, p. 58). Sendo assim, o recurso a esses fatores como justificativa para a não absorção na ordem social competitiva desviam “da estrutura de classes a atenção dos membros da sociedade, centrando-as nas características físicas que, involuntariamente, certas categorias sociais possuem” (SAFFIOTI, 2013, p. 59). Os fatores “naturais”, ao serem utilizados como justificativas para discriminações, não são elementos autônomos, ao contrário, são “mecanismos coadjutores da realização histórica do sistema capitalista de produção” (SAFFIOTI, 2013, p. 59).
Sendo assim, é no estudo da dinâmica das relações de produção que se deve buscar a “explicação da seleção de caracteres raciais e de sexo para operarem como marcas sociais que permitem hierarquizar, segundo uma escala de valores, os membros de uma sociedade historicamente dada” (SAFFIOTI, 2013, p. 60). De modo ainda mais contundente, “como até o presente nenhuma sociedade de classes extirpou definitivamente essa elaboração social de fatores naturais [...], o sexo operaria como fator de discriminação social enquanto perdurasse o modo de produção baseado na apropriação privada dos meios de produção” (SAFFIOTI, 2013, p. 60-61).
A autora considera ser fundamental a apreensão da dinâmica global do capitalismo ao evidenciar que, em determinados países centrais, houve deslocamentos significativos da “inferiorização” das mulheres, ao passo que nas economias dependentes isso se mostrava inviável. Ou seja, a dinâmica de subordinação de determinadas nações no capitalismo mundial possibilitou que se atenuasse as relações exploração-dominação decorrentes da elaboração social do “fator sexo” nas economias centrais. Por isso, o estudo das mulheres na sociedade brasileira implica considerar a dinâmica dependente do capitalismo que desenvolveu no país e o significado socio-histórico do vasto período que conforma o particular regime de classes sociais, isto é, o estudo da formação social brasileira. 2
Num diálogo com expoentes de seu tempo, entre eles Caio Prado Jr, Florestan Fernandes, Celso Furtado e Nelson Werneck Sodré, Saffioti sintetiza que o processo colonizador brasileiro “constitui não uma tentativa de implantação de um sistema econômico feudal, mas o estabelecimento de uma economia colonial dependente, servindo aos interesses do florescente capitalismo mercantil europeu” (SAFFIOTI, 2013, p. 203). Na esteira do pensamento desenvolvido por Prado Jr. (2011), a autora afirma que a economia escravocrata brasileira, na fase colonial e imperial, voltou-se para o mercado internacional por meio da exportação de produtos primários, agrícolas e minerais.3 Acrescenta também que, não cabe supor incompatibilidades entre os interesses da elite que se conformou no Brasil com as burguesias que se forjavam na Europa, salvo raras exceções. No estudo do período colonial, um elemento que se destaca na análise da autora é o significado do trabalho escravizado que se constituía, simultaneamente, em “mercadoria”, capaz de viabilizar grandes quantidades de capitais comerciais e “capital fixo” (propriedade do senhor de escravos). Nas colônias, no regime escravocrata (e extensivo), o trabalho escravizado era o meio mais eficaz para promover a acumulação originária nos termos de Marx (2013). Ao longo dos mais de 300 anos de escravidão, considerando as mudanças na dinâmica mundial, diversos elementos no plano interno e externo possibilitaram a abolição que, por sua vez, culminaram numa lenta e incompleta desagregação da ordem escravocrata-senhorial, afinal, ainda persistem traços arcaicos nos marcos do capitalismo dependente.
A análise empreendida em “A mulher na sociedade de classes” implica um duplo desafio: considerar o papel das mulheres no desenvolvimento da ordem escravocrata-senhorial e considerar o estatuto colonial na conformação do papel desempenhado pelas mulheres na ordem social competitiva. É a necessidade de se aproximar da realidade social que exige a apreensão das particularidades da formação social na análise da autora. Um dos pontos de partida de Saffioti, por exemplo, é o estudo da distribuição do poder na sociedade escravocrata-senhorial. Para ela, é naquele período que se forjam determinados complexos sociais que atravessam a história brasileira e são recuperados pela tradição escravocrata-senhorial para justificar o lugar que as mulheres ocupam na sociedade de classes (SAFFIOTI, 2013).
A autora considera que o tipo de colonização que ocorreu no Brasil está assentado no tipo de dominação patrimonial. Recorre a Max Weber, com a ressalva de que não objetiva tipificar nossa sociedade nos termos do autor, e a Caio Prado Jr., para sintetizar a dominação da época a partir de uma estrutura de poder “Estatal-patrimonial”. No entanto, as condições objetivas da colônia – dificuldades de comunicação, fiscalização, relações de autoridade chanceladas pelo rei – impulsionaram que os grupos/famílias que gozavam de prestígio com a Coroa passassem a ocupar uma posição central, desenvolvendo um tipo de “dominação patriarcal”. No século XIX, a dominação na sociedade brasileira já pode ser caracterizada como “patrimonial-patriarcal”, que já vinha se formando desde o início da colonização.4
A partir dessas condições da dominação patrimonial-patriarcal, qual a posição social das mulheres brancas e negras? Para Saffioti, “[...] cabia à escrava, além de uma função produtiva no sistema de bens e serviços, um papel sexual, via de uma maior reificação e, simultaneamente, linha condutora do desvendamento do verdadeiro fundamento da sociedade de castas” (SAFFIOTI, 2013, p. 236). No que tange ao lugar ocupado por mulheres brancas e negras nas relações sexuais à época, “estas se destinavam à satisfação das necessidades sexuais do senhor, enquanto às brancas cabiam as funções de esposa e mãe dos filhos legítimos” (SAFFIOTI, 2013, p. 238). As mulheres brancas, embora exercessem autoridade direta sobre a escravaria doméstica, desempenhavam um papel fruto de sua histórica socialização: presas ao lar, à autoridade do pai e/ou do marido. Os tabus sexuais que cercavam as mulheres, em especial as brancas, mantinham-se por meio de ameaças e várias formas de constrangimentos físicos e psíquicos. O casamento se apresentava como carreira inevitável e o convento, embora pudesse ser uma possibilidade de questionar a sujeição, também poderia ser mobilizado como uma ameaça aos comportamentos inadequados quando solteiras. Saffioti também destacou que, entre os grupos empobrecidos, recrutavam-se mulheres para a prostituição. É “óbvio que a castidade da imensa maioria das mulheres da camada senhorial foi possível graças à prostituição de outras. Filhas de brancos pobres, sem herança e cercadas de preconceitos contra o trabalho, subsistem recorrendo ao comércio do próprio corpo” (SAFFIOTI, 2013, p. 243). Em outra passagem, a autora arremata que a prostituição se valeu majoritariamente do aluguel de mulheres negras escravizadas pelos senhores, ampliando a exploração típica da escravidão.5
As mulheres também eram excluídas da participação na vida pública. O surgimento de sociedade secretas, por exemplo, proibiu de pronto a participação de mulheres. No entendimento de Saffioti (2013), a ausência de mulheres em espaços que discutiam a sociedade e os rumos da nação impactava diretamente na respectiva possibilidade de compreensão das condições políticas e econômicas em que viviam, mesmo sendo mulheres da elite. Para a autora, exemplo importante disso foi a exclusão das mulheres na participação do movimento abolicionista que se gestava entre segmentos da elite. Nem mesmo com a penetração de ideias liberais, foi possível remodelar a participação feminina, “[...] tal como acontecera com os movimentos visando à independência em relação à metrópole, a abolição seria também obra masculina” (SAFFIOTI, 2013, p. 251)6.
A situação das mulheres da elite, no que tange à propriedade da terra, também é um elemento importante para considerar a desigualdade. As mulheres não podiam ter a posse da terra e, nesse aspecto legal, igualavam-se às pessoas escravizadas. Algumas mulheres da elite herdavam terras, no entanto, mesmo tendo condições de gerir seu território acabavam sucumbindo ao casamento e à autoridade do marido.
Diante da conformação dos papéis destinados às mulheres na ordem escravocrata-senhorial, o processo de desagregação dessa ordem não proporcionou a emancipação das mulheres. Ao contrário, “extirpada a divisão em casta da sociedade brasileira, a determinação sexo ganha novo sentido, constituindo-se, [...] no disfarce adequado das tensões sociais geradas pela implantação do sistema capitalista” (SAFFIOTI, 2013, p. 253). Todavia, a autora observou ainda que a desagregação da ordem escravocrata-senhorial impactou diretamente a família patriarcal: i. proporcionou certa autonomia social, em especial, doméstica, dos mestiços e grupos escravizados; ii. provocou mudanças na conformação da autoridade do homem na família, tendo que se apoiar mais no papel econômico de provedor do que, exclusivamente, na tradição; iii. as mudanças se operaram com maior destaque nos centros urbanos do que no meio rural; iv. a imigração de trabalhadores europeus reforçou o estilo patriarcal das famílias.
Ademais, cabe considerar o cenário de desagregação da ordem escravocrata-senhorial para as mulheres. Com a abolição em 1888 e com a Constituição Federal em 1891, o voto censitário foi abolido oficialmente e os homens negros passaram, apenas formalmente, a ter direito ao voto7. No entanto, as mulheres, inclusive as brancas da elite, mantiveram-se alijadas dos sufrágios até 1934. Saffioti (2013) também desvela o fundamento econômico da prática da prostituição, muito mais vinculada à dimensão da exploração da força de trabalho das mulheres do que à discriminatória concepção de “desregramentos sexuais/morais” das mulheres tematizados à época. A autora também considerou os impactos da urbanização e a crescente industrialização na vida das mulheres8. Por fim, destacou que a alteração dos papéis postos às mulheres está relacionada à abertura de mercado de trabalho nas fábricas, lojas e escritórios, fato que contribuiu para romper o isolamento das mulheres brancas no âmbito privado-familiar.
Diante do exposto, fica explícito que Saffioti antecipa, em sua formulação da segunda metade dos anos 1960, debates que ainda seriam desenvolvidos pela crítica feminista. Trata-se da elaboração social do “fator sexo”, posteriormente tematizada pelos estudos de gênero e pela teoria das relações sociais de sexo, e da ideia de imbricação e articulação entre as relações de gênero, raça/etnia e classe social, base das discussões sobre a consubstancialidade e coextensividade das relações sociais (KERGOAT, 2010) na França e dos estudos interseccionais estadunidenses (CRENSHAW, 2002).
Embora se defenda que houve, de fato, uma antecipação aos debates e embates que os feminismos e as Ciências Sociais enfrentariam nos anos seguintes, não se pretende construir uma análise anacrônica do pensamento da autora, que buscou enfrentar seus desafios de pesquisa diante das condições objetivas da produção do conhecimento de sua época. A defesa de Oliveira (2019), ao considerar a existência de uma elaboração “embrionária” do patriarcado, na perspectiva feminista, no pensamento de Saffioti, é muito potente, pois não cabe afirmar a existência de uma elaboração do conceito feminista de patriarcado antes da década de 1970. Foi, a partir desse período, que tais formulações ganharam fôlego com as contribuições de Kate Millett, Christine Delphy e Heidi Hartmann9.
É nesse movimento dialético de compreensão da situação das mulheres em uma sociedade de classes – considerando na análise tanto o modo de produção quanto a formação social, além de que as classes são atravessadas por relações de raça/etnia – que podemos absorver a potência de sua tese sobre a formação de uma estrutura social complexa forjada a partir do capitalismo dependente, do racismo e do patriarcado. Na obra “A mulher na sociedade de classes”, Saffioti (2013, p. 82) salientou que “preconceitos de raça e sexo desempenham, pois, um papel relevante quer na conservação do domínio do homem branco, quer na acumulação de capital”.
Evidenciando o caráter dinâmico das relações de exploração-dominação, Saffioti (2013, p. 79) também afirmou que “a sociedade não está dividida entre homens dominadores de um lado e as mulheres subordinadas de outro. Há homens que dominam outros homens, mulheres que dominam outras mulheres e mulheres que dominam homens”. Essa afirmação não seria realizada se a autora não tivesse considerado as relações entre raça e classe para pensar a situação de exploração-dominação das mulheres. Mais uma vez, Saffioti deixou explícita a complexidade de sua formulação e sua destreza aos fugir de esquemas explicativos que pouco elucidam a realidade.
Na esteira das reflexões pioneiras de sua tese para o pensamento social brasileiro, Saffioti contribuiu com a Sociologia do Trabalho e, ao longo dos anos 1970 e 1980, publicou inúmeros artigos e livros com resultados de suas reflexões teóricas e pesquisas empíricas sobre as mulheres no mercado de trabalho e sobre o emprego doméstico10. A partir da segunda metade da década de 1980, a autora aprofundou sua perspectiva de articulação entre gênero, raça e classe, cunhando a expressão “simbiose” para evidenciar a imbricação entre o patriarcado, o racismo e o capitalismo.
Saffioti (1985) utiliza a noção de “simbiose” para apresentar, de modo mais complexo, o patriarcado-capitalismo responsável pela produção e reprodução das relações de exploração-dominação. Em diálogo crítico com os debates de Le sex du travail,11 publicado na França em 1984 e no Brasil em 1986, Saffioti (1985, p. 106) afirmou que “o capitalismo não pode ser pensado exclusivamente através da lógica do capital, ignorando-se sua outra face, ou seja, o patriarcado”. Dito de outra maneira, “defende-se, aqui, a tese da existência de uma lógica no MPC [modo de produção capitalista], entendido como resultado histórico da discutida simbiose” (SAFFIOTI, 1988, p. 148, grifo da autora). O esforço teórico-metodológico empreendido por Saffioti consiste em, concomitantemente, dialogar com os estudos sobre patriarcado e capitalismo e superar, nos termos da dialética materialista, as teses dual system em voga no período12.
Ainda na década de 1980, o debate em tela adquire uma inflexão teórica mais contundente com a caracterização da “simbiose” ao incorporar o racismo, elemento já presente desde a formulação na década de ١٩٦٠. Saffioti (1987) afirmou que há uma fusão entre três sistemas de dominação-exploração, ou seja, entre o patriarcado, o racismo e o capitalismo; criticou veementemente as análises que escolhem ao sabor do seu interesse um dos três sistemas ignorando algum elemento dessa tríade; destaca que não há harmonia e que a unidade entre os três sistemas está eivada de contradições; e, por fim, sinaliza que as classes dominantes são as verdadeiras beneficiadas com a “simbiose” dos três sistemas. A potência da análise cristalizada na obra “O poder do macho” pode ser sintetizada no seguinte excerto: “estes três sistemas de dominação-exploração fundiram-se de tal maneira, que será impossível transformar um deles, deixando intactos os demais” (SAFFIOTI, 1987, p. 67).
Aprofundando a perspectiva de articulação entre as categorias gênero, raça/etnia e classe, Saffioti (2004) discutiu a complexidade da realidade social utilizando, dessa vez, a metáfora do “nó/novelo” ao invés do termo “simbiose”. Essa metáfora parece ser fundamental para situar uma unidade na diversidade, presente na complexa trama de relações sociais. Não há dúvidas, a partir da formulação de Heleieth Saffioti, que o patriarcado, o racismo e o capitalismo possuem características peculiares que devem ser apreendidas de maneira historicamente determinada. No entanto, há que se considerar a realidade social como uma totalidade complexa e aberta, sempre passível de interações, a qual não cabe em modelos simplistas e arbitrários.
As relações de gênero, raça/etnia e classe social passam, diuturnamente, por inúmeras transformações, assentadas numa trama que envolve os consensos e as rebeldias possíveis na sociedade contemporânea.
Retomando o nó (Saffioti, 1985), difícil é lidar com esta nova realidade, formada pelas três subestruturas: gênero, classe social, raça/etnia, já que é presidida por uma lógica contraditória, distinta das que regem cada contradição em separado. [...] O importante é analisar estas contradições na condição de fundidas ou enoveladas ou enlaçadas em um nó. Não se trata da figura do nó górdio nem apertado, mas do nó frouxo, deixando mobilidade para cada uma de suas componentes (Saffioti, 1998). Não que cada uma destas contradições atue livre e isoladamente. No nó, elas passam a apresentar uma dinâmica especial, própria do nó. Ou seja, a dinâmica de cada uma condiciona-se à nova realidade, presidida por uma lógica contraditória (Saffioti, 1998). De acordo com as circunstâncias históricas, cada uma das contradições integrantes do nó adquire relevos distintos (SAFFIOTI, 2004, p. 125, grifo da autora).
Importante ressaltar que para Saffioti (2004), do ponto de vista analítico, não é um demérito analisar separadamente cada uma dessas estruturas, aliás, a própria autora lançou mão desse recurso. No entanto, um grande limite consiste em não (re)construir sínteses capazes de evidenciar a complexidade da realidade social estruturada a partir do patriarcado-racismo-capitalismo. Ou seja, após a abstração de um ou mais elementos da realidade social, é necessário realizar o caminho de volta, apropriando-se da totalidade social, “síntese de múltiplas determinações, portanto, unidade na diversidade” (MARX, 2011, p. 54).
Estudos de gênero, patriarcado e “ordem patriarcal de gênero”
O primeiro pesquisador a mencionar “gênero” foi Robert Stoller em 196313. Entretanto, o conceito ganhou uma formulação de fôlego na literatura feminista a partir de 1975, com a publicação do texto The traffic in woman: notes on the political economy of sex, de Gayle Rubin que buscava historicizar a construção de um sistema de sexo/gênero. Segundo Rubin (2017, p. 11), “um sistema de sexo/gênero consiste em uma série de arranjos por meio dos quais uma sociedade transforma a sexualidade biológica em produtos da atividade humana, nos quais essas necessidades sexuais transformadas são satisfeitas”. Embora tenha considerado a importância do artigo de Rubin, Saffioti aponta que a “elaboração social do sexo” não deve nos induzir a uma dicotomia “sexo” x “gênero”, como se o primeiro estivesse situado restritamente no campo da biologia e o segundo no campo da sociedade. Em outra direção, “a postura aqui assumida consiste em considerar sexo e gênero uma unidade, uma vez que não existe uma sexualidade biológica independente do contexto social em que é exercida” (SAFFIOTI, 2005, p. 44). É importante sinalizar que Saffioti também considerou, mais tarde, o papel das reflexões de Simone de Beauvoir sintetizada na célebre obra intitulada “O segundo sexo”, publicado em 1949. Nas palavras de Saffioti (1999, p. 160), trata-se da “manifestação primeira do conceito de gênero [...] é preciso aprender a ser mulher, uma vez que o feminino não é dado pela biologia, ou mais simplesmente pela anatomia, e sim construído pela sociedade”.
No Brasil, a difusão do termo “gênero” acontecerá a partir de 1986, com a publicação da primeira versão o texto Gender: a useful category of historical analysis de autoria de Joan Scott, revisto por ela em 1989. Scott (2019, p. 67) defendeu que “gênero é um elemento constitutivo de relações sociais baseado nas diferenças percebidas entre os sexos; e o gênero é uma forma primeira de significar as relações de poder”. Algumas estudiosas, como Saffioti, utilizava a expressão “categorias de sexo” para designar homens e mulheres como grupos sociais e as relações assimétricas que os constituíam. O caráter “relacional”, que já parecia óbvio nos chamados woman studies, em destaque nas décadas de 1960/1970, passou a ser encarado como o grande avanço da categoria “gênero”, traduzindo-se, portanto, em um certo pleonasmo do ponto de vista teórico-metodológico14.
Em diálogo crítico com o pensamento desenvolvido por Scott (2019), Saffioti construiu sua síntese sobre os limites e os avanços do gênero como categoria histórica, aspecto que se diferencia da formulação calcada na perspectiva do gênero cunhada no campo da análise. Para Saffioti (2005), a própria Scott, embora tivesse dado ênfase à dimensão analítica, também evidencia o caráter histórico do “gênero” ao estabelecer que esse é composto por elementos simbólicos, culturais, normativos, políticos e subjetivos.
Saffioti (2004, p. 116) sintetizou que “gênero diz respeito às representações do masculino e do feminino, a imagens construídas pela sociedade a propósito do masculino e do feminino, estando estas interrelacionadas”. A utilização do termo gênero, substituindo “categorias de sexo”, é pertinente diante do amplo movimento de crítica ao essencialismo biológico que se constitui nos estudos e lutas feministas e LGBT15. No entanto, Saffioti (2004, 2005) destacou que a dicotomia “sexo x gênero” no pensamento feminista pode recair, também, numa interpretação dicotômica do ser social, cindido, assim, entre “natureza x cultura”. Nesse tema, é salutar o diálogo de Saffioti com a obra “Para uma ontologia do ser social”, de autoria de György Lukács, pois é um ponto de inflexão fundamental na formulação tardia da autora ainda pouco explorado pela literatura que versa sobre sua obra16.
Todavia, a preocupação ontológica não é aleatória e nem tardia no pensamento da autora, ao contrário, desde o final dos anos 1980, Saffioti elabora sua recusa à chamada razão cartesiana. A razão cartesiana, na concepção de Saffioti (1991, 2009), separa o universal e o particular, a cultura da natureza, a razão da emoção e o corpo da mente. Saffioti destaca, em especial, a contribuição da crítica feminista ao dizer que “a ciência cartesiana não é neutra do ponto de vista de gênero” (1991, p. 143). Para a autora, na crítica feminista “o sujeito cognoscente já não é a razão isolada das demais dimensões da vida, mas um indivíduo historicamente particular, social, corporificado, interessado, emocional e racional” (1991, p. 143-144). Ao demonstrar que o racionalismo cartesiano não é neutro, Saffioti afirmou que se opera uma “masculinização” do pensamento, em outros termos, a concepção de razão dualista é fundamentalmente misógina, radicada numa “ontologia androcêntrica” que absolutiza a razão, o público e a autonomia, como espaço da essência do ser social circunscrito ao universo masculino.
Nessa direção, Saffioti (1991) destacou a importância do materialismo histórico-dialético ao conceber a “contradição” como elemento que compõe a realidade social e, portanto, que deve ser componente do exercício de apreensão do real. Não se trata de polos exclusivos, mas de polos em permanente processo contraditório. A autora se propôs a compreender o “ser social” por meio de uma “ontologia relacional”, explicitando o “caráter social dos sujeitos das relações de gênero, de classe e étnicas, ao contrário do positivismo, que descontextualiza tais agentes” (1991, p. 148). Assim sendo, o tecido social é constituído pelos produtos legados de outras gerações e pela capacidade e respostas novas construídas pelos agentes sociais em determinada época. O ser social possui uma natureza relacional que lhe é insuprimível. A similaridade e a diferença convivem na dinâmica relacional inerente à diversidade do ser social17, já as desigualdades são historicamente determinadas e construídas, ou seja, passível de transformação.
Na concepção de gênero construída por Saffioti, o processo de diferenciação do masculino e feminino diz respeito às três esferas ontológicas do ser, a inorgânica, a orgânica e a social. Diferenciações na esfera inorgânica/orgânica geraram diferenças sexuais e, à medida que há complexificação dessas duas esferas e surge a cultura, é possível apreender as possibilidades de representação do masculino/feminino, isto é, do gênero18. A constituição do gênero, na gênese do “ser social”, dá-se a partir de significados cunhados na diferença sexual inicialmente restrita à esfera orgânica. Com o processo de “desenvolvimento do ser social, as mediações culturais foram crescendo e, portanto, deixando cada vez mais remota e menos importante a diferença sexual. Como, porém, o ser social não poderia existir sem as outras duas esferas ontológicas, não se pode ignorá-las” (SAFFIOTI, 2005, p. 71).
No entanto, é no processo de “recuo das barreiras naturais” que corre o permanente processo de expansão das objetivações do ser social, processo contraditório que expressa a “determinação social” do ser e não a superação das esferas orgânica e inorgânica (LUKÁCS, 2013). O recurso à ontologia do ser social, inspirada em Lukács, permite compreender a conexão entre o complexo categorial do ser social, a determinação social no processo de recuo das barreiras naturais, o caráter histórico e heterogêneo das objetivações, e a incessante relação entre teleologia e causalidade (LUKÁCS, 2012).
É necessário tornar unitário o que o pensamento cartesiano separou: o corpo e a história. “Gênero” se inscreve no plano da história, mas não pode ser compreendido definitivamente separado do “sexo”. O gênero independe do sexo apenas no sentido de que não se apoia necessariamente no sexo para proceder à formatação do agente social. Há, no entanto, um vínculo orgânico entre gênero e sexo, ou seja, o vínculo orgânico que torna as três esferas ontológicas uma só unidade, ainda que cada uma delas não possa ser reduzida à outra. Obviamente, o gênero não se reduz ao sexo, da mesma forma como é impensável o sexo como fenômeno puramente biológico (SAFFIOTI, 2005, p. 70).
É por meio da cultura que o sexo se expressa a partir das relações de gênero. Sendo assim, a complexificação das relações sociais de uma dada época possibilita que o sexo seja expresso em relações de poder. Dito de outra maneira, gênero só se expressa como relações de poder se estiver inserido numa determinada trama de relações sociais pautadas em assimetrias e hierarquias que não se explicam como recurso exclusivo ao gênero.
A trajetória de Saffioti em seus estudos sobre a situação das mulheres na sociedade de classes e a aproximação crítica com a literatura feminista entre os anos 1970 e 1980 – das elaborações do feminismo radical ao feminismo materialista francófono – possibilitou à autora desenvolver um olhar particular sobre as relações de gênero que está sintetizado nas suas produções finais, especialmente na obra intitulada “Gênero, patriarcado, violência”, publicada em 2004. Além da trajetória de interlocução com o materialismo histórico-dialético e com o pensamento social brasileiro, o olhar particular de Saffioti para a relação entre gênero e patriarcado também se deu a partir das seguintes interlocuções: i. diálogo amplo e crítico com o pensamento feminista que embarcava na tese do dual systen: Christine Delpy em sua obra de referência L’ennemi principal: économie politique du patriarcat e Heidi Hartmann na sua síntese publicada no texto The unhappy marriage of marxism and feminism; ii. diálogo com as pesquisas históricas e analíticas de Gerda Lerner, na “A criação do patriarcado: história da opressão das mulheres pelos homens” e de Carole Pateman na obra “O contrato sexual”; iii. revisão crítica do debate de gênero pós-estruturalista a partir das formulações de Gayle Rubin, Joan Scott e Teresa de Lauretis. Com a revisão da literatura produzida por Saffioti, pode-se afirmar que é no diálogo com Lerner (2019) e Pateman (1993) que Saffioti extrai significativos argumentos para historicizar e conceituar o patriarcado.
Sobre a contribuição de Lerner (2019), Saffioti (2004, p. 119) afirma que “é muito cuidadosa na análise das evidências históricas”. Lerner (2019) realiza uma incursão histórica com o objetivo de compreender como o patriarcado se estabeleceu e se institucionalizou. Em sua obra, a autora explora um conjunto de elementos que discorrem sobre a relação entre a propriedade privada e a função reprodutiva das mulheres, a organização patriarcal do Estado e o papel de suas regulamentações morais/sexuais, a construção da dominação masculina, o papel dos mitos e da figura das divindades femininas, o significado do surgimento das grandes religiões monoteístas e a desvalorização das mulheres.
Para Saffioti (2005), Lerner realizou um estudo minucioso, desde as sociedades caçadoras e coletoras, evidenciando a possibilidade de relações mais igualitárias entre homens e mulheres nas sociedades em que havia uma interdependência econômica entre os trabalhos desenvolvidos por homens e mulheres. Remetendo-se ao tempo e à divisão sexual do trabalho nas sociedades caçadoras e coletoras, a partir de Lerner (2019), Saffioti (2005, p. 54) afirmou que o “exercício da criatividade exige tempo livre, e os homens, certamente, o usaram para criar sistemas simbólicos que inferiorizaram as mulheres, como também forneciam os elementos para a interpretação do cotidiano no sentido da constituição de sua primazia”.
No diálogo com Pateman (1993), Saffioti (2004, 2005) incorporou, prioritariamente, a ideia de que as mulheres são objeto do “contrato original” estabelecido entre os homens19. Pateman (1993), na esteira da Ciência Política, criticou a invisibilidade do caráter sexual do chamado contrato social, peculiar à modernidade, deixando explícito o papel do casamento, a figura do homem-marido e a subordinação das mulheres no matrimônio. Nas palavras da autora, “o contrato sexual é uma história de sujeição” (PATEMAN, 1993, p. 16)20 e é por meio desse contrato que se institucionaliza o chamado “patriarcado moderno”.
Segundo Saffioti (2005, p. 63), “focalizar o contrato sexual colocando em relevo a figura do marido permite mostrar o caráter desigual deste pacto, no qual se troca obediência por proteção”. Esses elementos contribuem para Saffioti (2005) afirmar que o patriarcado é expressão de poder político e que, nesse sistema, a diferença sexual é convertida politicamente em sujeição das mulheres. De forma sintética, o potencial da categoria patriarcado para o estudo das relações de gênero:
1. não se trata de uma relação privada, mas civil; 2. dá direitos sexuais aos homens sobre as mulheres, praticamente sem restrição. [...] 3. configura um tipo hierárquico de relação que invade todos os espaços da sociedade; 4. tem uma base material; 5. corporifica-se; 6. representa uma estrutura de poder baseada tanto na ideologia quanto na violência (SAFFIOTI, 2005, p. 62-63).
Quando Pateman (1993, p. 40) chamou atenção para a necessidade de se fazer “uma história feminista do conceito de patriarcado”, a contribuição de Saffioti é fundamental. No campo dos estudos feministas no Brasil, Saffioti discorreu sobre a importância de não diluir as relações de exploração-dominação das mulheres em conceitos mais palatáveis, ao sabor das perspectivas liberais.
A defesa da categoria patriarcado no pensamento de Saffioti não se reduz a um mero problema epistêmico. A autora está preocupada em explicitar com radicalidade um dilema que atravessou modos de produção, ressignificou-se com o capitalismo e segue se validando diariamente com recursos ideológicos, simbólicos e violentos. Utilizar o patriarcado nos estudos sobre gênero é uma necessidade e um compromisso histórico, pois se trata do “único conceito que se refere especificamente à sujeição da mulher” (PATEMAN, 1993, p. 39).
Com essas considerações, é impossível deduzir autonomia entre gênero e patriarcado na sociedade contemporânea. Igualmente, é impossível reduzir esse a uma estrutura histórica de um passado longínquo e distante, pois vive e organiza também o presente. Embora sejam categorias distintas, atualmente elas apenas se explicam articuladas historicamente. Destarte, é necessário mobilizar um conjunto de mediações que envolvam a forma de propriedade, as características assumidas pela divisão do trabalho, a formação das classes sociais e as relações étnico-raciais. A compreensão de gênero no pensamento de Saffioti é indivorciável das consequências teórico-metodológicas do “nó”: “não se trata de somar racismo + gênero + classe social, mas de perceber a realidade compósita e nova que resulta desta junção” (SAFFIOTI, 2005, p. 48, grifo nosso).
O esforço particular de Saffioti consiste em: i. compreender gênero a partir da ontologia do ser social; ii. compreender a construção histórica das desigualdades de gênero a partir da categoria patriarcado; iii. afirmar a determinação histórico-material do patriarcado nas relações de gênero.
[..] Gênero é aqui entendido como muito mais vasto que o patriarcado, na medida em que neste as relações são hierarquizadas entre seres socialmente desiguais, enquanto o gênero compreende também relações igualitárias. Desta forma, o patriarcado é um caso específico de relações de gênero. [...] a construção do patriarcado precisou de aproximadamente ٢.٥٠٠ anos: de ٣١٠٠ a.C. a ٦٠٠ a.C., quando apenas então teria se consolidado. Sua idade é, pois, segundo as evidências encontradas por esta historiadora [Gerda Lerner], de 2.400 anos. Somando-se os dois períodos, têm-se aproximadamente cinco milênios de dominação masculina (SAFFIOTI, 2005, p. 51).
Saffioti, ao sintetizar o patriarcado como um caso específico das relações de gênero, nos coloca diante de uma interpretação ontológica das relações de gênero e de uma concepção histórica do patriarcado. O pioneirismo de Saffioti, também no debate de gênero, é fundamental para (re)colocar o gênero no âmbito do processo mais amplo de humanização do ser social e para situar historicamente os elementos que reprimem o potencial da práxis social. Ao considerar o patriarcado uma determinação historicamente situada, Saffioti coloca em questão a necessidade de destruir essa forma de exploração-dominação para que possa se desenvolver relações igualitárias entre os seres humanos, que supere a “ordem patriarcal de gênero”.
Considerações finais
Nos limites do presente artigo, buscou-se discorrer sobre a construção teórico-metodológica da categoria “ordem patriarcal de gênero” cunhada por Heleieth Saffioti em seu complexo esforço de interpretação das relações sociais na sociedade contemporânea. Mais que um esforço restrito ao campo epistemológico, de afirmação e/ou negação das formulações de sua época, Saffioti se mostrou uma intelectual de notável cabedal teórico-cultural, preocupada com a necessidade de uma reflexão crítica e radical, capaz de desvelar as aparências, evidenciando os fundamentos que exprimem as relações entre gênero, raça e classe social.
Em 1962, Heleieth Saffioti iniciou sua incursão no âmbito dos chamados “estudos sobre mulheres”. Desde então, a preocupação com o estudo da sociedade como totalidade orgânica – e suas contradições principais: sexismo, racismo e classes sociais – é elemento fundamental do conjunto de sua investigação. O esforço da autora consistiu na compreensão das “contradições vividas pelos contingentes humanos em sociedade, desde que o ser humano descobriu como dominar-explorar outros seres humanos” (SAFFIOTI, 2009, p. 9). Fica evidente a preocupação histórico-ontológica de Saffioti, seu rigor teórico-metodológico e sua astúcia ao manejar as categorias centrais do materialismo histórico-dialético, como totalidade, contradição e mediação. Das formulações primeiras, ainda na década de 1960, às elaborações maduras, Saffioti nos exige um esforço de compreensão do real em suas múltiplas expressões sem, com isso, recair em análises fragmentárias e fugidias, afinal, é impossível “restabelecer a unidade do ser humano sem recorrer a uma abordagem ontológica” (SAFFIOTI, 2005, p. 40).
Nessa direção, em diálogo com as duas seções deste texto, é preciso concordar com Saffioti (2009) ao questionar e nomear quem se beneficia com a substituição da categoria patriarcado pelas teorias weberianas e pós-estruturalistas de gênero. Considerando que a teoria desempenha um papel fundamental, é necessário se questionar se os estudos de gênero dão conta do objetivo proposto: questionar e explicar a lógica de dominação-exploração vivenciada a partir das experiências gendradas. Ademais, a “pseudoneutralidade” dos estudos de gênero e a ocultação do sujeito fundamental na luta contra as relações de dominação-exploração acaba por reduzir o potencial dessa categoria ao tomá-la como alternativa ao patriarcado. Saffioti endossou a importância política da categoria patriarcado nos processos de mudança ao perceber o papel central das mulheres como categoria social explorada-dominada.
Em suma, Saffioti (2004, 2005) recusou o uso exclusivo da categoria gênero e, consequentemente, refutou as formulações que consideram o patriarcado uma categoria a-histórica que deve ser colocada no limbo do pensamento social. Se gênero é parte da construção do ser social, o patriarcado é produto histórico-social das relações de gênero pautadas em formas diversas de exploração-dominação. Isso implica reconhecer que não é possível explicar as relações de gênero isoladas dos contextos históricos nas quais se inserem. O caminho trilhado por Saffioti exigiu uma análise da particularidade brasileira para apreender o papel desempenhado e o lugar ocupado pelas “categorias de sexo” e, assim, a autora abarcou um conjunto de mediações que envolvem as relações raciais, o processo colonizador, o trabalho e o caráter dependente do capitalismo brasileiro. Uma análise preciosa que, para além das suas conclusões, nos colocam diante de um exercício crítico e dialético, capaz de explorar as determinações socio-históricas no decorrer da investigação de um objeto de pesquisa.
O legado de Saffioti analisado neste trabalho apresenta uma série de desafios que requisita considerar que: i. não há oposição entre objetividade e subjetividade nas relações sociais; ii. todo conhecimento é socialmente produzido e essa assertiva implica reconhecer o “ponto de observação” das pessoas que investigam a realidade; iii. a ideologia dominante, ou seja, da classe que explora e domina, é racista e patriarcal.
Como o patriarcado é produto histórico-social, para Saffioti (2009), o caminho das mudanças sociais se vincula à construção de uma educação livre da ordem patriarcal, para que seja possível estabelecer a chamada “ordem democrática de gênero”. Evidentemente, qualquer processo amplo e estrutural deve levar em consideração a existência do “nó” entre o patriarcado, o racismo e o capitalismo. Não há alternativa analítica e prática-política emancipatória se o referido “nó” não for desatado em sua totalidade.
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Recebido em: 27/09/2020
Aceito em: 03/03/2021
1 Na edição do livro “A mulher na sociedade de classes”, publicada pela editora Expressão Popular, além do precioso texto da professora Renata Gonçalves, há depoimentos na quarta capa de feministas imprescindíveis como Amelinha Teles, Helena Hirata, Maria Bethânia Ávila, entre outras. Lélia Gonzales, ao tecer críticas à interpretação de Caio Prado Jr. sobre as mulheres negras no livro “Formação do Brasil contemporâneo”, no artigo “racismo e sexismo na cultura brasileira”, indica que Saffioti deu “um baile no autor, dentro do mesmo espaço discursivo” (GONZALEZ, 2018, p. 200). O Instituto da Mulher Negra (GELEDÉS), fundado por Sueli Carneiro, publicou nota após o falecimento de Saffioti em 2010, na qual agradece à autora “pela vida e obra dedicada à emancipação das mulheres”, conforme o link https://www.geledes.org.br/obrigada-heleieth-saffioti-pela-vida-e-obra-dedicada-a-emancipacao-das-mulheres/.
2 O estudo da formação social brasileira é um aspecto medular na formulação de Saffioti e no seu pioneirismo. A necessária mediação entre as categorias modo de produção e formação social pode ser sintetizada na seguinte passagem: “um modo de produção, como fenômeno histórico que é, não surge inteiramente acabado. Em cada uma de suas concreções singulares, o tempo exigido para sua plena realização varia em função de numerosos fatores socioculturais específicos de cada sociedade” (SAFFIOTI, 2013, p. 58).
3 “Se vamos à essência de nossa formação, veremos que na realidade nos constituímos para fornecer açúcar, tabaco alguns outros gêneros; mais tarde ouro e diamante; depois, algodão, e em seguida café, para o comércio europeu. Nada mais que isso. É com tal objetivo, objetivo exterior, voltado para fora do país e sem atenção a considerações que não o interesse daquele comércio, que se organizarão a sociedade e a economia brasileira” (PRADO JR., 2011, p. 29).
4 A concepção de dominação patriarcal utilizada largamente no pensamento social brasileiro até os anos 1970 é bastante influenciada pelas ideias weberianas. Quando Saffioti remete à dominação patrimonial-patriarcal na obra “A mulher na sociedade de classes” para caracterizar o cenário da colonização, a autora não está se referindo à elaboração feminista sintetizada por Delphy (2009, p. 173) como “formação social em que os homens detêm o poder, ou ainda, mais simplesmente, o poder é dos homens”.
5 É imperioso, após essa passagem, evidenciar a primorosa análise de Collins (2015) que, na década de 1980, ao estudar a escravidão dos Estados Unidos, ressaltou o caráter patriarcal da estrutura escravocrata e o processo de objetificação de mulheres brancas e negras que fortalecem estruturas de opressão. “A escravidão foi uma instituição profundamente patriarcal. Ela se apoiava no princípio dual da autoridade do homem branco e em sua propriedade, uma junção das esferas políticas e econômicas dentro da instituição familiar. A heterossexualidade era presumida e era esperado que todos o(a)s branco(a)s se casassem. O controle sobre a sexualidade das mulheres brancas abastadas foi central para a escravidão, uma vez que as propriedades deveriam ser passadas aos herdeiros legítimos dos senhores de escravos. Assim, assegurar a virgindade e a castidade dessas mulheres brancas estava intimamente atrelado à manutenção das relações de propriedade” (COLLINS, 2015, p. 21).
6 Convém destacar que, nessa análise, Saffioti se vale de uma historiografia limitada. Há uma invisibilidade da luta das mulheres negras nas lutas/revoltas populares e nos quilombos, a exemplos das mulheres aguerridas como Tereza de Benguela, Luísa Mahin, Maria Felipa, Dandara e Aqualtune. Ademais, os achados históricos mais recentes têm visibilizado a atuação de mulheres no movimento abolicionista, conforme o importante ensaio de Muniz e Macena (2012).
7 Embora formalmente os homens negros tivessem o direito ao voto, na prática esse direito pouco se concretizava, haja vista fatores como o analfabetismo e o conjunto de estigmas decorrentes do racismo.
8 “[...] o alargamento dos horizontes culturais da mulher urbana, a limitação da natalidade, o recurso crescente ao processo legal da separação conjugal constitui dados reveladores de que a posição social da mulher vem sofrendo uma redefinição” (SAFFIOTI, 2013, p. 257).
9 “A principal referência encontrada na tese de livre-docência de Saffioti a respeito do conceito patriarcado diz respeito às leituras e análises de ensaístas, historiadores e sociólogos brasileiros que já haviam dissertado sobre o tema em suas obras sobre a formação do Brasil. São esses autores: Caio Prado Jr., Antonio Candido, Sérgio Buarque de Holanda, Gilberto Freyre e Florestan Fernandes” (OLIVEIRA, 2019, p. 61).
10 Para uma aproximação com o debate sobre divisão sexual do trabalho e emprego doméstico no Brasil a partir do pensamento de Saffioti, ver Costa (2019).
11 Saffioti (1987, p. 120) afirmou que Danièle Combes e Monique Haicault (1986), autoras do texto “Produção e reprodução: relações sociais de sexo e de classes” consideram como “típica do patriarcado a dominação, que entendem como fenômeno situado exclusivamente no domínio político-ideológico, e de imputarem a exploração puramente ao fenômeno das classes sociais, isto é, do capitalismo”.
12 Criticando as análises que recaem na ideia dos “sistemas duais”, Saffioti (2005, p. 65) afirmou que “não há, de um lado, a dominação patriarcal e, de outro, a exploração capitalista. Para começar, não existe um processo de dominação separado de outro de exploração. Por esta razão, usa-se, aqui e em outros textos, a expressão dominação-exploração ou exploração-dominação. [...] De rigor, não há dois processos, mas duas faces de um mesmo processo. Daí ter-se criado a metáfora do nó para dar conta da realidade da fusão patriarcado-racismo-capitalismo”. Em entrevista concedida em 2004, Saffioti (2011, p. 159) é categórica: “Não me agradam as categorias binárias, minha cabeça não funciona dessa maneira. Funciona com uma lógica contraditória, cuja existência descobri em 1985, quando também pensei no nó ou novelo ou, ainda, na simbiose, historicamente formada pelas contradições (pilares, antagonismos, eixos) fundantes da sociedade ocidental moderna. Esse tripé [patriarcado, racismo, capitalismo], na verdade, existe em qualquer sociedade atual, mas a prudência recomenda, pelo menos, uma limitação às sociedades ocidentais de hoje”.
13 Diante das controvérsias em relação à data em que o termo gênero passou a ser utilizado por Robert Stoller, opta-se pela periodização de Donna Haraway (2004).
14 “A natureza do ser social é, pois, relacional. Já que não se compreende o outro como oposto ao eu, a natureza deste não define a natureza do outro pela oposição a ele. Os outros podem ser semelhantes ao eu, como podem ser diferentes dele, a similaridade e a dessemelhança coexistindo em todas as dimensões da vida social. [...] não se trata, obviamente, de negar as polaridades socialmente construídas e, portanto, historicamente situadas” (SAFFIOTI, 1991, p. 164-165).
15 Não se pode deixar de considerar os avanços da categoria gênero no âmbito dos estudos sobre a construção da masculinidade, dos movimentos LGBT, em especial, na problematização sobre as identidades de gênero que rompem com as imposições do binarismo de gênero (NOGUEIRA, ٢٠١٤).
16 Convém destacar que Saffioti, já nos anos 1960, nutriu um diálogo com o pensamento do intelectual comunista húngaro, György Lukács, por ocasião da escrita da sua tese “A mulher na sociedade de classes” a partir da leitura da obra “História e consciência de classe: estudos sobre a dialética marxista”, publicado orginalmente em 1923.
17 Para uma apropriação mais contundente do potencial heurístico da categoria “diversidade humana” a partir das elaborações de Marx e Lukács, conferir o trabalho de Santos (2019). De forma sintética, a autora considera a “diversidade humana” como elemento constitutivo da individualidade, ou seja, a diversidade se apresenta no processo histórico de individuação do ser social.
18 É importante registrar que a ausência de uma devida problematização do significado do trabalho, da divisão sexual do trabalho e da sociabilidade construída a partir da cooperação, aspecto inerente ao desenvolvimento do ser social, obstaculiza o alcance da problematização de Saffioti (2004, 2005). Essa afirmação apenas endossa que a aproximação entre o debate de gênero de Saffioti e a relação com a concepção ontológica-materialista do ser social permanece como um espaço profícuo para a investigação. Alguns elementos introdutórios acerca dessa discussão encontram-se sistematizados em Nogueira (2018) e Nogueira, Pereira e Toitio (2020).
19 Convém evidenciar que o “fato de o patriarcado ser um pacto entre os homens não significa que a ele as mulheres não oponham resistência. [...] sempre que há relações de dominação-exploração, há resistência, há luta, há conflitos, que se expressam pela vingança, pela sabotagem, pelo boicote” (SAFFIOTI, 2005, p. 65-66).
20 Em entrevista concedida em 2004, Saffioti (2011, p. 158) destaca a importância dessa contribuição teórica: “há um livro estupendo, intitulado O contrato sexual, de Carole Pateman, uma cientista política feminista, que examina o contrato de casamento à luz das teorias do contrato, mostrando que esse tipo de contrato permite o estupro. O livro merece os mais exultantes encômios pela maneira como foi redigido e pelas evidências nele reveladas”.
GÊNERO E VIOLÊNCIA NA EXPERIÊNCIA DAS TRABALHADORAS
DA INDÚSTRIA DO VESTUÁRIO
GENDER AND VIOLENCE IN THE WOMEN WORKERS EXPERIENCE
OF THE GARMENT INDUSTRY
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Mariana Pereira de Castro1*
Resumo
Neste trabalho apresento os principais resultados de uma pesquisa sobre as situações de violência enfrentadas pelas mulheres da indústria do vestuário em seu ambiente de trabalho. O setor do vestuário é caracterizado pelo uso intensivo de mão de obra, precariedade e baixos salários. Além disso, o processo de trabalho é bastante taylorizado e profundamente marcado pela divisão sexual do trabalho. Dessa forma, ainda que seja um setor composto majoritariamente por mulheres, elas estão concentradas nos baixos níveis hierárquicos, com uma diferença salarial significativa em relação aos homens. Assim, as mulheres, expostas a uma maior vulnerabilidade, são as principais vítimas da violência no local de trabalho, sofrendo principalmente assédios moral e sexual. Para compreender esse cenário, a pesquisa foi realizada com base nos conceitos de gênero, patriarcado e violência, conforme elaborados por Heleieth Saffioti. De acordo com esse arcabouço teórico, os resultados indicam que a violência no setor do vestuário está associada a uma noção de feminilidade e que é intensificada na articulação com as relações sociais de classe, raça e sexualidade. Argumento também que, embora constantemente ameaçadas e violentadas, essas mulheres são capazes de construir estratégias de resistência, fugindo assim de seus destinos de gênero.
Palavras-chave: Gênero. Indústria do vestuário. Violência. Patriarcado.
Abstract
In this work I present the main results of a research on the situations of violence faced by women of the garment industry in their workplace. The garment sector is characterized by intensive use of labor, precariousness and low wages. In addition, the work process is quite taylorized and deeply marked by the sexual division of labor. Thus, although it is a sector composed mostly of women, they are concentrated in the low hierarchical levels, with a significant wage difference in relation to men. Thus, women, exposed to greater vulnerability, are the main victims of violence in the workplace, mainly suffering moral and sexual harassment. To understand this scenario, the research was conducted based on the concepts of gender, patriarchy and violence, as elaborated by Heleieth Saffioti. According to this theoretical framework, the results indicate that violence in the garment sector is associated with a notion of femininity and that it is intensified in the articulation with social relations of class, race, and sexuality. I also argue that, although constantly threatened and violated, these women are capable of building strategies of resistance, thus fleeing their gender destinies.
Keywords: Gender. Garment industry. Violence. Patriarchy.
1* Pesquisadora e feminista. Doutoranda em Ciências Sociais pela Unicamp. E-mail: marianapereiracastro@gmail.com
ISSN 1517-5901 (online)
POLÍTICA & TRABALHO
Revista de Ciências Sociais, nº 54, Janeiro/Junho de 2021, p. 49-66
Introdução
Neste trabalho, apresento algumas reflexões produzidas ao longo da execução do projeto “Promover os direitos humanos e fortalecer a ação sindical e a igualdade de gênero no setor de vestuário do Brasil”1. A partir das narrativas elaboradas pelas próprias trabalhadoras do setor, a pesquisa teve como objetivo conhecer os principais processos de violência enfrentados por essas mulheres, dar visibilidade a essas situações e contribuir com a elaboração de mecanismos de combate a essas violências. A coleta dos dados foi realizada entre os meses de março e junho de 2019, em dois principais momentos: a) oficinas regionais de construção de lideranças femininas; b) rodas de conversa com mulheres trabalhadoras.
As oficinas regionais foram realizadas entre março e maio de 2019, envolvendo as regiões Sul, Sudeste e Nordeste e com participação de 86 pessoas no total. Durante as oficinas foram realizados debates sobre violência contra a mulher, construção de lideranças locais e também foram espaço para a organização das rodas de conversa. As rodas de conversa, por sua vez, contaram com a participação de 160 mulheres e foram realizadas entre maio e junho de 2019, nas cidades de Venâncio Aires (RS), Pouso Alegre (MG), Ipirá (BA), Colatina (ES), Sorocaba (SP), Fortaleza (CE) e São Paulo (SP). Durante as rodas de conversa, as mulheres discutiram com maior profundidade os processos de violência que enfrentam ou já enfrentaram em suas vidas e no trabalho2.
Ao longo da pesquisa, as mulheres identificaram 71 tipos e subtipos de violência a que foram submetidas, dentro e fora do local de trabalho3. Neste artigo, detenho-me sobre os processos de violência relacionados diretamente ao ambiente de trabalho. A escolha por privilegiar esse recorte se justifica pelo fato de que a maioria das análises sobre violência de gênero trata da violência doméstica. Assim, considero relevante lançar luz à violência enfrentada pelas mulheres em seus locais de trabalho, o que torna evidente o quanto a violência de gênero se espalha por todos os espaços da sociedade.
Neste trabalho, analiso os principais achados da pesquisa de acordo com as contribuições de Heleieth Saffioti, especialmente a partir dos conceitos de gênero, patriarcado e violência elaborados pela autora. Esses três conceitos são centrais nas análises de Saffioti, estando presentes em praticamente toda a sua obra, e se mostram ainda bastante atuais. Concordo, assim, com a proposição da autora, ao entender os conceitos de gênero e patriarcado como complementares, de forma que um não pode substituir o outro sem cair em um reducionismo teórico (SAFFIOTI, 2004).
Saffioti (1987, 2004) compreende gênero como as representações sociais construídas em torno do feminino e do masculino. Ao mesmo tempo em que o conceito é uma recusa ao essencialismo biológico, é também uma recusa ao essencialismo social. Assim, a autora assume que não podemos entender gênero como puramente social, nem mesmo sexo como puramente biológico. Para Saffioti, gênero é um conceito mais amplo, elaborado a partir da diferença sexual e que não necessariamente implica em hierarquia e desigualdade.
Todavia, na sociedade contemporânea, as duas categorias de sexo não são apenas diferentes, mas também são desiguais. É nesse ponto que o conceito de patriarcado se mostra imprescindível. Para Saffioti (2004), o patriarcado é um sistema de dominação e exploração das mulheres pelos homens. Longe de se limitar apenas ao âmbito das relações privadas, ele atravessa também a sociedade civil e o Estado. Assim, as relações patriarcais, suas hierarquias e estruturas de poder contaminam toda a sociedade. Nesse sentido, o patriarcado funciona como uma engrenagem, quase automática, que pode ser acionada por qualquer pessoa, inclusive mulheres.
Dessa forma, enquanto gênero é um sistema mais amplo, uma elaboração social da diferença sexual, o patriarcado seria um caso específico de relações de gênero, que hierarquiza seres socialmente desiguais. A partir disso, a autora elabora a ideia de um “sistema patriarcal de gênero”, que é extremamente abrangente nas sociedades urbanas, industriais e ocidentais, do qual ninguém escapa.
Na ordem patriarcal, o gênero traz a violência em seu cerne. Ao naturalizar a dominação dos homens sobre as mulheres, a sociedade acaba também por naturalizar as relações de violência entre os gêneros. Compreender a violência de gênero não é uma tarefa fácil, uma vez que há um limite muito tênue “entre a quebra de integridade e obrigação de suportar o destino de gênero traçado para as mulheres” (SAFFIOTI, 2004, p. 75). Na pesquisa realizada, essa tenuidade é ainda mais presente, pois no ambiente de trabalho a hierarquia de classe é presumida.
Para analisar esse difícil cenário, adoto a proposta de Saffioti (2004) de compreender a violência não só como a ruptura da integridade individual dos sujeitos, mas como todo agenciamento capaz de violar os direitos humanos. Para isso, é importante perceber como os direitos humanos são informados pelas relações sociais. Assim, compreendê-los exige levar em conta os processos de diferenciação, ou seja, olhar para o emaranhado de relações que compõem a sociedade e que classificam e hierarquizam os indivíduos. Nesse ponto, o conceito de nó elaborado pela autora é bastante importante, pois nos permite analisar como essas relações sociais se articulam e produzem desigualdades.
Para Saffioti, a sociedade capitalista ocidental é atravessada por três contradições fundamentais: gênero, raça e classe. Apesar de apresentarem lógicas distintas, essas três contradições sociais não “correm paralelamente”, mas se combinam ao longo da história, formando um nó. Todavia, trata-se de um nó frouxo, que permite a mobilidade de cada uma de suas componentes. Isso não significa que cada contradição atue isoladamente, mas que de acordo com o contexto histórico o nó pode apresentar contornos distintos, colocando uma contradição mais em evidência que as outras. Isso possibilita que não tomemos nada como fixo, e que compreendamos essas relações sociais de forma contextualizada (SAFFIOTI, 2004, 2019).
Partindo dessa ideia, chegamos à conclusão de que, por mais que a violência e as desigualdades de gênero atinjam todas as mulheres, elas não são sentidas da mesma forma por todas elas. É o que Saffioti chamou de “ordem das bicadas”4 em que a hierarquia social é informada pelas contradições fundamentais. Assim, a articulação dessas relações sociais se traduz em estruturas de poder e hierarquias, que colocam determinados sujeitos em situação de maior vulnerabilidade.
Na pesquisa realizada, as relações sociais de classe, gênero e raça estão fortemente imbricadas, e ainda acrescento a sexualidade como um fator importante para a compreender as relações de gênero no trabalho5. Assim, é a partir do entendimento da articulação dessas contradições sociais em um nó, bem como da elaboração de Heleieth Saffioti sobre gênero, patriarcado e violência, que a análise das situações de violência enfrentadas pelas trabalhadoras da indústria do vestuário foi realizada. Espera-se que este trabalho contribua, portanto, “para tornar ainda mais visíveis as várias modalidades de violência praticadas contra as mulheres” (SAFFIOTI, 2004, p. 44).
A violência no processo de trabalho
O ramo do vestuário é composto por quatro segmentos produtivos: produtos têxteis, vestuário e acessórios (indústria da confecção), calçados e artigos de couro. É um setor de grande peso na economia brasileira, sendo o segundo maior empregador da indústria de transformação do país (ABIT, ٢٠١٩). Apesar da grandiosidade, é marcado pelo uso intensivo de mão de obra e pela precariedade, com altos índices de informalidade e rotatividade (COLOMBI; LEMOS; CORRÊA, 2019). Também é caracterizado pelos baixos salários, sendo o rendimento médio da categoria de até dois salários-mínimos (DIEESE, 2019).
Tradicionalmente, a indústria do vestuário conta com uma grande presença de mulheres em sua base. Segundo dados divulgados pelo Departamento Intersindical de Estatística e Estudos Socioeconômicos (Dieese), em 2017, as mulheres eram 58% da categoria, com destaque para o setor de vestuário e acessórios (73,1% de mulheres) e o setor de calçados (50,4% de mulheres). Considerando o setor têxtil e confecções juntos, as mulheres somam 75% da mão de obra (DIEESE, 2019).
Embora sejam maioria, em geral as mulheres ocupam os cargos mais baixos na hierarquia empresarial. Na pesquisa realizada, a grande maioria das mulheres ouvidas eram costureiras. Quando não o são, ocupam, no máximo, cargos de médio comando, como supervisoras ou encarregadas de produção. Assim, quanto maior a hierarquia, menor a presença de mulheres. Esses dados são condizentes com os observados por Leone e Teixeira (2013), que demonstram que há predominância masculina nos níveis superiores de hierarquia em todos os setores da economia.
Como costureiras, as mulheres desempenham um trabalho altamente fragmentado e repetitivo. Ainda que o setor do vestuário tenha passado por grandes transformações com a reestruturação produtiva, o trabalho realizado pelas mulheres ainda é bastante taylorizado. Isso é explicado pela forma como se deu a mundialização das cadeias de produção do vestuário. De acordo com Márcia Leite, Sandra Silva e Pilar Guimarães (2017), a partir dos anos 1990, observa-se a concentração da concepção dos modelos e coleções nos países centrais, sendo a costura realizada nos países periféricos, onde a mão de obra é mais barata. Nesses países, aí incluído o Brasil, esse processo intensificou a terceirização e a multiplicação do trabalho em domicílio ou em pequenas oficinas, em geral em piores condições de trabalho.
Os achados da pesquisa reforçam essa interpretação. A partir dos relatos das mulheres que participaram da pesquisa, podemos perceber que elas estão envolvidas em um processo de trabalho fragmentado, com um rígido controle do tempo de produção e muito marcado pela divisão sexual do trabalho. Esse cenário é reiterado por outras pesquisas, como as realizadas por Cibele Rizek e Marcia Leite (1998) e por Alice Rangel de Paiva Abreu (1994), que demonstram que, a despeito da reorganização produtiva do setor industrial, as mulheres continuam realizando trabalhos tidos como desqualificados, que são repetitivos, fragmentados e com controle hierárquico estrito. Nesse sentido, os principais processos de violência sofridos estão relacionados a essas características do trabalho.
Ao pedir que as trabalhadoras narrassem os processos de violência que enfrentam ou que já vivenciaram, o assédio moral foi o tipo mais citado. O assédio moral envolve uma série de violências, desde o excesso de vigilância e cobrança, à prática de gritos e humilhações públicas6. Dos 71 tipos e subtipos de violência mencionados durante as atividades, praticamente metade eram relacionados a práticas de assédio moral. Dentre as principais, destacam-se: humilhações, gritos, perseguição, controle estrito do tempo, abuso de autoridade, excesso de pressão e estímulo à rivalidade.
Apesar de reconhecerem que o assédio moral atinge todo o conjunto de trabalhadoras(es)7, as mulheres relataram se sentirem mais atingidas do que seus colegas homens. Na visão delas, os homens não passam pelos mesmos processos de assédio moral que elas, muito menos por assédio sexual. Quando questionada sobre o porquê de as mulheres serem mais vítimas de violência, uma participante respondeu: “Eles não vão gritar com um homem, porque aí é de igual para igual. O homem vai se impor, não vai aceitar. Com a gente eles gritam, porque acham que somos mais fracas”. Ou seja, a violência de gênero “não ocorre aleatoriamente, mas deriva de uma organização social de gênero, que privilegia o masculino” (SAFFIOTI, 2004, p. 81). Dessa forma, em suas falas, as mulheres se queixam da diferença em relação aos homens, tanto no que diz respeito ao conteúdo do trabalho, à desigualdade de remuneração, quanto no tocante ao tratamento que recebem da gerência.
Pensando a divisão sexual do trabalho
Para entender por que as mulheres são as principais vítimas de violência nos locais de trabalho, precisamos entender como o gênero é operacionalizado nesse processo. No tocante ao conteúdo do trabalho, existe uma marcada divisão sexual do trabalho na indústria do vestuário. Assim, a identidade social de mulheres e homens é construída por meio da atribuição de distintos papeis. No caso analisado, é possível observar tanto o princípio da separação – há trabalhos que são vistos como femininos e outros como masculinos – quanto o da hierarquia: os trabalhos das mulheres são lidos como habilidades naturais e, assim, são menos valorizados e mais mal remunerados (HIRATA; KERGOAT, 2007).
Nas empresas do segmento da confecção, por exemplo, a função de cortador é ocupada exclusivamente por homens. Outra função que é ocupada exclusivamente por homens é a de mecânico. Ambas as funções são mais bem remuneradas que as funções tradicionalmente ocupadas pelas mulheres. Muitas vezes, esse “trabalho de mulher” é visto como uma habilidade natural, inscrito em uma suposta “natureza feminina”. Nesse sentido, José Dari Krein e Bárbara Castro (2015, p. 7) argumentam que “ao naturalizar as habilidades necessárias para desempenhar uma determinada tarefa, acaba-se por desqualificar quem as realiza”.
Um relato ouvido durante as rodas de conversa explicita essa questão. Uma participante relatou que era faxineira e, ao ficar desempregada, resolveu buscar um novo trabalho na indústria da confecção:
Eu falei para mim mesma: hoje eu vou procurar um emprego de costureira, eu não sou não, mas eu vou. Peguei minha carteira e fui lá na fábrica. Quando eu entrei lá, fui fazer um teste de costureira, era três meses. No primeiro dia eu colocava a peça de cabeça para baixo, eu fazia a costura errada, eu fazia fora da linha, entendeu? Aí um dia chegou a encarregada e falou assim: ué, você não falou que era uma costureira? Eu falei: eu sou uma costureira. [...] Mentira, que eu nunca tinha sido costureira. [...] Eu levava uma saia velha como avental, era vermelha, ajudava porque o sangue é vermelho né. Eu enfiava ali meus dedos no meio dos panos, da saia e continuava a fazer as coisas. E com isso passou os três meses e eu fiquei lá. Fiquei lá dezoito anos.
Entendemos que o simples fato de ser mulher, de certa forma, já a qualificava para o trabalho, independente se ela tinha ou não as habilidades necessárias para desempenhá-lo. Contudo, essa habilidade, que concretamente foi adquirida, era, ao mesmo tempo, desvalorizada. Essa desvalorização do trabalho feminino muitas vezes contribui para que essas mulheres sejam as principais vítimas de violência.
Além disso, na pesquisa realizada, foi possível constatar que a divisão sexual do trabalho se amplia para além do sexo biológico e passa a informar também sobre as representações sociais de gênero inscritas na sexualidade. Nesse sentido, concordando com Elizabeth Souza-Lobo (2011, p. 65), “a divisão sexual do trabalho não é técnica. Pode ser modificada segundo as eventualidades das conjunturas”. Ou seja, a divisão sexual do trabalho é dotada de uma incrível plasticidade (HIRATA; KERGOAT, 2007).
Durante a pesquisa, pudemos perceber que a indústria do vestuário conta com uma grande presença de trabalhadoras(es) LGBTI+8. A forma como essas(es) trabalhadoras(es) são inseridas(os) no processo de trabalho, bem como são tratadas(os), está muito mais relacionada com ideias de masculinidade e feminilidade relacionadas à sexualidade, do que com o sexo biológico de cada um(a). A sexualidade dos sujeitos é de certo modo definidora do papel social de gênero a ser desempenhado no trabalho e é tida como base para a construção de hierarquias e desigualdades.
Concordando com Saffioti (2004), no sentido de que gênero, apesar de organicamente vinculado ao sexo, não se restringe a ele; bem como com a interpretação de Daniele Motta (2018) de que a mobilidade do nó frouxo permite a intersecção de outras relações sociais, proponho incluir a sexualidade na compreensão da ordem patriarcal de gênero. Ainda que Saffioti rejeite a interpretação de Judith Butler, por entender que a identidade de gênero não depende apenas da repetição continuada de determinados papéis (gênero como performativamente constituído, nas palavras de Butler9), a sexualidade é muitas vezes associada a representações do feminino e do masculino, e isso tem repercussões no ambiente de trabalho.
Foi possível observar isso claramente na pesquisa. Em várias situações, as mulheres lésbicas relataram que são lidas de forma diferente se são mais masculinizadas ou feminilizadas. Das lésbicas mais masculinizadas, espera-se um comportamento masculino: que façam trabalhos tidos como mais pesados, que sejam mais “grosseiras”, que não sejam “sensíveis” demais. Com uma performance mais masculinizada, as mulheres lésbicas atuam também como negociadoras, de forma a tentar diminuir a violência de gênero a que são submetidas (SAFFIOTI, 2019). Já as mulheres lésbicas feminilizadas são constantemente assediadas pelos colegas de trabalho. Na concepção dos homens que trabalham com elas, sejam eles trabalhadores de base ou da chefia, essas mulheres só são lésbicas porque ainda não “experimentaram” um homem direito.
No caso das mulheres trans, sua performance de gênero feminilizada é vista com desconforto em todo o espaço de trabalho. Elas são constantemente questionadas por sua aparência, as roupas que vestem, a forma como falam. As mulheres trans relataram, ainda, que frequentemente são tratadas como objeto sexual por colegas e chefes.
Contudo, essa diferença de tratamento em relação às mulheres lésbicas e trans não se traduz necessariamente em diferença no conteúdo do trabalho. Mesmo as lésbicas masculinizadas continuam fazendo trabalho “de mulher”, ainda que muitos considerem que elas são capazes de fazer trabalhos tidos como mais pesados.
Por outro lado, os homens gays são vistos como mulheres: frágeis, delicados. Estão submetidos a processos de violência muito semelhantes aos que as mulheres vivenciam. Enquanto os homens heterossexuais “são obrigados a castrarem certas qualidades, por serem consideradas femininas” (SAFFIOTI, 1987, p. 25), sempre tendo que demonstrar força e virilidade, aos homens gays essa sensibilidade não só é permitida, como esperada.
Colocaram um homem gay em um serviço e o supervisor falou: ah, não quero não, porque isso aí é mulher. Tem que ir lá para fazer serviço de mulher. Não quero gente frágil aqui não.
Eles são, portanto, entendidos como mulheres. Assim como as mulheres, eles estão nos trabalhos mais fragmentados, nos níveis mais baixos de hierarquia e são constantemente vítimas de assédio moral no trabalho. Logo, o que define o conteúdo do trabalho dos homens gays não é necessariamente seu sexo biológico, mas sua orientação sexual. É como se a sexualidade inscrevesse em seus corpos habilidades que são associadas ao sexo feminino. Assim, ser um homem gay é como ser um homem de segunda categoria, um não homem, ou simplesmente, ser como uma mulher. Dessa forma, podemos concluir que gênero claramente operacionaliza uma divisão do trabalho no setor do vestuário, que afeta o conjunto das pessoas socialmente identificadas com alguma feminilidade.
Em relação às hierarquias de gênero nos locais de trabalho, como já dito anteriormente, as mulheres ocupam os cargos mais baixos na estrutura de comando das empresas e são mais mal remuneradas que seus colegas homens. Na indústria do vestuário, as mulheres ganham menos que os homens em todos os segmentos. O rendimento médio das mulheres é 26% menor que o dos homens no segmento têxtil, 25% no segmento de couro, 20% no segmento dos calçados e 16% no segmento de vestuário e acessórios (DIEESE, 2019).
Vale destacar ainda que uma parte considerável da remuneração recebida pelas trabalhadoras é variável, vinculada ao cumprimento de metas de produção. O não cumprimento das metas é punido com a perda do bônus e com situações de humilhação no ambiente de trabalho. É comum ouvir a gerência dizendo coisas como: “se não der conta, pede para sair”, ou “se vocês não derem conta, tem dez lá fora querendo entrar”. O medo do desemprego é uma constante na vida de trabalhadoras(es), constatação endossada por outros estudos (SAFFIOTI, 2004; CARDOSO, 2009). A ameaça de demissão é, assim, um instrumento muito eficiente de coerção, e faz com que trabalhadoras(es) acabem por aceitar as péssimas condições de trabalho. Dessa forma, as práticas de assédio moral estão intimamente ligadas a essa situação de pressão no ambiente de trabalho.
Assédio moral
De forma geral, as trabalhadoras(es) precisam lidar com rígidas metas que são impostas pela gerência e seu cumprimento é exigido o tempo todo, muitas vezes a partir da violência. Gritos, xingamentos e humilhações são presentes em todos os locais de trabalho. As mulheres são chamadas de burras, lerdas, inúteis, porcas, vagabundas, incompetentes, incapazes e outros adjetivos desse tipo quando há algum atraso ou quando o ritmo de produção não alcança o nível desejado pelos superiores. Como bem disse Saffioti (1987, p. 54), “sempre que um ser humano é usado como instrumento para a obtenção de uma meta, anula-se a sua humanidade”. Nas palavras de uma trabalhadora: “Eles querem tirar o sangue da gente”.
Além dos xingamentos, as humilhações podem ganhar recortes ainda mais cruéis, como no relato dessa trabalhadora: “Já vi a chefe de produção pegar a colega e mandar ajoelhar aos pés dela porque errou o sapato”. Durante a pesquisa, ouvimos muitos relatos de choro no ambiente de trabalho. O trabalho, nesse sentido, está intimamente relacionado ao sofrimento.
O rígido controle do tempo de trabalho está muito relacionado ao tempo de produção, mas também aos chamados “tempos mortos”, ou seja, aqueles tempos de trabalho que não estão relacionado diretamente à produção, como as pausas para refeições e idas ao banheiro. Ana Cláudia Moreira Cardoso (2009), em seu estudo sobre a jornada de trabalho, enfatiza que a disputa sobre o controle do tempo de trabalho e não trabalho entre trabalhadores e empregadores é tensa e constante.
A necessidade de controle do processo de trabalho, debate caro para o campo marxista, se dá porque o que o trabalhador vende não é o trabalho, mas sua capacidade de trabalhar. Enquanto os empregadores querem reduzir cada vez mais os tempos de não trabalho, para que o máximo da jornada seja dedicada à produção, as(os) trabalhadoras(es) estão sempre buscando brechas de não trabalho, para tornar a jornada mais suportável (SAFFIOTI, 1987; CARDOSO, 2009).
Na indústria do vestuário, um exemplo paradigmático dessa situação diz respeito aos tempos de pausa, especialmente para ir ao banheiro, tomar água e lanchar. Em algumas empresas, as trabalhadoras só podem se ausentar das máquinas ou esteiras por três minutos. Assim, elas precisam escolher se vão ao banheiro, se bebem água ou se comem. Como nos relata essa trabalhadora: “Questão de ir no banheiro também. Ah, é três minutos. Uma pessoa que usa uma calça de brim, ela não consegue fazer em três minutos. [...] Tem esse negócio de estar ali no relógio, ali ó”.
Em muitas empresas do setor de calçados, as esteiras não param de funcionar nesse tempo de pausa, o que faz com que aumente ainda mais a pressão sobre a trabalhadora. Ouvimos muitos relatos, por exemplo, de mulheres que fazem seus lanches enquanto trabalham na esteira, para não atrasar a produção. A pressão pela produção acaba sendo internalizada pelas próprias trabalhadoras, que passam a exercer o controle umas sobre as outras. Essas situações acabam por gerar conflitos no ambiente de trabalho: “A rotina de trabalho é estressante. Não paramos para beber água, ir ao banheiro. Todo mundo fica com a cabeça fervendo”.
O controle para uso dos banheiros é bastante presente no cotidiano do trabalho. Em algumas empresas, permanece o uso da “chapinha” para indicar quem está usando o banheiro e por quanto tempo; em outras empresas, a chapinha foi substituída por um sistema de luzes indicativas. O controle também é feito por meio da retenção de papel higiênico, obrigando as trabalhadoras a pedir o rolo para o supervisor caso precise. Essas situações são consideradas humilhantes e constrangedoras, especialmente para as mulheres, sobretudo, quando estão em período menstrual. Analisando o trabalho na Volkswagen, Cardoso (2009), também encontrou situações semelhantes, o que nos faz acreditar que o rígido controle dos tempos e os constrangimentos decorrentes sejam uma característica desse tipo de trabalho industrial com fortes traços tayloristas.
Se o uso do banheiro é um campo de disputas, as pessoas LGBTI+ precisam enfrentar uma batalha ainda mais dura. Além de todo o controle habitual, elas também são submetidas a constantes constrangimentos ao terem sua identidade de gênero questionada, seja pela direção da fábrica, seja pelos próprios colegas. Ouvimos narrativas, por exemplo, de mulheres cisgênero10 que se sentem incomodadas e constrangidas em usar o mesmo banheiro e/ou vestiário que mulheres lésbicas e trans, o que acaba ocasionando violência. O mesmo acontece em banheiros masculinos, em que homens gays são constrangidos ao utilizar o banheiro junto com outros homens heterossexuais.
No caso das mulheres trans, a situação é ainda mais delicada, pois muitas vezes elas têm sua identidade de gênero negada. Há fábricas em que as mulheres trans são obrigadas a usar o banheiro masculino, por exemplo. Em algumas empresas, a solução apresentada é que essa mulher trans utilize um banheiro separado, como o banheiro do escritório. No entanto, mesmo com essas soluções paliativas, elas relatam que se sentem tristes e constrangidas, pois gostariam de utilizar o banheiro feminino como qualquer outra mulher.
Assédio sexual
No trabalho, além de serem as principais vítimas de assédio moral, as mulheres também são constantemente vítimas de assédio sexual. Na pesquisa realizada, o assédio sexual no ambiente de trabalho afeta exclusivamente as mulheres, sejam elas cisgênero ou transgênero. Para Saffioti (2004), no regime patriarcal de gênero, as mulheres são objetos de satisfação sexual dos homens, que possuem o acesso sistemático aos seus corpos. A fala de uma das participantes da pesquisa resume bem a questão: “A mulher, onde ela está ela é assediada”.
Os principais assediadores sexuais são homens em posição de hierarquia superior: chefes, gerentes, supervisores, proprietários das empresas. Há situações em que o assédio sexual acontece antes mesmo de a trabalhadora ser admitida, conforme nos relata uma delas: “Tem empresa que só contrata se teve caso com algum chefe. Não tem currículo não, tem que ceder para fulano para entrar na empresa”.
Poucas mulheres relataram ter denunciado as situações de assédio sexual. Além de muitas vezes serem situações difíceis de serem provadas, elas também temem o constrangimento de serem expostas e julgadas pelas(os) colegas de trabalho. Mesmo quando denunciam, o sentimento que as mulheres têm diante dessas situações é de impunidade. Os homens agressores não só as assediam, como dificilmente são demitidos ou punidos. Houve um caso, por exemplo, em que o agressor foi até mesmo premiado: para “evitar” que tivesse contato com as mulheres na produção, ele foi promovido a um cargo de gerência, ficando na parte administrativa da empresa. Além disso, as mulheres são constantemente pressionadas e chantageadas para não formalizarem denúncias, principalmente por meio das ameaças de demissão. “É mais fácil a mulher sair do trabalho por não aguentar a pressão, do que o homem ser demitido ou ter alguma punição. E aí ele vai e assedia outra”.
Todavia, não só os homens nas mais altas posições de comando são agressores sexuais. As mulheres também relataram ser assediadas por colegas de trabalho. Em geral, são olhares indiscretos, passada de mão, “piadinhas” de cunho sexual. Se reclamam, precisam ouvir: “Poxa, agora não pode nem brincar mais”. Em alguns casos, quando levam a queixa para superiores, as mulheres são ridicularizadas. Em outros casos, elas não têm sequer a quem levar a queixa, pois o supervisor também é um assediador, como no relato desta trabalhadora:
Já fui assediada pelo líder. Ele foi dar um chocolate na páscoa e pediu para tirar foto. Eu abaixei para tirar a foto. Ele falou que ia ficar perto de mim. Olhou para mim e disse: olha que tamanho hein, grandão, bem grande. Aí olhou bem para os meus peitos. [...] Eu fiquei sem graça. Todo mundo lá comentava que ele estava dando em cima de mim. [...] Fui assediada pelo colega também. Eu estava indo para o banheiro, aí ele falou para mim: “ei pequenina, que peitão grande. Você está grávida? Tá bom para dar umas mamadas”. [...] Aí eu fiquei quieta, porque o líder é esse que me cantou. Então não tenho para quem reclamar.
Para tentarem sair desse tipo de situação, as mulheres mobilizam estratégias para velar o corpo, como só usar blusa comprida ou amarrar uma camiseta na cintura. É interessante notar que as próprias mulheres às vezes atuam nesse processo de vigilância dos corpos, típico da ordem patriarcal de gênero. Ouvimos relatos, por exemplo, de uma trabalhadora que foi alvo de reclamações de outras mulheres para a gerência, pois, na visão das reclamantes, ela usava shorts que mostravam demais as pernas e chamava a atenção dos homens. Assim, as mulheres acabam reproduzindo a lógica patriarcal ao identificarem na mulher a “culpa” pelo assédio sexual sofrido. Ou seja, “a ideologia sexista corporifica-se nos agentes sociais tanto de um polo quanto de outro na relação de dominação-subordinação” (SAFFIOTI, 2004, p. 124).
Além de serem assediadas pelos colegas que compartilham o cotidiano da produção, as mulheres também são bastante assediadas pelos mecânicos, que são acionados para o conserto e manutenção das máquinas. Elas relatam que os mecânicos fazem “brincadeiras”, tocam nas pernas das trabalhadoras, fazem gestos e usam palavras obscenas. Muitas mulheres relatam que ficam tensas quando precisam solicitar o serviço de algum mecânico, com medo de serem assediadas sexualmente.
As mulheres vivem, portanto, constantemente sob ameaça de agressões masculinas e a mera existência dessa ameaça já configura uma violência, “funcionando isto como mecanismo de sujeição aos homens, inscrito nas relações de gênero” (SAFFIOTI, 2004 p. 75).
O nó das relações sociais
Durante a pesquisa, foi possível perceber que, para além de classe, gênero e sexualidade, a raça também é acionada nos locais de trabalho de forma a produzir desigualdades. Conforme nos lembra Saffioti (2004, 2013, 2019), o capital busca sempre a maior rentabilidade, se fazendo valer das desigualdades sociais para estruturar o mercado de trabalho. Assim, “todos os tipos de discriminação favorecem a maior exploração por parte dos empregadores” (SAFFIOTI, 1987, p. 51).
Constatamos que o racismo é bastante presente no cotidiano das trabalhadoras negras ouvidas. Os processos de racismo no ambiente de trabalho em alguns casos se iniciam antes mesmo da admissão. Algumas empresas, por exemplo, anunciam que preferem contratar somente pessoas não negras. Outras só admitem pessoas negras para fazer determinados tipos de trabalho. Como ressalta Saffioti (1987, p. 55), “qualquer que seja o tipo de discriminação que pese contra uma categoria social, serve para introduzir o fenômeno da diferenciação dentre os candidatos a empregos”.
Uma vez a empresa estava com vagas. Então a chefe mandou o encarregado ir lá na porta e ver o aspecto das pessoas: “se for negra, pode dispensar”. Não aceitavam mulheres negras, especialmente sem cabelo liso.
Uma vez fui em uma entrevista de emprego e disse que não poderia me contratar porque eu não tinha cabelo liso.
Quando são admitidas, as mulheres negras muitas vezes são designadas para os trabalhos mais penosos e nocivos. No setor de calçados, por exemplo, algumas mulheres relataram que lidar com a cola é um trabalho para as mulheres negras. No setor de confecções e têxtil, elas lidam com os produtos químicos e com as máquinas mais barulhentas ou mais difíceis de operar. Há ainda uma leitura de limpeza/sujeira, beleza/feiura que é racializada: ao mesmo tempo que são tidas como sujas, precisam também desempenhar trabalhos de limpeza em seus locais de trabalho.
É perceptível quando você chega. Do meio da esteira para o acabamento são todas pessoas com aparência bonitinha, lindas, mais claras, cabelo liso. Agora do meio pra trás você já vê que... você percebe as mulheres negras e gordinhas na cola... nos trabalhos mais difíceis, mais feios. Tem que usar máscara, tem que estar mais feia ainda.
As pessoas negras também são frequentemente submetidas a insultos e ofensas no ambiente de trabalho. Neguinha(o), macaca(o), entre outros, são proferidos tanto por superiores, quanto por colegas de trabalho. Foram relatados também casos de sexualização das mulheres negras, que sofrem mais com o assédio sexual de chefes e colegas. Além disso, as pessoas negras são culpabilizadas por trabalhos malfeitos e o trabalho bem-feito é referido como “serviço de branco”.
Desta forma, assim como afirmam Ciro Biderman e Nadya Guimarães (2004), a discriminação atua no mercado de trabalho pelas características “pessoais” dos indivíduos e não pelas condições de qualificação ou capacidade para desempenhar o trabalho. Essa discriminação nem sempre é racionalizada ou decidida a priori, mas, independentemente disso, ela opera desigualdades. Essas desigualdades fazem com que essas trabalhadoras estejam mais vulneráveis a situações de violência e assédio, tornando a experiência de trabalho uma experiência de sofrimento.
Forjando resistências
Ainda que as mulheres sejam as principais vítimas da violência nos locais de trabalho, isso não significa que elas recebam essa violência passivamente. Mesmo que os agressores tratem suas vítimas como mero objeto de suas ações e, no caso da violência de gênero, as mulheres muitas vezes se vejam dessa forma, isso não as destitui da sua condição de sujeito.
Para Saffioti (2019, p. 156), “não há quem participe de relações sociais sem ser sujeito, sem ter identidades sociais, sem distinguir seu eu do eu do outro, até mesmo em situações em que é considerado um não sujeito ou encarne a personagem do não sujeito”. Isso significa dizer que o grau de reificação das pessoas nunca é total. Ou seja, mesmo em um sistema de dominação patriarcal, as mulheres têm a possibilidade da agência. Assim, elas mobilizam estratégias tanto de acomodação quanto de resistência, a fim de preservar sua integridade.
Essa situação se confirmou na pesquisa realizada. Por mais que as mulheres tenham sido constantemente submetidas à violência, elas também resistem a esse processo, seja de forma individual, seja coletivamente. Ao dizerem algo como: “quem disse que precisa ser homem para cortar? Eu sou costureira, sei cortar também”, elas estão questionando a divisão sexual do trabalho que lhes é imposta, tanto em relação às habilidades consideradas femininas ou masculinas, quanto em relação à remuneração, visto que os cortadores ganham mais que as costureiras.
Em outros momentos, elas usam dessa mesma divisão sexual do trabalho para “fugir” de um trabalho considerado penoso e exaustivo. Em uma fábrica do setor de calçados, por exemplo, a função de abastecer as esteiras era considerada feminina, por ser uma atividade que exigia muita atenção, minúcia e cuidado. Contudo, era um trabalho muito cansativo e sobre o qual era exercida muita pressão, visto que dessa tarefa dependia todo o ritmo da produção. Uma trabalhadora, inconformada com a situação, passou a reivindicar que aquilo era um “trabalho de homem”, pois exigia grande resistência física. Para provar seu argumento, ela começou a incentivar as colegas para que “não dessem conta” do serviço. A empresa não teve saída, teve que atribuir aos homens essa função. Ela usou, portanto, a ideia construída em torno das habilidades femininas e masculinas impostas pela própria empresa para reivindicar que as mulheres fossem ser alocadas para atividades “mais leves”. Para a trabalhadora, mudar essa configuração da empresa e tirar a si própria e suas colegas dessa função foi uma grande vitória.
Essas atitudes de rebeldia e subversão também acontecem em outros aspectos do trabalho. Na eterna disputa pelo controle do processo de trabalho, ao mesmo tempo em que elas aceitam as regras impostas, agem para modificá-las. É o caso, por exemplo, de uma trabalhadora que passou a atuar para abolir o controle das idas ao banheiro: “Antes na empresa tinha a chapinha para ir ao banheiro. Todo dia eu pegava a chapinha escondida e sumia com ela. Chegou uma hora que não aguentavam mais procurar essa chapinha e aboliram”.
Outro exemplo é o de uma empresa que instituiu um sistema de bandeiras para sinalizar a produtividade das equipes de trabalho. Nesse sistema, a bandeira verde representava as equipes que alcançavam a meta de produção, em termos de qualidade e quantidade; a bandeira amarela as equipes em situação intermediária; e a bandeira vermelha sinaliza as equipes com produção muito aquém do exigido. Assim, para aumentar a produtividade, a empresa estimulava a rivalidade e a vigilância entre trabalhadoras:
Imagina o clima que a empresa tinha quando tinha essas bandeiras. Os grupos das bandeiras verdes ficavam assim para as vermelhas: bando de preguiçosas. E aquelas com as bandeiras vermelhas lá se sentindo mal. E o quê que elas faziam? Se matavam de trabalhar cada dia mais, brigavam entre elas, para poder colocar uma bandeira verde no grupo delas. Para elas alcançarem a bandeira verde elas formavam uma guerra entre elas. Era a forma que a empresa tinha para pressionar. Quando eu entrei no sindicato eu comecei a brigar contra as bandeiras. Quando eles colocavam a bandeira eu tirava a bandeira, colocavam a bandeira eu tirava a bandeira. E consegui conscientizar as minhas colegas do grupo de que aquilo ali não estava nos rendendo nada, só estávamos humilhando as outras companheiras. E conseguimos acabar com as tais das bandeiras dentro da fábrica. E era quase duas mil trabalhadoras. Mesmo assim a gente conseguiu. Mas para isso eu levei um tempo bom tirando a bandeira, sendo xingada, sendo chamada a atenção pelo chefe, mas eu tirava a bandeira.
Assim, em uma atitude incialmente individual, e se beneficiando da estabilidade que gozava enquanto dirigente sindical, a trabalhadora conseguiu mudar não só a forma como a empresa lidava com as equipes de trabalho, mas também a maneira com que as próprias trabalhadoras se engajavam nesse processo de rivalidade.
Ao longo da pesquisa, percebemos que, de forma geral, as ações coordenadas entre sindicatos e trabalhadoras se mostraram bastante efetivas, e diminuíram as situações de violência nos locais de trabalho, especialmente os gritos e humilhações públicas. Para isso, foram utilizadas diferentes estratégias, desde a negociação direta com a empresa até mesmo a apresentação de denúncias ao Ministério Público do Trabalho.
Um exemplo bem-sucedido de ação sindical foi no caso em que um sindicato conseguiu aprovar, na convenção coletiva da categoria, a abolição de qualquer sistema de controle ao uso do banheiro nas fábricas. É interessante notar, todavia, que esse caso aconteceu em um sindicato com uma diretoria majoritariamente feminina. Conforme já afirmava Saffioti (1987), os sindicatos muitas vezes se mostram reticentes em encampar as bandeiras levantadas pelas trabalhadoras. Assim, é fundamental que as mulheres participem desses espaços de representação e decisão para terem suas vozes ouvidas e suas demandas atendidas.
As trabalhadoras também encontraram estratégias para enfrentar o assédio sexual, por mais que admitam a dificuldade em denunciar esse tipo de violência. Em uma empresa, por exemplo, em que o supervisor apalpava as mulheres com frequência, as trabalhadoras coloraram alfinetes por dentro da roupa, para repelir o toque indesejado. Por mais que seja uma estratégia que não as proteja definitivamente desse tipo de assédio, não deixa de ser uma forma de resistência.
Elas relataram que, em várias situações, quando uma mulher tem coragem de romper o silêncio e denunciar uma situação de assédio sexual, outras mulheres acabam por se juntar a essa denúncia. Ao acontecer algo assim em uma empresa, descobriram que catorze trabalhadoras já haviam sido assediadas sexualmente pelo mesmo gerente. Em uma ação articulada com o sindicato e movimentos feministas, as mulheres fizeram uma manifestação na cidade, em frente à casa do agressor. Este, por sua vez, foi demitido pela empresa e, constrangido publicamente, se mudou de cidade.
Esses poucos exemplos demonstram que “o fato de o patriarcado ser um pacto entre homens não significa que a ele as mulheres não oponham resistência” (SAFFIOTI, 2004, p. 130). Onde há relações de dominação e exploração, há também conflito e luta. Assim, mesmo que se trate de um sistema de dominação patriarcal-racista-capitalista, o sujeito dominado possui agência e algum nível de poder, ainda que desigual. As ações realizadas por essas mulheres, mesmo que em alguns casos sejam pequenas e contextuais, demonstram a possibilidade de que elas fujam de seus destinos de gênero e possam solapar esse sistema (SAFFIOTI, 2019).
Considerações finais
Neste trabalho, procurei analisar, à luz das contribuições de Heleieth Saffioti, alguns dos resultados da pesquisa realizada ao longo do projeto “Promover os direitos humanos e fortalecer a ação sindical e a igualdade de gênero no setor do vestuário do Brasil”. A elaboração da autora em torno dos conceitos de gênero, patriarcado e violência se mostrou bastante precisa e atual para compreender os fenômenos observados.
Se, por um lado, a indústria do vestuário tem se modernizado e funciona em uma nova dinâmica global de produção, por outro lado vemos que muitos aspectos, tanto da organização, quanto do processo de trabalho, se mantêm. No caso do Brasil, ainda é um setor altamente taylorizado, marcado profundamente pela divisão sexual do trabalho. Mas longe de ser rígida e imutável, essa divisão sexual do trabalho é bastante plástica. Embora a gerência imponha normas de gênero pré-estabelecidas, na dinâmica do trabalho essas normas também podem ser reconstruídas. Na pesquisa realizada, por exemplo, a sexualidade se mostrou um aspecto importante na definição das expectativas de gênero no trabalho.
Além de gênero, classe e sexualidade, a raça também é mobilizada na produção de desigualdades e hierarquias. Fica claro, portanto, que o capitalismo utiliza todos os elementos que estiverem à disposição para garantir a reprodução dos mecanismos de dominação e exploração. Dessa forma, há uma intensa luta pelo controle do processo de trabalho e a violência é um mecanismo bastante utilizado para garantir a subordinação. No contexto do trabalho, as principais vítimas da violência são os sujeitos que estão no polo subordinado das relações de gênero, raça e classe. Na indústria do vestuário, especificamente, a violência se manifesta como um fenômeno feminino, vivenciado não só pelas mulheres stricto sensu, mas por qualquer pessoa que seja identificada com a feminilidade.
Essas mulheres são vítimas da violência não só nos locais de trabalho, mas em todos os espaços da sociedade, inclusive dentro de suas próprias casas. Foram muitos os relatos que ouvimos ao longo da pesquisa de mulheres que eram constantemente espancadas pelos maridos, proibidas de participar dos sindicatos e de se socializarem com colegas de trabalho. Para elas, não há refúgio, tanto a casa quanto o trabalho são locais de violência. Todavia, conforme a própria Saffioti brilhantemente ressalta em sua obra, mesmo que a violência busque anular a condição de sujeito de suas vítimas, isso nunca acontece totalmente.
É importante olhar para as violências sofridas e denunciá-las, mas também é importante reconhecer as estratégias de resistência que são forjadas. As mulheres que participaram da pesquisa demostraram que não são passivas. Elas mobilizam diferentes arranjos, articulações e estratégias para conseguirem sobreviver a essa situação, seja por meio de ações individuais, seja em ações coletivas.
Nesse sentido, a pesquisa demonstrou que quando os sindicatos são ativos e encampam as bandeiras de lutas das mulheres, a efetividade da ação é muito maior. É preciso, portanto, que as mulheres ocupem mais esses espaços de representação e tomada de decisões. E também que os sindicatos compreendam que uma classe trabalhadora altamente hierarquizada só beneficia os patrões.
Por mais que a desigualdade de gênero afete mais fortemente as mulheres, também traz prejuízo para os homens. Dessa forma, a luta pela igualdade de condições entre mulheres e homens não pode e nem deve ser levada a cabo exclusivamente por mulheres. A solidariedade de classe prescinde, portanto, da luta contra as demais desigualdades. Nas palavras de Saffioti (2004, p. 47), “é preciso levar a luta feminista às últimas consequências, a fim de se poder desfrutar de uma verdadeira democracia”.
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Recebido em: 17/09/2020
Aceito em: 03/02/2021
1 O projeto foi gerido pelo Solidarity Center e foi fruto de uma parceria da entidade com a Confederação Nacional dos Trabalhadores do Ramo do Vestuário (CNTRV), o Instituto Observatório Social (IOS) e a Fundação C&A. Compus a equipe do projeto como pesquisadora especialista em relações de gênero. Apesar de os resultados apresentados neste trabalho serem fruto desse projeto, as análises e conclusões são de minha inteira responsabilidade.
2 Para preservar o anonimato das participantes da pesquisa, os resultados são apresentados sem qualquer identificação de cidade ou empresa. A preservação do anonimato é importante para evitar que as trabalhadoras sofram retaliações.
3 A descrição detalhada de todos os resultados da pesquisa pode ser encontrada no Relatório Final do projeto, disponível em: http://www.cntvcut.org.br/system/uploads/ck/files/REVISTA-RELATRIO-FINAL.pdf
4 Saffioti usa o galinheiro como metáfora para explicar a hierarquia de poder nas sociedades. Em um galinheiro, primeiro o galo bica a galinha, depois a galinha bica os pintinhos e depois os pintinhos se bicam entre si. Nesse sentido, o elo mais frágil é que dá a última bicada. Na sociedade regida por uma ordem capitalista, racista e patriarcal, a “última bicada” cabe às mulheres negras pobres (SAFFIOTI, 1997).
5 Nesse sentido, entendo a sexualidade como um conjunto de relações sociais que não são determinadas diretamente pelas relações de gênero, mas que estão a elas profundamente relacionadas.
6 De acordo com a Cartilha “O ABC da violência contra a mulher no trabalho”, publicada pelo Ministério Público do Trabalho, o assédio moral se caracteriza por “condutas abusivas, reiteradas e sistemáticas, manifestadas por meio de comportamentos, palavras, gestos e agressões leves, que interferem na dignidade humana e direitos fundamentais das vítimas, por meio da humilhação e constrangimento, e que resulta em prejuízo às oportunidades na relação de emprego ou na expulsão da vítima de seu ambiente de trabalho”. (MPT, 2019).
7 A indústria do vestuário possui homens e mulheres como trabalhadoras(es). Todavia, na maioria das situações narradas neste artigo, são as mulheres as maiores vítimas dos abusos e violências. Desta forma, em muitos momentos utilizarei apenas a palavra ‘trabalhadoras’, flexionada apenas no gênero gramatical feminino.
8 O termo “LGBTI+” se refere à população de lésbicas, gays, bissexuais, travestis, transexuais e intersexuais. O símbolo + diz respeito à inclusão de outras orientações sexuais, identidades e expressões de gênero.
9 “Assim, gênero não dever ser entendido como uma identidade fixa ou estável, mas como ‘uma identidade tenuemente constituída no tempo, instituído num espaço externo por meio de uma repetição estilizada de atos’, ou seja, o gênero é performativamente constituído” (BUTLER, 2018, p. 242).
10 Refere-se ao indivíduo que se identifica, em todos os aspectos, com o gênero atribuído ao nascer.
UM DIÁLOGO COM OS ESTUDOS
SOBRE VIOLÊNCIA DE GÊNERO DE HELEIETH SAFFIOTI:
a produção de conhecimento e a ação profissional militante
A DIALOGUE WITH STUDIES
ON GENDER VIOLENCE BY HELEIETH SAFFIOTI:
the production of knowledge and militant professional action
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Mônica Vilaça1*
Resumo
Este artigo busca dialogar com as contribuições aportadas pela socióloga e intelectual feminista Heleieth Saffioti em torno dos debates sobre a violência de gênero no contexto da sociedade brasileira. A obra da autora sobre essa temática é bastante extensa tendo se dedicado a esses estudos por mais de duas décadas. Ao debruçar-se sobre a violência dirigida às mulheres na organização da sociedade brasileira, a autora propunha realizar uma contribuição sociológica e feminista “genuína” capaz de aportar dados e teorias que pavimentassem mudanças na organização das relações sociais de mulheres e homens. No desenvolvimento deste trabalho, proponho apresentar como Saffioti conceitua e discute a violência de gênero aportando preocupações epistemológicas e metodológicas, bem como reflete o lugar assumido pela pesquisa, pela pesquisadora e suas interlocutoras no processo de construção de uma voz pública e coletiva capaz de denunciar e enfrentar a violência dirigida às mulheres. Desta forma, toma relevo a identificação pela autora sobre a ausência de dados, de indicadores, de categorias e de teoria sobre essa expressão de violência, e como essas “ausências” reduziriam a capacidade de enfretamento pela sociedade e de elaboração de políticas públicas eficazes por parte do Estado.
Palavras-chave: Violência de gênero. Epistemologia feminista. Políticas públicas. Feminismo.
Abstract
This article seeks to dialogue with the contributions made by feminist sociologist and intellectual Heleieth Saffioti around the debates on gender violence in the context of Brazilian society. The author’s work on this theme is quite extensive, having dedicated herself to these studies for more than two decades. In addressing the violence directed at women in the organization of Brazilian society, the author proposed to make a ‘genuine’ sociological and feminist contribution capable of providing data and theory that paved changes in the organization of the social relations of women and men. In the development of this work, I propose to present how Saffioti conceptualizes and discusses gender violence, bringing epistemological and methodological concerns, as well as reflecting the place assumed by research, researcher and interlocutors in the process of building a public and collective voice capable of denouncing and facing the violence directed at women. In this way, the author’s identification of the absence of data, indicators, categories and theory about this expression of violence, and how these ‘absences’ would reduce the capacity for confrontation by society and the elaboration of effective public policies by part of the State.
Keywords: Gender violence. Feminist epistemology. Public policy. Feminism.
1* Doutoranda do Programa de Pós-Graduação em Sociologia da Universidade Federal da Paraíba na linha de Trabalho, Políticas Sociais e Desenvolvimento, Bolsista Capes e bolsista Funbio e Humanize do Programa “Conservando o Futuro”. E-mail: monicavilaca2@yahoo.com.br
ISSN 1517-5901 (online)
POLÍTICA & TRABALHO
Revista de Ciências Sociais, nº 54, Janeiro/Junho de 2021, p. 67-79
Dialogar com a obra da socióloga e feminista Heleieth Saffioti é caminhar sobre uma produção densa, complexa e substanciosa de uma cientista social que, em sua trajetória, retém uma elaboração sobre um período de estabelecimento da Sociologia e da teoria feminista no Brasil. Importante destacar que a produção dessa autora presencia e reverbera o encontro dos escritos feministas no âmbito acadêmico. Assim, Saffioti apresenta-se como uma importante autora que contribuiu para uma forma de interpretação da realidade brasileira que contém várias implicações ao concentrar-se em analisar as mulheres e seu lugar nas transições da organização econômica que atravessava o país, realizando uma leitura pela lente da participação social, econômica e política das mulheres. Também assume relevo em sua produção a discussão da presença das mulheres na academia e qual conhecimento era então produzido, debatendo novas preocupações teóricas e metodológicas na produção de saberes ao apontar a importância de pensar a imbricação das formas de opressão e dominação presentes nas estruturas sociais.
Esses são apenas alguns pontos iniciais que significam a produção e contribuição de Saffioti, nascida em 04 de janeiro de 1934, sendo sua mãe costureira e seu pai pedreiro, e que iniciou sua trajetória nas Ciências Sociais na Universidade de São Paulo (USP), aos 22 anos, em 1956. Defendeu sua tese de livre-docência “A Mulher na Sociedade de Classes: mito e realidade” em 1967, sob a orientação de Florestan Fernandes. A tese foi publicada em 1976. É importante destacar que Saffioti já era professora no curso recém-criado de Ciências Sociais, em 1963, na Unesp de Araraquara. Esses são apenas alguns dados de sua trajetória para localizá-la nesse período fecundo e desafiador de produção intelectual nas Ciências Sociais. Consolidou uma vasta produção que inclui doze livros, diversos artigos e entrevistas, e é em torno de parte dessa produção que este artigo buscará se deter.
Iniciei destacando o papel de Saffioti na elaboração de uma produção original que buscou pensar as mulheres na sociedade brasileira, e foi na articulação entre a teoria marxista e a feminista que ela buscou construir os caminhos teóricos e metodológicos que lhe permitiram fundamentar suas análises e referências para a ação intelectual. Em seus estudos, compreendia que a teoria era indispensável para a mudança e que se fazia necessário apontar “vias de superação” para a realidade das mulheres. Aqui estabeleço uma primeira questão que proponho destacar ao longo deste texto quanto à preocupação de Saffitoti com a produção teórica e o agir intelectual. No conjunto de sua obra, a autora indicava a necessidade de um agir intelectual intencionado, sendo ela uma “teórica” que também gostava de pensar na “prática”1. Assim, no artigo “Ser ou Estar sociólogo”, em que se dedica a refletir sobre a prática profissional dos sociólogos, ela apontava que a esses, por deterem os instrumentos adequados para a análise da sociedade, caberia a responsabilidade de contribuir com produções preocupadas com uma vida digna, compreendendo que, onde houvesse dominação-exploração deveria haver resistência (SAFFIOTI, 2002).
Essa compreensão de que a elaboração teórica deveria estar articulada a uma ação pela mudança dialogava com suas leituras sobre o intelectual orgânico em Gramsci, assim como, com os questionamentos provenientes das teorias feministas que têm sua produção atravessada pelo compromisso de conhecer e transformar a realidade (SAFFIOTI, 1991, 2002). Situar essa dimensão do agir intelectual torna-se necessário para olhar para uma extensa parte da obra dessa autora que se debruçou sobre a análise e compreensão da violência enquanto fenômeno que atravessa a experiência social das mulheres na sociedade brasileira. Estudar a violência de gênero implicava em realizar uma contribuição sociológica e feminista “genuína” capaz de aportar dados e teoria que pavimentassem possíveis mudanças na organização das relações sociais de mulheres e homens.
Neste artigo, proponho refletir sobre a parte da obra de Saffioti dedicada a analisar as dinâmicas de funcionamento da violência de gênero no Brasil. Ao estabelecer esse recorte, é necessário informar que o volume de escritos da autora nesta temática é muito vasto, temporalmente ocupou muito de sua atenção intelectual, e que embora não reflita sobre toda sua produção, poucos artigos da autora sobre essa temática não estão presentes nas referências deste artigo. Para além dos livros, artigos e entrevistas de Saffioti, também destaco no artigo algumas referências com as quais a autora estabeleceu diálogos para avançar em suas análises. Saffioti começou a estudar a violência de gênero provocada pela orientação a uma estudante (MENDES; BECKER, 2011) e, a partir de 1983, essa tornou-se uma preocupação em torno da qual ela passou a trabalhar e produzir por mais de duas décadas. Em seus estudos nesse campo, a autora refletiu sobre as diversas expressões de violência dirigidas às mulheres, com especial atenção à violência doméstica e ao incesto. A partir desses estudos, apontava que o fenômeno da violência seria endêmico e epidérmico, atravessando as práticas sociais de classe e raça, exigindo uma análise imbricacional e interseccional, que mais à frente tomaria nos escritos de Saffioti a dimensão conceitual de um “nó”.
No desenvolvimento deste texto, buscarei apresentar como Saffioti construiu suas reflexões e conceitos sobre a violência de gênero e, ao analisá-la, enfrentou os desafios metodológicos e teóricos para compreender o lugar dessa forma de violência na organização da sociedade brasileira. Também busco refletir sobre suas preocupações epistemológicas com a validade e neutralidade do conhecimento, assim como com o lugar assumido pela pesquisa, pesquisadora e interlocutoras no processo de construção de uma voz pública e coletiva capaz de denunciar e enfrentar a violência dirigida às mulheres. Por fim, um último ponto neste texto centra-se na relação estabelecida quanto à responsabilidade intelectual pela mudança social. Todo o trabalho produzido por Saffioti sobre a violência tencionou produzir conhecimento para agir na realidade. A autora propunha problematizar a ausência de dados, de indicadores, de categorias e de teoria e, assim, refletir sobre como estas “ausências” reduziam a capacidade de enfretamento à violência e de elaboração de políticas públicas eficazes por parte do Estado. Esses eixos discutidos neste artigo buscam enfatizar como na trajetória de Heleieth Saffioti apresenta-se uma experiência de exercício profissional orientado pelo agir e incidir na realidade, que refletem um posicionamento e comprometimento intelectual enraizado nas formulações feministas.
A violência que precisa ser nomeada
Um primeiro aspecto importante é destacar que a análise de Saffioti compreendia que a condição social das mulheres se apoiava em um modelo de dominação e exploração que, para ser explicado, precisaria ser analisado a partir de um reconhecimento da imbricação das relações sociais por meio das quais o patriarcado, o capitalismo e o racismo operam na sociedade brasileira. As dinâmicas de dominação e exploração não se realizariam em tempos separados, ou incidiriam umas sobre as outras de forma cumulativa. Desta forma, para compreender suas dinâmicas na organização social tornar-se-ia necessário pensá-las em “relação” umas com as outras. Dialogando com outras teorias imbricacionistas, Saffioti propunha que a análise dessas relações, historicamente produzidas entre as estruturas sociais, permitiria compreender como se constroem privilégios e desigualdades, entre mulheres e homens, entre brancas e negras. Para explicar essa relação, Saffioti sugeriu a imagem do “nó”. Em um de seus últimos textos, o “nó” seria apresentado como uma forma de analisar as contradições fundamentais – oriundas do capitalismo, racismo e patriarcado, atravessadas por “contrariedades”. O “nó” permitiria o exercício de, para fins analíticos, isolar uma ou outra contradição, com a compreensão de que o estudo só estaria completo com a “reposição das contrariedades” na análise (SAFFIOTI, 2009, p. 10).
É aqui que seguimos para as reflexões sobre a violência articuladas por Saffioti que, para a autora, assumiria um papel na reprodução de relações de dominação e exploração entre homens e mulheres, atuando na preservação de um certo ordenamento social. Para que assim pudesse existir e funcionar, a violência apresentava-se de forma extremamente sofisticada, apoiada em um silêncio e omissão produzidos coletivamente e que negariam às mulheres a presença social, política e econômica no espaço público. O não reconhecimento das instituições sociais quanto às práticas violentas, a ausência de dados por parte do Estado, as desigualdades de participação das mulheres na vida pública e a não garantia de acesso ao trabalho estabeleceriam um conjunto de condições para uma “naturalização” da violência presente nas relações de dominação entre homens e mulheres, compreendendo que essa naturalização é produzida por processos socioculturais que constituiriam homens e mulheres na sociedade.
O livro “Mulheres Espancadas: a violência denunciada” publicado por Maria Amélia Azevedo, em 1985, e prefaciado por Saffioti, é considerado uma das primeiras obras dedicadas ao estudo e à denúncia da violência contra as mulheres. O trabalho apoiou-se em um levantamento quantitativo de boletins de ocorrência registrados em cinquenta distritos policiais de São Paulo no período de dezembro de 1982 e fevereiro de 1983. A pesquisadora identificou 2.316 casos de violência física contra mulheres que, para Saffioti, forneciam um “negativo” de um retrato a ser revelado. Os dados produzidos permitiam já enfrentar alguns preconceitos enunciados pela autora, como a relação comumente estabelecida entre a existência de uma “cultura de violência” contra a mulher e a pobreza. A violência de gênero, ao cumprir seu papel de preservação de um ordenamento social, atravessava a experiência de mulheres de classes sociais e raciais distintas.
Um segundo aspecto que surgia, já nesse prefácio, seria a percepção das pautas e agendas teóricas feministas como essencialmente “malditas” já que elaborariam teorias e refletiriam sobre questões que o modelo societário hegemônico buscaria ocultar. Esse ocultamente se apoiaria nas bases epistemológicas dominantes de produção de conhecimento, questão que discutirei mais à frente e que levou a autora a desenvolver diversas reflexões quanto à neutralidade e à validade do conhecimento. Já naquele momento apresentava-se para Saffioti a compreensão de que se abria para as intelectuais feministas a tarefa de compreender as dinâmicas sociais que produziam e autorizavam a violência contra as mulheres, de elaborar dados sobre a violência, para, desta forma, demandar mudanças nas instituições de justiça, segurança, educação e saúde, dentre outras, localizando assim mudanças que deveriam ser assumidas pelo Estado.
A violência contra as mulheres configurar-se-ia uma “ruptura de qualquer forma de integridade da vida: integridade física, integridade psíquica, integridade sexual, integridade moral” (SAFFIOTI, 2004, p. 17), um processo considerado pela autora como epidemiológico e endêmico, presente em todas as sociedades falocêntricas. Ao propor compreender a violência de gênero como uma dimensão de adoecimento social, e que ocorreria persistentemente atravessando fronteiras de classe, raça, cultura, grau de desenvolvimento social, geração, espaço público e privado, a autora recorre a um diverso arcabouço teórico para realizar essas análises. O primeiro diálogo que destaco deu-se com Carol Gilligan, primeira autora a discutir uma ética dos cuidados, em 1982, que teve seu livro “Uma Voz Diferente” traduzido para a língua portuguesa pela Rosa dos Tempos em 19902.
Gilligan dedicou-se a discutir as abordagens da psicologia sobre o desenvolvimento humano e como o mundo social, ao assumir como norma e referência o olhar dos homens, tornava incoerente as experiências das mulheres. Ao participar dos estudos de desenvolvimento moral de Kohlberg, que se apoiaram exclusivamente em dados produzidos por falas masculinas, percebeu que as vozes das mulheres se tornavam incompreensíveis ou irregulares. Segundo Gilligan, ao ouvi-las seria possível compreender uma distinta dimensão ética e moral da organização da vida social que seria intencionalmente mantida oculta. Perceber esse atravessamento androcêntrico na produção dos dados desse estudo levou-a também a notar não apenas a coexistência de duas perspectivas morais, mas também as estratégias utilizadas para manter uma voz submissa à outra. A construção de uma realidade social, política e econômica estruturada a partir das falas masculinas, baseadas em um modelo de individuação, justiça e universalização de direitos, coexistiria com a invisibilização de uma fala, atribuída às mulheres, de cuidados, relacionalidade e contextualidade.
Na década de 1990, ao debater a violência de gênero, Saffioti compartilhava a preocupação sobre como as práticas sociais produzidas na imbricação das relações de gênero, raça e classe – que a autora nomeou como um “nó”, desigualdades fundamentais que se entrelaçariam na produção de seus processos de objetivação-subjetivação (SAFFIOTI, 1997, p. 61) – estabeleceriam as condições para a produção de uma subjetividade capaz de reproduzir e suportar as práticas violentas. O trabalho de Gilligan propunha a existência de duas vozes morais: uma moral de cuidados apoiada em relações de interdependência e conexão que se constituiria nas experiências sociais das mulheres e uma moral de justiça produzida pelas lógicas de separação e independência provenientes das experiências sociais dos homens. Saffioti propõe que essa ruptura moral e subjetiva fortaleceria princípios de desigualdade nos planos macro e microssociais. A prevalência de uma moral de justiça produzida pela esfera pública e fundamentada na separação e independência justificaria a não intromissão, a compreensão da vida produzida nas casas como esfera regida por outras regulações.
Assim, “a injustiça social, neste contexto substantivado, ganha novas cores: não se trata de cegueira da Justiça, mas da injustiça como indissociável da desigualdade social” (SAFFIOTI, 1995, p. 14). Para a autora, a voz moral baseada em justiça apropriada pelos homens permitia-lhes ambicionar pela universalidade e, assim, compreender a violência em um marco geral e público, que não reconhecia as razões que mobilizariam a violência de gênero e seu lugar na manutenção de um ordenamento social. Essa narrativa construída pela moral hegemônica seria mantida pelo equilíbrio produzido com a submissão de uma outra experiência moral de forma a suportar as práticas violentas. Para pensar a esfera do cotidiano, na qual se produziria essa outra voz moral, da produção de desejo e da micropolítica, Saffioti estabelece suas reflexões com Gilles Deleuze, Félix Guattari, e Suely Rolnik e, a partir desses diálogos, pensa o particular e a produção da subjetividade. Ao afirmar ser necessário reconhecer, no plano analítico, a imbricação das relações sociais de gênero, raça e classe, Saffioti destaca a importância de pensar a particularização, a localização dos sujeitos, “um crivo através do qual o mundo é apreendido pelo sujeito” (SAFFIOTI, 1995, p. 23). Analisar essa apreensão da experiência social produzida na localização dos sujeitos permitiria narrar vivências multifacetadas que apresentariam subjetividades diversas.
Ao analisar o uso da violência de gênero na preservação de um certo ordenamento social, a autora articula uma compreensão da existência de uma ruptura moral na organização social, assim como da produção de uma “ideologia” que se apresentaria de forma complementar à violência nos processos de dominação e exploração (SAFFIOTI, 1989, p. 25). A produção dessa justificação e falsificação da realidade construída nas explicações hegemônicas e masculinas produziriam uma “ideologia de gênero” – a violência operaria no fortalecimento ou afirmação dessa ordem. A família, com maior ou menor grau, ao longo da história, seria patriarcal e, na sociedade capitalista, seria o lugar de reprodução de uma normatização ideológica. Essa dimensão constitutiva de uma visão de mundo, de uma explicação da realidade, da produção de saberes e verdades sobre as dinâmicas de gênero, seria um dos mais complexos fenômenos a ser enfrentados pelas mulheres. A produção de uma “contraideologia” partiria sempre de referenciais hegemônicos produzidos pela ordem dominante, o que reduziria as reais possibilidades de pavimentar caminhos de liberdade.
Esse percurso leva a autora a desaguar numa reflexão sobre a “rotinização da violência nas relações violentas”, uma rotinização construída no conflito e que se utiliza de estratégias diversas de confronto e resistência. Nas experiências de violência de gênero, seria importante destacar que as mulheres não seriam polos passivos, mas polos ativos que reagiriam numa constante busca por superação de sua condição.
Nesta linha de raciocínio, pode-se dizer que a subjetividade está permanentemente ameaçada, necessitando desenvolver ingentes esforços para não sucumbir à alteridade. Ao mesmo tempo, se ela se forja nas e através das relações sociais, a alteridade lhe é absolutamente indispensável. Isto equivale a dizer o que já se afirmou atrás, ou seja, que a práxis é responsável pela construção da identidade. (SAFFIOTI, 1997, p. 75).
A produção da vida das mulheres, observada a partir desse complexo engendramento de estruturas sociais e produção de subjetividades, exigiria compreender as dinâmicas de “acomodação” e “resistência” acessadas e construídas em suas múltiplas localizações sociais.
Como pesquisar a violência? Sobre paixão, particularismo e memória
Ao avançar nas reflexões sobre a violência de gênero apresentam-se, para Saffioti, diversas questões relativas à produção do conhecimento científico por mulheres e sobre a investigação de problemas relativos às experiências das mulheres. Esses aspectos vão desde a presença de emoções na identificação de temas de pesquisa e na elaboração do método de investigação, ao questionamento de princípios epistemológicos, como a neutralidade e a universalidade, assim como questões referentes à relação produzida entre a pesquisadora junto às suas interlocutoras. É importante destacar que, embora essas reflexões atravessassem a produção de Saffioti daquele período, ela não as afirmava como parte de uma “epistemologia feminista”. Em 2010, dizia ter mais dúvidas quanto à existência de uma epistemologia feminista que certezas. Acreditava que os estudos de gênero contribuíam para construir um paradigma metodológico distinto, mas sem necessariamente incidir na delimitação de um novo campo epistemológico (MÉNDEZ, 2010, p. 294).
Entre as reflexões sobre epistemologia, feminismo e as teorias de conhecimento não há uma concordância plena quanto à existência de uma epistemologia feminista, bem como quais as implicações que essa teria para a metodologia, a construção e o uso de métodos qualitativos de pesquisa. Sendo a epistemologia um campo de pesquisa que busca discutir os significados e condições que possibilitam conhecer quem pode ser sujeito do conhecimento, a natureza da verdade e da justificação e a que provas as crenças devem ser submetidas para serem aceitas como legítimas (LONGINO, 2012; HARDING, 2002), torna-se central discutir as contribuições presentes nos textos de Saffioti que nos permitem pensar nas implicações das pesquisas feministas.
Um primeiro aspecto seria a percepção de Saffioti de que lidar com a questão da violência apoiava-se no enfrentamento de uma ciência androcêntrica e asséptica: era necessário ter “coragem de expor a presença da paixão na ciência” (SAFFIOTI, 1985, p. 2) e que essa paixão permitiria produzir uma “irreverência” capaz de diagnosticar a realidade. Essa realidade seria marcada por uma “ideologia de gênero”, elaborada de forma a legitimar o poder masculino, o exercício da violência e a narrativa de “consentimento” das mulheres (SAFFIOTI, 1994, p. 155). Como já discutido, a produção e reprodução dessa ideologia dar-se-ia por um ordenamento social pretensamente neutro e objetivo construído a partir da voz e da experiência masculinas. Essa aparência da realidade produzida pelos referenciais de interpretação masculinos não autorizaria as e os cientistas a falarem em “consentimento” – caberia a essas e a esses a responsabilidade por analisar as assimetrias da realidade que seriam produzidas a partir da imbricação das estruturas sociais de classe, raça e gênero.
Essa compreensão de Saffioti da invisibilidade, distorção ou inadequação da experiência das mulheres tornaria a relação entre o feminismo e a epistemologia uma “necessidade”. Mas perceber essa necessidade esbarrava ainda em outros limites, como a predominância na academia, assim como na sociedade, de uma concepção de ciência orientada pela objetividade, neutralidade e racionalidade. É importante também recuperar a preocupação de Saffioti com uma produção original capaz de romper com os referentes teóricos dos dominadores porque “o êxito da luta contra o patriarcado... exige o feminismo entendido enquanto nova perspectiva científico-política” (SAFFIOTI, 1989, p. 42)
No seminário “Mulher em seis tempos” realizado na Unesp Araraquara, em 1991, Saffioti apresenta uma contribuição da qual destaco o diálogo com duas autoras, Alisson Jaggar e Sandra Harding3, em razão das questões problematizadas que torna esse diálogo perene e presente em outros textos da autora. Um primeiro ponto seria a crítica feminista ao paradigma cartesiano que reivindicaria uma produção de conhecimento centrado na mente, apoiada na razão, no universal e na cultura. A ciência e os caminhos para “conhecer” estariam sob o poder e controle masculinos. Ao debater a condição social das mulheres, os problemas mobilizados para investigação a partir de suas experiências sociais e as subjetividades produzidas, tornou-se necessário reconhecer a existência de corpos constituídos historicamente, interessados, emocionais e racionais. Para Jaggar, estabelecer a emoção como contrária à razão teria levado a um empobrecimento na produção da ciência, considerando que o não reconhecimento das emoções conduziria a uma ciência parcial e masculina. Assim, falar de emoções não significaria reivindicar sua prevalência ante a razão, mas a necessidade de uma permanente autoinvestigação crítica da pesquisadora e do pesquisador.
Essa crítica estabeleceu a insuficiência dos paradigmas epistemológicos para analisar a realidade social, assim “estender e reinterpretar” teorias e conceitos não seria suficiente, pois as experiências que foram observadas para a problematização da realidade, e a definição de diversos conceitos, correspondiam a esferas associadas como masculinas. Assim, emoções, afetos, e relacionalidade tornaram-se problemas incontidos pelos arcabouços teóricos utilizados, estabelecendo o desafio de utilizar as teorias para uma transformação pessoal das pesquisadoras, das relações sociais que envolviam os processos de produção de conhecimento, assim como, das próprias teorias (HARDING, 1993, p. 9).
Ao pensar o processo metodológico envolvido no fazer ciência, a autora discute as condições desiguais para a produção de conhecimento e como as intelectuais feministas cumpriam o papel de indagar “sujeitos coletivos” em diferentes lugares sociais, em seus loci privilegiados de “enunciação” nos quais constroem narrativas explicativas de suas realidades. “São discursos com temporalidades e racionalidades diversas e forte materialidade” (SAFFIOTI, 1995, p. 57). Partindo dessas observações, a construção da pesquisa com mulheres em situação de violência, descrita por Saffioti, utilizou a história de vida e o relato na reconstrução da memória dolorosa da violência. A autora compreendia que essa era recontada com novos significados no “presente”, cabendo à equipe de pesquisa o complexo trabalho de analisar os significados aportados.
Aqui temos uma importante reflexão da autora quanto ao papel da pesquisa e da ação das pesquisadoras junto a suas interlocutoras: a possibilidade de contar suas memórias permitiria a essas mulheres uma ação de “transgressão”. Ao aceitar “relatar” as mulheres “consentiriam” em romper com o isolamento e refletir sobre o passado e o presente. Essa reflexão permitiria uma ressignificação de sua condição enquanto “ser histórico”, cuja memória assume “função coletiva”. Somava-se sua fala e memória a de outras mulheres estabelecendo uma dimensão política e pública sobre as violências vivenciadas no âmbito doméstico e privado. Essa dimensão política presente no método de pesquisa e investigação compreende estratégias compartilhadas por Saffioti.
O reconhecimento da parcialidade na produção do conhecimento estabelece um lugar privilegiado para os saberes daquelas que participam do processo de pesquisa na relação estabelecida pela pesquisadora. Essa construção de uma objetividade corporificada e localizada seria possibilitada por uma consciência reflexiva da pesquisadora, essa consciência não seria construída por uma isenção de valores, mas pela explicitação e reconhecimento desses nos processos de interação entre pesquisadoras e pesquisadas (OLESEN, 2006; HARDING, 1993). Um outro aspecto seria o reconhecimento da presença dos sentimentos, emoções e afetos e que esses seriam produtos da história, socialmente construídos, marcados por normas e expectativas coletivas e individuais. O restabelecimento das emoções como parte da experiência social proporia, também, reconhecê-las como fontes de conhecimentos (JAGGAR, 1997).
Sendo o conhecimento uma elaboração que se dá com o testemunho permanente do conhecimento do outro, conhecer envolve confiança e exercício de autoridade. No caso do conhecimento da pesquisadora em relações de investigação, torna-se importante refletir como esse é problematizado considerando que vivemos em uma sociedade que opera numa hierarquia institucionalizada de autoridade cognitiva. Revelar a dependência e interdependência do conhecimento epistêmico problematizaria as hierarquias institucionais, veladas e invisíveis, que se apoiariam em narrativas de independência e autonomia. A pretensa neutralidade de juízos seria revelada assim como uma confirmação de uma subjetividade exercida nas relações de poder por uma ciência masculina e branca.
Teoria feminista e produção de políticas públicas para as mulheres
Estudo o tema violência com a finalidade de lançar políticas públicas para as mulheres, oferecendo-as aos governantes, cujos meios para sua implementação estão ao seu alcance (MENDES; BECKER, 2011, p. 156).
Esse percurso dos estudos sobre a violência de gênero feito por Saffioti e das implicações epistemológicas e metodológicas em seu ocultamento caminhou conjuntamente com a busca por uma contribuição “genuína”. Neste percurso, a autora identificou e problematizou a ausência de indicadores capazes de produzir dados que permitissem reconhecer e discutir a dimensão assumida pela violência de gênero no Brasil. Essa ausência seria produzida intencionalmente, compreendendo as dinâmicas de poder estabelecidas na imbricação das estruturas de dominação produzidas no encontro entre capitalismo, racismo e patriarcado, nomeadas pela autora como um nó. Essa articulação de estruturas de poder auferiria a apropriação de diversas instituições como a justiça, a polícia e a saúde por narrativas masculinas com a consequente invisibilização de outras dimensões de “injustiças” produzidas e vividas pelas mulheres em situação de violência.
Em 1988, o IBGE realiza uma publicação sobre práticas violentas nomeada “Participação Político-Social 1988 – Justiça e Vitimização”4 que, para a autora, assumiu uma grande importância por produzir dados sobre a violência contra as mulheres, no entanto, a pesquisa compreendia violência em termos de agressão e furtos, sem incluir quaisquer dados sobre violência sexual contra as mulheres. Os dados apontavam que as experiências de agressão contra homens em sua maioria aconteciam em espaços públicos, enquanto para as mulheres, as agressões maciçamente aconteciam em suas residências (SAFFIOTI, 1994).
As experiências de incidência e mobilização por políticas públicas em São Paulo levam, a partir de negociações mobilizadas pelas mulheres com o governo do estado, a criação, em 1983, do Conselho Estadual da Condição Feminina (CECF) que estabeleceu como agenda prioritária para o órgão: educação, trabalho, saúde e violência. Em 1985, é criada, a partir da atuação da CECF, a primeira Delegacia de Defesa da Mulher (DDM) no país. O conselho passa a ser composto por mulheres que atuam de forma bastante próxima à DDM por uma convicção de que o “êxito” da política exigia uma formulação feminista da política pública. Seria necessário formar as policiais e delegadas para que compreendessem as dinâmicas de dominação e legitimação social da violência. Esse processo leva a uma rica reflexão quanto à responsabilidade do Estado pela formação de seus servidores públicos. O estabelecimento da política pública não seria suficiente sem a compreensão dos servidores públicos que a executam das condições de acesso aos serviços, das lógicas de atendimento às mulheres, do enfrentamento dos significados da neutralidade ou impessoalidade na operacionalização da política.
Nos procedimentos adotados pelas delegadas, Saffioti destacou que essas instauravam um procedimento que liberava a mulher para registrar a queixa no tempo que achasse oportuno. Essa medida foi estabelecida porque as delegadas perceberam a ausência de uma infraestrutura para que as mulheres levassem à frente as denúncias: seriam necessárias políticas de acolhimento como: abrigos, apoio psicológico e financeiro e políticas de trabalho. Assim, elas passaram a contribuir para uma elaboração mais complexa da organização das políticas de enfrentamento à violência de gênero, afirmando a necessidade de que fossem conectadas a outras políticas, como habitação, saúde e educação (SAFFIOTI, 1994). Uma outra provocação dirigiu-se à mobilização por redes de combate à violência que fossem constituídas com a participação do Ministério Público, Defensoria Pública, polícia, magistratura, profissionais da saúde, educação, dentre outros entes da sociedade civil (SAFFIOTI, 2002, 2004).
As experiências de enfrentamento à violência de gênero por meio das políticas públicas mostraram profundos limites nos períodos pesquisados pela autora em razão da não formação dos servidores públicos. A justiça e as demais instituições estariam atravessadas pelas lógicas de poder que atuariam na manutenção do ordenamento social de dominação das mulheres. Em 1994, a autora apontava para as possibilidades de transformação da “natureza do Estado” com a exposição pública da violência contra as mulheres e a ampliação da experiência das políticas de enfrentamento pelo país. Em 2004, ganha relevo para a autora a necessidade de ampliar os horizontes da luta feminista contra a violência, considerando a complexidade do fenômeno, novos campos de pesquisa que se colocavam, como a sexualidade, e a atualização das narrativas de poder e preservação do ordenamento social.
Conclusões
Ao longo desta escrita propus visitar os escritos de Heleieth Saffioti sobre a violência de gênero que ocuparam mais de duas décadas de seu trabalho intelectual, de forma a apreender e sistematizar como essa autora buscou articular uma contribuição teórica necessária com o objetivo informado de incidir junto ao Estado. Visitar essa intencionalidade no texto da autora significa recuperar uma dimensão de sua trajetória comprometida com uma forma de “ser ou estar socióloga”, para lembrarmos seu texto publicado em 2002, na Revista Estudos de Sociologia.
Produzir sobre a violência somava-se aos esforços de diversas outras mulheres, feministas e intelectuais, em contribuir na revelação do que a autora chamou de “negativo” da experiência das mulheres na sociedade brasileira. O esforço coletivo em revelar esse retrato colocou, para as mulheres deste período, a responsabilidades quanto à produção de um conhecimento sociológico a partir de uma problematização da realidade que as invisibilizava. Ao estabelecerem a produção de conhecimentos como uma tarefa incidiram necessariamente na forma como esse conhecimento se construía, com quem se construía, as metodologias utilizadas e o lugar da pesquisa na produção de sentidos e reflexões para pesquisadoras e interlocutoras. Essa problematização sobre o fazer ciência atravessava as próprias condições do estar no espaço da academia para as mulheres intelectuais.
Essa produção intelectual – “que não é mera forma de comunicação ou interação, mas fruto de um trabalho. É, pois, um trabalho materializado” (SAFFIOTI, 1995, p. 58) – buscaria contribuir para, não apenas estabelecer diálogo entre correntes de pensamentos diferentes, mas refletir sobre o conhecimento produzido por mulheres e reivindicar sua apropriação pelas instituições públicas que gerem e reproduzem normas e práticas sociais.
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SAFFIOTI. Heleieth. Ser ou estar sociólogo. Estudos de Sociologia, Araraquara, v. 7, n. 12, p. 31-59, 2002
SAFFIOTI. Heleieth. Gênero, Patriarcado, Violência. São Paulo: Editora Fundação Perseu Abramo, 2004.
SAFFIOTI. Heleieth. Quantos sexos? Quantos gêneros? Unisexo/unigênero? Cadernos de Crítica Feminista, Recife, n. 2, p. 6-32, dez. 2009.
Recebido em: 12/11/2020
Aceito em: 20/05/2021
1 Esta reflexão atravessa a entrevista cedida por Heleieth Saffioti a Juliana Cavilha Mendes e Simone Becker, publicada em 2011, na Revista Estudos Feministas.
2 Esse diálogo se dá no livro “Violência de Gênero: poder e impotência”, publicado em 1995, que apresenta as preocupações de Saffioti em analisar as práticas produzidas pela imbricação das relações de gênero, raça e classes sociais e de uma certa subjetividade capaz de normalizar as práticas violentas.
3 Alisson Jaggar e Sandra Harding são filósofas feministas, com extensa produção sobre epistemologia e metodologia feminista, tendo vários de seus textos traduzidos no Brasil.
4 A publicação conta com três volumes, sendo o primeiro dedicado a discutir dados sobre justiça e violência, que pode ser acessado no endereço: https: https://biblioteca.ibge.gov.br/visualizacao/livros/liv82728_v1.pdf
Artigos
CONTRATO DE TRABALHO INTERMITENTE:
o “empregado desempregado” entre a razão neoliberal e a pandemia
INTERMITTENT LABOR CONTRACT:
the “employee unemployed” between neoliberal reason and pandemic
____________________________________
Súllivan Pereira1*
Renata Dutra2**
Resumo
O contrato de trabalho intermitente é uma forma de contratação atípica, institucionalizada pela Lei n.º 13.467/17, a Lei da Reforma Trabalhista. Essa forma de contratação atende aos anseios neoliberais de desregulamentação do trabalho formal e cria a figura do empregado desempregado, visto que não garante o sustendo do trabalhador que vive a incerteza sobre quando será convocado para trabalhar. Em 2020, com a pandemia sanitária da covid-19, foi necessário o isolamento social, fato que desencadeou a interrupção de parte significativa das atividades econômicas não essenciais. Diante desse contexto, questionam-se as possibilidades de manutenção da renda do empregado intermitente, a existência e a suficiência das medidas institucionais visando amparar os trabalhadores contratados sob essa modalidade. Para tanto, inicialmente realizou-se uma revisão bibliográfica da literatura especializada sobre o contrato de trabalho e sobre a interferência das crises econômicas e do neoliberalismo em sua reconfiguração e, posteriormente, foi feita análise do projeto de Lei n.º 685 de 17 de março de 2020 e da Medida Provisória n.º 936/20, convertida na Lei n.º 14.020/20, e da Lei n.° 13.982/2020 ante suas pretensões de assimilação do fenômeno em debate.
Palavras-chave: Neoliberalismo. Pandemia. Contrato de trabalho intermitente. Medidas Institucionais.
Abstract
The intermittent employment contract is a form of atypical hiring, institutionalized by Law No. 13,467 / 17, the Labor Reform Law. This form of hiring meets the neoliberal desires for deregulation of formal work and creates the figure of the unemployed employee, since it does not guarantee the support of the worker who lives in the uncertainty of when he will be called to work. In 2020, with the health pandemic of covid-19, it was demanding social isolation and the consequent interruption of a significant part of non-essential economic activities. In this context, the possibilities of maintaining intermittent employee income are questioned, as well as the existence and sufficiency of institutional measures aimed at supporting workers hired under this modality. To this end, a bibliographic review of the specialized literature on the employment contract and the interference of economic crises and neoliberalism in its reconfiguration was initially carried out and, subsequently, an analysis of Bill No. 685 of 17 March 2020 and of Provisional Measure n.º 936/20, converted into Law n.º 14.020/20, in view of its claims to assimilate the phenomenon under debate.
Keywords: Neoliberalism. Pandemic. Zero hour contract. Institutional Measures.
1* Pesquisadora FAPESB. Advogada. Mestranda em Direitos Fundamentais e Justiça pelo Programa de Pós- Graduação em Direito da Universidade Federal da Bahia. E-mail: sullivanpereira83@gmail.com
2** Professora Adjunta de Direito do Trabalho da UnB. Doutora e Mestra em Direito pela UnB. E-mail: renata.dutra@unb.br
ISSN 1517-5901 (online)
POLÍTICA & TRABALHO
Revista de Ciências Sociais, nº 54, Janeiro/Junho de 2021, p. 81-98
Introdução
O contrato de trabalho intermitente, institucionalizado pela Lei n.º ١٣.٤٦٧/١٧ (Lei da Reforma Trabalhista), é uma forma de contratação atípica, por prazo indeterminado, mas com prestação de serviços descontínua. Resultado da política neoliberal de flexibilização do mercado de trabalho formal, essa modalidade de contratação diferencia-se do contrato de trabalho padrão firmado pelo sistema de proteção social brasileiro na Consolidação das Leis do Trabalho e gera questionamentos consistentes com relação à sua compatibilidade com a Constituição de 1988.
Em 2020, o mundo foi surpreendido pela pandemia sanitária da covid-19 e uma das medidas recomendadas pela Organização Mundial de Saúde para a contenção do quadro pandêmico, bem como para a manutenção dos sistemas de saúde em condições de funcionamento, foi o isolamento social. Para tanto, houve interrupção de parte significativa das atividades econômicas não essenciais. Considerando que o trabalhador intermitente é um “empregado desempregado” ou, ao menos, um empregado potencialmente desempregado (empregado, porque tem um emprego formal, mas desempregado, porque não pode contar com esse para seu sustento, visto que não tem garantia de se e quando será chamado para laborar), incerteza que se agrava no contexto pandêmico, algumas questões se colocam: como o empregado intermitente poderá manter sua renda durante a pandemia? Quais medidas institucionais específicas para esse segmento foram propostas? Essas medidas são suficientes para ampará-los nesse momento de vulnerabilidade?
Visando responder a essas questões, esse artigo foi divido em três partes, além dessa introdução. Na primeira será feita uma breve contextualização da pandemia, dentro da lógica neoliberal presente na sociedade brasileira. Em seguida, realizar-se-á uma revisão bibliográfica do contrato de trabalho intermitente e de suas contradições em relação à ordem jurídica constitucional. Na terceira parte, será realizada uma análise do Projeto de Lei n.º 685 de 17 de março de 2020 e da Medida Provisória n.º ٩٣٦/٢٠ convertida na Lei n.º 14.020/20, instrumentos jurídicos voltados a enfrentar, a partir de perspectivas diferentes, o cenário de vulnerabilidade que envolve os trabalhadores contratados de forma intermitente. Por fim, apresentaremos nossas conclusões.
Pandemia sanitária do Coronavírus e a razão neoliberal
A pandemia sanitária da covid-19 não pode ser imputada a um acaso, que coloca a economia contra a natureza, pois a economia não é um ponto fixo e estável ao qual tudo ao redor deve se moldar, como o social e o natural (MASCARO, 2020). A economia não possui capacidade organizacional intrínseca, ela é uma ciência social aplicada e, assim como as demais, está condicionada pelo desenvolvimento da vida social. É uma ferramenta para auxiliar as ações dos agentes políticos, não um ente próprio capaz de instituir a dinâmica social de uma nação, ao qual os demais elementos da vida social imperativa e inexoravelmente devam se acomodar.
As reações da natureza estão relacionadas com o sistema econômico e social. Existe uma conexão metabólica relacional entre a remodelação das condições ambientais e as formas de reprodução do capital. Nessa perspectiva de análise, conforme Harvey, não há que se falar em desastre natural, visto que vírus sofrem mutações constantes, mas sim de ações humanas que fazem com que uma mutação natural se torne uma ameaça fatal (HARVEY, 2020). Assim,
os impactos econômicos e demográficos da propagação do vírus dependem de fendas e vulnerabilidades preexistentes no modelo econômico hegemônico. Inclusive, experiências anteriores haviam mostrado que uma das desvantagens do aumento da globalização é como é impossível impedir uma rápida difusão internacional de novas doenças (HARVEY, 2020, p. 3).
No caso brasileiro, devido a escolhas políticas, existem condições materiais (históricas, sociais e ambientais) que caracterizam e acentuam os impactos da crise sanitária na vida das pessoas pobres, tais como: a debilidade das condições sanitárias, as recentes políticas de austeridade fiscal, a histórica desigualdade social, a desestruturação do mercado de trabalho formal, a fragilidade do jovem e o ainda não consolidado Sistema Único de Saúde (SUS).
Após forte militância da sociedade civil, sobretudo, do Movimento da Reforma Sanitária Brasileira (MRSB) que, desde 1970, exerce um importante papel no desenvolvimento da saúde pública nacional, o direito universal à saúde foi materializado em um sistema de cobertura universal e gratuita na Constituição Federal de 1988. Contudo, apesar de substanciais avanços no desenvolvimento e capilarização nacional desse sistema, principalmente na atenção básica e sanitária, o SUS enfrenta o subficanciamento crônico patrocinado pelo capital financeiro interessado na privatização da saúde pública (PAIM, 2018).
Grandes interesses econômicos e financeiros ligados a operadoras de planos de saúde, a empresas de publicidade e a indústrias farmacêuticas e de equipamentos médico-hospitalares se interessam pelo não financiamento público do SUS. [...]. Apesar de a Constituição proclamar a saúde como direito de todos e dever do Estado, o Estado brasileiro através dos poderes executivo, legislativo e judiciário, não tem assegurado as condições objetivas para a sustentabilidade econômica e científico-tecnológica do SUS. Problemas de gestão como a falta de profissionalização, o uso clientelista e partidário dos estabelecimentos públicos, número excessivo de cargos de confiança, burocratização das decisões e descontinuidade administrativa, têm sido destacados, embora as alternativas acionadas impliquem a desvalorização dos trabalhadores de saúde, através das terceirizações e da precarização do trabalho (PAIM, 2018, p. 1725).
Com uma industrialização e legislação trabalhista tardias – que longe de ser uma concessão varguista, foi fruto da luta da classe trabalhadora – no Brasil, a intensa exploração do trabalho e a precarização ilimitada sempre se fizeram presentes. Conforme Druck, a precarização social do trabalho é um:
processo em que se instala – econômica, social e politicamente – uma institucionalização da flexibilização e da precarização moderna do trabalho, que renova e reconfigura a precarização histórica e estrutural do trabalho no Brasil, agora justificada pela necessidade de adaptação aos novos tempos globais (DRUCK, 2011, p. 41).
Por exemplo, no final de 2019 o país já tinha mais de 40% da classe trabalhadora na informalidade, mais de cinco milhões já eram uberizados e muitos outros já viviam em subempregos, como os trabalhadores domésticos, terceirizados e intermitentes (ANTUNES, 2020).
No país, não houve a construção de um pacto socialdemocrata, nem um Estado de bem-estar social, então os impactos das políticas neoliberais foram mais intensos. Aqui, o processo de reestruturação produtiva e do trabalho foi fortemente influenciado pelo modelo toyotista, tanto no plano objetivo como no plano subjetivo: 1) no plano objetivo, utilizou largamente as dispensas, enxugamentos, terceirização, polivalência, fragmentando a classe operária e fragilizando a sua capacidade de resposta; 2) no plano subjetivo, o sindicalismo brasileiro falhou ao não buscar uma ruptura com o neoliberalismo, limitando-se a fazer uma luta dentro dessa ordem (DRUCK, 2011).
No Brasil, o fenômeno neoliberal começa a ser lentamente introduzido nos anos de 1970, com o avanço do capital financeiro internacional, porém só se difunde nos anos de 1990, década de “desertificação neoliberal” e do deslocamento da produção industrial dos países do norte para os países subdesenvolvidos do sul, com menor poder de organização coletiva e uma historicamente recente cidadania regulamentada1, período em que as transformações no processo produtivo decorreram da própria concorrência intercapitalista, do avanço da tecnologia e da necessidade de controlar o movimento operário e as lutas de classe (ANTUNES, 2015).
Conforme Armando Boito Jr., a política neoliberal pode ser desagregada em três elementos: 1) o primeiro elemento, geral e permanente, é política de desregulamentação do mercado de trabalho, de redução de salários e de redução ou supressão dos direitos sociais; 2) o segundo elemento é a política de privatizações, que, apesar dos impactos significativos, não é tão universal quanto o anterior, pois favorece apenas as grandes empresas monopolistas e o que o autor denomina de capital imperialista; 3) o terceiro componente é a associação da política de abertura comercial e de desregulamentação ou abertura financeira, que favorece o setor bancário do capital monopolista e o capital imperialista, ou seja, não favorece a burguesia industrial interna, motivo pelo qual não é um componente de agregação das burguesias à política neoliberal (BOITO JR., 2006).
Expressiva parcela da classe trabalhadora sempre esteve privada do conjunto de direitos de proteção social, realidade aprofundada com a Reforma Trabalhista de 2017. Assim, a pandemia sanitária da covid-19 encontrou condições materiais – “um mercado de trabalho pouco estruturado, heterogêneo, com alta informalidade e rotatividade, baixos salários e marcado pela desigual distribuição dos rendimentos do trabalho” (BIAVASCHI; KREIN; TEIXEIRA, 2020, p. 1) – para aprofundar uma crise preexistente na sociedade brasileira.
Essa crise preexistente na sociedade é uma crise histórica, sintomática de um modo de produção calcado na forma-mercadoria e que segue o mesmo padrão da crise de 2008, crise do capital financeiro-especulativo que já se apresentava nos primeiros meses de 2020 com uma potencialidade de afetar amplos setores da economia mundial. Portanto, a pandemia sanitária mundial da covid-19 é uma acentuação da crise, uma evidência material da crise social do capital (MASCARO, 2020).
Nesse sentido, observa Harvey (2020) que antes da pandemia já havia inúmeros movimentos e organizações de contestação social, em vários países, a demonstrar a fragilidade e a insuficiência do vigente modelo de acumulação do capital, baseado no capital fictício e responsável por um permanente endividamento, para grandes parcelas da população. Portanto, a crise não pode ser atribuída apenas às políticas neoliberais de matriz pós-fordista, devendo ser compreendida como manifestação estrutural do próprio capitalismo (MASCARO, 2020).
Isso porque as relações estabelecidas no sistema capitalista não se submetem a limites éticos intrínsecos: caso não haja coerções externas e artificiais, como aquelas impostas pelo Estado, a exploração humana tende a ser levada ao extremo, inclusive violando direitos humanos e fundamentais, como a utilização do trabalho análogo ao escravo. A crise cíclica do capital está sendo aprofundada pela exploração sem limites da racionalidade neoliberal, na medida em que prega a exploração do trabalho sem controle estatal e nega todo e qualquer tipo de intervenção social protetiva, aumentando assim a desigualdade social e a extrema miséria.
É nesse contexto complexo que situamos a discussão específica sobre o trabalhador engajado no contrato de trabalho intermitente, cujas condições precárias são produtos dessa mesma realidade.
Contrato de trabalho intermitente e o dilema do empregado desempregado
Após o Golpe Político Parlamentar de 2016, uma série de medidas neoliberais foram implementadas no Brasil: a Emenda Constitucional n.º ٩٥/٢٠١٦, do congelamento dos gastos públicos por 20 anos, a Reforma Trabalhista de 2017, a Reforma da Previdência, mudanças nos órgãos de fiscalização ambiental, privatizações, grande investimentos em bancos e no capital financeiro em detrimento de políticas sociais, entre outras medidas. Novamente, foi possível o avanço do projeto neoliberal ortodoxo, dando continuidade às políticas que permearam, com ritmos e intensidades diversas, a história do país desde a década de 1990.
Todas essas medidas utilizam como argumento o “enfretamento da crise”. Destaca-se, nesse contexto, a Reforma Trabalhista, aprovada sob o argumento de que a inserção de mudanças legislativas flexibilizadoras2 de direitos do trabalho iria gerar novos postos de trabalho. Contudo, o que a Reforma trouxe (conclusão possível após o monitoramento de dois anos de sua vigência) foi tão somente a fragilização da regulação protetiva em uma sociedade que já tinha um mercado de trabalho fragmentado, precarizado e fragilizado. Até o momento, não existem evidências suficientes que permitam afirmar que a flexibilização de direitos sociais seja fonte criadora de novos postos de emprego, o que deixa desamparado o argumento neoliberal (FILGUEIRAS, 2019; FILGUEIRAS; SOUZA; LIMA, 2019).
Pelo contrário, os dados mostram um crescimento na informalidade. O número de empregados com carteira assinada no setor privado, no primeiro ano de implementação da Reforma, apresentou uma queda de cerca de 350 mil, ao passo que houve um aumento do número de trabalhadores sem carteira na ordem de 396 mil, “totalizando 11,5 milhões de assalariados do setor privado na ilegalidade, em 2018” (KREIN; VÉRAS, 2019, p. 115). Ainda, é possível ver o crescimento do desemprego oculto pelo desalento:
a População Economicamente Ativa (PEA) cresceu bem menos do que a PNEA (População Economicamente Não Ativa), respectivamente, 2,7% e 6,2%, entre 2014 e 2018. Significa que mais pessoas saíram da força de trabalho, pois cresceu a inatividade, o que alivia a pressão sobre o mercado de trabalho para a geração de ocupações e produz reflexos na taxa de desocupação mensurada. Mais uma vez, fica evidente a prevalência de tendências que mostram uma situação mais complicada para as pessoas que precisam trabalhar para sobreviver. Trata-se de um fenômeno do crescimento da inatividade, na crise, que está associado às perspectivas pessimistas de um segmento da população em encontrar alguma ocupação (KREIN, VÉRAS, 2019, p. 117).
Nesse contexto, a despeito das evidências em contrário, a Lei n.º ١٣.٤٦٧/١٧ foi aprovada utilizando o argumento de que existia uma crise e de que o caminho inevitável para contorná-la seria a retirada de supostos “excessos” protetivos na legislação trabalhista. Dentre as várias medidas precarizantes das relações de trabalho por ela inseridas, o contrato de trabalho intermitente foi institucionalizado, contribuindo, assim, para que as empresas aumentem a sua margem de discricionariedade em relação ao manejo da força de trabalho ao sabor das oscilações de sua demanda.
A Reforma Trabalhista provoca uma transformação na organização do trabalho interno (nacional), com mudanças legislativas que regulamentam contratação atípicas (o trabalho temporário, terceirizado, jornada parcial, trabalho autônomo e institucionalização de uma nova forma contratual, qual seja, o trabalho intermitente), dialogando diretamente com a flexibilidade externa (internacional). Essa última há muito vem sendo caracterizada pela literatura como responsável por apostar na mão de obra maleável em termos de contratação de empregados e na organização de sua jornada (BOLTANSKI; CHIAPELLO, 2009).
O contrato de trabalho intermitente reorganiza, no plano legislativo – portanto, infraconstitucional – o trabalho subordinado. Essa forma contratual legaliza uma lógica precária de subordinação, gestão e controle da força de trabalho, em que o trabalhador tem vínculo empregatício, mas não tem nenhuma segurança contratual de quanto vai receber, quando vai trabalhar e se trabalhará (TEIXEIRA et al., 2017).
Trata-se de contrato de emprego atípico3, sem data pré-definida para o término do vínculo, caracterizando-se, portanto, como vínculo por prazo indeterminado. Contudo, a prestação de serviços é feita de forma descontínua, que pode se dar em períodos de horas, dias ou meses, determinados pelos interesses convenientes à dinâmica da empresa.
O empregado intermitente continua subordinado ao empregador, mesmo que este não esteja se utilizando da sua força de trabalho e nem saiba quando terá necessidade de recrutá-la. Essa forma contratual não prevê a quantidade mínima de horas que o empregado teria direito a laborar. Em verdade, só exige que o empregador convoque o empregado, por um meio de comunicação eficaz, com, pelo menos, três dias corridos de antecedência, informando a data de prestação do serviço a ser efetuado e a jornada, conforme o artigo 452-A da CLT.
Portanto, essa forma contratual considerada atípica vai fundamentalmente contra os princípios reitores da teoria geral dos contratos, da segurança jurídica e do próprio caráter sinalagmático inerente à generalidade dos contratos, visto que não determina as duas principais cláusulas de um contrato de trabalho, quais sejam, a remuneração mínima que o trabalhador perceberá ao final do mês e quanto tempo esse obreiro terá que laborar (FERNANDES, 2017). Essa forma de contratar, quando confrontada com a lógica do nosso sistema jurídico, desatende aos requisitos mínimos de validade contratual, quais sejam a existência de objeto lícito, determinado ou determinável (DINIZ; VARELA, 2018).
Ainda, o contrato de trabalho intermitente brasileiro estabelece uma multa de 50% da remuneração que seria devida, no prazo de trinta dias e permitida a compensação em igual
prazo, quando o trabalhador, sem um “justo motivo” (expressão subjetiva que pode ensejar interpretações dissonantes), não vai laborar após ter sido convocado e ter aceitado o serviço4.
Outro aspecto a ser considerado é a troca de um custo fixo (folha de salários mais encargos), referente ao contingente regular de força de trabalho, por custo variável, com uma folha de salários que flutua de acordo com as necessidades sazonais das contratações. No fundo, cristaliza-se o ponto de vista neoliberal de classificar o trabalho humano como um fator de produção como os demais, do qual se lança mão quando necessário e se descarta como uma mercadoria qualquer (DIEESE, ٢٠١٧). Nessa toada, as necessidades atinentes à subsistência do trabalho, que são permanentes, e que deveriam ser satisfeitas pelo salário, têm seu atendimento igualmente em flutuação, o que enseja uma vida de insegurança e vulnerabilidade para o conjunto que assim se ocupa.
Corroborando esse cenário crítico, dados do Dieese informam que, em 2018, a remuneração média mensal dos intermitente foi de R$ 763,00, sendo que apenas 50% dos vínculos alcançaram rendimento equivalente a pelo menos um salário-mínimo e 11% desses vínculos não geraram atividade ou renda em 2018 (DIEESE, 2020). Essa situação evidencia que a modalidade contratual não assegura previsibilidade quanto à garantia da subsistência.
No Brasil, conforme a Tabela 1, de novembro de 2017 até fevereiro de 2020 (período pré-pandemia), existiam 144.993 contratos intermitentes ativos (o que não significa 144.993 pessoas contratadas na modalidade intermitente, pois existem pessoas com mais de um contrato ativo devido à precariedade dessa forma contratual).
Tabela 1 – Saldo total de contratos intermitentes de novembro de 2017 a fevereiro de 2020
Período |
Admissões |
Desligamentos |
Saldo Total |
Novembro de 2017 |
3.120 |
-53 |
3.067 |
Dezembro de 2017 |
2.851 |
-277 |
2.574 |
Ano de 2018 |
66.467 |
-18.951 |
47.516 |
Ano de 2019 |
148.519 |
-67.222 |
81.297 |
Janeiro de 2020 |
11.748 |
-7.515 |
4.233 |
Fevereiro de 2020 |
13.017 |
-6.711 |
6.306 |
TOTAL |
245.722 |
-100.729 |
144.993 |
Fonte: Caged/SEPRT/ME. Elaboração Própria.
Em 2020, durante a pandemia sanitária, conforme o Novo Caged (Tabela 2), foram firmados 71.502 contratos intermitentes, contudo, foram rescindidos 45.072, gerando saldo de 26.027. Embora a quantidade de contratados de forma intermitente nesses seis meses de pandemia tenha sido maior que a quantidade de contratados na mesma modalidade durante todo o ano de 2018, esse dado não significa que novos postos de empregos foram criados (o Brasil fechou com o saldo total negativo nesse período, conforme Tabela 3, ou seja, houve a extinção de 1.030.600 postos de emprego), mas sim que houve tendência leve de substituição do contrato típico pelo atípico. Qualifica-se a tendência como leve porque as contratações intermitentes são muito incipientes em relação ao montante geral de contratados tipicamente: nesse período, apenas 1,24% das contratações foram realizadas na modalidade intermitente.
Tabela 2 – Saldo total de contratos intermitentes de março a agosto de 2020
Período |
Admissões |
Desligamentos |
Saldo Total |
Março |
12.922 |
-6.891 |
6.031 |
Abril |
7.291 |
-9.666 |
-2.375 |
Maio |
9.617 |
-7.212 |
2.405 |
Junho |
11.848 |
-6.625 |
5.223 |
Julho |
14.243 |
-7.298 |
6.945 |
Agosto |
15.581 |
-7.335 |
8.246 |
TOTAL |
71.502 |
-45.027 |
26.027 |
Fonte: Novo Caged/SEPRT/ME. Elaboração Própria.
Tabela 3 – Saldo total de contratos formais de março a agosto de 2020
Período |
Admissões |
Desligamentos |
Saldo Total |
Março |
1.310.000 |
-1.520.000 |
-210.000 |
Abril |
598.500 |
-1.450.000 |
-851.500 |
Maio |
703.900 |
-1.030.000 |
-326.100 |
Junho |
895.000 |
-906.000 |
-11.000 |
Julho |
1.040.000 |
-912.000 |
128.000 |
Agosto |
1.230.000 |
-990.000 |
240.000 |
TOTAL |
5.777.400 |
-6.808.000 |
-1.030.600 |
Fonte: Novo Caged/SEPRT/ME. Elaboração Própria.
Dessa forma, as normas que regem a contratação intermitente conduzem ao cenário delineado pelos dados, em que o controle da força de trabalho, de forma absoluta, encontra-se nas mãos do empregador, que pode dispor, conforme suas exclusivas necessidades, quanto ao contingente de trabalhadores que tem sob contrato intermitente, quanto à quantidade de trabalho recrutada de cada um deles (que pode inclusive ser nenhuma) e, por consequência, quanto ao rendimento decorrente do vínculo, independentemente das necessidades mínimas de quem trabalha, cenário que se torna ainda mais grave para os trabalhadores diante das dificuldades econômicas ocasionadas pela pandemia.
Permite-se, no bojo do contrato intermitente, contratar pessoas e nem sequer convocá-las para laborar por meses, dando azo à figura do empregado desempregado. Trata-se de forma contratual que, a despeito de legalmente enquadrada na categoria do emprego, não tem a aptidão de promover os efeitos de inserção social e cidadania prometidos pela regulação empregatícia (DELGADO, 2006), trazendo a precariedade existente no mundo do trabalho para dentro do universo das relações empregatícias e, assim, esvaziando o sentido dessa categoria jurídica. A contradição inerente a essa categoria se torna ainda mais evidente diante das políticas sociais necessárias no cenário pandêmico.
Medidas insitucionais em relação ao trabalhador intermitente durante a pandemia sanitária: soluções para o problema do “empregado desempregado”?
Objetivando enfrentar a crise oriunda da pandemia sanitária, foram propostas medidas jurídicas de caráter protetivo e intervencionista, ainda que com alcance limitado, para assegurar renda aos sujeitos vulneráveis durante a pandemia.
Esse conjunto de medidas envolveu o auxílio emergencial para os informais, desempregados, MEIs, trabalhadores por conta própria sem renda (Lei n.º ١٣.٩٨٢/2020); transferências de renda para os assalariados do setor privado (suspensão do contrato e redução da jornada e do salário acompanhados de benefício emergencial atrelado ao valor do seguro-desemprego, por meio da MP n.º 936, convertida na Lei n.º ١٤.٠٢٠/٢٠٢٠, e linhas de crédito para custeio da folha de pagamento, com subsídio governamental, a fim de evitar dispensas, por meio da MP n.º ٩٤٤, convertida na Lei n.º ١٤.٠٤٣/٢٠٢٠), além da estipulação de normas excepcionais que pudessem acomodar os institutos do direito do trabalho em função da pandemia, por meio da a MP n.º ٩٢٧/٢٠٢٠ (condução ao teletrabalho, antecipação de férias, postergação de obrigações contratuais como os recolhimentos de FGTS, entre outras), cuja vigência já expirou. Ainda, vale citar normas provisórias voltadas a setores específicos, como a MP n.º ٩٤٥/٢٠٢٠, que cuidou do trabalho portuário, e de normas delineadoras de medidas mais gerais relacionadas ao trabalho, como a MP n.º ٩٤٦/٢٠٢٠, que extinguiu o Fundo PIS-Pasep, cujos ativos e passivos foram transferidos ao FGTS, com autorização de saque para os titulares de contas vinculadas ao FGTS.
Entretanto, no que concerne a políticas diretas e de natureza continuada de garantia de renda aos trabalhadores (materializadas sobretudo nas Leis n.º ١٣.٩٨٢/٢٠٢٠ e ١٤.٠٢٠/٢٠٢٠), há uma clara bifurcação entre aquelas voltadas aos trabalhadores com vínculo empregatício e aquelas voltadas aos demais tipos de trabalhadores em situação de vulnerabilidade.
Nessa esteira, buscaremos compreender como a condição de “empregado desempregado”, peculiar aos trabalhadores intermitentes, os coloca em posição sui generis em relação ao conjunto dessas políticas, com significativas dificuldades de enquadramento que decorrem das contradições e da atipicidade da própria figura contratual.
Entre a Lei n.º ١٣.٩٨٢/٢٠٢٠ e a Lei n.º 14.020/2020
A Medida Provisória n.º ٩٣٦, editada em 1º de abril de 2020, que resultou convertida na Lei n.º 14.020, instituiu o Programa Emergencial de Manutenção do Emprego e da Renda, o qual dispõe sobre medidas trabalhistas complementares para o enfrentamento da pandemia sanitária, aprovado após um caloroso processo de discussão e de forte insistência dos partidos de oposição ao governo federal.
Por meio da norma, foi criado Benefício Emergencial de Manutenção do Emprego e da Renda, voltado aos trabalhadores inseridos em relações de empregos formais, a fim de que se facultasse aos empregadores a suspensão dos seus contratos por até sessenta dias, ou a redução das jornadas, com a proporcional redução salarial, por até noventa dias, como alternativa à rescisão dos contratos em razão do contexto de suspensão de parte significativa das atividades econômicas. As medidas em comento se faziam acompanhar do pagamento proporcional do benefício emergencial, custeado pela União e observado o limite do valor do seguro-desemprego.
Dentre outros argumentos, o texto da Exposição de Motivos da Medida Provisória n.º ٩٣٦, confirmados na Lei n.º ١٤.٠٢٠, sustentava que a sua importância seria a garantia à renda do trabalhador, bem como a redução do impacto social da crise. Para garantir a renda e a permanência dos trabalhadores em isolamento social, evitando dispensas, a MP agiria “por meio de medidas de flexibilização do contrato de trabalho e das relações trabalhistas” (BRASIL, 2020a, p. 4).
A MP 936, convertida na Lei n.º ١٤.٠٢٠/2020, assegurou aos trabalhadores afetados por essas medidas a garantia provisória do emprego pelo prazo que durasse a suspensão ou redução e, após o seu transcurso, por igual período. Também em contrapartida, durante a suspensão ou redução, o empregador seria desobrigado total ou parcialmente da folha de pagamento, que seria compensada pela União, por meio do pagamento do benefício emergencial, pago diretamente aos trabalhadores afetados e calculado proporcionalmente à ordem da perda salarial sofrida.
O benefício instituído em contrapartida a essas possibilidades flexibilizatórias – suspensão contratual e redução de salário/jornada – também encontra limites, visto que o cálculo para seu pagamento foi estipulado em função do valor máximo do seguro-desemprego, de modo que, não necessariamente a compensação percebida pelo empregado corresponde à perda contratual por ele suportada.
Também merece destaque o limite dessa política quando se percebe que a garantia provisória do emprego é tratada a partir de uma perspectiva estritamente individual, ou seja, o empregador fica obrigado a manter, provisoriamente, o vínculo de emprego daqueles trabalhadores que foram diretamente afetados pelas medidas de flexibilização e que receberam o benefício, não resultando limitado seu poder de dispensa em relação aos demais empregados a que porventura esteja vinculado.
Quanto aos trabalhadores intermitentes, o artigo 18, caput e parágrafos seguintes, da Lei n.º ١٤.٠٢٠/٢٠, dispôs que o empregado contratado na modalidade intermitente, formalizado até ١º de abril de ٢٠٢٠, data de publicação da Medida Provisória n.º ٩٣٦/٢٠٢٠, teria direito ao benefício emergencial mensal no valor fixo de R$ 600,00 (seiscentos reais), pelo período de três meses, independentemente da suspensão contratual ou da redução de salário e jornada, que era pressuposto quanto aos demais empregados. Porém, a existência de mais de um vínculo empregatício não geraria o direito à concessão de mais de um benefício emergencial mensal, bem como não seria possível cumular com auxílio emergencial, mesmo que justificados por fatores distintos (BRASIL, 2020d).
Por outro lado, para os trabalhadores em situação de extrema vulnerabilidade – assim entendidos especialmente os informais, mas também compreendidos os desempregados, MEIs, trabalhadores por conta própria sem renda, cujas atividades foram interrompidas em razão da política de isolamento social – foi pensado o auxílio emergencial, entendido como uma renda básica emergencial, no valor de R$ 600,00, a ser pago, inicialmente, por três meses, posteriormente renovados por mais dois meses e, em seguida, prorrogado por mais três meses, contudo, com redução do valor para R$ 300,00.
A Lei n.º ١٣.٩٨٢, de ٢ de abril de ٢٠٢٠, altera a Lei n.º ٨.٧٤٢, de ٧ de dezembro de ١٩٩٣, para dispor sobre parâmetros adicionais de caracterização da situação de vulnerabilidade social para fins de elegibilidade ao Benefício de Prestação Continuada (BPC), e estabelece medidas excepcionais de proteção social a serem adotadas durante o período de enfrentamento da emergência de saúde pública de importância internacional decorrente do coronavírus (covid-19) responsável pelo surto de 2019, a que se refere a Lei n.º ١٣.٩٧٩, de ٦ de fevereiro de ٢٠٢٠.
Em seu artigo 2º, inciso VI, alínea c, dispõe que, durante o período de três meses, a contar da publicação da lei, seria concedido auxílio emergencial no valor de R$ 600,00 (seiscentos reais) mensais ao trabalhador que exercesse atividade na condição de trabalhador intermitente inativo (BRASIL, 2020c), considerando trabalhador intermitente inativo aquele que é formalmente contratado, mas não está sendo chamado para laborar.
Nessa bifurcação entre medidas de proteção social ao emprego formal e medidas voltadas a trabalhadores que vivenciam outras formas de inserção no trabalho, a inadequação do trabalhador contratado de forma intermitente ao conjunto dos empregados fica evidenciada: ante a incompatibilidade do contrato de trabalho intermitente com dinâmicas como a de antecipação de férias, suspensão contratual e redução de jornada, a inclusão do trabalhador contratado nesses moldes na cobertura da MP n.º 927 (cuja vigência se encerrou em 19/7/2020) e da Lei n.º ١٤.020/20, que cuidam especificamente dos trabalhadores com vínculo empregatício, na maior parte das disposições, não faria sentido.
Isso porque, embora a legislação reformada assegure ao trabalhador intermitente o recebimento do valor proporcional à remuneração de férias acrescida da gratificação de 1/3 diluído na remuneração concernente a cada engajamento, o artigo 452-A, parágrafo 9º da CLT, dispõe que “a cada doze meses, o empregado adquire direito a usufruir, nos doze meses subsequentes, um mês de férias, período no qual não poderá ser convocado para prestar serviços pelo mesmo empregador” (BRASIL, 2017, p. 03). Os termos da legislação desnaturam o conceito de férias ao prever a fruição do repouso pelo trabalhador intermitente, sem assegurar que esse período seria suportado financeiramente pelo empregador, nem mesmo naquelas situações em que os engajamentos no ano anterior, com os respectivos pagamentos proporcionais, não tenham sido suficientes para integralizar a remuneração de um mês de férias.
É por isso que a regulação do contrato intermitente realizada pela reforma trabalhista, ao monetizar o direito a férias, não assegura sua efetiva fruição remunerada ao trabalhador. O direito assegurado ao trabalhador é apenas o de não ser convocado, no período arbitrariamente intitulado como férias, mas sem correspondência ao seu sentido constitucional. Por outro lado, a prerrogativa de não convocar trabalho e não remunerar sempre faz parte do poder do empregador no contrato intermitente, não alcançando este, portanto, qualquer vantagem adicional com a possibilidade de antecipação de férias prevista na MP 927/2020.
Por outro lado, carecem de utilidade, para aquele que emprega por meio do contrato intermitente, as possibilidades de redução de salário e jornada, pois essa maleabilidade já integra originalmente o contrato intermitente por meio da oscilação de oferta de trabalho. O mesmo se diz quanto à possibilidade de suspensão contratual, já que essa se confundiria com a faculdade assegurada pela lei do empregador intermitente de não recrutar trabalho, prática que ele, aliás, pode, nos termos da regulação instituída pela Lei 13.467/2017, realizar sem que o trabalhador receba nenhum tipo de benefício em contrapartida, tal como cristalizado na Lei n.º ١٤.٠٢٠/٢٠٢٠.
Diante disso, como visto, o artigo 18, caput e parágrafos seguintes, da Lei n.º ١٤.٠٢٠/٢٠, assegurou, de forma especial, o direito ao benefício emergencial mensal no valor fixo de R$ 600,00 (seiscentos reais), pelo período de três meses, independentemente de suspensão contratual ou redução de salário e jornada.
Na outra alternativa protetiva, tampouco faria sentido enquadrar sujeitos que supostamente possuem um vínculo de emprego como beneficiários de um auxílio emergencial de espectro limitado àqueles trabalhadores sem vínculo de emprego que foram afetados no rendimento do seu trabalho (conjunto dos informais, desempregados, MEIs, trabalhadores por conta própria sem renda). Entretanto, coube à Lei 13.982/2020 identificar a figura do intermitente inativo, que nesse texto foi denominado de “empregado desempregado”, para integrá-lo ao conjunto dos trabalhadores sem vínculo formal de emprego que estão em situação de vulnerabilidade econômica e torná-lo elegível ao benefício assistencial.
A solução, que escancara a condição precária que é inerente ao contrato de trabalho intermitente e que não se mostra apta a ser sanada por ajustes superficiais nessa estrutura contratual, foi alocar os empregados intermitentes numa condição mista que, na prática, lhes assegura a mesma condição que foi emprestada aos informais e demais trabalhadores sem vínculo de emprego, mas, juridicamente, o faz como se essa fosse uma condição especial inserida na própria Lei n.º ١٤.020/20, que cuida dos trabalhadores com vínculo de emprego, ou uma condição acidental de inatividade, nos termos previstos na Lei 13.982/2020.
A incongruência da inclusão do trabalhador intermitente como modalidade de empregado, e a incapacidade dessa forma contratual atípica de diferenciar esse trabalhador em relação ao conjunto precário da informalidade, está reconhecida no próprio trato legislativo da pandemia promovido pela legislação de emergência.
Como sustentar então a constitucionalidade de um contrato que se afirma como contrato de emprego, mas no qual os trabalhadores por ele envoltos precisam acessar, em contextos de adversidade, não a tela pública de proteção destinada aos empregados, mas aquela destinada aos desempregados e informais?
Projeto de Lei n.º 685 de 17 de março de 2020
Considerando que o enredo vislumbrado na pandemia remonta a um caráter sui generis do contrato de trabalho intermitente, a pesquisa orientou-se a investigar projetos de lei voltados especialmente a esses trabalhadores, no cenário pandêmico, para análise específica.
Ao pesquisar, no site do Congresso Nacional, Projetos de Lei e outras proposições apresentados no ano de 2020 (quando começou a pandemia sanitária no Brasil), utilizando como argumento de busca a palavra “intermitente”, são alcançados cinco resultados: duas proposições que foram objeto de vetos (um à MP n.º 936/20 e outro ao PL n.º 873/20, posteriormente convertido na Lei 13.998/2020); os Projetos de Lei n.º 1.162 (que acrescenta o parágrafo 2º-A ao art. 3º da Lei n.º ١٣.٩٧٩/٢٠٢٠, norma geral de emergência pandêmica, aprovada em fevereiro de 2020, cujo trâmite foi considerado prejudicado) e n.º 1.065 (que objetivava instituir o Benefício Emergencial aos Trabalhadores e que resultou arquivado, dando lugar à MP 936, em seguida convertida na Lei n.º ١٤.٠٢٠); e a Medida Provisória n.º 936/20, já analisada neste artigo.
Ao fazer essa mesma busca no site da Câmara dos Deputados, até a data de submissão deste artigo, apenas se obteve como resultado o Projeto de Lei n.º 685.
Passa-se, então, à análise do Projeto de lei n.° 685, ainda em tramitação.
No dia 17 de março de 2020, o Deputado João Daniel (PT/SE) apresentou o Projeto de Lei n.º 685/2020 que visa a alterar a Lei n.º ١٣.٤٦٧, de ١٣ de julho de ٢٠١٧ – Reforma Trabalhista. Ele propõe incluir o parágrafo décimo no artigo ٤٥٢-A da CLT, para afirmar que: “será pago ao trabalhador intermitente, no mínimo o valor igual ao salário recebido no mês imediatamente anterior, afetado por pandemia manifestada pela OMS” (BRASIL, 2020b, p. 1). Esse PL apresenta como justificativa o argumento de garantir uma renda mínima para o trabalhador intermitente que, de alguma forma, está sendo atingido pela pandemia.
Posteriormente, em 14 de abril de 2020, o Deputado João Daniel apresentou o Requerimento n.º ٦٧٢/٢٠٢٠ requerendo a apensação do Projeto de Lei n.º ٦٨٥/٢٠٢٠ ao PL n.º ٨٧٣/٢٠٢٠, sob a justificativa de que ambos versam sobre auxílio-financeiro às pessoas que sofreram com a perda de renda por causa da pandemia do coronavírus (BRASIL, 2020b). Contudo, esse requerimento não foi recebido pela Mesa Diretora do Senado, sob a justificativa de que o objeto da proposição ainda está pendente de despacho inicial (BRASIL, 2020b). Até o momento, essa é a situação do processo legislativo de ambos os projetos de lei.
O Projeto de Lei n.º ٨٧٣, de ٣ de abril de ٢٠٢٠, foi apresentado pelo senador Randolfe Rodrigues (REDE/AP) objetivando alterar a Lei n.º ١٣.٩٨٢, de ٢ de abril de ٢٠٢٠, a fim de modificar algumas regras do auxílio emergencial e vedar a suspensão de benefícios previdenciários e assistenciais para idosos, pessoas com deficiência e pessoas com enfermidade grave, enquanto durar a pandemia da covid-19. No dia 14 de abril de 2020, esse PL foi convertido na Lei n.º ١٣.٩98 (que altera a Lei n.º ١٣.٩٨٢/٢٠٢٠ sobre o auxílio emergencial), com veto quanto aos dispositivos que discutiam trabalho intermitente (BRASIL, 2020c).
As diversas medidas legislativas objetivam assegurar uma renda mínima ao trabalhador intermitente durante a pandemia, analisadas no tópico anterior, bem como aquelas que propõem que o trabalhador intermitente receba o salário, no mínimo, igual ao percebido no mês imediatamente anterior, como o PL n.º ٦٨٥, reconhecem, indiretamente, que essa forma contratual não garante uma renda básica ao trabalhador, não cumprindo, portanto, a função social do trabalho constitucionalmente assegurada.
As propostas do PL n.º ٦٨٥ são tímidas e sequer avançam no sentido de identificar uma média salarial dos meses em que esteve o trabalhador contratado, assim como não logra fazer frente, na pandemia, às inseguranças inerentes ao contrato intermitente. Apontamos, nessa altura, três problemas de execução do referido projeto.
O primeiro é que existem contratos ativos nos quais o trabalhador nunca foi chamado para laborar e, portanto, não possui uma referência salarial prévia a ser considerada. Esse foi o caso do trabalhador reclamante no processo de n.º 1000534-60.2019.5.02.0007 (7ª Vara do Trabalho de São Paulo), que foi contratado como pedreiro, na modalidade intermitente, entretanto, durante todo o período contratual (23/08/2018 até 10/01/2019), jamais foi convocado para laborar ou percebeu um salário. Por esse motivo, propôs uma Reclamação Trabalhista na Justiça do Trabalho pedindo a rescisão do seu contrato de trabalho intermitente.
Segundo, o contrato de trabalho intermitente não garante um salário-mínimo mensal, portanto, o trabalhador, ainda que ativo e contando com alguma frequência na convocação para prestação de serviços, pode ter percebido, no “mês imediatamente anterior”, renda irrisória e insuficiente para satisfazer suas necessidades básicas naquele mês ou nos futuros que a ele porventura fossem equiparados. A questão é que, mesmo fora de um contexto pandêmico, o contrato já não promovia uma segurança social mínima a quem trabalhava, razão por que reproduzir as condições experimentadas no período da atividade apenas reproduz tais inseguranças.
Terceiro, devido à morosidade do processo legislativo brasileiro, bem como à conjuntura política adversa ao aprimoramento de políticas sociais, a viabilidade desse PL resta prejudicada.
Observa-se, portanto, que a excepcional atenção do Poder Legislativo a essa figura que foi forjada a partir do permissivo da Reforma Trabalhista revela-se insuficiente para enfrentar as problemáticas centrais do contrato de trabalho intermitente.
Considerações finais
A crise proveniente da pandemia da covid-19 está longe de ser fruto do acaso. Ela é um concreto resultado da racionalidade capitalista, da lógica das crises estruturais do capital, que se aprofundou com a implantação das políticas neoliberais. A história da humanidade está entrelaçada com a dos sistemas econômicos vigentes, de modo que a forma de reprodução do capital é indissociável dos resultados produzidos pelas intervenções humanas no meio ambiente.
Portanto, mesmo que as mutações virais sejam comuns, a forma como elas impactam a vida humana é resultado direto das políticas econômicas e sociais adotadas em determinado contexto histórico. O mundo globalizado contribuiu para disseminação do coronavírus, e a forma que cada Estado estrutura seus sistemas de saúde, bem como suas políticas de proteção social, determinará quem sairá primeiro, quem sairá menos afetado e quem sairá por último da crise econômica e sanitária instaladas pela pandemia viral.
As singelas medidas intervencionistas que estão sendo realizadas pelo governo brasileiro são insuficientes para amparar os diversos níveis de vulnerabilidade identificados na população brasileira em face da crise e foram construídas dentro da própria lógica neoliberal, sem inflexões. Mesmo esses parcos acenos não podem ser lidos, outrossim, como concessão estatal, mas sim como fruto de um intenso processo de reivindicação social, seja por meio das redes sociais ou da atuação dos sindicatos e organizações políticas.
As medidas institucionais em relação ao contrato de trabalho intermitente esgarçam as contradições da inserção desse tipo contratual na CLT pela Reforma Trabalhista de 2017, visto que esse reproduz insegurança e vulnerabilidade e contribui para um “nivelamento por baixo” do nosso mercado de trabalho.
Os acenos dos Poderes Executivo e Legislativo em relação aos trabalhadores intermitentes, além de manifestamente insuficientes para sanar as deficiências inerentes a esse modelo contratual, que se multiplicam no cenário pandêmico, revelam um reconhecimento estatal, mesmo que indireto, de que a forma contratual intermitente é um nicho de precariedade dentro da categoria do emprego e que o empregado contratado por essa modalidade ostenta a condição sui generis de um desempregado com carteira assinada, que precisa transitar artificialmente entre políticas de assistência e políticas de proteção ao emprego.
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Recebido em: 31/07/2020
Aceito em: 02/10/2020
1 Entende-se por cidadania regulamentada o conceito desenvolvido por Wanderley Guilherme dos Santos de “cidadania regulada”, que é o “conceito de cidadania cujas raízes encontram-se, não em um código de valores políticos, mas em um sistema de estratificação ocupacional, e que, ademais, tal sistema de estratificação ocupacional é definido por norma legal” (SANTOS, 1979, p. 76).
2 A flexibilização dos direitos sociais é um problema histórico, ligado à estruturação econômica e política do país que, em contextos de crise e reestruturação produtiva, é agravado pela busca de solução via estreitamento do mercado de trabalho na legislação do trabalho. A implantação dessa perspectiva flexibilizadora impulsiona os conflitos sociais, gera insegurança jurídica e fragmentação da classe trabalhadora, culminando no enfraquecimento dos tradicionais mecanismos de resistência dos trabalhadores enquanto sujeitos regulatórios (DRUCK, 2011).
3 São considerados contratos atípicos aqueles que mesmo tipificados na legislação se opõem ao contrato típico, ao contrato de trabalho padrão constituído sob influência do Estado de bem-estar social durante a experiência capitalista fordista. No Brasil, é considerado contrato-padrão aquele institucionalizado nos artigos 7º, da Constituição e 442, caput da CLT. Os contratos atípicos (a exemplo do contrato parcial e do contrato por tempo determinado) ganharam força, no Brasil, na década de 1990, com a expansão das políticas neoliberais. Esses constituem verdadeiras opções para as empresas efetuarem ajustes no volume de sua força de trabalho; eles se inserem no rol de modalidades flexíveis de contratação que resultaram de mudanças legislativas influenciadas pela dinâmica do mercado de trabalho. Nessas contratações, os agentes econômicos utilizam brechas legais para forjar novas situações que reduzem os custos e aumentam a liberdade do empregador para manejar o volume da sua força de trabalho, é um efeito cascada que desestrutura o mercado de trabalho formal (KREIN, 2013).
4 Conforme Fernandes, a expressão “justo motivo” corresponderia às interrupções contratuais previstas no artigo 473 da CLT, no qual consta um rol muito restrito de hipóteses de “faltas justificadas”, inconsistentes com as necessidades cotidianas do trabalhador brasileiro. Para o autor, a multa prevista também não é compatível com os princípios constitucionais do valor social do trabalho, da isonomia, da proteção do trabalhador e da função social da empresa (FERNANDES, 2017).
PEJOTIZAÇÃO E RELAÇÕES DE TRABALHO
HIRING FREE OF LABOR RIGHTS AND WORK RELATIONS
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Vanessa Rocha Ferreira1*
Murielly Nunes dos Santos2**
Resumo
O texto se propõe a analisar, por meio de um estudo teórico-normativo, o fenômeno da pejotização no ordenamento jurídico brasileiro, evidenciando a prejudicialidade dessa prática às relações laborais. Para tanto, utilizou-se o método jurídico-dedutivo, baseado em pesquisa bibliográfica e jurisprudencial, para defender a importância da aplicação dos princípios basilares do Direito do Trabalho, mais especificamente o da “primazia da realidade”, para detectar e desconfigurar essa prática, assegurando ao trabalhador os direitos trabalhistas consagrados. Ao final, destaca-se que a pejotização – fenômeno jurídico pelo qual o empregador faz com que seus trabalhadores, pessoas físicas, criem uma pessoa jurídica e comecem a prestar serviços por intermédio dela – caracteriza-se como fraude à legislação trabalhista, pois impede o reconhecimento do vínculo empregatício – e a concessão de direitos trabalhistas e previdenciários ao trabalhador pejotizado – uma vez que o prestador de serviços é uma pessoa jurídica.
Palavras-chave: Pejotização. Relações laborais. Direito do Trabalho. Primazia da realidade.
Abstract
This article intends to analyze, through a theoretical-normative study, the phenomenon of “pejotização” (a neologism from the Portuguese acronym PJ, or Inc., in which company employees create their own individual micro-businesses) in the Brazilian legal system, highlighting the harmfulness of this practice to labor relations. For that purpose, the legal-deductive method was used, based on bibliographic and jurisprudential research, to defend the importance of applying the basic principles of Labor Law, more precisely the Primacy of Reality, to detect and unset this practice, ensuring rights to the worker. At the end, the “pejotização” – legal phenomenon whereby the employer makes their workers, private person, constitute themselves as a legal person and start to provide services through it – it is characterized as a fraud to the labor legislation, because it avoids the recognition the employment relationship – and the granting of labor and social security rights to the legal worker – since the service provider is a legal entity.
Keywords: Hiring free of labor rights. Labor Relations. Labor Law. Primacy of Reality.
Introdução
A partir do século XIX, com a oficialização internacional do Direito do Trabalho, ocorre uma consolidação de conceitos fundamentais e o estabelecimento de princípios que visam a proteger o trabalhador e a sua dignidade no ambiente laboral, por meio da positivação de normas, atuando como resposta às transformações sociais e econômicas da época (DELGADO, 2019)
1* Doutora em Direitos Humanos pela Universidade de Salamanca (Espanha). Mestre em Direitos Fundamentais pela Universidade da Amazônia (Unama/PA). Professora da Graduação e Mestrado do Curso de Direito do Centro Universitário do Estado do Pará (CESUPA). Coordenadora do Grupo de Pesquisa em Trabalho Decente (CESUPA/CNPq). Auditora do Tribunal de Contas do Estado do Pará (TCE/PA). E-mail: vanessarochaf@gmail.com
2** Contadora, graduada em Ciências Contábeis pelo Centro Universitário do Estado do Pará (CESUPA). Bacharelanda em Direito pelo Centro Universitário do Estado do Pará (CESUPA). Membro do Grupo de Pesquisa em Trabalho Decente (CESUPA/CNPq). E-mail: muriellynunes@hotmail.com
ISSN 1517-5901 (online)
POLÍTICA & TRABALHO
Revista de Ciências Sociais, nº 54, Janeiro/Junho de 2021, p. 99-116
No âmbito nacional, a relação de emprego, espécie de relação de trabalho, está prevista formalmente no caput do artigo 442 da Consolidação das Leis do Trabalho (CLT) e se materializa por meio de um contrato individual de trabalho, que pode ser tanto um acordo tácito quanto expresso. Nessa relação, o trabalhador está em uma posição de hipossufiência em relação ao empregador, demandando assim maior proteção da norma (JORGE NETO; CAVALCANTE, 2019).
Por ser uma modalidade específica da relação de trabalho, a relação de emprego para se caracterizar exige a reunião de alguns critérios, segundo Delgado (2019), quais sejam: a) prestação de trabalho por pessoa física a um tomador qualquer; b) pessoalidade na prestação; c) não eventualidade; d) subordinação ao tomador dos serviços; e) prestação de trabalho efetuada com onerosidade; e f) alteridade, consoante os artigos 2º e 3º da CLT (MARTINEZ, 2019).
Assim, qualquer prática que vise a mascarar a presença de tais requisitos configura violação direta à legislação trabalhista, por ser cediço os prejuízos, principalmente ao trabalhador, que fica impedido de ter seus direitos efetivados.
O reflexo da globalização na economia e na sociedade em geral faz surgir a flexibilização das relações de trabalho, impactando principalmente a parte mais vulnerável dessa relação, o trabalhador, que utiliza da venda da sua força de trabalho para subsistir (BATISTA; SILVA, 2017). No entanto, tais flexibilizações abrem margem para práticas trabalhistas fraudulentas.
Diante desse cenário, a pejotização se mostra vantajosa para o empregador, pois, ao exigir do trabalhador a criação de uma pessoa jurídica, descaracteriza a relação de emprego e consegue burlar a legislação trabalhista a seu favor.
Isso posto, a presente pesquisa se propõe a analisar o fenômeno da pejotização no ordenamento jurídico brasileiro, e de que forma essa prática impede o reconhecimento do vínculo empregatício e a concessão de direitos trabalhistas e previdenciários ao trabalhador pejotizado. A relevância do tema embasa-se principalmente na infeliz recorrência dessa fraude trabalhista, que roga por uma maior proteção legislativa e uma atuação judiciária mais precisa, para que menos trabalhadores sejam privados de direitos a que fazem jus, pois na prática se igualam àqueles trabalhadores de carteira assinada, embora haja a ardileza de mascarar os requisitos essenciais da relação de emprego, para desconfigurar o vínculo empregatício, o que culmina na exclusão desses trabalhadores da proteção laboral.
Utilizou-se o método jurídico-dedutivo, baseado em pesquisa bibliográfica, legislativa e jurisprudencial, avaliando, a partir da interpretação do artigo 3º da CLT e do posicionamento doutrinário sólido, todos os elementos legais indispensáveis para que se caracterize a relação de emprego. A partir do que dita a lei e o entendimento doutrinário acerca do tema averiguou-se quais os requisitos da relação de emprego são encobertos na pejotização para que, formalmente, seja afastada aquela relação, que em sua essência garante uma gama de direitos trabalhistas e previdenciários aos trabalhadores, e ocorra essa fraude, benéfica apenas para o empregador.
A partir de tal metodologia, foi possível compreender a importância da aplicação dos princípios basilares do Direito do Trabalho, especialmente o princípio da primazia da realidade, para detectar e desconfigurar essa prática, quando for fraudulenta, pois sem a utilização da função interpretativa dos princípios, direitos trabalhistas básicos estarão na eminência de serem afastados.
O texto encontra-se dividido em cinco itens, sendo o primeiro a introdução; o segundo apresenta os requisitos caracterizadores essenciais à relação de emprego; o terceiro item trata sobre a pejotização especificamente, demonstrando até que ponto pode ser vantajosa para o empregador e nefasta para o trabalhador e como por meio dessa prática é possível descaracterizar a relação de emprego; o quarto item se volta a analisar como o princípio da primazia da realidade pode auxiliar judicialmente no combate a essa fraude trabalhista. Por fim, o quinto e último item apresenta as considerações finais deste estudo.
A relação de emprego e seus elementos caracterizadores
O Direito do Trabalho existe para tutelar a relação entre empregador e empregado, de forma a garantir uma certa igualdade jurídica a partes que são materialmente desiguais. A legislação trabalhista, voltada para a proteção da parte hipossuficiente dessa relação – o empregado –, juntamente com os princípios do Direito do Trabalho, tentam, na prática, corrigir tal disparidade.
A relação de emprego, em regra materializada em um contrato individual de trabalho, nos termos do artigo 442 da CLT, é uma das espécies do gênero relação de trabalho, que é mais abrangente e comporta todas as formas de contrato de trabalho permitidas pelo ordenamento jurídico atual (LEITE, 2019). Já a relação de emprego, exige a presença de elementos caraterizadores específicos previstos nos artigos 2º e 3º da CLT. Esses artigos fornecem alguns critérios basilares que devem estar presentes cumulativamente para que se configure uma relação de emprego. Logo, para haver vínculo empregatício devem estar presentes, na prestação de serviços, os requisitos característicos previstos em lei.
O primeiro requisito é a exigência de que o trabalho seja realizado por pessoa física, assim, por consequência lógica, conclui-se que a pessoa jurídica não pode ostentar a qualidade de empregado, visto que a proteção e valorização da dignidade da pessoa humana constitui a essência do Direito do Trabalho.
O segundo requisito para caracterizar o vínculo empregatício diz respeito à pessoalidade na prestação do serviço, isto é, apenas a pessoa do empregado poderá prestar o serviço, posto que o contrato de trabalho é celebrado intuitu personae, configurando assim uma obrigação personalíssima, sem que haja a possibilidade de delegação do serviço a outra pessoa, o que não significa que necessariamente deva haver exclusividade na prestação, podendo o trabalhador ter múltiplos empregadores. Contudo, o requisito da pessoalidade incide apenas na figura do empregado, dada a infungibilidade da relação de emprego, só podendo o trabalhador ser substituído em casos excepcionais em que haja o consentimento tácito ou expresso do empregador. Desse modo, se um serviço é prestado por uma pessoa jurídica, importa a organização de pessoas e meios para alcançar a finalidade almejada e não necessariamente por quem o serviço está sendo prestado.
Outro requisito é o da não eventualidade, ou também chamado de continuidade, em que o trabalho é prestado de modo contínuo, duradouro, com o objetivo de que o empreendimento alcance seus objetivos-fim. O quarto requisito é a subordinação jurídica, que ocorre no mundo fático da relação, em que, objetivamente, o empregado depende economicamente do seu empregador e, subjetivamente, dele recebe ordens de direção sobre de que modo realizar o serviço.
A subordinação hierárquica, especificada expressamente pelo termo dependência no artigo 3º da CLT, é o que forma o conceito de empregado, não se podendo falar na figura do “empregado autônomo”, por ser essa uma expressão contraditória, segundo Manus (2015). A partir desse princípio, percebe-se que o trabalhador não possui liberdade para prestar o serviço do modo como queira, não podendo se autodeterminar na realização de duas tarefas, ou seja, estabelecer seus próprios horários.
A onerosidade, quinto requisito para configurar a relação de emprego, pressupõe que o empregado tem direito ao salário, à luz do inciso IV do artigo 7º da Constituição da República Federativa do Brasil (CRFB), e o ônus de prestar o serviço como contraprestação, logo, se a prestação se dá de forma gratuita, tem-se então uma relação de trabalho. Por fim, o sexto requisito é o da alteridade contratual, em que os riscos da atividade são suportados única e exclusivamente pelo empregador, a quem o trabalhador se subordina juridicamente, logo, os riscos da atividade não podem recair sob o empregado (MOURA, 2016).
Esse princípio pressupõe que o trabalho do empregado sempre é prestado em benefício de seu empregador, por isso, os ônus decorrentes da atividade empresarial ou do contrato empregatício celebrado recaem exclusivamente sobre ele, independentemente se há ou não intuito econômico (LEITE, 2019).
Uma vez evidenciados os requisitos caracterizados da relação de emprego, passa-se à análise do fenômeno da pejotização, para demonstrar como, por meio dessa prática, é possível descaracterizar a relação de emprego e de que forma ela pode ser vantajosa para o empregador e nefasta para o empregado.
O fenômeno da pejotização
A história do Direito do Trabalho tem sido marcada principalmente pela constante luta entre a classe trabalhadora e empregadores, desde o início, com a primeira Revolução Industrial. Ademais, as atuais transformações sociais, que impactam as relações de trabalho, têm demandado regulamentações trabalhistas ainda mais céleres, que sejam capazes de proteger o operário.
No Brasil, esse histórico de proteção instaura-se no período de 1930 a 1945, que marca a fase de oficialização do Direito do Trabalho, em que ocorre a instituição de uma estrutura jurídica e institucional de um modelo trabalhista (VIEIRA; SILVA, 2015). Nesse período, também ocorre a criação do Ministério do Trabalho, Indústria e Comércio (1930), e a CLT (1943), norma vigente até hoje.
O contrato individual de trabalho, introduzido no ordenamento jurídico pela própria CLT, após grande pressão social dos trabalhadores, introduz a previsão de diversos direitos trabalhistas, como limitação da jornada de trabalho, descanso semanal remunerado, horas extras, adicional noturno etc. Note-se que os direitos trabalhistas foram sendo gradativamente ampliados, especialmente com o Tratado de Versalhes, em 1919, do qual o Brasil foi signatário, que resultou na criação da Organização Mundial do Trabalho (OIT), gerando uma proteção ainda maior para o trabalhador por conta da necessária compatibilização das leis internas do país com o tratado.
Entretanto, as relações de trabalho têm sofrido intensas alterações com o passar do tempo devido à evolução incessante nas formas de consumo, principalmente por conta do desenvolvimento tecnológico, o que tem gerado a tendência em cambiar a tradicional relação de emprego por trabalhos autônomos e prestação de serviços que flexibilizam os conceitos tradicionais dos requisitos formais, na tentativa de esquivar o empregador dos custos daquela.
A implementação efetiva no país de um Direito Constitucional do Trabalho ocorreu com a promulgação da Constituição da República Federativa do Brasil, de 1988, que instaurou no Brasil o Estado Democrático de Direito, cuja base principiológica se pauta na consagração do respeito à dignidade da pessoa humana, elevando os direitos trabalhistas ao status de direitos fundamentais, à luz do artigo 7º.
Embora a Constituição de 1988 tenha alargado o âmbito de proteção do trabalhador, ao elevar a sua proteção a status de direitos sociais fundamentais, a legislação infraconstitucional caminhou em sentido diverso, e o país vivenciou, desde então, uma onda de flexibilização desses direitos, com o objetivo de criar novos postos de trabalho e, assim, fomentar o mercado.
O marco principal de tais flexibilizações tem sido a Lei n.º 13.467/2017, conhecida como Reforma Trabalhista, que alterou o contrato individual de trabalho, o direito coletivo e procedimentos processuais, criando aberturas para fraudes trabalhistas que aparentam ser legais, em que empregadores utilizam-se de subterfúgios para dissimular vínculos de emprego como se fossem outras relações de trabalho autorizadas por lei, com o objetivo de diminuir as despesas de um trabalhador de carteira assinada, pois reduz o pagamento de direitos e precarizam o trabalho.
Daí porque muitos consideram tais flexibilizações um retrocesso legislativo, pois se vestem com o discurso de modernização enquanto ceifam direitos dos trabalhadores. Isso porque, com o desemprego que assola o país, a tendência é que os indivíduos se sujeitem a condições precárias de trabalho, apenas para manter sua subsistência.
Diante desse cenário, destaca-se a pejotização, cujo termo se refere ao ato de transformar artificialmente um empregado pessoa física em jurídica, isto é, em PJ, ocorrendo uma mudança no cadastro desse trabalhador, que antes prestava o serviço utilizando seu CPF e agora firma um contrato com o empregador utilizando seu cadastro de pessoa jurídica (CNPJ).
Dessa forma, o trabalhador, que antes tinha sua carteira de trabalho assinada como empregado, passa a ter, com o seu empregador, um contrato de prestação de serviços como pessoa jurídica, tornando-se, assim, pejotizado.
Delgado (2019) destaca que essa fraude trabalhista utiliza o contrato de sociedade como um instrumento simulatório para ocultar o vínculo empregatício e a subordinação jurídica existente entre as partes, forjando a inexistência do requisito inerente à relação de emprego, qual seja a prestação de serviço por pessoa física, pois, formalmente, tem-se uma situação fático-jurídica de natureza cível/comercial.
Neste rumo, para todos os efeitos legais, esse contrato cível envolve duas pessoas jurídicas com obrigações de fazer entre si, no entanto, na prática há uma pessoa jurídica que mantém vínculo empregatício com uma pessoa física, travestida com um CNPJ, na qualidade de seu empregado. E é justamente a contratação de um trabalhador pessoa física, subordinado na condição de sócio ou pessoa jurídica, que caracteriza a prática da pejotização, pois há uma transferência da autonomia da atividade para o contratado, sem que haja, tecnicamente, subordinação, pois geralmente o empregado se transforma em microempreendedor individual (MEI) ou em microempresário, optante do regime tributário simplificado, conhecido como Simples Nacional.
Laraia (2020) destaca que essa prática tem sido comumente exigida pelos empregadores mal-intencionados, para mascarar relações de emprego, justamente por saberem que a CLT, em seu art. 3º, não admite como empregado a pessoa jurídica.
Welle et al. (2019) evidenciam que essa prática gera prejuízos para a previdência social, que deixa de arrecadar, em média, o valor de R$ 3.661,71 por ano por cada trabalhador, além de maximizar o lucro do empregador que, embora explore a força de trabalho humana, fica, com a pejotização, isento de encargos trabalhistas.
A prática da pejotização pode ocorrer em momentos distintos da relação laboral, podendo ser tanto no ato da contratação como durante o curso da relação já existente. Isto é, a relação de emprego que estava em curso pode ser reincidida, para que nasça uma nova relação, agora travestida de prestação de serviços entre PJs.
Algumas empresas exigem como requisito de pré-contratação que o trabalhador pessoa física constitua uma pessoa jurídica para que por ela possa prestar os serviços. Com isso, o empregador evita o recolhimento das verbas trabalhistas e intensifica seus rendimentos (SUIJKERBUIJK; BENTES, 2017) pois, economicamente, esse tipo de contrato de trabalho representa uma redução significativa de direitos que seriam devidos em uma relação de emprego formal.
A pejotização acaba inviabilizando, desta forma, a inserção mais favorável e civilizada dos trabalhadores na economia e sociedade brasileira, pois, apesar de o requisito da prestação de serviço por pessoa física ser dissimulado, outros requisitos da relação de emprego continuam presentes na prática, como a subordinação do empregado pejotizado ao tomador de seus serviços. Esse último, neste sentido, é quem direciona a atividade do empreendimento segundo o seu entender, ditando como a atividade deve ser realizada pelo empregado pessoa jurídica, segundo os padrões da empresa, possuindo, assim, o poder de direção do negócio, isto é, ocorre uma sujeição do empregado ao padrão da prestação do serviço (LARAIA, 2020). Dessa forma, o serviço prestado reúne todos os requisitos essenciais para configurar o vínculo empregatício, uma vez que é prestado com pessoalidade e subordinação estrutural ou direta, em que o empregador mantém o controle administrativo e operacional da atividade.
Por isso, observar na prática uma pessoa jurídica subordinada juridicamente à outra, que ao invés de empregar, assume o papel de empregado, revela, no mínimo, uma prática ardilosa para afastar a aplicação da legislação trabalhista, pois em uma breve comparação de conceitos, no âmbito do Direito Empresarial, Chagas (2017) evidencia que empresário é aquele que arca com os riscos da atividade, dirige a atividade econômica e lucra com ela.
Desse modo, quando se pensa em pessoa jurídica, é natural que se imagine um empreendimento que se auto-organiza para prestar um serviço, podendo, eventualmente, ter ou não empregados que o auxiliem a chegar nesse objetivo. E por conta desta auto-organização empresarial, em regra, em um contrato cível de prestação de serviços, o tomador dos serviços não interfere no modo como a obrigação será prestada, importando apenas o resultado da obrigação.
Sendo assim, percebe-se que o empregado pejotizado não reúne as características de empresário, pois a pessoa jurídica constituída serve apenas de fachada para esconder o verdadeiro status de pessoa física do trabalhador, que na prática presta um serviço pessoal e sob o manto da subordinação jurídica, não possuindo autonomia para realizar o serviço como bem entenda, por estar subordinado ao tomador de seus serviços, acatando ordens, cumprindo jornada de trabalho determinada, sem que se possa fazer substituir.
Esse vínculo empregatício travestido de relação comercial acumula ainda o requisito da pessoalidade, pois na pejotização importa que o serviço seja prestado pessoalmente pelo próprio trabalhador, sem que haja na prática a possibilidade de delegação do serviço, ou ainda, porque muitas vezes, conforme elucida Santos (2018), o trabalhador pejotizado se constitui como uma pessoa jurídica sem nenhum empregado ou sócio de algum membro da família.
Não raro, na pejotização, o empregado é quem assume os riscos da atividade desenvolvida, permanecendo a presença do requisito da alteridade, configurando, assim, a relação de emprego, pois o trabalhador contratado como pessoa jurídica arca com o ônus de um trabalho muitas vezes exclusivo, ficando comprometida a liberdade de trabalhar com várias empresas e projetos, ou seja, não usufruindo dos bônus da atividade.
A título de exemplo, quando ocorre a pejotização, geralmente os equipamentos e instrumentos usados pelo empregado pertencem ao empregador, cabendo ao tomador dos serviços todos os custos da atividade e a receita obtida com aquela, competindo ao empregado apenas o fornecimento de sua mão de obra, o que implica a presença do requisito da onerosidade nessa relação laboral.
Ato contínuo, na hipótese de o empregado sofrer um acidente de trabalho, esse deverá recorrer, por sua conta e risco, ao INSS para proceder ao seu próprio afastamento, que o privará de direitos que são inerentes ao empregado que possui carteira assinada, como: recebimento de auxílio-doença, auxílio-acidente e estabilidade no emprego por doze meses após cessar a incapacidade laboral.
Além disso, o empregado ainda perde o direito à indenização do período de estabilidade caso seja dispensado sem justa causa, pois não houve emissão de Comunicação de Acidente de Trabalho (CAT), por parte do seu empregador, já que não se trata de relação de emprego. É então perceptível que, em alguns casos, a pejotização reúne os requisitos da relação de emprego, exceto pela classificação do indivíduo, que deixa de ser pessoa física e se transforma em pessoa jurídica.
Quanto à recontratação de trabalhadores recém-dispensados, agora na qualidade de pessoa jurídica, Araújo e Lima (2017) defendem que a Lei n.º 6.019/74, que dispõe sobre o trabalho temporário, em seu art. 5-D propôs um combate à tal prática ao proibir a readmissão do empregado na qualidade de pessoa jurídica pelo período de dezoito meses. Porém, tal combate apenas seria efetivo se a proibição fosse ad aeternum, pois o período estabelecido na norma não impede a prática de pejotização.
No entanto, percebe-se que o referido artigo não abrange todas as hipóteses da fraude, uma vez que a empresa contratante pode exigir, como já mencionado anteriormente, no ato da contratação que o trabalhador crie uma PJ para a formalização do contrato. Calvo (2019) expõe que a intenção do legislador de evitar a fraude da pejotização com tal vedação não foi totalmente efetiva, pois o empregador, para fraudar a norma trabalhista, ainda pode forçar o trabalhador a pedir demissão e recontratar por meio de contrato de terceirização.
Para o trabalhador, a pejotização se torna atraente pois essa pode ser a única oportunidade de conseguir se inserir no mercado de trabalho, bem como de receber uma remuneração maior, por conta da ausência de descontos que teria em uma folha de pagamento normal. Portanto, o indivíduo se submete a trabalhar na condição de empregado, recebendo na condição de mero prestador de serviços, abrindo mão de direitos trabalhistas e previdenciários.
A redução de certas obrigações fiscais, como pagamento de imposto de renda pode ser um atrativo para o trabalhador, porém, acarreta desvantagens, como falta de observância a direitos mínimos do empregado, como limitação das horas de trabalho, recebimento do descanso semanal remunerado, pagamento de contribuições previdenciárias, recolhimento de FGTS, pagamento de férias, décimo terceiro salário e outros.
Suijkerbuijk e Bentes (2017) relatam que o fenômeno da pejotização ocorre principalmente nas áreas intelectuais, nas quais o empregado recebe uma remuneração elevada, por isso se torna cada vez mais comum nas carreiras médicas, advocatícias, bancária, tecnológica e também no âmbito industrial. Garcia (2018) explica que quando o empregado alcança um alto nível salarial, o empregador, para diminuir sua despesa, opta por rescindir o contrato e fazer a recontratação do mesmo trabalhador sob um regime diverso, mantendo na prática todas as características do contrato de emprego, quais sejam, a pessoalidade, habitualidade e subordinação às ordens do empregador. Por conta disso é que a pejotização ocorre geralmente em decorrência do alto valor dos salários, em razão do custo fiscal que um empregado com carteira assinada pode representar ao empregador.
Nesse sentido, Resende (2020) considera que apenas a remuneração elevada do trabalhador não assegura sua autonomia, fato é que médicos e profissionais de tecnologia da informação muitas vezes se submetem às práticas fraudulentas como a pejotização para manterem seus empregos, justamente pela dificuldade de reinserção no mercado.
Já no setor bancário, Batista e Silva (2017) relatam que geralmente o empregador, após forçar o empregado a criar uma pessoa jurídica, celebra com ele um contrato de prestação de serviços com cláusula de exclusividade e o serviço é prestado nas dependências da própria empresa, que não se preocupa caso a jornada do trabalho exceda o limite de oito horas diárias, já que não gera a obrigação do pagamento de horas extras.
Ocorre que a pejotização não atinge apenas empregados que percebem alta remuneração. Santos (2018) reforça que os profissionais que trabalham em salões de beleza também têm sido alvo dessa prática, principalmente com o advento da Lei n.º 13.352/2016. Essa lei dispõe sobre o contrato de parceria, que pode ser firmado entre o salão de beleza e os profissionais que exercem as atividades de cabeleireiro, barbeiro, esteticista, manicure, pedicure, depilador e maquiador, o que modificou significativamente a relação de trabalho, pois, nos termos do §7º do art. 1º da referida lei, esses profissionais ganharam a qualificação de empresários, microempresários e empreendedores individuais perante as autoridades fazendárias, estimulando, assim, a prática da pejotização nesse ramo empresarial.
Conseguinte, é nítido como a legislação oferece opções extremamente desiguais entre si, pois vê-se muito mais vantajoso para o dono do salão de beleza explorar trabalho humano, em prol dos objetivos econômicos da atividade, por meio da pejotização, do que admitindo profissionais e tomando para si a obrigação de garantir os direitos trabalhistas, o que tem gerado na prática salões de beleza quase sem nenhum empregado constituído.
Araújo e Lima (2017) defendem que ainda que a reforma trabalhista tenha flexibilizado direitos – ao se aproveitar de um contexto de crise econômica, com o escopo de prover maior valorização profissional, aumento de vagas de trabalho e possibilidade de aferição de renda – acabou viabilizando a prática da pejotização e gerando um alto número de desempregados, que agora estão mais propensos a aceitar as piores condições de trabalho para que possam subsistir, o que gera inúmeros prejuízos aos direitos básicos. Isso porque doenças ocupacionais e acidentes de trabalho podem se tornar mais frequentes, considerando que todos os riscos do negócio são suportados pelo trabalhador pejotizado que, na verdade, não passa de um empregado dependente de seu empregador e não conta com a mesma proteção que o trabalhador de carteira assinada, ainda que, na prática, se iguale nas mesmas condições.
No ano de 2019, pelo menos 8,4 milhões de brasileiros estavam em empreendimentos registrados no CNPJ, o equivalente a cerca de 29,3% do total de pessoas ocupadas como empregador ou conta própria, é o que demonstram os dados anuais da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua (IBGE, 2019), ao tratar das características adicionais do mercado de trabalho.
O grau de instrução com maior taxa de pessoas ocupadas como empregador ou conta própria em empreendimentos registrados no CNPJ foram entre aqueles indivíduos com ensino médio completo e superior incompleto, o correspondente a 3,3 milhões de pessoas. A segunda maior taxa foi verificada entre aqueles que possuem ensino superior completo (2,7 milhões), a terceira entre aqueles que possuem ensino fundamental incompleto ou não possuem qualquer instrução (1,2 milhões) e a menor taxa entre aqueles que possuem ensino fundamental completo e ensino médio incompleto (1 milhão).
O maior número de trabalhadores com CNPJ, segundo dados da mesma estatística, foi verificado na Região Sul, cujo percentual representa 41,5%. Nas regiões Norte e Nordeste, o valor foi mais reduzido, sendo 12,1% e 16,3% respectivamente. Não surpreendente, esse indicador, que vem sendo monitorado desde 2012, representou, no ano de 2019, a maior taxa já registrada: 8,4 milhões.
A partir de tais dados e a fim de estabelecer a recorrência na apreciação do tema pejotização no âmbito do judiciário, buscou-se verificar o montante de decisões proferidas pelos juízes de primeiro grau do TRT da 8ª Região, utilizando como marco temporal o período antes da Reforma Trabalhista (de 01 de janeiro de 2011 a 11 de novembro de 2017) e o outro após a entrada em vigor da referida lei até a finalização deste artigo (de 12 de novembro de 2017 a 31 de outubro de 2020), para efeito de comparação do impacto dessa reforma legislativa, no que tange à frequência do enfretamento judicial em torno do tema.
Para tanto, buscou-se especificamente o termo pejotização no site do TRT8, na seção consulta de julgados, e a partir disso, apurou-se o importe de 202 sentenças que continham o pedido de reconhecimento de vínculo empregatício com menção à prática da pejotização em seu conteúdo, no período pós-Reforma. Quanto ao período anterior às flexibilizações trazidas pela Reforma Trabalhista, o número total de sentenças que tratavam sobre o tema foi de 156, o que claramente demonstra que houve um aumento das demandas judiciais sobre o tema, especialmente levando em consideração o extenso lapso de tempo apurado antes do advento da reforma.
Repisa-se, ainda, que não se tomou conhecimento até o momento da estimativa de empregados que são submetidos à prática fraudulenta da pejotização, principalmente devido à dificuldade de constatar tal fraude na prática, e pela inexistência de um canal oficial de apuração de denúncias, o que se conclui que ou a prática é subnotificada ou gera a propositura de ações judiciais com pedidos de reconhecimento de vínculo empregatício, cuja fundamentação pauta-se na alegação de empregado pejotizado, o que exige uma apreciação judicial ainda mais cautelosa, para que haja o combate dessa fraude, quando restar evidenciada nos fatos.
No entanto, não se deve confundir viabilização com legalização, pois a norma não tornou lícita essa prática que, no dia a dia da Justiça do Trabalho, deve ser combatida para salvaguardar os direitos basilares dos trabalhadores, previstos no art. 7º da CRFB/88, de modo que se assegure um trabalho decente, que garanta uma vida digna ao indivíduo.
O princípio da primazia da realidade e o combate à pejotização
No sistema jurídico brasileiro, além da aplicação de princípios gerais, ditos constitucionais, que possuem aplicação imediata em todos os ramos que compõem a ciência jurídica, também se aplicam os princípios específicos de cada campo do Direito, objetivando acima de tudo a proteção da pessoa humana.
Consequentemente, além da aplicação dos princípios constitucionais do trabalho, o Direito do Trabalho também se orienta por princípios específicos como: princípio da proteção, princípio da norma mais favorável, princípio da imperatividade das normas trabalhistas, princípio da irrenunciabilidade dos direitos, princípio da condição mais benéfica, princípio da inalterabilidade contratual, princípio da continuidade da relação de emprego, princípio da integralidade salarial, princípio da primazia da realidade, princípio da razoabilidade e princípio da boa-fé.
Sob a ótica principiológica, a prática da pejotização configura uma violação aos princípios da imperatividade das normas trabalhistas, como a irrenunciabilidade dos direitos trabalhistas e a primazia da realidade, que pode ser combatida de acordo com Ferreira e Corrêia (2020) por meio de denúncias, reclamações trabalhistas e fiscalização dos órgãos competentes.
Sobre esse ponto é que se reconhece a importância da aplicação prática de princípios e regras próprias do Direito do Trabalho, para que a Justiça do Trabalho, ao interpretar e aplicar as normas trabalhistas, combata efetivamente as modalidades de contratações que, na prática, estão em desconformidade com o disposto em lei, por representarem uma violação ao direito individual do trabalhador.
Por conta disso, julga-se fundamental que se analise o fenômeno da pejotização sob o enfoque dos princípios que regem o Direito do Trabalho, na medida em que tais princípios orientam tanto a elaboração das leis e criação de normas jurídicas autônomas quanto a interpretação e aplicação do direito. Em especial, o princípio especializado do Direito do Trabalho, qual seja o da primazia da realidade, que auxilia no combate a essa prática fraudulenta que, conforme asseveram Suijkerbuijk e Bentes (2017), é de difícil constatação, mesmo reunindo requisitos inerentes da relação de emprego, dado que, em alguns casos, esse ato ilegal não deixa resquícios materiais.
Esse princípio se justifica por força dos artigos 9º e 442 da CLT, em que os atos praticados com o objetivo de desvirtuar, impedir ou fraudar os direitos trabalhistas são considerados nulos, prevalecendo a realidade fática da execução do contrato. Assim, a análise acerca da existência do vínculo empregatício, que garante maior proteção ao trabalhador, requer tanto a aplicação de princípios específicos quanto gerais, como é o caso do princípio da dignidade da pessoa humana previsto constitucionalmente, a fim de que se ateste as práticas lesivas ao direito individual, como, por exemplo, a limitação temporal do trabalho.
Isso porque, geralmente o trabalhador pejotizado é restringido de exercer tal direito ao descanso, uma vez que, mesmo trabalhando além do horário normal definido em lei, isso não implica em custos adicionais ao tomador dos serviços, justamente por não ser empregado formal de carteira assinada. Sem embargo, o consenso do labutador quanto à privação desse e de outros direitos ocorre pelo justo receio de ser substituído por outro empregado, também pejotizado.
No plano internacional, Santos (2018) aponta que a aplicação do princípio da primazia da realidade encontra respaldo na Recomendação n.º 198 da Organização Internacional do Trabalho, que dispõe sobre a determinação da existência de uma relação de trabalho, utilizando-se da presunção legal sempre que houver um ou vários indícios da existência da relação, admitindo ainda uma ampla variedade de meios para determiná-la.
Porto e Vieira (2018) defendem que, com base no princípio da primazia da realidade, as relações trabalhistas são analisadas a partir da situação fática, importando o que ocorre no mundo dos fatos, e não na mera formalidade de documentos, sobressaindo a situação real em que se encontre o trabalhador em vez da concepção jurídica do pacto entre as partes, para que não se afasta a incidência do Direito do Trabalho sob aquilo que lhe compete.
Nestes termos, a aplicação do princípio da primazia da realidade evidencia quando há relação de emprego, ainda que o prestador dos serviços seja uma pessoa jurídica devidamente registrada em órgão competente. Na prática trabalhista, esse princípio auxilia a caracterização objetiva da fraude da pejotização, independentemente da vontade das partes, valorizando-se o modo como a prestação dos serviços se realiza e não os atos formais realizados para travestir a relação de emprego.
De acordo com Batista e Silva (2017), essa tem sido a prática adotada pelos tribunais, para que haja o reconhecimento de relações fáticas de emprego, desprezando as avenças contratuais pactuadas entre as partes, de modo que não haja renúncia dos direitos trabalhistas e sejam garantidos os direitos que advêm do reconhecimento do vínculo empregatício, sempre que estiverem preenchidos os requisitos necessários.
A comprovação da presença dos requisitos do vínculo empregatício, previstos nos artigos 2º e 3º da CLT, cabem ao trabalhador pejotizado, o que poderá resultar em condenação de todos os efeitos legais que decorrem dessa relação entre eles: o depósito do FGTS, pagamento de 13º, férias, horas extras etc. Além disso, a aplicação prática do princípio da primazia da realidade auxilia a efetivação dos direitos trabalhistas que foram cerceados do trabalhador, conferindo-lhe, assim, o recebimento retroativo de tudo a que tinha direito, desde o início da prestação dos serviços.
Defende Redinz (2019) que é com base nesse princípio que a Justiça do Trabalho, ao tomar conhecimento da prática da pejotização, decide pela nulidade do contrato e reconhece a forma de contratação que equivale à realidade, o que pode gerar, por óbvio, obrigações para o empregador. Delgado (2019) expõe que a nulidade do contrato pode ser alegada pelo trabalhador, que tem como fundamento a existência de afronta à norma trabalhista, presumindo-se, assim, que o empregado prejudicado com a simulação da pejotização tenha sido coagido a praticá-lo.
Isso porque alguns direitos sociais não podem ser alvo de flexibilizações por serem inalienáveis por natureza, como saúde, segurança e higiene do trabalho, cabendo ao Estado a prestação positiva desses direitos, bem como condições dignas de trabalho (PEREIRA, 2018), assim, a simples geração de emprego não é suficiente para flexibilizar normas que propiciem fraudes trabalhistas.
Não apenas deve-se aplicar o princípio da primazia da realidade como também o princípio da proteção ao trabalhador que, mesmo pejotizado, mantém a qualidade de hipossuficiente na relação de trabalho, dada a sua limitação de negociação com o empregador, que tende a substitui-lo caso não aceite as condições do trabalho, ainda que essas não lhe sejam favoráveis (CALEGARI, 2018).
Laraia (2020) reforça que a interpretação dos dispositivos da CLT deve ser no sentido de afastar a qualidade de empregado se o trabalhador presta o serviço de modo autônomo, sem subordinação jurídica, ainda que com ou sem exclusividade e continuidade, e caso haja subordinação, estar-se-á diante de uma relação de natureza empregatícia, não importando a formalidade contratual estabelecida entre as partes.
Nesse sentido, Garcia (2018, p. 29) ao tratar sobre a prática de dispensar e recontratar o empregado, expõe que:
[...] se a empresa contratar sociedade (pessoa jurídica) de ex-empregado, o relacionamento não deve ser pessoal, devendo as comunicações, convocações, depósitos em contas correntes bancárias e pagamentos ser sempre sob o nome da sociedade, nunca sob o nome pessoal do ex-empregado. Expandindo o conceito acima, de subordinação hierárquica, elucide-se que, se a empresa contratar a pessoa física (como profissional autônomo, por exemplo), não se deve formar qualquer espécie de vínculo subordinativo, não se exigir prestação pessoal do serviço nem estabelecer horários ou roteiros de trabalho. [...].
Ao tratar do empregado autônomo, a aplicação de princípios justifica-se mais uma vez, pois, a prática da pejotização pode ser facilmente disfarçada com base em artigos da própria CLT, de modo que haja uma aparência de legalidade. Carmo (2018) cita que um desses artigos é o 442-B da CLT, que adveio com a Reforma Trabalhista, que reforça ou até mesmo permite a prática da pejotização, pois afasta o vínculo de emprego ainda que haja exclusividade na prestação do serviço desse tipo de trabalhador.
De fato, a exclusividade não é requisito essencial para caracterizar o vínculo, porém, na prática trabalhista funciona como aliado na constatação da subordinação jurídica, que é um dos requisitos essenciais para caracterizar a relação de emprego. Carmo (2018) ainda assevera que tal artigo deveria ser declarado inconstitucional por fomentar a prática da pejotização.
Isso porque, antes do advento desse artigo, a questão da exclusividade contribuía para o arcabouço probatório do empregado pejotizado na relação processual sempre que demandava na Justiça do Trabalho o reconhecimento da relação de emprego, tendo assim mais chances de ver seus direitos reconhecidos. Nesse rumo, a comprovação da exclusividade na prestação do serviço entre as partes do processo presumia a presença da fraude trabalhista. Portanto, se doravante tal elementar for considerada irrelevante como prova processual a ser utilizada em favor do trabalhador pejotizado, suas chances de êxito nas disputas processuais serão reduzidas, e se favorecerá um ambiente propício a práticas trabalhistas fraudulentas.
Analisando a atuação jurisdicional, em acórdão publicado pela 4ª turma do Tribunal Regional do Trabalho da 8ª região (RO n.º 0000906-74.2018.5.08.0110), o vínculo de emprego foi reconhecido, por unanimidade, com base no princípio da primazia da realidade, após comprovação testemunhal de que a empresa reclamada auxiliou os trabalhadores nas questões burocráticas para abertura de suas respectivas pessoas jurídicas, na forma de MEI, descontava e chamava atenção do empregado na hipótese de falta ao trabalho, sem que houvesse a possibilidade desse se fazer substituir, além de depositar o salário mensal diretamente na conta pessoal do empregado.
Em decisão mais recente, em junho de 2019, a 1ª turma do TRT8 também usou o princípio para motivar o acórdão, reconhecendo a relação de emprego, conforme o trecho abaixo transcrito:
[...] norteia o processo do trabalho o princípio da primazia da realidade. Assim, o fato da empresa ter juntado os contratos comerciais de ID 0cd2ddd, e diversas notais fiscais ID 5a7ea72, apenas demonstram que houve um vínculo jurídico entre as partes, não prevalecendo sobre a realidade dos fatos, que foram demonstrado pelas outras provas colhidas nos autos, em especial os depoimentos das partes e testemunhas. [...] (PARÁ, 2019a, p. 669, grifo nosso).
Nesse mesmo sentido, demonstrando a pacificidade do tema do mesmo tribunal, a 3ª Turma assim decidiu sobre a matéria, mantendo o entendimento do juízo a quo a respeito do reconhecimento da fraude trabalhista, fundamentando o seguinte:
[...] a única diferença entre um contrato de trabalho comum e o contrato firmado nos autos é que a parte prestadora de serviços é uma “pessoa jurídica”. Apesar disso, é a proprietária da “pessoa jurídica” que presta os serviços pessoalmente, com subordinação (estabelecida pelo contrato), com habitualidade e de forma onerosa. Portanto, temos que o contrato cível firmado tinha o único intuito de burlar a legislação do trabalho e diminuir os custos da prestação de serviços. [...] (PARÁ, 2019b, p. 1768, grifo nosso).
Portanto, notório que o judiciário regional tem adotado o princípio da primazia da realidade para reconhecer o vínculo empregatício e atestar a fraude trabalhista da pejotização, independentemente da formalidade contratual que tenha sido pactuada entre as partes, ainda que o referido princípio não esteja expressamente citado na motivação judicial do tribunal, estando mais presente nas sentenças dos juízes de primeiro grau.
À nível nacional, o Tribunal Superior do Trabalho, ao enfrentar o tema, reconheceu existir fraude na relação de emprego, por meio da pejotização. Acompanhe:
[...] a denominada “pejotização” (quando configurada a contratação por meio de empresa individual com a finalidade de burlar a legislação trabalhista) deve ser combatida em todas as frentes: legisladores, julgadores, órgãos de fiscalização etc. [...] Ao analisar as provas dos autos, documentos e provas orais, é possível perceber a presença de todos os elementos fáticos jurídicos caracterizadores da relação de emprego, inclusive a subordinação jurídica. [...]. Agravo de instrumento conhecido e não provido (BRASIL, 2020, n.p, grifo nosso).
Destarte, ocorrendo na prática a pejotização, é cediço pelo entendimento jurisprudencial de que a personalidade jurídica do empregado deve ser desconsiderada, consoante o art. 9º da CLT, pois a constituição do CNPJ foi utilizada apenas para mascarar a relação de emprego existente, utilizando-se a aplicações dos princípios específicos do Direito do Trabalho (SANTOS, 2018), bem como, aqueles constitucionalmente assegurados, qual seja, a dignidade da pessoa humana.
Além das implicações que decorrem do reconhecimento do vínculo de emprego, ainda há o risco de a empresa ser condenada ao pagamento de danos morais e materiais ao trabalhador pejotizado, conforme tem-se visto pelas decisões proferidas pelo segundo grau da Justiça do Trabalho.
Considerações finais
A partir da exposição dos conceitos basilares do Direito do Trabalho e da base principiológica que rege nosso ordenamento jurídico, conclui-se que a prática da pejotização se mostra nefasta para o trabalhador, que é privado de seus direitos básicos, sendo considerada como uma verdadeira fraude, consoante o art. 9º da CLT, ao ocultar uma relação de emprego com o intuito de burlar encargos que dela advêm.
Por outro lado, a pejotização tem estimulado os trabalhadores a aceitarem essa nova forma de contratação, compelidos pela necessidade de ingressar no mercado de trabalho, ainda que sem todo o leque da proteção trabalhista, o que intensifica a hipossufiência do trabalhador, que fica sem a proteção que ficaria normalmente em uma relação de emprego, enquanto o empregador otimiza seus lucros explorando o trabalho humano.
Entretanto, os direitos sociais devem ser resguardados e prestados positivamente pelo Estado, que deve criar um estímulo para a geração de postos de trabalho ao mesmo tempo em que propicia condições dignas de trabalho aos indivíduos.
Na discussão processual, a mera existência, por exemplo, de um contrato firmado entre as partes não deve prevalecer em relação à situação fática em que o empregado é submetido. Daí a importância de aplicar o princípio da primazia da realidade no caso concreto, de modo que se verifique se na prática estão presentes de fato os elementos caracterizadores da relação de emprego, visto já se ter demonstrado que a norma por si só, mesmo com o advento de uma reforma, não foi capaz de proteger de fato o trabalhador contra a pejotização.
Por entender que os princípios servem tanto para direcionar a produção legislativa quanto para aplicar no caso concreto, é que se denota que os acórdãos dos tribunais não têm se utilizado de mera presunção da prática da pejotização, que ainda deve ser provada nos autos, por meio de oitiva de testemunhas, práticas reiteradas que indicam habitualidade, subordinação e outros requisitos e também o modo como se estreita a relação entre o tomador e o empregado pejotizado, que muitas das vezes recebe salário em sua própria conta bancária.
No entanto, há de se convir que o depósito da folha de pagamento através de banco ainda não é uma prática adotada pela maioria das empresas brasileiras, sendo imprescindível que a defesa busque outros meios que indiquem a presença fática dos requisitos do vínculo empregatício.
Não obstante, faz-se necessário ainda que haja a revisão de artigos da CLT, em especial o 442-B, para que haja o combate efetivo a essa fraude trabalhista. Além disso, a Justiça do Trabalho deve continuar mantendo-se sensível à questão da condição de hipossuficiência do trabalhador nas relações laborais.
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Recebido em: 20/06/2020
Aceito em: 03/09/2021
O DISPOSITIVO NA PRÁTICA:
os usos do estatuto do MEI por designers gráficos
sob a perspectiva da zona cinzenta
THE DEVICE IN ACTION:
uses of the MEI status by graphic designers
from a grey zone perspective
____________________________________
Thays Wolfarth Mossi1*
Júlia Carlos de Matos2**
Caetano Lisboa Garcia3***
Resumo
O artigo versa sobre os usos concretos do estatuto jurídico do microempreendedor individual (MEI) por designers gráficos. Tais usos foram identificados por meio da análise de conteúdo de quinze entrevistas semiestruturadas. Identificou-se que, além dos usos já apontados pela literatura – como assalariamento disfarçado e por atores que não se enquadram no perfil original da política –, os designers gráficos mobilizam o MEI num contexto de ausência de regulação institucional da profissão e de demandas por independência e formalização no mercado de trabalho, configurando uma forma híbrida de inserção no trabalho: a formalidade irregular. Argumenta-se que os usos da política devem ser pensados para além da lógica do desvio da norma, sendo enquadrados nos termos de uma zona cinzenta das relações de trabalho e emprego.
Palavras-chave: MEI. Designers gráficos. Zona cinzenta. Formalidade irregular.
Abstract
This paper addresses the concrete uses of the individual micro-entrepreneur’s (MEI) legal status by graphic designers. These uses were identified through the content analysis of 15 semi-structured interviews. This analysis showed that in addition to the uses already pointed out by literature - as disguised salaried employment and by actors who do not fit the original profile of the policy - graphic designers mobilize the MEI status in a context of absence of institutional regulation of the profession, and of demands for independence and formalization in the labour market, configuring a hybrid form of working: the irregular formality. We argue that policy’s uses must be understood beyond the logic of deviation from the norm, and should be framed in terms of a grey zone of labour and employment relations.
Keywords: MEI. Graphic designers. Grey zone. Irregular Formality
Este artigo versa sobre os usos do estatuto de microempreendedor individual (MEI) a partir da perspectiva das zonas cinzentas das relações de trabalho e emprego. Para tanto, investiga a pluralidade das formas de uso do estatuto por designers gráficos, examinando a articulação entre formalidade e informalidade, subordinação e autonomia no trabalho desses profissionais.
1* Doutora em Sociologia (PPGS/UFRGS). Professora do Departamento de Sociologia e do Programa de Pós-Graduação em Sociologia da Universidade Federal do Rio Grande do Sul. E-mail: thays.mossi@ufrgs.br
2** Bacharelanda em Ciências Sociais (UFRGS). Bolsista de Iniciação Científica Voluntária. E-mail: juliacarlosm@gmail.com
3*** Bacharelando em Ciências Sociais (UFRGS). Bolsista de Iniciação Científica FAURGS-PROPESQ. E-mail: caetnolg1@gmail.com
ISSN 1517-5901 (online)
POLÍTICA & TRABALHO
Revista de Ciências Sociais, nº 54, Janeiro/Junho de 2021, p. 117-132
Em vigor desde 2009, a política do MEI tem como objetivo incentivar a formalização de pequenos empreendimentos, a inclusão social e previdenciária de trabalhadores por conta própria e a criação de pequenos negócios (ROSENFIELD et al., 2014) que estejam enquadrados na lista de ocupações permitidas, as quais seguem a Classificação Nacional de Atividades Econômicas (CNAE). A literatura sobre o tema já vem apontando as incoerências entre o discurso da política, pensada para a formalização de trabalhadores por conta própria com baixa capacidade contributiva, e seus usos concretos. Para o caso dos designers gráficos, algumas questões se colocam para além do já discutido assalariamento disfarçado: eles não apenas não se enquadram nas atividades passíveis de formalização via MEI, como também desenvolvem atividades de natureza intelectual, as quais são excluídas da categoria “empresário” pelo artigo 966 do Código Civil, Lei n.° 10.406/2002 (BRASIL, 2002). Frente às demandas por independência e formalização que esses profissionais enfrentam para se inserirem no mercado, argumentamos que os usos que fazem da política devem ser pensados nos termos de uma zona cinzenta do trabalho e do emprego, pois sua prática produz uma forma híbrida de inserção no trabalho, que denominaremos “formalidade irregular”.
A construção institucional dessa política e o uso concreto que diferentes atores fazem dela não podem ser compreendidos de forma isolada do contexto histórico e societal que os produzem. Um olhar complexo sobre o fenômeno implica combinar uma atenção às instituições, aos discursos e à forma como o dispositivo do MEI é mobilizado por atores sociais em uma realidade multifacetada. Para tanto, é preciso adotar uma perspectiva que ultrapasse uma visão binária em relação às práticas dos atores, levando em consideração relações extrajurídicas e convenções informais e entendendo as relações de trabalho e emprego como inseridas em um contexto institucional lacunar e permeável. Nesse sentido, a abordagem dos usos do MEI a partir da perspectiva da zona cinzenta contribui para a apreensão do significado social dos usos desse dispositivo, que representam mais do que um desvio da norma jurídica.
Esta abordagem será mobilizada em quatro partes. Na primeira, será abordado o contexto social e institucional da criação do dispositivo em análise, a fim de situar a política do MEI como parte de um duplo processo de formalização e precarização do mercado de trabalho brasileiro. Na segunda parte, serão discutidos os usos práticos dessa política identificados na literatura e na pesquisa empírica. Na terceira, será brevemente apresentada a questão da zona cinzenta do trabalho e do emprego, argumentando-se que essa abordagem permite extrapolar alguns limites interpretativos da literatura sobre os usos práticos do MEI. Por fim, na quarta parte, essa abordagem será mobilizada para pensar o quadro institucional, as demandas do mercado e as formas de inserção no trabalho de designers gráficos independentes que se utilizam do estatuto do MEI. Os resultados apresentados estão fundamentados na análise de conteúdo (BARDIN, 2008) de quinze entrevistas semiestruturadas realizadas com designers gráficos que atuam nas cidades de Porto Alegre, Florianópolis, São Paulo e Rio de Janeiro. Os entrevistados têm entre 20 e 42 anos e ensino superior completo (onze) ou em andamento (quatro) na área.
A política do MEI no contexto do mercado de trabalho brasileiro
O incentivo às micro e pequenas empresas por meio da simplificação, redução ou eliminação de obrigações administrativas, tributárias, previdenciárias e creditícias é um princípio constitucional (BRASIL, 1988), estabelecido no contexto de um mercado de trabalho segmentado, heterogêneo e desigual. Marcio Pochmann (2012) diferencia três movimentos históricos da evolução do mercado de trabalho brasileiro, que permitem atentar para a ação ou não ação do Estado (THEODORO, 2005) enquanto ente formulador e executor de leis e políticas públicas.
Em relação ao primeiro movimento – em direção ao trabalho livre –, é importante destacar que, ao fim do regime de escravidão, a ação do Estado brasileiro se deu no sentido de substituir a mão de obra escrava pelo trabalho livre de imigrantes europeus, sem qualquer esforço de integração da população negra ao mercado de trabalho. Tem-se, assim, a formação de um excedente estrutural de trabalhadores que precisam se dedicar a atividades pontuais e variáveis, com baixas remunerações, formando as bases do setor informal (THEODORO, 2005).
Quanto ao segundo movimento, de formação do mercado de trabalho nacional, destaca-se o caráter incompleto da estruturação do mercado de trabalho brasileiro, manifesto na sua incapacidade de absorver toda a mão de obra disponível, mantendo um segmento da população à margem do sistema de proteção social, sobrevivendo do trabalho autônomo de baixa renda. Esse processo incompleto consolida a cisão entre trabalho formal e informal no Brasil, marcado fortemente por um corte de raça herdado do movimento anterior e reforçado por um sistema de proteção social meritocrático destinado aos trabalhadores incluídos no trabalho formal (POCHMANN, 2012).
Parece ser este cenário de segmentação do acesso à proteção social que a política do MEI, criada durante o segundo o Governo Lula, visa remediar. As leis decorrentes do princípio constitucional de incentivo às microempresas buscam criar maneiras de integrar e assistir às pequenas empresas e ao setor informal em geral, que representam o segmento mais frágil da economia brasileira (MOREIRA, 2013) e têm sido historicamente deixados de fora da ação estatal. Nesse sentido, o objetivo declarado da política seria trazer para a formalidade a massa de pequenos negócios e trabalhadores por conta própria, possibilitando acesso à proteção social a um baixo custo.
A formalização do microempreendedor permite dispor de inscrição no Cadastro Nacional de Pessoas Jurídicas (CNPJ), emissão de notas fiscais, conta bancária de pessoa jurídica e financiamentos com juros reduzidos, além de contribuir para a previdência social, tendo acesso a direitos como licença-maternidade, auxílio-doença, seguro em caso de falecimento ou invalidez, e seguro-desemprego, pagando uma taxa mensal quase simbólica e considerando os períodos de carência. Atualmente, a contribuição à previdência é de 5% sobre o salário-mínimo e o faturamento máximo é de até R$ 81 mil ao ano. A contribuição previdenciária corresponde a uma porcentagem menor que a alíquota básica para contribuintes individuais (que é de 20%) (COSTANZI, 2018). O valor dos benefícios recebido é de um salário-mínimo, sendo possível o aumento desse valor mediante o pagamento complementar de 15% do salário-mínimo ou sobre o salário do usuário (nesses casos, a contribuição é de 20%).
Em 2011, o governo federal lançou o Plano Brasil sem Miséria, que objetiva a capacitação e inclusão produtiva para superar a pobreza extrema. Nele, o incentivo ao MEI entre usuários do Programa Bolsa-Família (PBF) é colocado como um meio de promover a inclusão produtiva (SECRETARIA ESPECIAL DO DESENVOLVIMENTO SOCIAL, 2015). O estatuto seria uma forma de quebrar o ciclo de pobreza de modo duradouro e dar aos usuários uma “porta de saída” para o PBF (MOREIRA, 2013).
Contudo, não se pode perder de vista que esse “remédio” para a informalidade vem no contexto do terceiro movimento histórico da formação do mercado de trabalho, qual seja, de esgotamento do projeto de industrialização brasileiro e de reestruturação produtiva a nível global. Além de produzir aumento de desigualdades e redução da mobilidade social (POCHMANN, 2012), a crise do capitalismo dos anos 1970 foi acompanhada de reformas do Estado, dentre elas a flexibilização dos direitos sociais e de precarização do trabalho (ANTUNES, 2009). Nessa conjuntura, a política do MEI encontra problemas possivelmente maiores do que aquele que propunha resolver. É nesse encontro entre uma necessidade historicamente constituída de formalizar a maior parte dos trabalhadores e um momento histórico de flexibilização das relações de trabalho que os usos da política por atores concretos, em situações multifacetadas, deve ser compreendido.
Os usos concretos do estatuto do MEI
A política do MEI surge como uma ferramenta de acesso a direitos voltada para um público excluído do mercado formal de trabalho que obtém seus rendimentos por meio do trabalho por conta própria e não contribui para a previdência de modo individual. De fato, a porcentagem dos trabalhadores por conta própria que contribui para a previdência é tradicionalmente baixa: em 1992, esse número era de 20,7%; em 2002, 14,6%; e em 2008, 16,6%. A partir daí o número cresce, passando a 18,4% em 2009 e atingindo a porcentagem de 27,4% em 2013 (MINISTÉRIO DA PREVIDÊNCIA SOCIAL, 2014). Esse aumento se deu em consonância com o estabelecimento da política do MEI, o que sugere que esses trabalhadores não contribuíam para a previdência antes, possivelmente devido ao alto valor da contribuição individual. Contudo, lançado em um mercado de trabalho historicamente segmentado, em um cenário global de flexibilização das relações de trabalho em que o assalariamento se transforma profundamente (CARLEIAL; AZAÏS, 2007), esse dispositivo acaba sendo mobilizado para fins e em circunstâncias diferentes daquelas previstas na letra da política.
O estudo de Moreira (2013) traça um perfil do MEI beneficiário do Bolsa-Família (MEI-PBF) que pode ser entendido como próximo do público-alvo original da política: esses beneficiários são, na média, jovens, pouco escolarizados, chefes de família, já eram empreendedores informais ou estavam desempregados antes de ser MEI e exercem atividades de baixo valor agregado (MOREIRA, 2013). Os MEI-PBF representam 7% do total de microempreendedores cadastrados e cerca 0,2% da população beneficiária do PBF, enquanto 38% dos chefes de família elegíveis para o programa trabalham por conta própria (MOREIRA, 2013).
Por outro lado, Costanzi (2018) questiona o foco da política ao ressaltar o limite de faturamento anual do programa, o qual considera alto para os padrões de renda brasileiros. Através de dados da PNAD de 2014, o autor mostra que no mês de setembro de 2014 dois em cada três MEIs inscritos estavam entre os 30% mais ricos da população considerando a renda familiar mensal per capita, e oito em cada dez estavam entre os 50% mais ricos (COSTANZI, 2018). Uma vez que o MEI é um programa desequilibrado do ponto de vista atuarial, o autor argumenta que esse deveria focalizar apenas os trabalhadores mais pobres, pois, na prática, daria o “benefício previdenciário quase de graça para trabalhadores que teriam capacidade para contribuir, inclusive, com planos equilibrados do ponto de vista atuarial” (CONSTANZI, 2018, p. 7). Segundo o autor, embora a alta adesão1 ao MEI seja vista pelo governo como positiva, ela trará sérios desajustes previdenciários no futuro. Outro dado que demonstraria uma focalização inadequada do MEI é o nível de escolaridade de seus usuários. Enquanto 59,9% dos microempreendedores possuem ensino médio completo (porcentagem próxima àquela dos trabalhadores com carteira assinada, onde 62,2% completaram o ensino médio), apenas 39,6% dos trabalhadores por conta própria que não aderiram ao MEI possuem esse grau de instrução. No ensino superior, o padrão é semelhante: 14,8% dos trabalhadores com carteira assinada e 16,2% dos MEI, contra 10,2% dos trabalhadores por conta própria não optantes pelo MEI possuem ensino superior completo (COSTANZI, 2018).
Em estudo sobre o processo de implementação da política do MEI no município de Araraquara, Campanha et al. (2017) constataram que, ao ser implementada, ela tem sido modificada pela falta de estrutura dos órgãos e agentes públicos, que não foram devidamente preparados para executar e fiscalizar o programa. Assim, os agentes atuam segundo diferentes diretrizes, sendo mais ou menos rigorosos e entendendo o programa de maneiras diversas. Também os empreendedores atuam de modo estratégico, optando pela formalização ou não de seus empreendimentos segundo interesses diversos. Nesse sentido, o estudo levou à constatação da existência de dois grupos de microempreendedores individuais: um formado por empreendedores que buscam reconhecimento social e a formalização; e um segundo grupo formado por pessoas que não são empreendedoras de fato, mas vêem no programa uma oportunidade de burlar as regras trabalhistas vigentes e acessar direitos previdenciários e bancários (CAMPANHA et al., 2017).
À divisão feita pelos autores, cabe acrescentar a existência de indivíduos que, embora não sejam empreendedores de fato, são induzidos pelas empresas em que trabalham a aderir ao MEI como modo de desobrigá-las dos encargos trabalhistas. Duarte (2019) enquadra esse uso em substituição à carteira assinada como uso por imposição, uma vez que a existência do emprego nesses casos está condicionada à adesão ao MEI. O estudo de Oliveira (2013) corrobora a ideia de que a política vem sendo usada como meio de substituição das relações de emprego: o autor constatou que somente metade dos microempreendedores formalizados em 2012 provinham do setor informal.
Entre os designers gráficos entrevistados, um dos usos do MEI identificados vai ao encontro do identificado pela literatura. O uso do MEI como forma de mascaramento de relações de trabalho representa quatro dos quinze entrevistados. Trata-se de profissionais que dispõem do estatuto de MEI, mas atendem a um único cliente, em tempo integral ou parcial. Embora esse uso do MEI já tenha sido explorado em outros estudos, dois casos merecem destaque. O primeiro deles é de um designer gráfico que, ao longo de sua trajetória, já utilizou o estatuto como trabalhador independente e como subordinado. Atualmente, está atuando sob um contrato de prestação de serviço que, em alguns pontos, se aproxima muito de um contrato de trabalho:
Então sou um prestador de serviço, que tem que estar na agência das 9:00 às 19:00, tenho duas horas de almoço, tenho direito a férias, tenho direito a décimo terceiro, e eu ganho um adicional no meu salário que, teoricamente, é pra eu usar pro plano de saúde. Ganho também um vale-refeição (Webdesigner em agência de publicidade, 32 anos).
As principais diferenças em relação a um contrato de trabalho seriam aquelas de natureza tributária e previdenciária, mantendo-se elementos de subordinação na relação entre tomador e prestador. O segundo caso que merece atenção é do designer gráfico em uma autodenominada relação de “parceria”, que mistura elementos de sociedade e assalariamento, formalizada em um contrato de prestação de serviços via MEI.
É como se fosse uma sociedade, mas só que não no papel, ela é a dona do ateliê. Tá tudo no nome dela, mas eu tenho parceria porque eu tenho uma porcentagem de tudo que é vendido. Então, assim, ela me paga um fixo, um valor fixo, que isso abrange fazer as artes, ter o meu tempo de segunda à sexta pra ela. Mas eu tenho uma porcentagem de tudo que se tem. Tudo, tudo, tudo que... tudo não... Tudo que é relacionado a adesivo, que foi o que eu trouxe pra dentro da empresa, eu ganho. Lembrei disso agora. (Designer gráfico em empresa de decoração, 29 anos).
Elementos de subordinação e interdependência se entrelaçam no extrato acima. Apesar de receber um salário fixo e ter horário de trabalho pré-determinado, o ator compreende sua relação com a proprietária da empresa em termos de uma sociedade porque contribuem com aspectos diferentes para o funcionamento dessa: ele com a parte técnica, ela com a comercial. Seja essa uma sociedade ou uma relação de assalariamento disfarçado, o uso do estatuto se desvia aqui do seu propósito, haja vista que o MEI não pode ter sócios, tampouco se destina a substituir o contrato de trabalho.
Tendo em vista esses usos práticos diversos, o estatuto MEI pode ser descrito como uma política permeada por “conflitos interinstitucionais, brechas e ambiguidades legais” (CAMPANHA et al., 2017, p. 592). É preciso notar, contudo, que a substituição das relações de emprego pelo uso do CNPJ por meio do MEI não é mera consequência da existência do programa, mas parte de um movimento de transformação das relações de trabalho, que pode ser compreendido de maneiras diversas. De fato, as facilidades burocráticas do MEI têm aberto o caminho para usos da política que podem ser interpretados como inadequados, produzindo consequências às quais se deve atentar, como o desequilíbrio atuarial apontado por Constanzi (2018), por exemplo. Contudo, mais do que destacar o desvio em relação à norma jurídica, é importante lançar mão de um olhar que dê conta de captar a complexidade desses usos, nos quais se interseccionam contextos institucionais, interesses econômicos de atores múltiplos, a norma jurídica e as formas concretas que ela assume na prática. Nesse sentido, propomos interpretar o processo de transformação das relações de trabalho e emprego no qual se inserem esses usos da política do MEI nos termos das zonas cinzentas. A partir desse instrumental teórico-metodológico é possível compreender o uso da política pelos designers gráficos para além da lógica do desvio da norma, entendendo a norma como um dispositivo que é posto em prática pelos atores sociais.
O olhar a partir das zonas cinzentas
A noção de zona cinzenta do trabalho e do emprego se insere em um amplo debate que visa a dar conta das transformações pelas quais o mundo do trabalho e as sociedades salariais vêm passando a partir da crise do modelo fordista de produção e do enfraquecimento do Estado de bem-estar social do norte global. Esse debate assume diversas facetas e procura dar nome aos produtos dessas transformações, que podem ser entendidos como “flexibilização”, “precarização”, “desregulamentação” ou “trabalho atípico”, dependendo do objeto observado e do viés político da análise (MARCELINO, 2011). Com vistas a apreender a complexidade desses fenômenos e suas consequências sobre as relações de emprego, os que advogam pela noção de zona cinzenta procuram construir uma ferramenta analítica para a comparação internacional sem perder de vista a especificidade dos casos nacionais (CARLEIAL; AZAÏS, 2007; SIINO; SOUSSI, 2017).
Neste sentido, ao passo que cada país produziria à sua maneira – por meio de suas instituições, regulações e suas transformações – zonas cinzentas do trabalho e do emprego, esse processo também seria uma experiência compartilhada que pode ser constatada globalmente2. Na França, a problematização do tema é inaugurada por Alain Supiot (2000), com sua constatação de que a oposição entre trabalhador independente e trabalhador subordinado, muito clara no modelo taylorista-fordista, vem se tornando cada dia mais fluida. Nesse novo cenário produtivo, a distinção entre profissões assalariadas e profissões independentes não pode mais ser pensada em termos de oposição: há uma coexistência entre assalariamento e independência que deve ser analisada em termos de articulação (SUPIOT, 2000). Para o caso brasileiro, como será demonstrado adiante, é preciso ainda incorporar categorias de formalidade e informalidade à análise.
As zonas cinzentas, portanto, remetem à multiplicidade e à heterogeneidade das relações de emprego na medida em que essas “se emanciparam das formas tradicionais de regulação institucional” (SIINO; SOUSSI, 2017, n.p.), produzindo hibridizações nos mercados de trabalho. Essas hibridizações apontam os limites de se pensar as tradicionais categorias de formalidade, informalidade, autonomia e subordinação de modo dicotômico, tendo em vista que, na realidade empírica, essas fronteiras estariam embaralhadas (ROSENFIELD; ALMEIDA, 2014). O conceito de zona cinzenta apontaria não apenas para uma falha de institucionalização na regra do direito, mas também para a existência de um processo de auto-organização das regras (AZAÏS; DIEUAIDE; KESSELMAN, 2017). Nesse sentido, a discussão oferece um enquadramento apropriado para se pensar o uso concreto de normas jurídicas vinculadas ao mundo do trabalho, como é o caso do estatuto do MEI. Seu aparato conceitual fornece ferramentas para a análise conjunta do papel do Estado e da atuação dos atores na transformação de regras institucionais estabelecidas.
Dessa forma, uma zona cinzenta seria tanto o resíduo de uma norma jurídica em vias de reconstituição como uma engrenagem que permite uma regulação híbrida dos interesses contraditórios que afetam as relações de trabalho (AZAÏS; DIEUAIDE; KESSELMAN, 2017). Analisar os usos concretos que os atores fazem do estatuto do MEI como uma zona cinzenta significa, portanto, entender que esses usos são resultado da composição de interesses que forjam equilíbrios de circunstância baseados em regras híbridas e, muitas vezes, implícitas. Assim, é possível pensar a coexistência de duas ordens de legitimidade dos usos do MEI que coexistem e se misturam na prática: uma institucional e estatal, e outra mercantil e contratual (AZAÏS; DIEUAIDE; KESSELMAN, 2017).
Nesse sentido, o conceito de formas híbridas de inserção no trabalho cumpre um papel importante. O conceito, cunhado pelo sociólogo francês Christian Azaïs (2003), se destina a nomear o enredamento de diferentes formas de contrato e de inserção no trabalho que articulam formas tradicionais de trabalhar. As formas híbridas de inserção no trabalho são, simultaneamente, flexíveis e precárias, formais e informais, autônomas e subordinadas, de modo que colocam em cheque a pertinência de se pensar o trabalho a partir desses binômios na sociedade atual. São o resultado da articulação entre condições econômicas, ação estatal e os caminhos encontrados pelos indivíduos para trabalharem. O exame do entrelaçamento de normas diversas, como o uso do MEI para disfarçar uma relação de assalariamento, por exemplo, ou da formalização via MEI por profissionais que não são considerados juridicamente empresários, permite, a um só tempo, compreender o papel do Estado na produção de hibridizações e observar o engajamento dos atores às imprecisões jurídicas.
A prática dos designers gráficos independentes: a formalidade irregular
A política do MEI faz parte de um processo de estruturação incompleta do mercado de trabalho brasileiro e é elaborada paralelamente a um processo de flexibilização e precarização das relações de trabalho em nível global. É preciso levar em consideração, portanto, que os usuários da política também se encontram nessa injunção entre possibilidade de formalização e a contratualização das relações de trabalho. Para o caso dos designers gráficos independentes, isso se concretiza na ausência de marco institucional específico à sua profissão; e nas demandas concomitantes de formalização e independência no mercado de trabalho, que culminam em um uso do dispositivo que produz uma forma híbrida de inserção no trabalho – a formalidade irregular.
A Lei 10.406/2002, que institui o Código Civil, no artigo 966, estabelece que “não se considera empresário quem exerce profissão intelectual, de natureza científica, literária ou artística” (BRASIL, 2002, n.p.) – o que exclui os designers gráficos independentes da possibilidade de se formalizarem como empreendedores. Do mesmo modo, o artigo 18-A da Lei 128/2008 – que institui o estatuto do MEI – define que “para os efeitos desta Lei, considera-se MEI o empresário individual a que se refere o art. 966 da Lei 10.406, de 10 de janeiro de 2002” (BRASIL, 2008). Assim, tampouco poderiam aderir a essa política, não apenas porque o design não faz parte das categorias permitidas, mas também porque não são considerados empresários.
Na CNAE, o design gráfico é enquadrado como uma atividade profissional, científica e técnica, que requer formação específica de elevado nível de educação e treinamento, em que o conhecimento especializado é o principal elemento colocado à disposição do cliente (IBGE, 2006). Nesse sentido, está classificado ao lado de atividades jurídicas, da contabilidade, da publicidade, de consultoria e da pesquisa científica. Por seu turno, a CBO define o designer gráfico como desenhista industrial gráfico que realiza desenho editorial, de páginas da internet, de identidade visual, de embalagens, e de sinalização. Pertence ao item 2624, que agrupa artistas visuais, desenhistas industriais e conservadores-restauradores de bens culturais (MINISTÉRIO DO TRABALHO, 2002). Nessas definições oficiais, encontramos uma primeira tensão vivenciada pelos entrevistados: o caráter simultaneamente técnico e criativo de sua atividade. Enquanto a CNAE destaca o conhecimento técnico, a CBO coloca o designer ao lado dos artistas visuais. É justamente pela dimensão criativa e artística que o trabalho do designer não cabe, muitas vezes, nos moldes do assalariamento e dos contratos de longa duração. Além disso, trata-se de uma profissão reconhecida, mas não regulamentada3. Se a profissão de designer fosse regulamentada e fiscalizada por conselho da categoria, esses poderiam exercer suas atividades como profissionais liberais, com ou sem vínculo empregatício, abrindo ou não uma empresa, além de poder contar com sindicato para a categoria.
Há uma pluralidade de modos de atuação possível na área do design, que articulam diferentemente os aspectos técnicos e criativos desse ofício. Mais próximo do pólo artístico, temos ilustradores, que atuam sobretudo nos mercados editorial e publicitário. Seus serviços abrangem a produção de uma ilustração para um livro didático, uma reportagem, ou um desenho para uma embalagem, por exemplo. No polo técnico, temos webdesigners e designers de experiência do usuário – áreas conectadas à tecnologia da informação, em que desempenham mais tarefas de execução do que de criação, como produzir um botão primário em uma página web, que deve se destacar em relação aos demais. Entre esses dois polos, temos os que atuam com identidade visual, design estratégico e com embalagens e materiais gráficos em geral (para impressão ou para redes sociais).
A despeito dessa pluralidade, os profissionais entrevistados compartilham de algumas demandas que se impõem na realidade do seu mercado de trabalho: a independência e a formalização. A demanda por independência está relacionada ao fato de que o crescimento profissional do designer está diretamente associado ao desenvolvimento de um estilo próprio, que faz com que seus trabalhos sejam reconhecíveis como seus.
[...] a agência de publicidade, por exemplo, ela contrata ilustrador, contrata designer gráfico, [mas] no corpo da agência não tem esses profissionais, sabe? Eu não presto para trabalhar em uma agência porque eu tenho um trabalho bem a minha cara. Se eu trabalhar em uma agência de publicidade todos os trabalhos vão ficar com a minha cara. Isso não é legal para a agência. Então, é bom que eles sempre procurem pontualmente as pessoas para trabalhar com eles (Designer gráfico e ilustrador independente, 34 anos).
Pode-se observar uma trajetória de desenvolvimento profissional que, por um lado, é muito aproximada à do artista, e que, por outro, se combina com a necessidade de vender esse estilo no mercado, adaptando-se às demandas e expectativas de clientes que não estão adquirindo obras de arte, mas serviços. Na medida em que são poucas as oportunidades de inserção estável no mercado de trabalho, dada a natureza da atividade realizada, coloca-se a esses atores uma demanda por independência que, consequentemente, traz consigo a necessidade de formalização. Dispor de um CNPJ permite acessar clientes maiores e que pagam mais.
Chegou em um ponto da minha carreira, mais no começo, assim, que aí o pessoal só contratava por CNPJ, não contratava por CPF. No começo eu fazia sem CNPJ. Aí eu abri um MEI [...] E aí também muita gente só contrata se tu emitir nota fiscal. [...] Mas, nota fiscal é mais para o meu cliente, assim, pra poder botar lá no financeiro e me pagar. E aí tem uns também que precisam que a conta do banco para enviar o pagamento seja conta de pessoa jurídica. Então, eu tenho isso, o MEI, a minha conta de pessoa jurídica e meu bloquinho de nota fiscal. É a minha parte burocrática (Designer gráfica e ilustradora independente, 31 anos).
O recurso ao estatuto do MEI é uma estratégia compartilhada pelos designers entrevistados, e aqueles que o utilizam como profissionais independentes representam nove dos quinze entrevistados4. Nesses casos, é fácil descartar o uso do MEI como assalariamento disfarçado, seja pelo número de clientes que atendem concomitantemente, seja pelos elementos de autonomia operacional na realização do trabalho. Diferentemente dos casos de uso do MEI em substituição ao assalariamento, em que os designers tinham horários fixos de trabalho, aqui observa-se a possibilidade de controle do trabalhador sobre o tempo e o processo de trabalho.
Pra ser sincera, eu sou bem flexível com meus próprios horários (risos). Eu tento manter uma quantidade de horas fixas, mas eu não começo, termino no mesmo horário sempre (Designer gráfica e ilustradora independente, 30 anos).
Assim, em geral [os clientes] não saberiam dizer se eu trabalhei de madrugada, se eu trabalhei de manhã, de tarde. O que importa para os meus clientes é eu entregar no prazo, assim (Designer gráfica e ilustradora independente, 31 anos).
Outro elemento importante é a possibilidade de recusar ofertas de trabalho, o que indica não apenas a ausência de subordinação, como também a independência econômica em relação ao cliente. Se a subordinação é definida pela existência de um vínculo de autoridade associado à dependência econômica (CORSANI, 2019), aqui fica clara a ausência de subordinação entre o trabalhador e o demandante de trabalho.
Se tiver um prazo ruim, um prazo inadequado pro restante dos meus trabalhos essa vai ser a principal razão para eu negar trabalho, assim. E daí pra isso eu já tenho os amigos, pessoas que trabalham na área, de acordo com o estilo e tudo, daí eu vou repassando de acordo com o que eu acho adequado aos perfis dos outros, né? [...] Eu também nego trabalho quando eu acho que o cliente é ruim (risos). Se eu acho que é uma pessoa que já está sendo grosseira, já não tá começando direito, assim, mal orçou e a pessoa já tá sendo desagradável, mal educada, ou de alguma maneira não tá lidando direito com a ideia do trabalho, eu já corto ali porque não vai valer a pena (Designer gráfica independente, 31 anos).
É certo que esta posição em relação a clientes não é a mesma para todos os designers gráficos, mas sim uma possibilidade construída ao longo da trajetória profissional. Ainda assim, é emblemática da independência desses atores em relação ao tomador de serviços, tornando claro que se trata de um trabalho independente de fato, que não se confunde com o assalariamento.
Enquanto o binômio autonomia/subordinação é pertinente para explicar as formas de inserção no trabalho de designers gráficos e ilustrar os diferentes usos que fazem do estatuto do MEI, o mesmo não pode ser dito em relação ao binômio formalidade/informalidade. Para lançar luz sobre o caso empírico examinado aqui, a informalidade deverá ser entendida nos termos de Silva (2002), que propõe um duplo deslocamento: “da análise dos processos econômicos para a esfera política, enfatizando a (des)regulação estatal das relações de trabalho [...]; e da compreensão de um ‘setor’ ou ‘economia’ informal para ‘processos’, ‘práticas’ ou ‘atividades’ informais diferenciadas” (SILVA, 2002, p. 93). Se a informalidade pode ser definida como uma prática, a formalidade deve ser entendida da mesma maneira. Desse modo, ao invés de polos opostos, formalidade e informalidade podem ser compreendidas em uma articulação que se desenvolve na prática de atores sociais concretos.
A partir da análise das práticas dos designers gráficos independentes e dos tomadores de seus serviços, nos deparamos com uma zona cinzenta do trabalho. A primeira prática a ser destacada é a do uso do MEI. Deparando-se com o fato de que o design gráfico não consta nas atividades listadas para inscrição no MEI, os atores recorrem a grupos em redes sociais para orientação.
P: Tu sabes em quais categorias tu te inscreveste no MEI?
R: Um monte. É uma lista gigantesca. Porque não tem pra design, a categoria design lá. Aí eu fui num grupo do Facebook, um grupo de design. “Como é que as pessoas…”. Aí no grupo, tu indicas pro outro, é tipo um tutorialzinho. Você é designer? Se inscreva nessas aqui (Designer gráfico independente, 42 anos).
A estratégia é de cadastrarem-se em atividades que compõem, em alguma medida, os serviços prestados pelo designer gráfico, tais como clicherista, serviços de pré-impressão, reestruturação em edição de projetos gráficos e edição de livros. Essas atividades não correspondem diretamente ao trabalho desempenhado pelo designer, mas o tangenciam, como deixa claro o excerto abaixo.
Eu tenho MEI de professor, eu tenho de calçados, que é sapateiro. Porque eu ofereço sapatos, né. Só que mesmo, a maioria das coisas eu acabo terceirizando [...]. Aí eu tenho que estar lá no MEI como sapateira, quando na verdade, eu tenho um sapateiro que produz pra mim (Designer gráfica e de produtos independente, 34 anos).
Vislumbra-se uma forma de inserção no trabalho que é híbrida porque produz uma espécie de formalidade irregular: o uso de um estatuto que não se destina a eles é o que permite que se formalizem. Há a necessidade de formalizar-se porque um CNPJ permite prestar serviços para clientes maiores, como editoras, que não necessariamente pagam mais, mas dispõem de uma estrutura organizada e de um maior fluxo de demanda de trabalho. Associada à necessidade de formalização, há a incerteza e a instabilidade sobre a renda, inerente a qualquer trabalho independente. Quanto menores forem os gastos fixos, maior a segurança financeira do profissional de renda variável. Nesse sentido, o MEI se apresenta como a possibilidade menos economicamente arriscada de formalização para os designers gráficos independentes, mesmo que não se encaixem no perfil do público-alvo da política. Todavia, mesmo formalizados e com acesso à proteção social, submetem-se ao risco de fiscalização sobre o estatuto do MEI.
Por seu turno, a segunda prática diz respeito ao uso de contratos de prestação de serviços que remete à instabilidade inerente ao trabalho independente e a um esvaziamento da própria formalidade, tendo em vista que os contratos são, muitas vezes, unilaterais.
As editoras geralmente têm os contratos e elas mandam o contrato só no final, quando o trabalho está feito (risos). Tipo: “assina aqui que a gente vai te pagar.” Meio que assim. E esses contratos são total pra eles, só falta tu dizer que tu vai dar a tua mãe junto pra tu poder receber pelo trabalho, sabe? E aí como são empresas grandes tu sabe que não adianta ir contra e tal (Designer gráfica e ilustradora independente, 31 anos).
A formalidade da relação de prestação de serviços é esvaziada porque seu sentido se transfigura por meio da prática do contratante: de regra a ser cumprida, se torna mero protocolo que o prestador deve obedecer para poder receber por um trabalho que já entregou. Contudo, o fato de o contrato proteger o tomador unilateralmente pode ser mais grave, como no caso relatado abaixo:
Eu ia fazer uma embalagem para [uma marca de bebidas], e era um contato de Londres. Eles fizeram, mandaram dois contratos para eu assinar e tal. Então eu estava sossegado, porque eu achei que aquilo lá iria sair, como estava tudo bem negociado, eu neguei bastante trabalho. E os caras tiveram que “dar para trás”, porque preferiram pegar alguém de lá e tal. Resumindo: eu fiquei sem esse trabalho e fiquei sem os trabalhos que iriam chegar. Então, eu me ferrei. Isso me deu um buraco de dois meses de trabalho. E é muito ruim, porque os trabalhos que eu estou fazendo agora, muitos deles eu vou receber daqui a sessenta dias. Então, tu fica... tem que ter uma reserva. Quando eu estou bem, quando está tudo certo, tipo... Quando eu faço um ano bom, e eu não tenho que fazer muito investimento no estúdio ou na vida pessoal, o certo para mim é sempre ter pelo menos três meses fartos de salário, de aluguel, de tudo, sabe? Para não acontecer isso que aconteceu comigo no final do ano. Foi bem ruim, assim (Designer gráfico e ilustrador independente, 34 anos).
O trabalho independente já traz consigo um certo nível de incerteza, mas as práticas dos contratantes exacerbam a instabilidade na medida em que esvaziam a formalidade da prestação de serviços. Essas práticas dão um novo significado à contratratualização das relações de trabalho (ROSENFIELD; ALMEIDA, 2014), na medida em que os contratos protegem apenas a parte mais forte da relação. A tradicional oposição entre trabalho formal e informal perde, aqui, o seu potencial heurístico, pois a formalidade foi esvaziada de sentido por meio das práticas dos atores ao exercerem e se utilizarem do trabalho de uma profissão não regulamentada.
Considerações finais
O olhar para os usos concretos do estatuto do MEI sob o ponto de vista das zonas cinzentas permite compreender a ação dos atores sociais para além de uma visão binária do uso normal ou desviante da norma jurídica, do caráter formal ou informal das relações de trabalho. A partir desse olhar, o que se encontra são práticas fluidas por parte dos atores individuais. Nas relações de prestação de serviço, os contratantes, a um só tempo, demandam formalização e a esvaziam de sentido ao se utilizarem de contratos unilaterais. Quanto às relações de trabalho e emprego, por um lado, o estatuto do MEI amplia o acesso à proteção social ao formalizar trabalhadores por conta própria, por outro, também contribui para o enfraquecimento da proteção trabalhista, ao ser usado em substituição à carteira assinada.
Ao mesmo tempo, a análise dos usos concretos do MEI por designers gráficos permite evidenciar como a ação ou não ação do Estado no mercado de trabalho contribui na produção de zonas cinzentas das relações de trabalho e emprego. A intervenção estatal, por meio da elaboração da política, se encontra com a ausência de ação, na negativa de regulamentação da profissão de designer gráfico, culminando na produção de uma forma híbrida de inserção no trabalho: a formalidade irregular. Essa forma é híbrida porque articula, a um só tempo, aspectos paradoxais de formalidade e ilegalidade e se desenvolve no contexto de um mercado de trabalho não regulamentado, mas que demanda formalização dos profissionais. Na medida em que o modo de formalização que seria regular – como profissional liberal – não está disponível aos atores, esses mobilizam o quadro jurídico disponível como um recurso maleável. Mesmo que a política do MEI não se destine a eles – profissionais qualificados com capacidade de contribuição previdenciária – ela atende às suas necessidades e acaba, ainda que de forma diferente da originalmente proposta, trazendo para formalidade um grupo profissional que, de outra forma, estaria à margem do mercado de trabalho formal.
Referências
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Recebido em: 29/05/2020
Aceito em: 26/11/2020
1 Segundo o Portal do Empreendedor, eram 9.430.438 microempreendedores individuais registrados em dezembro de 2019 (PORTAL DO EMPREENDEDOR, 2020) Todavia, em julho de 2019, quando o programa completava dez anos, 54% dos 8,6 milhões de inscritos estavam inadimplentes (MARTELLO, 2019). Quando inadimplentes, os inscritos não têm acesso aos benefícios da previdência social, que exigem entre dez e doze meses de contribuição contínua.
2 Uma abordagem comparativa a nível internacional a respeito do MEI pode ser encontrada em estudos anteriores. Ver Giraud et. al. (2014) e Rosenfield et. al. (2014).
3 Uma primeira tentativa de regulamentação da profissão de designer tramitou no Legislativo entre 2011 e 2015. Foi aprovada na Câmara e no Senado, mas vetada pela presidente Dilma Rousseff, sob a justificativa de que a matéria contraria o artigo 5º da Constituição Federal, que assegura o livre exercício de qualquer trabalho, admitindo a imposição de restrições apenas quando houver a possibilidade de dano à sociedade. Em 2017, um projeto de teor idêntico foi apresentado, mas encontra-se arquivado até o momento.
4 Os outros dois entrevistados são estagiários.
EMPREENDEDORISMO E IDEOLOGIA NEOLIBERAL NO BRASIL:
A transição do perfil empreendedor
na Revista Pequenas Empresas Grandes Negócios
ENTREPRENEURSHIP AND NEOLIBERAL IDEOLOGY IN BRAZIL:
the transition in the entrepreneurial profile
of magazine Pequenas Empresas, Grandes Negócios
____________________________________
Samyama Tavares Monteiro1*
Cristiano Monteiro2**
Resumo
O artigo explora a preponderância da ideologia neoliberal como prática normativa da vida social sob a ótica da Sociologia Econômica. Nesse contexto, o estudo objetivou analisar a transição dos perfis empreendedores brasileiros propagados pela revista Pequenas Empresas Grandes Negócios. Trata-se de uma pesquisa descritiva documental, que utilizou como fonte números selecionados da referida revista no período compreendido entre as décadas de 1990 e 2010. As categorias foram elaboradas a partir do contato com o material, após o estudo da estrutura e conteúdo da revista, permitindo dois momentos de exploração: o primeiro voltado à imagem, observando as capas, com categorias como faixa etária e vestimenta, e um segundo momento de análise dos sumários e dos conteúdos das reportagens de capa. Dentre os resultados alcançados, destaca-se a análise do teor das reportagens mais frequentes em cada década, apresentando matérias cada vez menos voltadas para empreendimentos específicos e uma tendência a reportagens mais ligadas a comportamentos e valores.
Palavras-chave: Empreendedorismo. Neoliberalismo. Valores. Flexibilização.
Abstract
This article explores the predominance of the neoliberal ideology as a normative practice of social life under the lens of Economic Sociology. In this context, the study aimed at analyzing the transition of the Brazilian entrepreneurial profiles presented by magazine Pequenas Empresas Grandes Negócios. The methodology consisted of a documental descriptive research, based on selected issues of the aforementioned magazine in the period between the early 1990s and early 20102. The categories of analysis were elaborated inductively, after the study of the structure and content of the magazine in two steps: the first one, aimed at the images, by observing the magazine covers, with focus on categories such as age and dressing; and the second one, with focus on the summaries of the issues and the content of the cover stories. The analysis shows that the magazine transitioned from a focus on stories about specific business to stories related to values and behaviors.
Keywords: Entrepeneurship. Neoliberalism. Values. Flexibility.
1* Doutoranda e Mestre em Sociologia pela Universidade Federal Fluminense e integrante do Grupo de Estudo Estratégias para o Desenvolvimento, Estado e Pensamento Sociopolítico (EDESP). Professora da Faculdade de Vassouras, campus Maricá, Rio de Janeiro, Brasil. Email: stmonteiro@id.uff.br
2** Doutor em Sociologia pela Universidade Federal do Rio de Janeiro e pesquisador do Grupo de Estudo em Desenvolvimento do Sul Fluminense (GEDESF). Professor do Departamento de Sociologia e Metodologia das Ciências Sociais e do Programa de Pós-Graduação em Sociologia da Universidade Federal Fluminense. E-mail: cmonteiro@id.uff.br
ISSN 1517-5901 (online)
POLÍTICA & TRABALHO
Revista de Ciências Sociais, nº 54, Janeiro/Junho de 2021, p. 133-149
Introdução
Este artigo propõe uma análise das transformações associadas aos aspectos ideológicos do capitalismo contemporâneo, inspirada na Sociologia Econômica. Para tal, expõe o exame das mudanças no modo de vida das pessoas, a partir de uma perspectiva pautada na racionalidade do neoliberalismo, conformando uma nova ordem econômica que vem sendo analisada, desde fins da década de 1990 até anos mais recentes, por autores como Dardot e Laval (2016), Boltanski e Chiapello (2009) e Richard Sennett (1999,2006). Em comum, essa literatura tem ressaltado a importância da dimensão cultural para a análise dessas temáticas.
A revista Pequenas Empresas Grandes Negócios (PEGN) foi lançada pouco antes do início da década de 1990, contextualizada na referida discussão sobre as transformações do capitalismo e a reestruturação produtiva, e surgiu abordando um assunto pertinente ao momento: a economia e a elaboração do próprio negócio. A proposta de gerir o próprio empreendimento se articula, por definição, com a racionalidade neoliberal, mantendo assim seu perfil de publicação até hoje. Desde suas primeiras publicações, a PEGN aborda assuntos econômicos de maneira informal, de modo a trazer conhecimento econômico para o público brasileiro, ao mesmo tempo em que serve de modelo para a forma como esse conhecimento é disseminado. Suas publicações abrangem não apenas o mundo dos negócios, mas um “manual de condutas” que pode ser aplicado dentro e fora das empresas, apresentando reportagens que tratam mais de comportamento do que economia no sentido estrito, sem deixar de citar empresas específicas e ideias de negócios como foco principal de suas edições.
A presente pesquisa teve como objetivo geral analisar a difusão da prática neoliberal através dos perfis empreendedores difundidos pela revista PEGN entre as décadas de 1990 e 2010. Para isso, percorreu os seguintes objetivos específicos: 1)Avaliar a partir das capas da revista PEGN nos anos de 1991/1992 e 2015/2016, categorias específicas como “faixa etária” e “vestimenta”; 2) Classificar os sumários da revista PEGN nos anos de 1990, 1994, 2000, 2005 e 2010, a partir de categorias como “valores e comportamentos”, “empreendimentos específicos” e “práticas e processos do meio empreendedor”; 3) Analisar as reportagens de capa da revista PEGN nos anos de 1990, 1994, 2000, 2005 e 2010 segundo categorias “valores”, “intencionalidades”, “chamada de capa” e “tipo de negócio”. As categorias de análise emergiram do contato com o próprio material e expressaram dois momentos de análise, sendo o primeiro voltado para a imagem das capas e o segundo para a análise de conteúdo dos sumários e reportagens da capa.
Em relação aos métodos, adotou-se a perspectiva descritiva documental. Esta escolha decorre da natureza do objeto investigado – o perfil do empreendedor no novo capitalismo.1 Para desenvolver a investigação, utilizou-se como fonte documental números escolhidos da revista Pequenas Empresas Grandes Negócios no período compreendido entre as décadas de 1990 e 2010. A escolha dessa revista justifica-se por essa integrar parte do quadro de investigação sobre a temática da transformação do capitalismo e a ideologia neoliberal, visto que é capaz de retratar não apenas as práticas e os padrões econômicos do período em questão, mas também as estratégias das grandes mídias na escolha de como propagar essas ideias, tornando-se mais um vetor das referidas práticas e ideologias na realidade social de seus leitores.
A pesquisa foi realizada no acervo da Biblioteca Nacional, entre os meses de outubro e dezembro de 2018. No primeiro registro, foram englobadas todas as publicações presentes no acervo nos anos de 1991/1992 e 2015/2016 para o estudo das capas em um exercício exploratório. Já no segundo registro, foram realizadas outras visitas para a análise de conteúdo das reportagens de capa nas datas de 1990, 1994, 2000, 2005 e 2010, além da análise das capas e dos sumários dessas edições. O registro foi feito de acordo com a disponibilidade do acervo, procurando analisar a primeira e última publicação de cada ano e uma delas para o estudo das reportagens na íntegra. Os meses disponíveis e selecionados foram: janeiro e novembro de 1990, janeiro e dezembro de 1994, janeiro e dezembro de 2000, janeiro e novembro de 2005 e janeiro e novembro de 2010. Optou-se principalmente pelo estudo das reportagens de capa na íntegra de uma revista em cada ano, explorando seu conteúdo e características para um aprofundamento do que se observou na investigação anterior, assim como a tentativa de verificação da coerência entre as duas linhas de investigação. Para detalhar mais o estudo, foram realizadas análises dos sumários, o que proporcionou um olhar adicional sobre as transformações dos tipos de reportagens abordadas nas publicações. Neste caso, fez-se uma distinção entre as categorias “valores e comportamentos”, “empreendimentos específicos” e “práticas e processos do meio empreendedor”, indo ao encontro da investigação anterior com foco nas capas e até mesmo com a exploração de conteúdo das reportagens.
Para a análise de conteúdo das reportagens – presente no segundo momento de análise, a partir das cinco datas pré-definidas – o estudo baseou-se em categorias reflexivas como “intencionalidades” e “valores”, junto a outras categorias analíticas como “tipo de negócio” e “chamada da capa”. Dessa forma, obteve-se um quadro de investigação capaz de alcançar os questionamentos centrais da pesquisa, que transitam entre a normatividade da ideologia neoliberal e as estratégias por parte dos agentes disseminadores – no caso a revista PEGN – dessa prática para a manutenção de seu funcionamento. Em síntese, a trajetória metodológica de manipulação do material empírico pode ser apresentada da seguinte forma:
Quadro 01: Coleta e organização do material empírico
Parâmetros |
Primeiro momento |
Segundo momento |
Anos selecionados |
1991/1992 e 2015/2016 |
1990, 1994, 2000, 2005 e 2010 |
Partes da revista analisadas |
Capas |
Capas, sumários e reportagens das capas |
Categorias utilizadas |
“faixa etária” e |
Sumário: “valores e comportamentos”, “empreendimentos específicos” e “práticas e processos do meio empreendedor” |
Reportagens: “valores”, “intencionalidades”, “chamada de capa” e “tipo de negócio” |
Fonte: Dados da pesquisa
Em relação ao empreendedorismo, esse pode ser compreendido como uma ação econômica, viabilizada por atores sociais2 ou de maneira mais geral e próxima à concepção econômica (LEITE; MELO, 2008), como por exemplo na definição apresentada pelo Serviço Brasileiro de Apoio às Micro e Pequenas Empresas (Sebrae) que relaciona essa atividade à identificação de problemas, oportunidades e soluções inovadoras, atrelando a isso – como é observado nessa vertente, assim como na revista em questão – ideias de um perfil de empreendedor a ser seguido, traçando características como otimismo, autoconfiança e resiliência.
Nas produções acadêmicas, o termo aparece na fronteira entre teorias econômicas e teorias sociológicas clássicas. Dessa forma, como propõe Schumpeter (1982), o empreendedorismo é um vetor importante para o desenvolvimento econômico, na combinação entre capital e trabalho, associado à noção de inovação. Em Max Weber (2004), por sua vez, o termo é compreendido pela ação do indivíduo, por meio de um sistema de práticas e valores econômicos relacionados à dedicação ao trabalho e ao estímulo para esse.
No Brasil, essa prática, que ganha força na década de 1990 – atrelada à intensificação da reestruturação produtiva e a mudanças na ordem cultural – é apontada com grande representatividade por estudos que evidenciam seu crescimento e expressão, como aponta a pesquisa do IBGE, segundo a qual o número de empreendedores passou de 20,4 milhões em 2001 para 24,9 milhões em 2014, representando um crescimento de 22% (DATASEBRAE, 2016).
Pensando na trajetória do empreendedorismo no país, é importante destacar o surgimento de políticas públicas de incentivo ao mesmo, como no caso do Microempreendedor Individual (MEI) criado em 2008 para estimular a formalização de microempreendedores informais e profissionais autônomos, amenizando algumas exigências da legislação relativas, por exemplo, à contratação de profissionais da área contábil e emissão de documentos fiscais, e permitindo o registro no Cadastro Nacional de Pessoas Jurídicas (CNPJ).
Como aponta o estudo de Oliveira (2013), o público do MEI pode ser dividido entre, de um lado, a formalização de pequenos empreendedores e, de outro, empresas individuais já formalizadas em busca dos benefícios que o programa oferece. O autor apresenta dados do Cadastro do Microempreendedor Individual – extraído do Cadastro Nacional de Empresas (CNE) e a Relação Anual de Informações Sociais (Rais) sobre a proporção de microempreendedores entre 2006 e 2010 – que passa pelo ano de implementação do programa, a partir de 2009 – caracterizando um aumento de 14,9% em 2009 para 60,8% em 2010, e em 2006, apenas 5,9%, mostrando a possível influência do programa no incentivo à formalização.
Além disso, o papel da família no campo do empreendedorismo também deve ser considerado e investigado. Segundo a revisão de Borges et al. (2016), a integração entre família e empresa – assim como as práticas e processos empreendedores nesse tipo de negócio – apresenta diferentes abordagens e temáticas na produção acadêmica, incluindo a sobreposição desses dois campos, na identificação de oportunidades e mobilização de recursos por parte da família. Também fazem parte da análise as características das famílias, suas capacidades de dar continuidade ao empreendimento familiar e temas clássicos do meio empreendedor orientando o estudo no campo das empresas familiares.
Outra tendência mais atual aborda o “empreendedorismo digital”, cada vez mais relevante frente ao avanço tecnológico e ao processo de flexibilização. Segundo Oliveira et al. (2019) esse campo do empreendedorismo interfere não apenas na economia, mas também na sociedade, gerando emprego e promovendo uma espécie de desenvolvimento econômico e social. A questão seria, então, de que maneira esse novo perfil de empreendimento afeta o social. Além disso, termos como uberização3 (ANTUNES, 2020; ABILIO, 2019) revelam que a realidade atual está sob uma nova forma de gestão e uma mudança nas formas de trabalho que demandam maior investigação.
A análise em questão contribui para elucidar, a partir de uma abordagem crítica, os diferentes perfis do empreendedorismo brasileiro e de que maneira eles se relacionam com a ideologia e com o modo de operar próprios do novo capitalismo. Esse modo contribui para o direcionamento das ações dos indivíduos não apenas na comparação entre o antigo e o novo capitalismo, mas na forma como ele se mantém como potência influenciadora nos dias atuais, ainda se transformando e criando novos padrões, o que torna imprescindível a investigação contínua do tema assim como o questionamento dessa lógica subjacente.
Fundamentação Teórica
A nova ordem econômica guiada pela racionalidade do neoliberalismo e pelas mudanças nas formas de trabalho tem sido abordada desde a década de 1990 até anos mais recentes (SENNETT, 2006; BOLTANSKI, CHIAPELLO, 2009; DARDOT; LAVAL, 2016). Inspirado no aporte da Sociologia Econômica (STEINER, 2006), este artigo se propõe a pensar nas transformações associadas ao capitalismo em sua dimensão ideológica, além da relação direta com a sociedade e o modo de vida das pessoas, o que torna insuficiente a ideia de atores atomizados e demanda uma perspectiva pautada nas interações e no papel das instituições (GRANOVETTER, 2007; POLANYI, 2012).
O capitalismo não deve ser encarado como uma abstração, mas sim como um sistema econômico em constante transformação, capaz de modificar ideologias e instituições, expressando diferentes experiências históricas e políticas (BRESSER-PEREIRA, 2011; POLANYI, 2000). Pensando na gestão empresarial e nas formas de trabalho nos diferentes momentos do capitalismo e das ideologias que permeiam cada um deles, é possível identificar a transição de práticas baseadas na estabilidade e na rotina para uma atitude de caráter flexível (SENNETT, 2006). Em meio a essas transformações, não seria possível uma análise da vida econômica separada da vida social. Através do conceito de “economia como processo instituído”, proposto por Polanyi (2012), pode-se compreender que a estrutura dos mercados é resultado de uma construção social e política, no seio da qual se modificam as motivações para o trabalho.
Normatividade neoliberal
Segundo Boltanski e Chiapello (2009), o capitalismo se torna possível por acessar um teor moral, com estruturas normativas, trazendo mudanças nas formas de engajamento e ditando um modo de vida baseado em práticas econômicas de constante disputa. Nesse sentido, a busca pelo controle dos trabalhadores passa a funcionar a partir do autocontrole. Os autores, que elaboraram uma análise desde a década de 1960 – passando pelo movimento de maio de 1968 na França – até a década de 1990, partindo de uma literatura da gestão empresarial, afirmam que:
As questões que se apresentam para os autores dos anos 90 mostram-se diferentes e idênticas, de acordo com o aspecto considerado. São idênticas por retomarem o gancho da crítica à burocracia dos anos 60, levando-a ao extremo: a hierarquia é uma forma de coordenação que deve ser banida por basear-se na dominação; dessa vez não se trata apenas de libertar os executivos, mas todos os assalariados. São diferentes porque se tornam fundamentais alguns motivos novos, como a pressão concorrencial e as exigências dos clientes (BOLTANSKI; CHIAPELLO, 2009, p. 98).
Dessa forma, a política neoliberal deve ser compreendida como uma ideologia, muito além da relação entre Estado e economia, uma prática que não afeta apenas as instituições públicas, mas também as relações sociais e o modo de vida das pessoas. “Capaz de orientar internamente a prática efetiva dos governos, das empresas e, para além deles, de milhões de pessoas que não têm necessariamente consciência disso” (DARDOT; LAVAL, 2016, p. 15).
O conceito de governamentalidade proposto por Foucault (2001) auxilia na elucidação das ferramentas de controle do neoliberalismo que atuam como produtoras das normas da vida social. Entende-se por governamentalidade as diferentes formas de ação por meio das quais os homens – pertencentes ou não ao governo – conduzem as condutas dos outros e de si mesmos, compreendendo o governo, dessa forma, como uma ação, e não como uma instituição, e enfatizando o papel do Estado, o que limita a ideia de não intervenção pressuposta pelo neoliberalismo.
É exatamente esse mecanismo que garante que o neoliberalismo se mantenha ativo, produzindo subjetividades e normatividade no meio social. Segundo Dardot e Laval (2016), o neoliberalismo como forma de racionalidade – que estrutura a ação e a conduta, como uma razão do capitalismo contemporâneo – se caracteriza principalmente pela disseminação do princípio universal da concorrência:
Essa norma impõe a cada um de nós que vivamos num universo de competição generalizada, intima os assalariados e as populações a entrar em luta econômica uns contra os outros, ordena as relações sociais segundo o modelo do mercado, obriga a justificar desigualdades cada vez mais profundas, muda até o indivíduo, que é instado a conceber a si mesmo e a comportar-se como uma empresa (DARDOT; LAVAL, 2016, p. 16).
O comportamento dos governantes e das pessoas de maneira geral está diretamente ligado com a racionalidade neoliberal, que é absorvida de forma similar à noção de cultura, ao passo que tende a seguir práticas e normas inculcadas pelo modo de governar do neoliberalismo. Nesse sentido, é possível compreender o caráter ideológico dessa racionalidade, assim como refletir sobre seu alcance e potência. O fator normativo do termo e de sua abrangência aproxima-se do conceito de habitus, de Bourdieu (2007), quando se compreende o neoliberalismo não apenas como um fator que estrutura as ações, mas que também é estruturado e reforçado por elas, permitindo a emergência e manutenção de determinadas práticas e ideologias. Além disso, a questão da moralidade pode ser pensada a partir das diferentes concepções de mercado (FOURCADE; HEALY, 2007) desde aqueles que estimulam as virtudes dos agentes, assim como os considerados pesadelos das commodities e os mercados fracos que são, na verdade, produtos da cultura e da sociedade.
Transformações no novo espírito do capitalismo
As transições entre os diferentes momentos do capitalismo expressam racionalidades distintas que podem ser observadas nas condutas da sociedade, inclusive na própria gestão empresarial. A principal transformação nessa trajetória é a mudança no campo das ideias e da moral que passou de um momento em que a poupança era uma atitude central para um sistema cujo foco era o tempo. “O tempo constitui o recurso básico para conectar os atores que controlam o acesso ao dinheiro, do que depende o orçamento do projeto” (BOLTANSKI; CHIAPELLO, 2009, p. 190). A lógica baseada na poupança abrangia valores como estabilidade e autocontrole, já no novo capitalismo, do mundo em rede, a noção de estabilidade é desfeita e o tempo é o fator central.
Através da análise de Sennett (2006), é possível trazer para a discussão a importância do fator tempo nos dois momentos em questão. Esse se encontra na ideia de capitalismo social militarizado do modelo burocrático, baseado na estabilidade, previsibilidade e funções fixas. Com as mudanças do final do século XX, instaurou-se a lógica de flexibilidade, visando mais lucro, a resultados com maior rapidez e a ações a curto prazo. No capitalismo flexível, as instituições assumem uma nova arquitetura, com menos burocracia, evitando a autoridade institucional e proporcionando um baixo nível de capital social.
A questão do controle se mantém nos dois modelos, sendo que nessa nova ordem, a coerção externa dos aparelhos organizacionais é deslocada para o interior dos trabalhadores, fazendo com que eles se autocontrolem. Todo o funcionamento da empresa desse novo molde contribui para o autocontrole individual e voluntário (BOLTANSKI; CHIAPELLO, 2009), seja nos projetos, ou na postura do líder de conscientizar e motivar os funcionários.
Ainda sobre as análises de Sennett (1999), o modelo do capitalismo flexível, de mercado global e avanço tecnológico, com novas formas de organizar o tempo e abandono da ideia de longo prazo como no sistema antigo, segue caminho oposto em relação a valores como o compromisso. A postura neoliberal internalizada pelo indivíduo, que passa a atuar como uma empresa, reflete não apenas a maneira como ele é afetado pela nova era econômica, mas também como ele a incorpora, sendo parte de seu funcionamento e agente fundamental para que esse sistema se mantenha.
Dessa forma é possível compreender que a vida social e a economia não são polos dissociados, assim como os efeitos do novo capitalismo e da postura neoliberal não se limitam a afetar apenas o lado econômico do indivíduo, mas toda sua esfera de relações, práticas e ideologias; demandando, portanto, uma investigação mais apurada de como funciona e se mantém esse sistema.
Análise dos Resultados
Dentre os resultados alcançados no primeiro momento de investigação, além da tendência observada na frequência das capas, de pessoas mais jovens e um modo de se vestir mais informal, destaca-se também a mudança identificada no conteúdo das reportagens expostas na referidas capas, que possuíam um tema mais objetivo nas revistas da década de 1990, tratando diretamente de algum empreendimento ou empresa na maior parte das capas, enquanto na década de 2010, elas apresentavam predominantemente reportagens reflexivas e ideológicas, falando de comportamento, sem priorizar a pessoa presente na capa.
Primeiro momento de análise
Considerando as devidas ponderações, os dados coletados e analisados mostram que na década de 1990 apenas duas capas (9%) retratavam pessoas com aparência mais jovem, enquanto na década de 2010, a proporção, apesar de próxima, era oposta, mostrando que 10% representavam o que se aproximava da subcategoria “aparência mais madura”, enquanto a maioria (90%) caracterizavam-se por uma “aparência mais jovial”. Para uma melhor comparação entre a regra e exceção de cada década, destacam-se as seguintes capas:
Figura 1 e 2: Estilo de capa mais e menos frequentes
Figura 1: Década de 1990 Figura 2: Década de 2010
Fonte: Dados coletados na pesquisa.
Comparando os diferentes períodos, além da maior frequência de pessoas jovens nas capas, outra mudança identificada é no conteúdo das reportagens, que possuíam um teor mais objetivo em 1991 e 1992 (figura 1), tratando diretamente de algum empreendimento ou empresa na maior parte das capas, enquanto em 2015 e 2016 (figura 2), elas tratavam mais de comportamento e valores ou de características de algum setor de negócios, sem priorizar a pessoa presente na foto, como é o caso das figuras 1 e 2 que, de um lado apresenta proprietários de uma empresa de cosméticos e de academia, enquanto de outro as ideias das reportagens são mais voltadas para empreendimentos no setor “pet” e o ideal de realização de abrir o próprio negócio. As categorias passam de mais concretas e objetivas do mundo empresarial, para mais ideológicas e comportamentais, contribuindo para o teor normativo das reportagens. Diante desse quadro, por meio da análise das imagens nas capas, é possível notar uma tendência na revista da transição da figura do empreendedor, que vai da concepção clássica do “homem de negócios” para o perfil de “aparência mais jovial”.
Ao observar o tipo de vestimenta característica de cada década, pensando a partir das subcategorias “formal” ou “não formal”, e respeitando a contextualização particular de cada momento, identificando o que seria uma exceção para cada período, notou-se uma tendência a uma aparência mais formal na década de 1990, quando apenas 5 revistas (23%) mostravam o que parecia fugir da regra, como por exemplo um homem usando uma camisa de botão estampada, ou uma simples camiseta. Já na década de 2010, levando em consideração as limitações anteriormente citadas, apenas uma capa destoou das demais pelo uso do que se aproximaria mais da concepção de um terno, sendo adicionado o blazer.
Essa informalidade na maneira de se vestir, observada nos anos mais recentes, junto à tendência de uma amostra mais jovem, permite uma reflexão sobre as mudanças em direção ao modelo de empreender mais flexível. Fatores como a globalização, reestruturação produtiva e inserção das novas tecnologias de informação e comunicação no meio empreendedor viabilizaram transformações que ampliaram o acesso à informação, permitiram outras novas formas de trabalho contextualizadas na própria transformação do capitalismo. As mudanças observadas na revista de uma década para a outra se apresentam em sintonia com as próprias transformações sofridas pela sociedade e a reconfiguração do capitalismo.
Segundo momento de análise
Para compreender melhor a transição entre as décadas, foram selecionados cinco anos para exploração do material: 1990, 1994, 2000, 2005 e 2010. Em cada ano destacado, foram escolhidas duas publicações que, juntas, integraram a análise dos sumários:
Figura 3: Revistas selecionadas para o segundo momento de análise
Fonte: Dados coletados na pesquisa
A figura 3 apresenta as capas selecionadas em cada ano para a análise de conteúdo da reportagem principal – comentada no item 3.2.2 –, já a próxima seção detalhará a análise dos sumários que contempla duas edições por ano.
Análise dos sumários
Para aprofundar a análise, recorreu-se ao estudo das chamadas de reportagens nos sumários das dez revistas dos anos de 1990, 1994, 2000, 2005 e 2010. Foram elaboradas três categorias em função do teor que cada uma dessas reportagens se aproxima, sendo elas: “valores e comportamentos”, “empreendimentos específicos” e “práticas e processos do meio empreendedor”. Chamadas como Ética e honra para conquistar funcionários de 2005 e Segredos de quem ganhou o mundo de 2010, por exemplo, foram reunidas na categoria “valores e comportamentos”. Pelé se torna empresário de 1990 e Crescimento da empresa Fogo de Chão de 2005 foram consideradas como “empreendimentos específicos”. Boom dos importados e aumento de franquias de 1994 e Estratégias de negociação de 2010 foram alocadas em “práticas e processos do meio empreendedor”.
Mesmo sendo uma análise indutiva, ela é capaz de expressar indicadores do perfil da revista, principalmente quando associadas às demais explorações do material, como o caso das capas e as reportagens na íntegra. Nos três níveis de investigação, observou-se resultados semelhantes em função da transição dos tipos de publicações, das mais centradas em empreendimentos ou práticas econômicas específicas para reportagens que abordam valores e comportamentos, como pode ser visto no quadro a seguir:
Quadro 2: Percentual por teor de reportagem nas chamadas de sumário
ANO |
Valores e comportamentos |
Empreendimentos específicos |
Práticas e processos do meio empreendedor |
1990 |
7% |
43% |
50% |
1995 |
4% |
42% |
54% |
2000 |
8% |
40% |
52% |
2005 |
34% |
14% |
52% |
2010 |
32% |
10% |
58% |
Fonte: Dados coletados na pesquisa
Observa-se que, em relação à categoria “práticas e processos do meio empreendedor”, a quantidade de reportagens se manteve equilibrada ao longo das diferentes datas – visto que essa categoria se relaciona diretamente com a proposta da revista, que é a abordar e utilizar as linguagens do universo empreendedor – enquanto entre “ideologias e comportamentos” e “empreendimentos específicos” é possível notar uma tendência de crescimento inversamente proporcional, já que, considerando as variações, o número de reportagens que apresentavam um teor mais ideológico e comportamental foi maior nas datas de 2005 e 2010 do que nas anteriores, enquanto as reportagens centradas em empresas determinadas tenderam a diminuir de frequência.
Análise de conteúdo das reportagens
Para compreender melhor o posicionamento da revista e de que forma ela se comunica com o público, foram elaboradas análises de conteúdo das reportagens de capa, observando o tipo de negócio abordado, a imagem do empreendedor e as intencionalidades e valores identificados, como pode ser visto no quadro a seguir:
Quadro 3: Análise de conteúdo das reportagens de capa
Ano |
Chamada de capa |
Tipo de negócio |
Intencionalidades |
Valores |
1990 |
“Parceria dá dinheiro. Tonio Nishida, fornecedor da IBM” |
Parcerias. Reformulação e surgimento de empresas a partir de parcerias |
Incentivar a prática de parcerias e mostrar a atuação da empresa IBM nesse contexto |
Sobrevalorização da capacidade individual |
1994 |
“As oportunidades do Mercosul. Livre comércio entre Brasil, Argentina, Paraguai e Uruguai avança e abre espaço para os pequenos. Rubens Biscaro, da Laramaq, de Campinas (SP): parceria com empresa argentina” |
Mercado internacional no Mercosul. Parceria com empresas de outros países |
Incentivar ampliação do mercado para países vizinhos e a valorização do momento político brasileiro que estaria proporcionando isso |
Necessidade de adaptação às demandas das novas configurações do mercado, como o mercado internacional |
2000 |
“10 negócios quentes para 2001. Ricardo Cardoso, da Natural Company: receita de R$ 1,9 milhão com sais de banho, velas e aromaterapias” |
10 ideias de negócios para o ano de 2000 |
Estímulo à atividade empreendedora, a abrir seu próprio negócio |
Sobrevalorização da capacidade individual |
“Você sabe mesmo quem é seu cliente? O consumidor mudou (de novo). Veja seu raio-x completo e conheça 8 tendências em ebulição para faturar mais” |
Análise do perfil do consumidor atual |
Traçar o perfil do novo consumidor |
Rompimento com as noções anteriores de classe no consumo e necessidade de adaptação às novas demandas dos consumidores |
|
2010 |
“Os negócios mais quentes da internet. Luis Machado, 32 anos, dono do site Icasei; as noivas pagam de R$ 59 a R$289 para fazer parte do portal que ele criou. A empresa tem 20mil casais ativos e 600 novos cadastros por mês” |
Negócios on-line (empresas na internet) |
Estimular os leitores a empreender no meio on-line e divulgar empresas que prestam serviços específicos |
Reafirmação da característica flexível própria do novo capitalismo, propagando assim a prática neoliberal e necessidade de adaptação a essas mudanças |
Fonte: Dados coletados na pesquisa
A respeito das análises sobre os tipos de negócios abordados nas reportagens, apenas uma reportagem tratou especificamente de uma prática empreendedora e trouxe uma empresa como destaque: a de janeiro de 1990. A reportagem na sequência, de 1994, não tratou especificamente de uma empresa, mas teve o foco em uma única prática, da parceria com países vizinhos, quando tratou das oportunidades do Mercosul. Duas das seguintes reportagens selecionadas (2000 e 2010) trataram de um grupo de ideias de negócios, trazendo o foco para variadas práticas econômicas – e diferentes comportamentos adequados para cada tipo de negócio – em vez de uma única empresa. Uma das reportagens, em novembro de 2005, trouxe uma abordagem com teor subjetivo e analítico, ao apresentar uma investigação sobre o consumidor, orientando como lidar e se adaptar ao seu novo perfil.
Enfatizando a categoria das intencionalidades, o ponto em comum nas reportagens é o incentivo à prática empreendedora, a abrir o próprio negócio, assim como a associação às práticas do meio, como parcerias, presentes na reportagem de 1990 e 1994, ampliação de mercado, na aproximação de países vizinhos, como na publicação de 2000, e a utilização de novas maneiras de empreender, relacionada às novas tecnologias, em 2010. Uma reportagem, de novembro de 2005, formulou esse incentivo por outro caminho, traçando o perfil do consumidor, apresentando quais mudanças foram observadas e como lidar com tais mudanças. É relevante à análise a percepção de que o esforço de definir o perfil do consumidor por parte da revista também é capaz de contribuir para a compreensão do perfil do próprio empreendedor, já que esse é levado não só a compreender o cliente, mas a se adaptar a ele.
No que se refere à análise sobre os valores identificados nas cinco diferentes publicações, nota-se que as reportagens estão divididas apenas em duas vertentes: a sobrevalorização da capacidade individual (como em 1990 e 2000) – em que a revista estimula a ideia de superação, mas não apresenta os meios para que se possa alcançá-la – e a adaptação do empreendimento às novas condições, sejam elas as próprias características específicas do capitalismo flexível e suas novas formas de trabalho (2010) ou o novo perfil de consumo, que gera novas demandas, além de refletir também o novo perfil do empreendedorismo, como visto em 1994 e 2005.
Pensando categorias como “intencionalidades” e “valores”, a abordagem de Dardot e Laval (2016) permite compreender o estímulo às práticas empreendedoras, assim como parcerias e ampliação, e a necessidade de adaptação às novas exigências do meio. São exatamente posturas como essas que permitem a permanência da normatividade apontada pelos autores, da permanência do neoliberalismo não só como modo de pensar as relações econômicas, mas como modo de vida, já que ele interfere na realidade desses indivíduos, não apenas em seus ambientes de trabalho, mas em toda a esfera comportamental, valorizando mais esses comportamentos específicos do que condições de classe ou meramente econômicas.
O perfil do empreendedor se apresenta como facilitador desse processo quando pessoas passam a funcionar como empresas, o que é caracterizado no papel do pequeno empreendedor, que toca seu negócio baseado nessas práticas e a própria vida dentro desses padrões de flexibilidade, individualidade e competitividade, buscando frequentemente lucro, otimização e crescimento. Como afirmam Leite e Melo (2008, p. 42): “felicidade, ascensão financeira e sucesso profissional são temas da moda e certeza de sucesso”; ideias essas reforçadas pelos gurus, a elite de pensadores do meio empreendedor que corroboram a legitimação de tal pensamento e modo de agir. Trata-se de um mecanismo que desloca para o próprio empreendedor a missão de se manter na lógica do capitalismo flexível, assim como a própria revista não apenas esboça um perfil de empresário, mas estimula a manutenção desse mesmo perfil e desse funcionamento em questão.
Em relação às demandas de adaptação ao novo momento vivenciado pelos empreendedores, pode-se destacar duas principais características: as próprias mudanças do capitalismo flexível e o novo ambiente tanto social quanto empresarial que se constrói a partir da inserção das novas tecnologias, mais especificamente o uso das tecnologias nas operações de trabalho e mercado. Essas novas demandas também interferem no desempenho dos jovens empreendedores, que precisam atuar em diferentes funções dentro das empresas (BORGES, FILION; SIMARD, 2008). Esses integram parte importante da reflexão sobre as transformações em questão, já que estão inevitavelmente contextualizados na era da tecnologia e do trabalho flexível em oposição à estrutura anterior, de outra geração de empreendedores e formas de trabalho.
Comparando as duas datas limites entre as décadas, 1990 e 2010, obtém-se o seguinte quadro: em 1990 a reportagem de capa e os sumários estavam voltados para um empreendimento específico. A intencionalidade se enquadrava no tipo clássico da proposta da revista, incentivando a prática empreendedora e os valores abarcavam a ideia de sobrevalorização do indivíduo. Já em 2010, a reportagem de capa trazia um conjunto de diferentes empreendimentos no ambiente da nova era digital, a internet, sendo que nos sumários também se notou menos foco em um empreendimento específico e maior registro, que nos anos anteriores, de chamadas que remetiam a valores e comportamentos. Como intencionalidade, permaneceu a valorização da atitude empreendedora, mas em relação aos valores tratava-se da nova característica flexível própria do capitalismo e da necessidade de adaptação ao mesmo. Ou seja, a própria transformação do capitalismo – que é permeada pelo pensamento neoliberal – pode ser observada nas mudanças das abordagens da revista, retirando a ênfase do indivíduo e em um empreendimento específico para explanar diferentes tipos de negócios e comportamentos pertinentes a eles, trocando a noção que estava atrelada ao indivíduo de superação para adaptação.
Considerações finais
Através desta pesquisa, foi possível contemplar o alcance da ideologia neoliberal na construção do perfil empreendedor através da revista Pequenas Empresas Grandes Negócios como um recorte das próprias características do empreendedorismo brasileiro e dos comportamentos disseminados nesse universo. Junto a isso, considera-se também a apresentação de manuais de posturas consideradas adequadas à atividade empreendedora, que se enquadram nas estratégias promovidas pelo neoliberalismo. Mecanismos como esses explicam não apenas a presença da influência neoliberal, mas sua manutenção e permanência, por meio de adaptações e reformulações, reforçando seu papel nas diferentes décadas analisadas.
Em relação ao primeiro momento de exploração dos materiais empíricos, traçando o perfil que se apresenta nas capas da revista PEGN, destacou-se a transição da imagem formal de empreendedor para jovens com aparência informal e gerindo empreendimentos mais flexíveis. Além disso, não apenas a imagem do empreendedor foi um indicador de mudanças ao longo do período, os tipos de empreendimentos apresentados nas publicações também demonstraram adaptações ao processo de flexibilização, transitando de empreendimentos específicos para aqueles mais voltados a valores e comportamentos.
Essa percepção foi confirmada no estudo das chamadas dos sumários, que integraram o segundo momento de análise – já compreendendo datas entre as duas décadas principais – e contribuíram para melhor compreensão da mudança e adaptação da revista às novas demandas. Relacionando as taxas em cada categoria, notou-se o mesmo movimento de abordagens cada vez menos voltadas para empreendimentos específicos e que buscavam cada vez mais abarcar as tendências comportamentais e de valores pertinentes à transição para o capitalismo flexível. A pouca variação nas taxas referentes à categoria “práticas e processos do meio empreendedor” reforça a proposta da revista, por seu conteúdo e linguagem, mas ao mesmo tempo contribui para verificar a relevância dos dados.
A principal investigação do segundo momento de análise apoia-se na intencionalidade e nos valores identificados nas reportagens da PEGN. Sua relevância se justifica pela aproximação ao objeto de investigação da pesquisa, permitindo uma percepção mais direta do teor normativo das práticas neoliberais e da atuação da revista. Os resultados, além disso, apontaram para a mesma direção das análises anteriores, tanto das capas – primeiro momento – como dos sumários, identificando mais uma vez a transição nos tipos de empreendimentos e abordagens da revista em sintonia com o processo de flexibilização. Ainda sobre esse aspecto, destacam-se nas análises sobre os valores, a sobrevalorização do indivíduo e a necessidade de adequação às novas demandas desse processo, enfatizando a noção de superação e adaptação.
A permanência, adaptação e reafirmação das ideologias neoliberais que circundam as transformações do capitalismo flexível podem ser identificadas nas práticas empreendedoras, no perfil do empreendedorismo, nas reformulações dos tipos de negócio, nos meios pelos quais se empreende e na conduta do dono de empresa, entre outras. É exatamente por esse aspecto que a conduta neoliberal se mantém em diferentes contextos e circunstâncias, incumbindo a ela um importante papel. A revista analisada não é capaz de alcançar toda a realidade brasileira, mas é um indicador de mudanças em curso no país. Isso reforça a necessidade do fortalecimento da agenda de pesquisa sobre o neoliberalismo como ideologia, como cultura, como prática normativa, produtora de subjetividades e do próprio material que a reforça, assumindo-se como uma grande e nova ordem da vida social, tornando imprescindível seu destaque nas análises sociológicas.
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Recebido em: 07/10/2020
Aceito em: 04/02/2021
1 A pesquisa descritiva documental (GIL, 2008) caracteriza-se por descrever determinada população ou fenômeno buscando estabelecer relações entre variáveis, utilizando para isso fontes documentais de primeira mão que ainda não receberam tratamento analítico, tais como: documentos oficiais, reportagens de jornal, cartas, filmes, fotografias, gravações e documentos de um modo geral.
2 Como salienta Barbosa (2011), empreendedores de si mesmos. Deve-se considerar a construção discursiva desses atores sociais e a noção que se trata de um tipo não universal, já que pela ausência de pertencimentos coletivos e proteção estatal, é um perfil não acessível a todos.
3 Termo definido por Ricardo Antunes (2020) como um processo que individualiza e inviabiliza as relações, com a aparência de prestação de serviços, e que reforça a precarização do trabalho.
AS POLÍTICAS PÚBLICAS DE JUVENTUDE
NO BRASIL PÓS-GOLPE DE 2016:
o cenário de ataque aos direitos sociais
PUBLIC POLICIES FOR YOUTH
IN BRAZIL AFTER THE 2016 COUP:
the scenario of attack on social rights
____________________________________
Tarcisio Augusto Alves Silva1*
Resumo
O interesse deste trabalho é apresentar o que tem ocorrido com as políticas públicas de juventude após o impeachment da presidenta eleita Dilma Rousseff com o golpe de 2016. Para atingir esse objetivo, realizamos uma pesquisa documental a partir da leitura das políticas desenvolvidas para esse público durante os treze anos de governo do Partido dos Trabalhadores. Do mesmo modo, efetuamos uma análise das páginas oficiais e de documentos publicados nos governos Temer e Bolsonaro para entender quais medidas foram destinadas com a finalidade de atender às demandas da população jovem do País. Os resultados do estudo demonstram uma mudança na rota pela qual eram conduzidas essas políticas, sobretudo considerando o cenário de ataques aos direitos sociais pelas políticas de austeridade desenvolvidas no Brasil com governos neoliberais de direita e de extrema direita. Nesse sentido, sinalizamos os frutos de ações estruturadoras que permitiram que a participação social fosse a grande marca das políticas de juventude brasileira anteriores.
Palavras-chave: Juventudes. Políticas públicas. Golpe. Brasil.
Abstract
The interest of this work is to present what has been happening with public youth policies after the impeachment of President-elect Dilma Rousseff with the 2016 coup. To achieve this goal, we conducted a documental research based on the reading of policies developed for this public during the 13 years of Workers’ Party government. Likewise, we carried out an analysis of the official pages and documents published by the Temer and Bolsonaro governments to understand what measures were intended to meet the demands of the country’s young population. The results of the study demonstrate a change in the route by which these policies were conducted, especially considering the scenario of attacks on social rights by the austerity policies developed in Brazil by right and extreme right neoliberal governments. In this sense, we highlight the structuring actions that allowed social participation to be the hallmark of previous Brazilian youth policies.
Keywords: Youth. Public policies. Coup. Brazil.
Introdução
É do nosso interesse, com este texto, apresentar como se comportaram as políticas públicas de juventude depois do golpe jurídico, parlamentar e midiático ocorrido no Brasil em 2016, ocasionando o impeachment da presidenta eleita Dilma Rousseff. A ideia de golpe tem sido utilizada amplamente, por vários autores (PRONER et al., 2016), para designar a ruptura
1* Doutor em Sociologia pela Universidade Federal de Pernambuco. Professor Associado do Departamento de Ciências Sociais da Universidade Federal Rural de Pernambuco. Líder do grupo de pesquisa: Núcleo de Estudos Educação, Sociedade e Meio Ambiente. E-mail: tarcisio.asilva@ufrpe.br
ISSN 1517-5901 (online)
POLÍTICA & TRABALHO
Revista de Ciências Sociais, nº 54, Janeiro/Junho de 2021, p. 150-167
democrática ocorrida naquele ano, embora Araújo e Pereira (2018) prefiram empregar o termo neogolpismo por considerarem a reincidência do fato na história da América Latina. A expressão “golpe jurídico, parlamentar e midiático” compreende o papel articulado entre os poderes judiciário e parlamentar junto aos meios de comunicação do País em torno de uma narrativa anticorrupção contra um governo popular, democraticamente eleito, e teve como culminância a prisão do ex-presidente Luiz Inácio da Silva, em abril de 2018.
Como se sabe, o impeachment da presidenta Dilma Rousseff foi um doloroso golpe contra a democracia, pois, considerando os argumentos utilizados (crimes de responsabilidade por pedaladas fiscais e por créditos suplementares sem autorização legislativa) estarem atrelados aos aspectos legais da gestão pública, seu pano de fundo era notadamente político. Isso ficou muito claro antes, durante e depois do processo de cassação do mandato, já que, dois dias após a votação que aprovou a perda do cargo da presidenta, o senado votou a favor da flexibilização de créditos suplementares sem que haja a necessidade de autorização do congresso.
Encerra-se, pois, com a cassação do mandato, todo um período de inclusão e de políticas sociais voltadas ao combate da miséria, assim como a atenção dada a determinados segmentos sociais, anteriormente pouco assistidos por outros governos, como era o caso dos agricultores familiares, quilombolas, comunidade LGBTQIAP+ e jovens.
O impeachment de Dilma e a passagem do governo Temer para o Bolsonaro caracterizaram-se por um processo de radicalização das ofensivas da ultradireita, orientado pela cartilha do neoliberalismo e das posições conservadoras em relação aos costumes. O resultado disso colocou o Brasil, em 2019, na lista dos dez piores países do mundo para os trabalhadores, segundo relatório do International Trade Union Confederation (ITUC). Entre os elementos apresentados pelo documento, estão listados: a violência, o assassinato e a adoção de leis regressivas que minaram severamente os direitos de negociação coletiva (ITUC, 2019).
Verifica-se, desse modo, que os efeitos do golpe de 2016 alcançam com muita força o conjunto da população de menor poder aquisitivo, empurrando-o para o abismo da desigualdade e exclusão social, como é o caso de parte dos jovens brasileiros. A população jovem do Brasil, estimada em mais de 51 milhões, em 2010, pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), apresenta uma série de problemas associados à sua condição juvenil (formação escolar, escolha profissional, ingresso no mundo do trabalho, necessidade de dependência financeira, maturidade psicológica e emocional) que demandam, para a maioria daqueles que compõem esse estrato populacional, a ação direta do Estado (ofertando escolas, hospitais, cultura e trabalho) para acessar as condições que permitirão vivenciar esse ciclo da vida de maneira minimamente segura.
No caso específico da transição entre a escola e o mercado de trabalho, o insucesso “pode dificultar que os jovens atinjam outros objetivos tradicionais da fase adulta, influenciando seu grau de satisfação com a vida, confiança em outras pessoas e até interesse na política” (IBGE, 2019, p. 41).
Não muito diferente do cenário apresentado anteriormente, a situação dos jovens se coloca como a mais vulnerável em relação às oscilações presentes no mundo do trabalho. Entre os jovens, de 14 a 29 anos, no ano de 2018, as taxas de desocupação e subutilização aumentaram, enquanto os rendimentos do trabalho principal decaíram (IBGE, 2019).
Compreender as consequências das mudanças nos rumos das políticas públicas, após 2016, para as juventudes é o principal objetivo deste texto. Os dados que subsidiaram a investigação, de teor documental, foram resultantes da leitura de documentos de políticas (ações, projetos e programas) desenvolvidas para esse público nos 13 anos de governo do Partido dos Trabalhadores. Isso foi efetuado acessando páginas oficiais e de documentos publicados nos governos Temer e Bolsonaro, sistematizando as medidas destinadas a atender às demandas da população jovem do País.
As juventudes nos contextos das políticas públicas brasileiras dos anos de 1990
A participação do Estado para resolução dos problemas econômicos e sociais é, na maioria das vezes, o canal fundamental para promoção do bem-estar da população e tem nas políticas públicas seu instrumental para se fazer chegar, principalmente, aos mais pobres. Para Höfling (2001) as políticas públicas envolvem programas e ações, destinadas a setores específicos da sociedade, e com os quais o Estado implanta um projeto de governo.
Andrade e Pinto (2020, p. 309) chamam atenção ao mostrarem que a criação de políticas públicas envolve o estabelecimento de uma estrutura que permita a compreensão de seu contexto, além de uma análise capaz de reunir “informações suficientes sobre a necessidade e o objetivo da política”. Para Rua (2014, p. 17) “a política pública geralmente envolve mais do que uma decisão e requer diversas ações estrategicamente selecionadas para implementar as decisões tomadas”.
Segundo a autora, a formulação de políticas públicas resulta “sempre em decisões políticas” (RUA, 2014, p. 18). Considerando essa perspectiva, a construção de políticas públicas de juventude recorta um momento recente da história brasileira, embora as ações de caráter universalistas tenham contemplado os jovens por força da Constituição Federal no que diz respeito à educação e à saúde. Fora desse escopo, eles dificilmente são mencionados como sujeitos de direitos antes dos anos 2000.
Ainda que a Constituição Federal de 1988 represente um avanço do ponto de vista da cidadania, a atenção às juventudes continuou sendo descuidada de modo que a palavra jovem se ausentava de sua redação. Em que pese a presença de um número razoável de congressistas progressistas que consagraram direitos de cidadania numa perspectiva universalista, na constituinte, um olhar social no qual a representação sobre as juventudes era construída por meio da avaliação do desvio de conduta, oriunda das diversas imagens e discursos elaborados em torno desse ciclo da vida (questionamento de valores, rebeldia, inexperiência, gravidez precoce, etc.), poder ter influenciado sobre essa ausência.
Posteriormente à promulgação da Constituição Federal, a lei que contemplou a proteção dos jovens em seu artigo 2o, parágrafo único, foi o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA). No entanto, a limitação da proteção, delimitada primeiramente até os dezoito anos e, em caso excepcionais, até os 21 anos, reduzia a compreensão etária de juventude em oito anos, em comparação ao que se tem praticado atualmente.
Com efeito, até meados dos anos 1990, um bom número de programas e serviços oferecidos para atender os jovens, seja pelo Estado ou por entidades da sociedade civil, tomava como limite máximo a idade de dezoito anos para inclusão das juventudes (ABRAMO, 2005).
O espaço de preocupação de políticas públicas para os jovens deriva de uma arena onde estão situadas diversas abordagens de juventude, segundo discute Abramo (2014), fazendo referência aos estudos de Krauskopf (2003), que identifica quatro tipos: 1) juventude como etapa de preparação, transição entre a infância e a idade adulta; 2) juventude como etapa problemática; 3) juventude como atores estratégicos para o desenvolvimento; 4) juventude cidadã como sujeito de direito.
Na primeira, verifica-se uma verticalização das ações voltada para a passivação do jovem visando a sua preparação para a vida adulta, tendo como referência o educador. Na segunda, há uma compreensão da juventude associada ao risco social em virtude das vulnerabilidades a que está exposta (violência, mortalidade, “nem estudam nem trabalham”, gravidez, drogas), o que demandaria políticas de intervenção e compensação. A terceira abordagem defende que “o investimento nos jovens — como capital humano e capital social — é fundamental para o desenvolvimento do País” (BRASIL, 2014, p. 53). Finalmente, a quarta abordagem “reconhece a singularidade desta etapa da vida, as especificidades e necessidades dos jovens, assim como sua capacidade de contribuição e participação” (BRASIL, 2014, p. 53).
Utilizando esse arcabouço, é possível perceber, a depender do enfoque, se os jovens serão vistos como protagonistas ou apenas como sujeitos passivos, além de inferir problemas sobre os quais essas políticas deverão atuar. Sposito e Carrano (2003) analisaram o período entre os anos de 1995 e 2002 e identificaram parte dessas perspectivas orientando as ações do governo federal. Na pesquisa realizada pelos autores, as ações de programas e projetos para juventude foram caracterizadas pela:
[...] grande fragmentação setorial e pouca consistência conceitual e programática. [...] não constituem uma totalidade orgânica naquilo que se refere à sua focalização no segmento jovem. [...] heterogeneidade de parâmetros sobre a dimensão etária da juventude (SPOSITO; CARRANO, 2003, p. 23).
Além disso, os pesquisadores identificaram a ausência de “canais democráticos que assegurem espaços de debates e participação para a formulação, o acompanhamento e a avaliação dessas ações” (SPOSITO; CARRANO, 2003, p. 32).
Outro aspecto que chama atenção no período estudado é o delineamento das políticas voltadas especialmente aos jovens urbanos e a ausência de ações voltadas a juventudes do campo. Ao final do governo de Fernando Henrique Cardoso (FHC), em 2002, havia 33 programas direcionados para a juventude, no entanto a política para esse segmento social se caracterizou pela desarticulação entre os entes governamentais e uma estratégia de terceirização de ações utilizando Organizações Não Governamentais (ONGs).
Por outro lado, avanços foram identificados, em meados dos anos de 1990, nos municípios e estados, com “[...] a criação de fóruns ou conselhos de juventude, tanto no nível estadual como no municipal, e a implantação de conselhos gestores de centros de juventude” (SPOSITO; CARRANO, 2003, p. 37). Esse processo de participação, via conferências, conselhos, audiências públicas, ouvidorias, entre outras, é fruto da promulgação da Constituição Federal de 1988 e foi fomentado no governo FHC, mas amplamente realizado nos governos do Partido do Trabalhadores, a exemplo do Decreto n.º 8.243, de maio de 2014, que instituiu a Política Nacional de Participação Social.
Embora largamente questionadas, as estratégias de controle social, por meio dos conselhos e conferências, se mostraram como um dos caminhos mais efetivos à participação social no Brasil democrático, mesmo observadas suas fragilidades pela submissão aos poderes locais e assimetrias em relação ao capital cultural e posição dos seus membros. Apesar disso, foi através de mecanismos como esses que boa parte das políticas de juventude se consolidou no período de 2003 a 2016, ao permitirem a consulta, sobretudo por meio das Conferências Infantojuvenis pelo Meio Ambiente e Conferências Nacionais de Juventude, para subsidiar a construção e dar respaldo à constituição de tais políticas. Para Avritzer (2013, p. 136), há evidências “no mínimo parciais de que existe um esforço de implementação das decisões tomadas nas conferências nacionais”.
A década da inclusão e o lugar das juventudes nas políticas públicas
A construção de políticas públicas para os jovens brasileiros encontra um terreno fértil para seu desenvolvimento a partir de 2003. Com esse novo momento, constata-se uma decisão política nítida, por parte do governo federal, com o objetivo de estabelecer parâmetros e estratégias voltadas ao atendimento das demandas juvenis ancoradas na representatividade política, nos debates no parlamento, na sociedade civil e nos movimentos juvenis espalhados pelo País.
No início do primeiro governo do presidente Lula, umas das ações iniciais de caráter mobilizatório para as políticas de juventude foi a criação de Coletivos Jovens de Meio Ambiente e de fóruns e o estímulo à participação de movimentos juvenis, ligados à temática ambiental, para a realização da I Conferência Nacional Infantojuvenil pelo Meio Ambiente. A experiência de participação dos jovens nesses espaços foi uma das grandes marcas da construção das políticas públicas no período de 2003 a 2016.
Nesse sentido, o governo instalado em janeiro de 2003 “não encontra um terreno árido; ao contrário, há um ‘contexto social e político’ propício à criação de programas e políticas em relação aos jovens” (TELES; FREITAS, 2008, p. 195), tanto no âmbito do parlamento quanto no contexto internacional, pois o avanço sobre o tema havia se espraiado em vários momentos. Em conferências internacionais e na sociedade civil, ocorreram as crescentes iniciativas de participação dos jovens em forma de coletivos.
Apesar de um atraso de décadas em relação a vários países da América Latina, como Costa Rica, México e Venezuela (RODRIGUES, 2016) que, desde os anos de 1980, haviam instituído, no âmbito do poder executivo nacional, organismos voltados ao trabalho com as juventudes, o Brasil se tornou, a partir de 2005, uma referência latino-americana no tema pelos diversos programas e ações, mantidos em 19 ministérios e 4 secretarias1.
Com isso, combinando ações estruturais de efeitos duradouros e a criação de programas e ações emergenciais que produziam resultados imediatos, os governos do Partido dos Trabalhadores estabeleceram importantes inovações para a consolidação de políticas de juventude no Brasil.
Entre as ações estruturais, destacaram-se aquelas com status de lei, permitindo maior estabilidade à norma, a exemplo da criação e elaboração do Plano Nacional de Juventude pela Lei n.º ٤.٥٣٠, de 2004, ainda em tramitação no Congresso, e da institucionalização do Conselho Nacional da Juventude (Conjuve) e da Secretaria Nacional de Juventude (SNJ) pela Lei n.º 11.129, de 2005.
Como etapa importante do desdobramento dessas ações, a aprovação da Emenda Constitucional n.º 65, em julho de 2010, permitiu que os jovens fossem incluídos na Constituição Federal, pois, até então, apenas as crianças, os adolescentes e os idosos eram mencionados na Carta. Além disso, foi aprovado também o Estatuto da Juventude, instituído pela Lei n.º 12.852, de 2013, que dispõe sobre os direitos dos jovens, os princípios e as diretrizes das políticas públicas de juventude, indicando a criação do Sistema Nacional de Juventude (Sinajuve).
Todo esse arcabouço foi necessário para tornar as políticas de juventude uma política de Estado, e não de governo, garantindo assim seu caráter duradouro, embora as tentativas de ataque às institucionalidades tenham ocorrido, como se verificou nos governos seguintes.
No que concerne aos programas e ações emergenciais, destacam-se: Programa Nacional de Inclusão de Jovens (Projovem), Consórcio Social da Juventude, Juventude Cidadã, Agente Jovem, Escola de Fábrica, Saberes da Terra, gestados por diferentes ministérios e caracterizados por ações focais voltadas à aceleração da aprendizagem, à transferência de renda e à qualificação profissional.
Os frutos desse processo puderam ser avaliados no documento Bases para la construcción de un índice de desarrollo de políticas sectoriales de juventud en América Latina, indicando a posição ocupada pelo Brasil de número “1 no IPJ (Índice de Políticas de Juventude) ponderado, com bons indicadores de participação, níveis intermediários em educação, emprego e saúde e uma situação preocupante no campo de violência” (RODRIGUES, 2016, p. 138). O dado da violência se mantém como um elemento bastante preocupante, a ponto de, em 2017, um ano após o golpe de 2016, o número de homicídios aumentar 4,2% em relação ao ano anterior, conforme indicou a pesquisa Atlas da Violência 2019.
Para Dulci e Macedo (2019, p. 125-126), nos governos Lula e Dilma, existiram duas fases importantes para políticas de juventude. “A primeira delas, de 2005 a 2010, foi marcada por políticas de inclusão social e [...] a segunda fase (2011 a 2016) foi marcada pela ampliação da pauta e do leque de ações da Secretaria Nacional de Juventude”.
Como um dos principais desafios, as garantias institucionais e constitucionais produzidas nos governos petistas, após o golpe de 2016, podemos elencar: a manutenção de uma mobilização permanente da sociedade civil, frente às reformulações e mudanças de perspectivas realizadas sobre as políticas públicas para os jovens. Esse desafio é presente, pois “as estruturas e políticas que ainda sobrevivem estão submetidas a uma reorientação da agenda política e social, que vai na contramão do que a população escolheu nos últimos quatro pleitos eleitorais” (DULCI; MACEDO, 2019, p. 136).
Ao final do primeiro mandato de Dilma Rousseff, grandes manifestações ocorrem pegando carona em mobilizações estudantis contra o aumento das passagens de ônibus. Naquele momento, diferentes referências políticas tomaram as ruas, permitindo tanto movimentos de pautas em defesa dos direitos do cidadão, no que diz respeito à mobilidade urbana e a aspectos emancipatórios, como o Movimento do Passe Livre (MPL), quanto a visibilidade de “alguns grupos de jovens médicos se opondo a uma política pública (Mais Médicos) a favor de populações carentes” (SCHERER-WARREN, 2014, p. 419).
Assim, mesmo sendo eleita presidenta para um segundo mandato, o contexto político acenava para a ascensão de um ambiente hostil (avanço da extrema direita e neoliberalismo) para políticas públicas que buscassem atender a setores menos favorecidos na sociedade brasileira.
A respeito disso, demonstraremos, a seguir, como ao final do quarto governo do Partido dos Trabalhadores, um ciclo de políticas públicas para a juventude brasileira foi sendo desestabilizado por ataques a duas de suas principais institucionalidades: a SNJ e o Conjuve.
As políticas de juventude no pós-golpe de 2016: a via crucis da Secretaria Nacional de Juventude e do Conselho Nacional de Juventude
Com a crise econômica e política vivenciada no Brasil nos últimos anos, a população pobre, a classe trabalhadora e os grupos minoritários viram muitas das conquistas alcançadas na primeira década, após 2003, serem destruídas em nome do equilíbrio das contas públicas. Para além dos discursos contra a corrupção, tomados como estratagema de uma nova política a ser estabelecida no País, avançou, no campo político e jurídico e no cotidiano dos brasileiros, uma forte onda conservadora, privatista e altamente orientada à destruição de direitos sociais e trabalhistas.
Esse cenário afetou de maneira especial os espaços institucionais das políticas públicas para os jovens no País, em primeiro lugar a partir de uma via crucis na qual a Secretaria Nacional de Juventude foi colocada. Já no governo da presidenta Dilma, o futuro da SNJ ficou em suspensão quando deixou de integrar a pasta da Secretaria Geral da Presidência da República. Contudo, por meio da Lei n.º ١٣.٢٦٦, de ٥ de abril de ٢٠١٦, a SNJ passou a integrar o Ministério das Mulheres, da Igualdade Racial, da Juventude e dos Direitos Humanos, provocando “uma série de manifestações por parte de ONGs, pastorais, partidos políticos” (CAETANO; AZEVEDO, 2017, p. 13).
No governo Temer, a SNJ, pelo Projeto de Lei de Conversão n.º 20, de 2016, foi transferida para a Secretaria de Governo da Presidência da República. Já em 2019, com o governo Bolsonaro, uma outra mudança ocorreu, e com o Decreto n.º ٩.٦٧٣, de ٢ de janeiro de 2019, a SNJ foi transferida da Secretaria de Governo da Presidência da República para o Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos, considerado uma das pastas ponta de lança do conservadorismo do governo.
Essa situação forjou um cenário de dúvidas, provocando a instabilidade e a descontinuidade das políticas públicas para juventude, sentidas com a instalação do governo Temer e a extinção, por exemplo, do Programa Nacional de Combate ao Analfabetismo em um momento em que o Brasil havia reduzido seu percentual de analfabetos, sobretudo entre os mais jovens (IBGE, 2019), embora ainda apresentasse um índice elevado de analfabetismo.
A imagem impressa pelos representantes da SNJ no governo Temer foi um dos primeiros impactos sobre a gestão do órgão. A declaração do secretário Bruno Júlio a respeito do massacre carcerário de Manaus, ocorrido em janeiro de 2017, afirmando: “Tinha que matar mais. Tinha que fazer uma chacina por semana”,2 impactou por seu teor e pelo fato de o tema ser bastante caro às políticas de juventude, considerando que no Brasil mais da metade dos presos provisórios é de jovens de 18 a 29 anos (SANTOS, 2017). Na ocasião, após a repercussão nos meios de comunicação e a pressão social, o secretário pediu exoneração do cargo.
Após a exoneração, o novo secretário, Assis Filho, foi denunciado pelo Ministério Público do Estado do Maranhão por enriquecimento ilícito e violação de princípios administrativos. Independentemente da denúncia, concluiu sua gestão até a mudança de governo, em 2019.
Foi durante o governo Temer que no Conjuve se registrou “uma saída coletiva de mais de 20 organizações participantes, por não concordarem com o estreitamento do processo de participação e com a perda de autonomia” (RIBEIRO; MACEDO, 2018, p. 114-115) impostos no processo de eleição da sociedade civil em 2017. Esse fato evidenciou, dessa forma, como as políticas para os jovens seriam conduzidas a partir de então.
Em se tratando de ações para limitar a participação popular, no primeiro ano de governo do presidente Jair Bolsonaro foi publicado o Decreto n.º 9.759/2019, extinguindo os órgãos colegiados instituídos na esfera pública. Listava entre esses conselhos o Conjuve, todavia uma liminar conferida pelo Supremo Tribunal Federal (STF), em resposta à ação movida pelo Partido dos Trabalhadores, assegurou a todos os conselhos e coordenações colegiadas, citadas em leis, a continuidade de seu funcionamento.
Esse fato demonstra como os esforços despendidos para a construção de uma política de juventude no âmbito do Estado, nas primeiras décadas dos anos 2000, reverteram-se em efeitos positivos, impedindo que diferentes governos promovessem sua desestruturação. Já sobre o conteúdo dessas políticas, o mesmo não poderá ser dito, tendo em vista que ele corresponde às perspectivas do projeto societário defendido por cada novo governo.
Desse modo, entendendo que os governos se utilizam dos mecanismos do Estado para viabilizar seus projetos, o caráter e a extensão das políticas públicas são direcionados buscando atender aos interesses representados nesses governos. Assim, amparado em um contexto favorável às medidas de austeridade, com o impeachment ocorrido em 2016, o governo de Michel Temer realizou cortes no financiamento de políticas públicas e favoreceu todo um contexto de desmonte de direitos sociais.
O governo Temer (2016–2018) e as políticas de juventude
Um cenário de formação e opções de trabalho precários se desdobra a partir de um conjunto de leis aprovadas no período de 2016 a 2018, impondo impactos negativos sobre a vida de uma grande parcela dos jovens brasileiros.
A aprovação da Reforma do Ensino Médio, em fevereiro de 2017, é um exemplo de como alterações em direitos sociais garantidos constitucionalmente, como a educação, traz consequências para políticas públicas de grande alcance, além de ser uma prova cabal da articulação mais evidente das forças do mercado na configuração dessas políticas. A velocidade com a qual foi votada a reforma é um dos aspectos a ser considerado na influência e interesses das forças do mercado sobre esse nicho de investimento público. Isso porque, mesmo com as ocupações de escolas por todo o País, as entidades e representações de estudantes não foram ouvidas. Insensível a isso, o governo federal encomendou campanhas de marketing para convencer a população de que a proposta era o melhor para a juventude. Esse fato, e outros anteriormente citados, expressa claramente uma característica desse novo ciclo de políticas públicas e fortes implicações sobre o futuro da formação dos jovens.
A Reforma do Ensino Médio é produto imediato do esvaziamento do Conselho Nacional de Educação, quando o governo nomeou uma maioria de conselheiros que representavam os interesses privados do setor. Por meio dela, resgata-se um antigo paradigma de educação que produz um tipo de escola para os filhos da classe trabalhadora (preparação de mão de obra) e outra escola para formação de lideranças e governantes, destinada à elite. Isso se explica pelo caráter de educação essencialmente técnica com a retirada da obrigatoriedade de disciplinas como Sociologia, Filosofia, Artes e Educação Física do currículo escolar.
Ao desconsiderar a ampliação da jornada escolar de 800 para 1.400 horas anuais que promoverá o estabelecimento de escolas de tempo integral em todo o País e a situação dos jovens de 15-17 anos que trabalham e estudam, a reforma impõe sua dimensão de exclusão e promove, assim, uma restrição de oportunidade para a grande parcela de estudantes que acessam o ensino público.
Além disso, a flexibilização curricular, via itinerário formativo, é um aspecto que conduz a uma precarização da formação dos jovens. Nela, é pouco provável que as escolas consigam ofertar todos os itinerários, ficando a suposta “escolha” restrita àquilo que os estados da federação poderão oferecer.
A reforma atinge de maneira ampla a formação dos estudantes, em boa parte das escolas públicas, com prolongamento do tempo escolar, mas associado à precarização da estrutura curricular. A proposição de uma formação trôpega se completa com as mudanças nas regras de acesso ao mundo do trabalho, com a Reforma Trabalhista, que permite a flexibilização e retirada de direitos. Esse cenário remete ao que Castel (1998) caracterizou como a nova questão social, pois se traduz, entre outros elementos, pela desestabilização dos estáveis (direitos da classe trabalhadora e assalariados da classe média ameaçados) e pela instalação da precariedade (trajetórias erráticas feitas de alternância de emprego formal, trabalho precário e não emprego).
Ocorre que o governo Temer lançou um golpe aos direitos sociais amplos e de longo alcance e, ao mesmo tempo, conservou ações de curto lastro em relação às políticas públicas de juventude. Em março de 2018, o então governo interino publicou um pacote de ações contemplados em 13 ministérios para projetos relacionados aos jovens, designado de programa Brasil Mais Jovem. Na ocasião, também foi instituído o Sinajuve pelo Decreto n.º 9.306/2018. Contudo, a criação do sistema é produto de uma obrigação legal imposta pelo Estatuto da Juventude, em vigor desde 2013.
Na verdade, o Brasil Mais Jovem surge em 2017 com o levantamento realizado pelo Comitê Interministerial da Política de Juventude (Coijuv), permitindo a identificação de 39 ações distribuídas em treze ministérios. Já em 2018, ele foi ampliado com mais doze propostas, incluindo o Sinajuve.
Pelo conjunto de ações, foi possível classificar os investimentos em políticas de juventude em várias modalidades. O primeiro foi de levantamento de dados; nesse item, cabem: o Diagnóstico sobre a Juventude LGBTIAP+, o Diagnóstico sobre a Juventude Rural, o Atlas da Juventude, a Campanha Conselhos em Rede e o Juventude Segura. Essas ações seriam justificadas pela necessidade de compreender as várias juventudes e subsidiar ações para atender aos segmentos em questão. Os resultados dos diagnósticos sobre a juventude LGBTIAP+ e rural estão disponibilizados na internet, porém pode ser bastante questionável do ponto de vista dos seus resultados se for analisada a metodologia aplicada e pouco explicitada no documento. Já o Atlas da Juventude vem sendo desenvolvido pelo Centro de Estudos Sociais da FGV-RJ sem, no entanto, ser possível acessar seus resultados até o momento. O mesmo acontece com a Campanha Conselhos em Rede, estando acessível o formulário de pesquisa, mas não seu relatório de resultados.
Sobre o Juventude Segura, é possível a identificação de dados sobre os encontros realizados para sua construção, a plataforma utilizada para colher os dados e o registro das atividades estão acessíveis. Todavia, não se encontram as ações e os resultados específicos decorrentes do conhecimento produzido por essa iniciativa.
O segundo foco de investimentos foram as ações desenvolvidas em projetos voltados para inovação (Inova Jovem) e empreendedorismo (Plano Nacional de Empreendedorismo e Startup para a Juventude) enfatizados mais por seus teores educativos do que mesmo por atividades práticas de inovação e empreendedorismo. Em relação ao Plano Nacional de Empreendedorismo e Startup para a Juventude, seu documento coloca-se tanto no plano do diagnóstico quanto na proposição do que se fazer. Contudo, não apresenta valores de investimento necessários à sua aplicação e tampouco situa e caracteriza os sujeitos jovens dessa ação.
O terceiro foco das políticas no governo Temer investiu em esportes — Programa Forças no Esporte (Profesp)3 — e deu continuidade a algumas ações do governo anterior, como: as Estações Juventude, agora acrescidas da identificação 2.0, o ID Jovem, e o Inova Jovem, destinado à população negra, ligado ao Plano Juventude Viva, com o objetivo de prevenir a vulnerabilidade dos jovens negros a situações de violência. Além deles, houve continuidade ainda do Programa Nacional de Acesso ao Ensino Técnico e Emprego (Pronatec) com reestruturação de critérios de acesso e funcionamento.
Sobressai no quarto foco de ações a iniciativa de atualização do Plano Nacional de Juventude (PNJ), realizada por meio de consultoria e documento final entregue ao então presidente da Câmara de Deputados, Rodrigo Maia, em março de 2018. No entanto, faz-se necessário ressaltar que a formulação do documento requeria uma ampla participação dos diferentes setores do campo juvenil, e não apenas com os “alinhados” ao governo federal, para que assim se pudesse efetuar sua atualização.
O quinto foco diz respeito à articulação institucional entre governo federal, estados e municípios. Foram promovidos encontros do Fórum Nacional de Gestores Estaduais e Secretários de Juventude (Forjuve) e Fórum Nacional de Gestores Municipais de Juventude (Fomjuve) e ocorreu a criação do Comitê Partidário de Articulação Política de Juventude (CPAPJ) e do Coijuv.
No sexto ponto das políticas desenvolvidas, encontra-se a disponibilização e acesso à informação. Para isso, foram elaboradas ferramentas semelhantes ao Observatório Participativo da Juventude (Participatório), da gestão do governo Dilma. Nesse sentido, a Biblioteca Digital de Juventude (BDJuv), a Revista Juventude e Políticas Públicas, o Arquivo da Secretaria Nacional de Juventude, a Plataforma de Dados Abertos da Juventude foram ações direcionadas ao acesso aberto a informações. No entanto, no momento de realização da presente pesquisa, apenas funcionava, mas de maneira precária, a Biblioteca Digital de Juventude (BDJuv).
Assim, em relação às políticas de juventude, o governo Temer, na contraofensiva aos direitos sociais, definiu-se pela retirada de direitos expressa nas reformas propostas, criando um cenário favorável aos grandes grupos educacionais na ponta de formação dos jovens com a Reforma do Ensino Médio e relações de trabalho precárias com a aprovação da Reforma Trabalhista. Além disso, as demais ações voltadas à população jovem caracterizaram-se por atividades de curto alcance, como: levantamento de dados, projetos de inovação e empreendedorismo, ações esportivas, continuidade de algumas ações do governo anterior, atualização de documentos, articulação institucional, disponibilização e acesso à informação.
Como vimos, o governo Temer se caracterizou pelo intenso e progressivo ataque aos direitos sociais, além da manutenção de ações de baixo alcance em relação às políticas públicas de juventude. Com as eleições de 2018 e a ascensão da ultradireita ao poder, representada pela posse de Jair Bolsonaro à presidência do Brasil e de vários representantes dessa ala política nas casas legislativas e senado, tivemos a continuidade desses ataques, além da inclusão da pauta dos costumes e o esvaziamento do caráter humanitário na orientação das políticas públicas brasileiras.
O primeiro ano do governo Bolsonaro (2019) e as políticas de juventude
O resgate de declarações de Bolsonaro a respeito dos jovens, antes e durante o seu mandato como presidente do Brasil, nos permite compreender o lugar das políticas de juventude em seu governo: “Ninguém quer saber de jovem com senso crítico” (REZENDE, 2018), fazendo referência ao seu projeto de criar escolas militares; “Há uma certa tara por parte da garotada em ter um diploma. [...] Mas se você no Ensino Médio colocar algo técnico, você melhora nossa economia”; “Nós queremos uma garotada que comece a não se interessar por política”, comentando sobre o projeto Escola Sem Partido; “São uns idiotas úteis e uns imbecis que estão sendo usados como massa de manobra”, referindo-se aos manifestantes que participaram dos protestos contra os cortes na educação.
As declarações do presidente não são apenas figuras de retórica e, por isso, requerem uma preocupação por parte dos formuladores de políticas públicas e dos grupos e representações juvenis. Para se ter uma ideia de como as juventudes aparecem como dimensão desimportante em seu programa de governo, a plataforma Juventudes Contra Violência (http://juventudescontraviolencia.org.br/) elaborou um ranking, a partir da análise de cada candidato, verificando não apenas os conteúdos dos programas atinentes às propostas, mas as ideias, conceitos e valores defendidos. O resultado da classificação pôs as propostas de Jair Bolsonaro na primeira colocação, como o maior adversário da juventude.4
Já na presidência, a política econômica adotada se alinha e aprofunda as dimensões de precariedade para inserção dos jovens brasileiros no mundo do trabalho e as dificuldades para a entrada e a permanência no Ensino Superior público com os contingenciamentos de recursos financeiros das instituições federais.
Seguindo o modus operandi do ciclo de ataque aos direitos sociais realizados com Temer, o novo governo editou a Medida Provisória 905/2019 instituindo o contrato de trabalho verde e amarelo, alterando, mais uma vez, a legislação trabalhista, com a justificativa da criação de postos de trabalho para os jovens de 18 a 29 anos. Como forma de precarização, a medida diminui direitos trabalhistas (redução do valor da multa rescisória de contratos de 40% para 20%), desobrigando as empresas de certos pagamentos e impondo custos aos desempregados, como a dedução da contribuição previdenciária para os beneficiários do seguro-desemprego.
O enfrentamento ao desemprego se pauta, portanto, por estratégias de perspectiva reversa à garantia de direitos sociais e de trabalho decente para os jovens, robustecendo as desigualdades históricas relativas às condições de trabalho e aos baixos salários, especialmente daqueles oriundos de famílias de baixa renda, mulheres, negros e Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis, Transexuais e Transgêneros. Conclui-se das ações de enfretamento ao desemprego que o problema não se situa apenas na exclusão, mas nas “opções de inclusão marginalizadas” (MARTINS, 2008, p. 26) que são apresentadas como caminhos viáveis para a retomada do crescimento e estabelecimento da paz social.
Outra ponta no cenário de restrição de direitos e precarização está nos contingenciamentos dos recursos dos Ministérios da Educação e de Ciência e Tecnologia com os cortes realizados nos investimentos em Educação Básica, além do avanço do projeto Future-se, que abre espaço para a privatização da Educação Superior.
Soma-se a isso o Pacote Anticrime, elaborado pelo Ministério da Justiça e Segurança Pública, e criticado amplamente pelos movimentos sociais por se configurar como mais um instrumento de extermínio da juventude negra e alargar as possibilidades de interpretação da ideia de legítima defesa e os obstáculos para concessão de liberdade condicional. Os dispositivos presentes no pacote convergirão para o aumento do número de encarceramento em um contexto em que os jovens compõem mais da metade dos presos provisórios do País, segundo o Levantamento Nacional de Informações Penitenciárias (SANTOS, 2017). Assim, testemunha-se o retorno de uma abordagem que toma os jovens como “problema social” nas orientações da segurança pública.
Do conjunto de medidas implementadas pelo governo federal a partir de 2019, pode-se intuir que as condições de vida da maioria da população jovem brasileira, em especial aquela oriunda de famílias pobres e da classe trabalhadora, tenderam a ser impactadas de maneira negativa. O cenário instituído por essas medidas fragiliza e dificulta, ainda mais, o acesso aos diretos sociais dos jovens, aprofundando os processos de desigualdade social com consequências específicas para a vivência da condição juvenil.
Conforme mencionamos anteriormente, a herança constitucional que colocou as políticas de juventude no centro das decisões políticas é resultado de um intenso processo de conflito, considerando os diferentes projetos societários, as distintas abordagens e o entendimento sobre as juventudes. As conquistas e acordos realizados para produzir uma estrutura mínima cujo objetivo era dar suporte à formulação, à execução, ao acompanhamento e à avaliação das políticas públicas destinadas aos jovens ocorrem na tessitura de uma decisão governamental e contextos específicos que contribuíram para isso. No entanto, o que aconteceu no primeiro ano de governo de Jair Bolsonaro foi uma investida contra essa estrutura, iniciando com a tentativa de extinção do Conjuve
No tocante à SNJ, os projetos propostos durante o ano de 2019 se referem à capacitação de jovens em tecnologia com a criação do Espaço 4.0, prevendo um investimento com repasse de R$ 300 mil do governo federal aos estados e municípios. Segundo o governo, espera-se, por meio do projeto, “a redução da exposição à criminalidade e dependência química, a preservação da integridade física e moral de mulheres e pessoas em estado de vulnerabilidade” (BRASIL, 2019). Entretanto, não fica claro como essa meta será alcançada apenas com a participação dos jovens em cursos de capacitação.
Em outra linha, e focando o empreendedorismo, está o Empreenda Jovem (urbano e rural), cujo objetivo é auxiliar os jovens a desenvolverem pequenos negócios, subsidiados por profissionais na formulação de um plano estratégico. No entanto, não foi possível encontrar nas bases da SNJ elementos para aprofundamento e compreensão dos dois projetos. Essa é, por sua vez, uma marca da descontinuidade de ações, desde o golpe de 2016, caracterizando uma dificuldade de acesso às informações sistematizadas de políticas públicas, programas, ações e projetos desenvolvidos no âmbito federal. Observa-se que as páginas oficiais de governos anteriores, criadas com esse intuito, foram desativadas ou funcionam de forma precária, enquanto o site que hospeda informações da atual SNJ não fornece, até o momento, os documentos necessários.
O foco na preocupação com o empreendedorismo, presente desde o governo Temer, possui íntima relação com as estratégias de geração de empregos flexíveis, adotadas como pedra de toque nas ações do governo Bolsonaro. O empreendedorismo se coloca, assim, como um canto da sereia para a saída do desemprego e é difundido como oportunidade de sucesso em contextos de desfiliação social (sem benefícios e proteção por parte do Estado e das empresas) e crescimento do precariado, nos termos discutidos por Standing (2013).
A ofensiva neoliberal que se expressa na redução de direitos sociais da juventude, capitaneada por esse governo, ecoa também nas investidas pela desmobilização do movimento estudantil. O lançamento da carteira estudantil digital é, por sua vez, uma forma de sufocamento financeiro da União Nacional dos Estudantes (UNE) e da União Brasileira de Estudantes Secundaristas (Ubes), por se contraporem ao governo e terem organizado grandes mobilizações, em 2019, contra os cortes na educação.
Ainda no primeiro ano de governo, uma situação inusitada foi estabelecida pelo Decreto n.º 9.974, de 17 de agosto de 2019, convocando a 4a Conferência Nacional de Juventude para o mês de dezembro do mesmo ano, com o tema “Novas Perspectivas para Juventude”. Considerando que a última conferência foi realizada em 2015, o tempo máximo para cumprir o prazo legal instituído pelo Estatuto da Juventude seria até dezembro de 2019. Isso demonstra que a conferência foi convocada com atraso e que o prazo exíguo de 3 meses se mostrou insuficiente para sua realização e participação efetiva de estados e municípios na tarefa de avaliar o andamento das políticas públicas, apresentar demandas dos jovens e formular novas formas de atuação do Estado. No entanto, com o Decreto n.º 10.127, de 25 de novembro de 2019, o prazo para a realização da conferência é alterado para dezembro de 2020.
Observando particularidades na proposta da 4a Conferência, foi possível identificar a existência de contrastes com as anteriormente realizadas porque, na Portaria Ministerial n.º ٣.١٨٤, de ٣٠ de dezembro de ٢٠١٩, diz-se que a conferência será presidida pela Ministra de Estado da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos, enquanto o presidente do Conjuve coordenará a Comissão Organizadora Nacional. Segundo Oliveira (2019, p. 2), isso significa um retrocesso, pois o Estatuto da Juventude “indica a necessidade do Conjuve, em termos coletivos, e não só de o seu presidente atuar em conjunto com o Governo Federal para organização do evento”.
Diante da postura extremamente autoritária e fascista que caracteriza o atual governo brasileiro, qualquer análise que procure antever o cenário dos próximos anos indica o aprofundamento das desigualdades e exclusão social diante dos retrocessos impostos às políticas de juventude, sobretudo no que diz respeito à sua dimensão participativa e à disposição para fomentar um ambiente inclusivo para os jovens.
Considerações finais
Ao romper com o processo democrático no Brasil, o golpe parlamentar, jurídico e midiático produziu um cenário desolador no contexto das políticas públicas com consequências profundas sobre o conjunto da população pobre e vulnerável. Em relação às políticas direcionadas às juventudes, intensificam-se ofensivas contra direitos sociais e garantias constitucionais, geridas de modo a destruir ou subtrair os frutos acumulados com a participação social, como via de materialização de uma abordagem sobre os jovens, considerando-os como sujeitos de direito.
Sem uma ampla mobilização da sociedade civil e de grupos organizados de jovens, as políticas de juventude estarão condenadas às ações desenvolvidas por projetos pontuais e sem quaisquer garantias de continuidade, principalmente pelos limites impostos com o discurso de contenção de gastos, já imprimido pelo congelamento de gastos públicos por vinte anos.
Em termos gerais, identificamos uma alteração de rota na abordagem das políticas públicas para as juventudes no Brasil, após o golpe de 2016, apontando para um retrocesso no atendimento das demandas e na abordagem sobre as juventudes presentes no discurso político. Esse fato costuma se concretizar nas orientações das ações do governo federal no tocante ao olhar sobre a situação juvenil e na elaboração de propostas que atendam às necessidades e pluralidade dos jovens.
A análise dos documentos deixa clara a não existência de uma política de juventude, mas de ações que se pautam em uma realidade caracterizada pela presença de jovens em situação de risco e vulnerabilidade, além das estratégias precárias de inserção no mundo do trabalho, também precarizado. Excluem-se dessa lista, portanto, quaisquer iniciativas que possibilitem a inclusão em trabalho decente, o desenvolvimento cultural e o acesso mínimo aos bens culturais para além do que já se vinha contemplando antes do golpe de 2016.
Assim, na conjuntura que se descortina nos próximos anos com o governo Bolsonaro, é pouco provável que a abordagem da juventude esteja desvinculada de uma doutrina de segurança pública e da promoção de oportunidades de trabalho precário e formação humana decrépita.
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Recebido em: 10/10/2020
Aceito em: 17/02/2021
1 Projeto Agente Jovem, Programa Bolsa-Atleta, Programa Brasil Alfabetizado, Programa Escola Aberta, Programa Escola de Fábrica, Programa de Melhoria e Expansão do Ensino Médio (Promed), Programa Juventude e Meio Ambiente, Programa Nossa Primeira Terra, Programa Cultura Viva, Programa de Integração de Educação Profissional ao Ensino Médio na Modalidade de Educação de Jovens e Adultos (Proeja), Programa Nacional de Estímulo ao Primeiro Emprego (PNPE), Programa Nacional de Inclusão de Jovens (Projovem), Programa Nacional do Livro Didático para o Ensino Médio (PNLEM), Projeto Rondon, Programa Nacional de Fortalecimento da Agricultura Familiar Jovem (Pronaf Jovem), Programa Universidade para Todos (ProUni), Programa Saberes da Terra, Programa Segundo Tempo, Projeto Soldado Cidadão, Programa Nacional de Segurança Pública com Cidadania (Pronasci), Brasil Sorridente, Programa Saúde na Escola, Programa Jovem Aprendiz, ID Jovem, Programa Estação Juventude, Plano Juventude Viva, Programa de Fortalecimento da Autonomia Econômica e Social da Juventude Rural (Pajur), Observatório Participativo da Juventude (Participatório), Centros de Artes e Esportes Unificados (CEUs), Cotas no Ensino Superior, Idiomas sem Fronteiras (IsF), Ciência sem Fronteiras, Programa Mais Educação, Programa Nacional de Acesso ao Ensino Técnico e Emprego (Pronatec), Programa Nacional de Educação no Campo (Pronacampo) e Projovem Trabalhador.
2 Disponível em: https://blogs.oglobo.globo.com/panorama-politico/post/sobre-chacina-secretario-de-temer-diz-que-tinha-era-que-matar-mais.html.
3 Desenvolvido pelo Ministério da Defesa, é destinado ao atendimento de crianças, adolescentes e jovens de ambos os sexos, a partir de ٦ até os ١٨ anos de idade, em situação de vulnerabilidade social.
4 Plataforma política – Juventudes Contra Violência. Disponível em: https://bit.ly/37nd0ZQ. Acesso em 26 jan. 2020.
“EU ESPERAVA MAIS DO BRASIL”:
vivências no trabalho de imigrantes no Brasil
“I EXPECTED MORE FROM BRAZIL”:
work experiences of immigrants in Brazil
____________________________________
Patrícia Henrich1*
Janine Kieling Monteiro2**
Anelise Schaurich dos Santos3***
Vanessa Ruffatto Gregoviski4****
Resumo
É crescente o número de pessoas que saem dos seus países de origem para buscar abrigo e melhores condições de vida. A inserção profissional pode facilitar ou dificultar a adaptação social e econômica ao país de destino. Este estudo objetivou conhecer as experiências de inserção profissional e de trabalho de pessoas em situação de migração no sul do Brasil. Seis imigrantes (cinco senegalenses e um haitiano) do sexo masculino, com idades entre 24 e 32 anos, residentes no Rio Grande do Sul, participaram de aplicação de questionário sociodemográfico e laboral e uma entrevista individual semiestruturada. As informações foram submetidas à análise de conteúdo. Os resultados demonstraram que os imigrantes estão expostos a relações profissionais precárias, com salários baixos e desconhecimento das leis trabalhistas. Acredita-se ser importante pesquisas que abordem a vivência de imigrantes no Brasil para que se possa pensar em estratégias de acolhimento e na construção de políticas públicas.
Palavras-chave: Refugiados. Imigrantes. Inserção no Trabalho. Psicologia do Trabalho.
Abstract
The number of people leaving their home countries to seek shelter and better living conditions is increasing. Professional insertion can facilitate social and economic adaptation to the destination country. This study aimed to know experiences of professional insertion and work of people in migrant situation in southern region of Brazil. Six male immigrants (five Senegalese and one Haitian), aged between 24 and 32 years, living in Rio Grande do Sul/Brazil, participated in the application of socio-demographic and labor questionnaire and a semi-structured individual interview. Information were submitted to Content Analysis. Results showed that immigrants are exposed to precarious professional relationships, with low salaries and unknowledge of labor laws. It is believed to be important research that addresses the experience of immigrants in Brazil to be possible think about reception strategies and construction of public policies.
Keywords: Refugees. Imigrants. Work Insertion. Work Psychology.
1* Psicóloga pela Universidade do Vale do Rios dos Sinos (UNISINOS). E- mail: psicohenrich@gmail.com
2** Psicóloga, Doutora em Psicologia. Professora e pesquisadora na Universidade do Vale do Rios dos Sinos (UNISINOS). E-mail: janinekm@unisinos.br
3*** Psicóloga. Doutora em Psicologia pela Universidade do Vale do Rios dos Sinos (UNISINOS). E-mail: anelise_ssantos@hotmail.com
4**** Psicóloga. Mestre em Psicologia pela Universidade do Vale do Rios dos Sinos (UNISINOS). E-mail: vane.ruffatto2@hotmail.com
ISSN 1517-5901 (online)
POLÍTICA & TRABALHO
Revista de Ciências Sociais, nº 54, Janeiro/Junho de 2021, p. 168-185
A mobilidade humana é um fenômeno recorrente no cenário internacional, uma vez que o processo de globalização do mundo sem fronteiras estimula a migração para outros países na busca por melhores condições de vida (CAVALCANTI; OLIVEIRA; TONHATI, 2014). Ao final de 2018, cerca de 70,8 milhões de pessoas deslocaram-se mundialmente dos seus países de origem devido a diferentes tipos de conflitos, sendo 25,9 milhões refugiados e 3,5 milhões solicitantes de refúgio (BRASIL, 2019).
O Brasil é frequentemente procurado por refugiados e imigrantes por ser um país acessível a entrada de estrangeiros comparado a outros países, tanto que o número de refugiados no país vem aumentando ano após ano. Em 2016, havia cerca de 9.552 refugiados reconhecidos, enquanto em 2018 esse número passou para 11.231. Nesse mesmo ano, o Brasil recebeu 80.057 novos pedidos de reconhecimento da situação de refugiado, mais que o dobro recebido no ano anterior. As principais nacionalidades que solicitaram esse status foram, respectivamente, venezuelanos, haitianos e senegaleses. No entanto, há dificuldades dos refugiados e imigrantes conseguirem sua regulamentação migratória e inserção digna no Brasil (BRASIL, 2017a; 2019).
Refugiados são pessoas que foram obrigadas a deixar seu país de origem por estarem expostas a situações de violência, como conflitos internos, internacionais ou regionais, perseguições políticas e religiosas, miséria, entre outras violações de direitos humanos. A instabilidade econômica, política e social às quais são submetidas ratifica a migração para outros lugares (MOREIRA, ٢٠١٤). Já os imigrantes são pessoas que migraram para outro país por livre escolha. Geralmente, as migrações visam a melhores condições de vida, oportunidades de empregos imediatos e de qualidade, mais acesso à infraestrutura, serviços e moradia, segurança, qualidade de vida e custo de vida mais baixo (EBERHARDT et al, 2018).
Sabe-se que os termos imigrante e refugiado não são sinônimos, mas resguardam aproximação conceitual e, independente da nomenclatura adotada, a decisão de sair do país de origem envolve incertezas quanto ao novo território que a pessoa ocupará. Além disso, o processo de busca por refúgio tende a acontecer em meio a sentimentos de desamparo, perdas, violações de direitos e vulnerabilidade (INSTITUTO ADUS, 2016). Carregar a denominação “refugiado” muitas vezes acarreta prejuízo para a saúde mental dessa população, que já enfrentou diversas dificuldades desde o momento de saída do seu país de origem até o de entrada no país receptor. O lugar social que ocupa se caracteriza por exclusões e violências, especialmente em áreas urbanas em que o acesso à saúde, moradia e emprego é caótico (WEINTRAUB, 2012).
Uma das formas de imigrantes se sentirem pertencentes à sociedade é por meio da inserção profissional, uma vez que o trabalho, além de ser um dos principais meios utilizados para o sustento, pode promover reconstrução identitária e pertencimento social (COLOMBY; OLTRAMARI; RODRIGUES, 2018). É inegável que o trabalho é um meio de se relacionar com os outros, de se sentir como parte integrante de um grupo ou da sociedade, de ter uma ocupação e de ter um objetivo a ser atingido na vida (MORIN, 2001). Entretanto, o trabalho destinado aos imigrantes, em muitos casos, enquadra-se em trabalhos exploratórios, o que não oportuniza inserção social e reconhecimento identitário, impactando negativamente na saúde dessas pessoas. Acredita-se que as diferenças culturais, de idioma e de entendimento das legislações favorecem a submissão a trabalhos precários e inferiorizados (EBERHARDT; MIRANDA, 2017; MENIN, 2016).
No Brasil, segundo a pesquisa de Vilela e Sampaio (2015), que objetivou analisar o perfil de estrangeiros autorizados a permanecer no país e qual o tipo de inserção concedida, a política migratória regulada pelo Estatuto do Estrangeiro vigente na época (Lei n.º ٦.٨١٥/١٩٨٠) teria caráter seletivo e restritivo. Percebe-se que as regularizações dos imigrantes mais frequentes são as de norte-americanos, asiáticos e europeus, majoritariamente do sexo masculino, idade média de 38 a 24 anos e alto nível educacional. Essas formas de regulação são estratégicas para o Brasil, que se beneficia da qualificação dos imigrantes, discriminando aqueles com menos qualificação (BARRETO, 20703; BRASIL, 2010). Em contrapartida, mencionam-se iniciativas com o intuito de facilitar a entrada de imigrantes sul-americanos e refugiados: a Lei n.º ٩.٤٧٤/١٩٩٧ (que estabelece mecanismos para a implantação do Estatuto dos Refugiados de ١٩٥١, sinalizando em que condições há o direito da solicitação de refúgio, orientando a entrada no país e as competências do Comitê Nacional para os Refugiados, o Conare) e o Estatuto de Cidadania do Mercosul (elaborado em 2010 e que dispõe sobre um plano de cidadania regional aos cidadãos dos países pertencentes ao bloco econômico, possuindo como diretrizes a livre circulação de pessoas entre os Estados, a igualdade de direitos, liberdades e de condições para o acesso a empregos, saúde e educação) (BRASIL, 1997; MERCOSUL, 2010).
Mesmo com políticas criadas e programas de proteção ao imigrante, há casos em que os cidadãos oriundos de países pouco desenvolvidos não são adequadamente recebidos no Brasil, encontrando obstáculos na sua inserção social e profissional (VILELA; SAMPAIO, 2015). Por exemplo na pesquisa de Vilela e Sampaio (2015), o maior número da população de imigrantes reside nos estados de São Paulo e Rio de Janeiro, tal escolha ocorre por serem grandes capitais com crescente desenvolvimento industrial e tecnológico do país, maior empregabilidade e principais pontos de embarque e desembarque de transatlânticos, porém são notórias as dificuldades da população nacional e internacional ao acesso igualitário às políticas públicas sociais. Por isso, muitos imigrantes encontram-se em situação de vulnerabilidade social (RODRIGUES, 2010). Mesmo o Brasil sendo miscigenado, pesquisas (RODRIGUES, 2010; MENIN, 2016) “mostram uma sociedade com profundas desigualdades que atingem parcelas significativas da população” (RODRIGUES, 2010, p. 141).
Diante dessa realidade, é essencial o apoio e auxílio à inserção laboral de imigrantes, garantindo seus direitos e oportunizando amparo para a (re)construção de sua existência. Sabe-se que, apesar dos sentimentos muitas vezes negativos associados à imigração, a mudança para outro país concede sensação de esperança e possibilidade de construção de uma nova vida (INSTITUTO ADUS, 2016). Isso indica a relevância de aprofundar e expandir as pesquisas para auxiliar no conhecimento e acolhimento desses sujeitos, a fim de oportunizar um recomeço com dignidade para os imigrantes que procuram o Brasil para viver. Assim, este estudo objetivou conhecer as experiências de inserção profissional e trabalho de pessoas em situação de migração no sul do Brasil. Ao buscar conhecer esses processos de inserção, propõe-se auxiliar com subsídios para a construção de políticas públicas e projetos sociais para amparar essa população.
Trata-se de um estudo de delineamento qualitativo, transversal e exploratório. Os participantes foram seis pessoas que migraram para o Brasil, todas do sexo masculino, sendo cinco senegaleses e um haitiano. Os níveis de escolaridade variaram entre Ensino Médio (n=3) e Bacharel em Direito (n=1). Na ocasião, cinco deles trabalhavam e um estava desempregado. Além do seu idioma nacional, os participantes possuíam fluência em no mínimo mais 3 idiomas, principalmente: francês (n=6) e português (n=6). Outros dados sociodemográficos podem ser visualizados no Quadro 1.
Quadro 1: Descrição sociodemográfica dos participantes
Sujeito |
Idade |
Escolaridade |
Nacionalidade |
Estado Civil |
Filhos |
Idiomas |
Tempo |
1 |
24 |
Ensino Médio |
Senegal |
Solteiro |
Não |
Wolof, Francês, Português e Espanhol |
4 anos |
2 |
28 |
Magistério |
Haiti |
Solteiro |
Não |
Creole, Francês, Português e Inglês |
1 ano e |
3 |
29 |
Bacharel em Direito |
Senegal |
Solteiro |
Não |
Wolof, Francês, Português e Inglês |
3 anos |
4 |
32 |
Ensino Médio |
Senegal |
Solteiro |
Não |
Wolof, Francês, Português e Árabe |
5 anos |
5 |
24 |
Magistério |
Senegal |
Solteiro |
Não |
Wolof, Francês, Português, Árabe e Inglês |
2 anos e |
6 |
28 |
Ensino Médio |
Senegal |
Casado |
1 |
Wolof, Francês, Português e Árabe |
3 anos |
Fonte: Elaborado pelas autoras
Esses imigrantes residiam em cidades da região metropolitana de Porto Alegre, no Rio Grande do Sul. Todos já haviam morado em outras cidades e se encontravam há mais de um ano no Brasil. Três dos participantes possuíam a Carteira de Registro Nacional Migratório, que concede permanência no Brasil, (o haitiano possui protocolo de visto humanitário conforme Lei n.º 13.445/2017) e três possuíam um Protocolo da Delegacia de Polícia de Migração (Delemig), registro para controle migratório, com solicitação de refúgio. Esse protocolo é um documento de identidade que prova a condição migratória regular, assegura a não deportação e o acesso aos documentos de Cadastro de Pessoa Física (CPF), Carteira de Trabalho e Cartão do Sistema Único de Saúde (SUS).
Os participantes foram selecionados pelo método snowball (BIERNACKI; WALDORF, 1981). Essa técnica auxilia a alcançar populações de redes sociais complexas, na qual um participante indica outro membro que conheça e contemple os critérios de inclusão. O primeiro membro foi acessado de forma conveniente, indicando o próximo participante e assim sucessivamente. O critério utilizado para determinar o número de participantes foi a disponibilidade deles, uma vez que se notou que os imigrantes tinham receio de participar da pesquisa e, por algum motivo, serem prejudicados após concederem seus depoimentos às pesquisadoras, apesar de ter sido explicado que o estudo não apresentava qualquer relação com o Estado e buscava entender as vivências de imigrantes no Brasil para proporcionar melhorias a eles. Alguns imigrantes concordaram em participar da pesquisa no dia em que foram convidados, mas, após alguns dias, informaram que não tinham interesse/disponibilidade. Diante da finalização dos contatos disponibilizados às pesquisadoras, encerrou-se a coleta, a fim de respeitar as particularidades do público pesquisado.
Utilizaram-se como instrumentos um questionário sociodemográfico e laboral e uma entrevista individual semiestruturada. Os instrumentos foram desenvolvidos para esta pesquisa. O roteiro da entrevista englobou questões sobre as percepções da inserção laboral dos imigrantes, isto é, como estavam vivenciando esse processo no Brasil, incluindo dificuldades, condições de trabalho e relações socioprofissionais.
Diante do aceite em participar da pesquisa, combinou-se dia, horário e local, para a operacionalização da entrevista. Quatro das entrevistas foram realizadas presencialmente nos locais escolhidos pelos participantes, uma foi realizada por telefone e outra por Skype, com duração média de uma hora.
Todos os procedimentos éticos da pesquisa com seres humanos e as normas aplicáveis, de acordo com as Diretrizes e Normas Reguladoras de Pesquisas Envolvendo Seres Humanos e Pesquisas em Ciências Humanas e Sociais, conforme a resolução n.º ٥١٠/٢٠١٦ do Conselho Nacional de Saúde (BRASIL, ٢٠١٦), foram adotados. A pesquisa foi aprovada pelo Comitê de Ética em Pesquisa da Universidade do Vale do Rio dos Sinos em janeiro de 2018 (n.º ٢٤٣٦٠٥٥). O Termo de Consentimento Livre e Esclarecido indicou de forma clara os objetivos e procedimentos da pesquisa, garantindo a confidencialidade e a confiabilidade dessa. Foi assegurada total liberdade para desistência da pesquisa em qualquer momento, sem qualquer prejuízo.
Ao final das entrevistas, um participante foi encaminhado para um serviço de atendimento psicológico da rede pública na sua cidade, por ter apresentado sintomas de estresse no trabalho. Foi oportunizada uma devolução dos resultados da pesquisa para os participantes interessados, por meio de uma conversa com eles.
Os resultados das entrevistas foram transcritos e submetidos à análise de conteúdo (BARDIN, 2011), com organização de categorias a posteriori. A categorização foi realizada por uma estudante de Psicologia e uma psicóloga, sendo que as discordâncias foram analisadas por outra psicóloga, tendo sido utilizada a técnica de consenso. Este artigo enfocará as vivências laborais dos imigrantes a partir de três categorias: (1) Inserção no mercado de trabalho brasileiro, (2) Informações sobre legislações trabalhistas e (3) Experiências de trabalho de imigrantes no Brasil. Tais categorias serão descritas na seção seguinte.
As migrações são um processo multidimensional e de desterritorialização (HAESBAERT, 2012), no qual os imigrantes estão em constante movimentação. Isso está relacionado para além do deslocamento, pois está ligado à nova territorialização e identidade a ser (re)construída, ao sentimento de pertencimento, à estigmatização imposta pela sociedade na qual se inserem, aos desafios encontrados, e às relações muitas vezes frágeis e vulneráveis (GARCIA, 2018; SANGALLI, 2018; SILVA, 2017). A saída de um país e a vinda para outro acarretam diversos atravessamentos: os imigrantes precisam se reinventar, aprender novas culturas, línguas, além de precisar se movimentar em busca de mudanças, sonhos, e vidas melhores; passa-se por um processo de aculturação, ou seja, adaptação, em que diversos fatores podem influenciar positiva ou negativamente o processo de imigração, tais como: preconceito, políticas migratórias, educação, domínio de língua, hábitos culturais e outras características do contexto no qual se inserem (WEBER et al., 2019).
Durante as entrevistas não ficou explícita a classificação de migração que os participantes vivenciavam (imigrantes ou refugiados). No entanto, percebeu-se que não se sentiam à vontade quando nomeados como refugiados, visto que quatro deles evidenciaram que seu lugar de origem não estava passando por guerras, que o seu país nacional era bom e que eles não eram pobres: “[...] Mas não tem guerra, não tem nada, é tudo tranquilo” (P.4), “Eu não sou pobre, nem nada...” (P.5).
Isso representa o quão difícil é para os imigrantes nomearem seus países de origem como sendo uma nação em crise, mesmo que dois dos participantes tenham levantado a questão de vinda para o Brasil pela situação crítica do local em que habitavam. Um deles relatou: “[...] meu país tinha muito problema, lá às vezes tinha, não vou dizer guerra, mas desesperação, não tem serviço. Não tem nada, você não faz nada” (P.3). Parece haver preocupação dos imigrantes em ressignificar o imaginário dos brasileiros sobre o que seus países de origem representam. Rodolfo e Uebel (2017) explanaram sobre os estereótipos criados pela mídia e pelo próprio imaginário dos cidadãos. Segundo os autores, essas representações e estigmatizações sobre os novos imigrantes muitas vezes definem as expectativas a respeito deles e o lugar, concreto e simbólico, que irão ocupar na sociedade, o qual é permeado pela posição profissional na qual se estabelecem.
Com o intuito de auxiliar os imigrantes a ocuparem melhores posições no mercado de trabalho brasileiro, é importante conhecer como eles buscam empregos e quais tipos de atividades lhes são habitualmente destinadas, o que será debatido na seção a seguir. Assim, poderão ser pensadas formas de alterar o cenário laboral que parece ser desfavorável para os imigrantes, já que é inegável que o lugar social deles está marcado pela posição de trabalho que ocupam (CAVALCANTI; OLIVEIRA; TONHATI, 2014). Ademais, o trabalho é essencial na trajetória do sujeito, pois contribui para a constituição da subjetividade dos seres humanos, uma vez que possibilita autoexpressão, reconhecimento e estabelecimento de vínculos (DEJOURS, 2010).
Inserção no mercado de trabalho brasileiro
Os imigrantes contam que consideraram as expectativas e as promessas feitas por amigos, familiares e pessoas que já viviam no Brasil para escolher o país para migrar. Esses falavam sobre ótimas condições financeiras, oportunidades de trabalho e crescimento. Quatro dos participantes disseram que foram influenciados por tais pessoas ao acreditarem que o Brasil tinha melhores condições de vida para oferecer. Desses, três relataram ter se decepcionado com a estrutura oferecida pelo Brasil aos imigrantes.
[...] eu esperava mais do Brasil. Às vezes, eu tenho vontade de voltar... porque eu achava que eu posso ganhar um pouco mais, e eu achava que as coisas pode melhorar mais a vida.... Mas o que eu achava lá antes, não é de verdade. Achava que tinha mais oportunidade (P.2).
Mas não ganhar mais, ganhar bem pouco. Aqui dinheiro muito fraco, muito ruim, muito ruim. Dólar agora muito alto, dinheiro aqui real, não valer nada ao sair daqui (P.6).
O encanto construído pelo imaginário do imigrante muitas vezes é quebrado ao se deparar com as dificuldades enfrentadas na inserção social no Brasil. Esse “encontro com o ‘outro’, tão esperado e imaginado, transforma-se em (re)sentimentos de desilusão [...]” (MENIN, 2016, p. 47). No entanto, os motivos que levaram os imigrantes a sair de seus países são carregados por lembranças e memórias de uma história, o que contribui para que o contato com o novo lugar seja movido por esperança, sonhos e expectativas de uma vida melhor. Os seis participantes disseram terem vindo ao Brasil por almejar uma vida com mais dignidade. Tinham o sonho de se inserir socialmente e no mercado de trabalho, almejando melhores condições financeiras e crescimento profissional. Tanto é que a escolha pelas cidades que se fixaram se deu, na maioria das vezes, em função das oportunidades que visualizam no mercado de trabalho, que dispunha de vagas na indústria automotiva, têxtil, moveleira e de construção civil (MENIN, 2016).
Três deles visavam a poder trabalhar e estudar no Brasil, considerando que o Brasil é um país no qual é possível trabalhar durante o dia e estudar à noite. Muitos países de origem dos imigrantes não apresentavam essa possibilidade: “Lá é difícil trabalhar de manhã e estudá da noite, porque é um país que funciona até às 22 horas” (P.2). Além disso, dois dos participantes apontaram que outros possíveis destinos migratórios possuem leis mais restritas para a entrada de imigrantes, o que fez com que decidissem migrar para o Brasil: “[...] é bom para Estrangeiro... Brasil tratar bem, dar permanência. Tu tem CPF, Carteira de Trabalho, isso é bom. Tem país que não fazer, como Europa, se tu vai lá não vai ter permanência” (P.٥).
A permanência é concedida ao imigrante no Brasil a partir da Lei n.º ١٣.٤٤٥/٢٠١٧, entendendo imigrante como aquele que se estabelece temporária ou definitivamente no Brasil para fins de moradia e/ou emprego. Esa lei ainda dispõe sobre a garantia dos direitos humanos aos migrantes, documentações necessárias e vistos (BRASIL, 2017b). No caso do refúgio, é necessário que seja reconhecido como pessoa em situação grave ou generalização da violação de seus direitos; a Lei de Migração também institui as condições para a solicitação de asilo (BRASIL, 2017b; VILELA; SAMPAIO, 2015). Entretanto, historicamente, a política migratória brasileira tem a dinâmica de seleção dos imigrantes considerados qualificados (geralmente, europeus e norte-americanos), que contribuiriam para o novo modelo de mercado de trabalho, ocasionando restrição aos indivíduos com baixo nível educacional, seguidamente originários de países pobres e em desenvolvimento (BARRETO, 2001; PATARRA, 2005), nos quais se enquadram os participantes deste estudo.
A maioria dos participantes relatou utilizar amigos e conhecidos como forma de inserção profissional. Os amigos auxiliavam na adaptação, indicavam vagas, traduziam currículos. Somadas ao papel dos amigos, muitas das atribuições de acolhimento dos imigrantes estão incumbidas às prefeituras municipais, igrejas e Organizações Não Governamentais (ONGs). Entre os imigrantes que participaram deste estudo, todos foram acolhidos por algum projeto social, por exemplo, a Associação dos Imigrantes Senegaleses e o Centro de Atendimento ao Migrante (CAM), coordenado pela Irmã Maria do Carmo Gonçalves de 2010 a 2018. Tais relatos estão presentes nos excertos a seguir: “No começo eu passo numa casa, que a gente chama Casa da Maria. Tem uma empresa que pediu para a Maria lá quinze Senegaleses. Ele tem quinze vagas para Senegaleses, eu faz parte dessa companhia” (P.1), “Primeira cidade que eu estava lá, foi uma mulher chamada Maria que ajudou nós. Foi ela que arrumou trabalho. Ela ajuda bastante os imigrantes que chegam aqui. Ela conseguiu emprego para muita gente” (P.4). Os três participantes que tiveram contato com o CAM foram inseridos no mercado de trabalho em 15 dias. Existem diversos projetos sociais como esse no Brasil. Esses projetos complementam o papel do Estado como órgãos de acolhimento, informação, moradia e inserção social dessa população (MORAES; TEIXEIRA; GUIMARÃES, 2017).
O Sistema Nacional de Emprego (Sine) também foi apontado como uma das formas de buscar emprego. As ações do Sine são voltadas ao mercado de trabalho, visando a informar, implantar serviços, agências de vagas de emprego, estabelecer perfis do trabalhador, promover qualificações (OLIVEIRA, 2012). No entanto, para Azeveredo e Ramos (1995), sua característica política é voltada à mercantilidade de comportamentos competitivos. Três dos imigrantes expõem que o Sine não é um lugar eficaz para auxiliar na inserção profissional, como também não lhes inspirou confiança, conforme pode ser identificado nas falas a seguir.
“Mas lá eu não confiar. As empresas lá dizer quero tantos imigrantes, isso é estranho, se ele quer tanto imigrantes, tem algo aí, ele quer algo. É que tem trabalho que ele tem brasileiros não vão fazer, e que se brasileiro fazer quer pagar mais, então ele contrata senegalês. Mas aí depois de que tu entra, de seis meses, tudo começa a mudar, salário começa a vir atrasado, ele aumenta trabalho de peso” (P.1).
“Eu tenho o Sine que eu vem. Além da minha formação tem um monte de coisa que eu saber fazer, informática, coisa que eu fazer, mas não para estes, eu não tem sorte” (P.3).
Percebe-se que a condição vivenciada pelos imigrantes também é enfrentada por muitos brasileiros, que formam filas em frente aos estabelecimentos do Sine em busca de sobrevivência, identidade, dignidade e inserção social (G1, 2016). Na página oficial do site do Sine, as vagas disponíveis para se candidatar não são restritas ao trabalho formal e regular. Possui também atividades laborais com degradação das condições de trabalho, sem proteções institucionais, sem regulamentação da legislação, exploração da mão de obra, serviços terceirizados, contratos flexíveis e esquemas de pirâmides. Há indicativos de que essa situação irá piorar, pois a Reforma Trabalhista (Lei n.º ١٣.٤٦٧/٢٠١٧) reforçou a flexibilização da legislação, dos contratos temporários e dos terceirizados, contribuindo para relações de trabalho precárias, reduzindo e excluindo o trabalhador de diversos direitos trabalhistas (BRASIL, 2017c; OLIVEIRA, 2012). Sabe-se que o não conhecimento da legislação oferece a ocupação de trabalhos precários e a compreensão dessa pode ser ainda mais difícil para imigrantes em função da barreira linguística e diferenças culturais (EBERHARDT; MIRANDA, 2017; MENIN, 2016). Com o intuito de auxiliar os imigrantes em relação a esse problema, a seção seguinte destina-se a conhecer como os participantes obtêm informações sobre as leis trabalhistas brasileiras.
Informações sobre Legislações Trabalhistas
Quando os imigrantes chegam ao Brasil, eles precisam passar pela Polícia Federal para fazer o registro e passar pela fiscalização. Nesse momento, recebem um protocolo que lhes garante permissão para fazer os documentos nacionais. Entretanto, não são inseridos de fato na cidadania brasileira. Uma dificuldade está no entendimento das leis trabalhistas, o que, de certa forma, é um paradoxo, pois os imigrantes vêm para o Brasil em busca de trabalhos mais satisfatórios.
Nesse aspecto, os projetos sociais, igrejas e ONGs possuem preocupação em auxiliar os imigrantes para que esses estejam informados dos seus deveres e direitos. O Tribunal Regional do Trabalho do Rio Grande do Sul (TRT-RS) e o grupo de Assessoria a Imigrantes e a Refugiados do Serviço de Assessoria Jurídica Universitária da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (Gaire/Saju) lançaram uma cartilha em francês, espanhol, inglês, creole e português com algumas breves informações sobre a legislação trabalhista brasileira. No entanto, essas cartilhas não são bem divulgadas, pois somente são entregues nas varas do trabalho àqueles que as procurarem, estando também armazenadas no site oficial do órgão público do Ministério Público do Trabalho (MINISTÉRIO PÚBLICO DO TRABALHO, 2013).
A falta de informação frequentemente impacta a desconfiança das relações de trabalho. O imigrante cria estratégias para se proteger das possíveis fraudes. Para estar munido de todas as informações necessárias, os imigrantes orientam-se com outros imigrantes ou nos projetos sociais, que possuem advogados(as) que lhes explicam, ensinam e tiram as suas dúvidas.
Ele [empresa] falou que depois de três meses ele vai registrar nós. Agora pegou carteira de trabalho para levar no Ministério do Trabalho para registrar nós. Mas quando ele devolver a carteira eu vou levar no Ministério do Trabalho para ver se ele fez certo ou não. Eu já estou 6 meses lá, e eles ainda não devolveram. [...]. Na empresa não explica, mas paga correto no dia 10. [...]. Eu ter dificuldade nas leis de trabalho, no português. Mas tem advogado que ajudar nós da Associação (P.3).
Temos um amigo Senegalês que já estava dois anos e ele nos ensinar nós o que não saber (p. 5).
Da mesma forma que os participantes não são esclarecidos quanto aos seus direitos, relataram que as empresas onde trabalharam não possuíam nenhuma política voltada para imigrantes e refugiados. Apesar disso, algumas empresas forneciam moradia para estrangeiros durante a sua permanência no trabalho. Os participantes necessitavam dividir a casa com os outros profissionais que trabalhavam na empresa. Isso pode ser identificado nas falas a seguir: “[...] mas na empresa de calçado ele me deu casa durante trabalho” (P.1), “Se incomoda, mora todo mundo junto numa casa, ai todo mundo é difícil” (P.4).
Nas falas dos participantes, percebe-se o quanto eles utilizam meios para se precaver da violação dos seus direitos. As empresas parecem corroborar o sentimento de desconfiança por não deixar claras as legislações trabalhistas, além de aproveitarem-se do desconhecimento dos imigrantes para se prevalecer. A insegurança, o medo e o receio marcam essas relações, que parecem ter dificuldades intrínsecas pelas diferenças culturais e de linguagem. Dessa forma, os próprios imigrantes precisam buscar os seus direitos e esclarecer suas dúvidas.
Fato é que as novas formulações da legislação trabalhista, como também o trabalho precário e a exploração da mão de obra, são fatores que contribuem para as violações dos direitos dos imigrantes. Vários imigrantes foram utilizados para preencher postos insalubres e com exigências de força física por troca de alojamento e alguns (poucos) benefícios (MENIN, 2016). A escassez de fiscalização corrobora a exploração da mão de obra dessa população, que migra para trabalhar e sobreviver. Consequentemente, os imigrantes ficam reféns dos trabalhos precários, pesados e estressantes, visto que há pouco apoio e vigilância do Estado. Cá e Mendes (2019) afirmam que o migrante muitas vezes é percebido como mão de obra de baixo custo, que gerará lucratividade maior, sem garantia de direitos laborais ou sociais, devido à pouca interferência estatal nisso. Essa dimensão contrapõe a visão popular do Brasil como um país aberto, hospitaleiro, receptor das diferenças étnicas e políticas, de muitas oportunidades (CÁ; MENDES, 2019). A próxima seção aprofundará essa discussão, abordando as experiências de trabalho dos participantes no Brasil.
Experiências de trabalho de imigrantes no Brasil
A partir dos relatos dos participantes percebeu-se que eles estavam se deparando com dificuldades para se inserir no mercado de trabalho e desempenhar uma atividade socialmente qualificada, sendo que as atividades que lhes eram ofertadas representavam trabalhos suscetíveis à baixa remuneração e com alto índice de desgaste físico e psicológico. Durante as entrevistas, alguns narraram que já haviam trabalhado em mais de um lugar e que todos os locais em que trabalharam foi difícil a permanência por terem enfrentado algum tipo de dificuldade, tais como: pagamentos atrasados, remuneração inferior à dos colegas, trabalhos noturnos, viagens longas e discriminação.
Acredita-se que os imigrantes se sujeitam a trabalhos inferiores pela necessidade de sobrevivência, pois, muitos deles, além de manter o seu sustento, enviam dinheiro para os familiares que permaneceram no país de origem. Nessa situação, os imigrantes ficam reféns das condições ofertadas pelo país. Pesquisas corroboram essa realidade (SILVA, 2013; SIQUEIRA et al., 2016) ao afirmar que, na crise atual, a dificuldade de colocação no mercado de trabalho torna-se custosa, sendo que os imigrantes se inserem em trabalhos precários, em situações de opressão e inferiorização, tomados por uma relação de poder desigual e desequilibrada, ocupando, muitas vezes, cargos subordinados e inferiores. Isso é visível nas falas a seguir.
O salário muito diferente dos outros, trabalho de noite. Um salário menor, sempre menor. Na outra empresa, receber o mesmo salário, mas o problema deles sempre receber atrasado. [...] o trabalho que eu fazer lá não é um trabalho que eu gostava muito. Eles são muito legal comigo, mas eu não me sentir muito bem (P.1).
Na realidade eu não queria fazer isso né, eu não me sentir bem. [...]. Mas como tenho que sobreviver, tenho que sustentar né, não tem o que fazer né, tem que fazer qualquer coisa né. [...]. Mas eu não queria fazer isso de verdade. Eu queria ser professor, estudar e depois conseguir um trabalho na minha área (P.2).
Em empresa muito ruim, muita incomodação. [...], quando trabalha um humano negro, isso ser ruim. Tem muita coisa na empresa ruim. Sofri racismo (P.6).
Diante da vivência das dificuldades mencionadas, um dos participantes estava desempregado no momento de participação da entrevista, de acordo com o Quadro 2, pois havia pedido demissão recentemente. Conforme o relato a seguir, ele disse preferir estar na situação de desemprego a ter que se submeter a condições de trabalho degradantes. Essa circunstância pode estar atrelada à cultura dos senegaleses que, conforme dito pelo participante, costumam sair dos locais de trabalho que lhes causam insatisfação.
Eu não vou ficar baixando o nível que eu trabalho pra sai, eu vou pedi pra sai. Eu não vou esperar esse tempo para ser mandado embora, esse tempo eu procurar outro emprego. Eu sai na hora que eu não senti mais bem. [...] Isso porque a gente trabalha por resultado. Quando senegalês entra no trabalho e vê que alguém fazer muito menos e ganha mais que ele, ele começa a ficar mais lento e pedir para sair, não gostar mais. Fica insatisfeito do trabalho (P.1).
Quadro 2: Situação laboral dos participantes
Suj. |
Instrução |
Função |
Ramo |
Tempo empresa |
Carga Horária Dia |
Renda |
1 |
Ensino Médio |
Desempregado |
- |
- |
- |
- |
2 |
Magistério |
Expedição |
Gráfica |
1 semana |
8h |
1 a 2 salários-mínimos |
3 |
Bacharel em Direito |
Operador de Máquina |
Tapete de Carro |
6 meses |
8h |
1 a 2 salários-mínimos |
4 |
Ensino Médio |
Montador |
Telecomunicação |
4 anos |
8h |
1 a 2 salários-mínimos |
5 |
Magistério |
Vendedor e Exportador (Senegal, Turquia...) |
Ambulante |
10 meses |
10h |
2 a 3 salários-mínimos |
6 |
Ensino Médio |
Vendedor |
Ambulante |
1 ano |
15h |
1/2 a 1 salário-mínimo |
Fonte: Elaborado pelas autoras
Sabe-se que a falta de trabalho impacta a despersonalização do sujeito e favorece o adoecimento mental (COLOMBY; OLTRAMARI; RODRIGUES, 2018), visto que pessoas que exercem atividades profissionais, ao serem comparadas com aquelas que não exercem, sem levar em consideração a ocupação, relatam mais satisfação com a vida, maior nível de autoestima, visão pessoal mais eficaz e relações interpessoais mais satisfatórias (DUTTON; ROBERTS; BEDNAR, 2011). Essa visão está presente no relato dos dois participantes que estavam exercendo a função de ambulantes no momento da entrevista.
Agora eu tenho liberdade, posso trabalhar a hora que eu quero, se quero posso ficar em minha casa descansando. Mas eu trabalho todo dia. Se eu cansado, eu vou descansar em minha casa. [...]. Poderia ter melhor o trabalho, ter minha loja. Agora eu ainda não tenho como ter loja (P.5).
Aqui melhor que trabalhar numa empresa. Se tu quer tu trabalha, se não, tu não trabalha. Não tem incomodação. [...]. Assim eu não sofrer, tem gente que gosta de nós [...]. Eu me senti bom, bom. Eu gostar de ficar aqui. Aqui tem oportunidade de conhecer mais gente (P.6).
Para eles, trabalhar como ambulante lhes propicia liberdade, a qual não tinham ao trabalharem em empresas. Alegam que podem fazer seus horários e que conseguem melhor remuneração do que outros trabalhadores. Contudo, não se deve esquecer que esses trabalhadores estão à margem da sociedade, não possuindo direitos básicos atrelados à carteira assinada. Estar conseguindo se sustentar de alguma forma é o que mantém essa população ainda no Brasil, caso contrário, movimentar-se-iam para outros lugares onde lhes fornecessem mais oportunidades. Deve-se atentar que o trabalho pode ser um fator de risco à saúde dos imigrantes ao fazer com que os indivíduos se submetam a diversas situações, como, carga horária excessiva, condições precárias, falta de direitos trabalhistas e estar expostos à desigualdade, ao desrespeito, ao racismo e à xenofobia (WEBER; GIACOMINI; SONEGO, 2018).
Todos os participantes estavam exercendo ou já tinham exercido funções diferentes das que desejavam, sendo elas voltadas a práticas operacionais. Frisa-se que alguns participantes possuíam formações diferenciadas das atividades que realizavam. Esse dado vai ao encontro dos achados de Cavalcanti, Oliveira e Tonhati (2014), que apontam que em torno de 40% dos refugiados possui formação superior e ensino médio completo, porém, quando se inserem no mercado de trabalho, perdem sua classificação profissional (grau de especialização) e ficam sujeitos a posições de trabalho inferiores. A condição profissional dos entrevistados pode ser visualizada no Quadro 2.
A situação de desqualificação do profissional interfere no seu reconhecimento social e na sua identidade. Um dos participantes enunciou: “nós não temos sorte para mostrar nosso conhecimento. Se tiver oportunidade iremos lutar e mostrar nossa inteligência” (P.3). Esse contexto pode estar relacionado à dificuldade da população brasileira em aceitar os imigrantes como pessoas dignas de respeito e direitos, como também pelas dificuldades de inserções pelas diferenças da língua, cultura e valores.
Sayad (2001) problematiza que socialmente o imigrante é considerado um trabalhador sem qualificação, pois o Estado nacional não reconhece a existência do que foi executado fora do país. Diante disso, as experiências profissionais do refugiado em seu país de origem e a sua qualificação desaparecem no Brasil, ou seja, não há história profissional pregressa. O autor ainda argumenta que esse movimento pode ser considerado como um “etnocentrismo: só é conhecido e entendido o que se tem interesse em conhecer e reconhecer” (SAYAD, 2001, p. 156).
Além de a falta do reconhecimento da qualificação do imigrante, a dificuldade na comunicação também é um fator que contribui para a execução de trabalhos mais operacionais e auxiliares. Um participante citou: “Como também no início trabalhar como auxiliar não precisavam falar tanto comigo, então era mais executar, me mostrar fez e eu fez. Mas agora que eu conseguir falar um pouco melhor” (P.2).
Estudos destacam que imigrantes e refugiados têm sido solicitados na Região Sul do país devido à demanda de trabalhos que exigem pouca qualificação, como setores da construção civil e de produção industrial. Eles executam atividades laborais pesadas, como trabalhos nas fábricas de conservas, nos abatedouros de carne e frango, na construção civil, entre outros (CAVALCANTI; OLIVEIRA; TONHATI, 2014; EBERHARDT et al., 2018). Pesquisas com haitianos apontam que eles seguidamente realizam trabalhos que, por vezes, encontram-se em condições quase análogas à escravidão, com cargas horárias de trabalho acima do adequado (maior que 48 horas semanais), salários desproporcionais, riscos de acidentes laborais, adoecimentos físicos e mentais, sofrimento psicossocial, trabalho demarcado por gênero, xenofobia e racismo, entre outros (EBERHARDT et al., 2018; LEÃO et al., 2017; WEBER; GIACOMINI; SONEGO, 2018). Inegavelmente, essas situações afetam a saúde mental dos trabalhadores que, com o passar do tempo, não irão mais suportar suas atividades laborais, ou até mesmo, adoecer. Um dos participantes relatou: “Trabalho ser ruim por viajar muito, ficar muito tempo longe, isso fazer eu ficar muito estressado. Eu andar, ficar muito nervoso, porque trabalho ser estressante” (P.4).
Este estudo objetivou conhecer as experiências de inserção profissional e trabalho de pessoas em situação de migração no Sul do Brasil. Foram entrevistados imigrantes provenientes do Haiti e do Senegal, considerados, pela legislação brasileira, refugiados, uma vez que são provenientes de países que apresentam condições sociais e econômicas desfavoráveis, o que faz com que as pessoas que vivem nesses locais não tenham outra opção senão a migração. Contudo, os participantes não se reconheciam como refugiados e sim como imigrantes, uma vez que relatavam que seus países não apresentavam problemas graves e eles não eram pobres.
O Brasil, por ter uma legislação voltada ao processo migratório e uma regulação mais flexível em relação à entrada de refugiados e imigrantes, é geralmente visto como uma boa opção para migrar. Os participantes relataram que buscaram o país devido a relatos de familiares e amigos, os quais consideravam o Brasil um país com possibilidade de se estabelecer profissionalmente. No entanto, o processo migratório relatado pelos participantes foi, em sua maioria, frustrante, uma vez que as expectativas dos imigrantes não foram alcançadas devido à estrutura política, econômica e social do Brasil. Portanto, o país necessita melhorar a recepção aos imigrantes e refugiados. Os entrevistados relataram terem sidos bem acolhidos pelas pessoas de ONGs, igrejas e projetos sociais, que lhes ensinaram a língua nacional, deram roupas, e lhes arrumaram trabalho. Conforme relatos dos participantes, eles não são orientados quanto aos seus direitos e deveres, tornando-se obrigação do indivíduo buscar tal informação.
Na perspectiva da inserção profissional, os refugiados e imigrantes se inserem em trabalhos precários e inferiorizados, com baixos salários, com muitos dos seus direitos violados, e sua formação desvalorizada. Muitas vezes optam por trabalhos informais, que apresentam viés de liberdade e que não necessitam se relacionar com o processo de trabalho brasileiro. Percebe-se que a inserção laboral é de extrema importância para a consolidação das redes sociais, para a aquisição de capital social e simbólico. Consequentemente, o lugar social dos imigrantes e refugiados está marcado pela posição que ocupam no mercado de trabalho, que até o momento é de precariedade e luta pela sobrevivência.
Acredita-se que este estudo ajuda a evoluir no conhecimento científico sobre as migrações para o Brasil, pois auxilia a identificar quem são os imigrantes de países em desenvolvimento que buscam o país e como eles estão se inserindo profissionalmente na sociedade brasileira. Somente ao compreender como o processo ocorre é que será possível propor melhorias nas condições laborais dos imigrantes no Brasil. Essas melhorias podem acontecer por meio de instituições que visem ao bem-estar da população que se encontra em situação de vulnerabilidade, como o Cras (Centro de Referência de Assistência Social) e Creas (Centro de Referência Especializado de Assistência Social), que propõem assistência à população vulnerável e de risco social, fazendo os necessários encaminhamentos e inclusões.
Como limitações deste estudo, destaca-se a comunicação, que dificultou o entendimento entre os participantes e a entrevistadora. Mesmo que todos falassem português, as palavras possuem, muitas vezes, sentidos diferentes. Além disso, este estudo foi de cunho exploratório, qualitativo, analisando apenas a visão de alguns imigrantes, os quais se alocaram em uma região específica do Brasil, o que não permite a generalização dos resultados. Recomenda-se a realização de pesquisas com imigrantes de outras regiões do Brasil e de natureza quantitativa, a qual possa conhecer a realidade vivenciada pelos imigrantes em maior proporção. Sugere-se também que sejam feitos estudos com empresas que empregam imigrantes para entender como ocorre a inserção profissional deles nesses locais, ou seja, qual a visão das organizações sobre as migrações.
Referências
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Recebido em: 13/05/2020
Aceito em: 14/07/2021
“UMA VESTE PROVAVELMENTE AZUL”:
dominação e ditadura
“A PROBABLY BLUE VEST”:
domination and dictatorship
____________________________________
Nelson Lellis1*
Ricardo Ramos Shiota2**
Resumo
O presente artigo ocupa-se em interpretar o conto “Uma veste provavelmente azul”, de Caio Fernando Abreu, destacando o tema da dominação conforme o pensamento sociológico. A intenção é analisar as influências de um campo rico em debates sobre a dominação, bem como dessa base histórica, para a confecção alegórica de Caio F. Abreu. Para isso, este texto dialoga com autores que debateram e ajudaram a documentar as relações políticas e sociais do Brasil que tiveram seu desdobramento no cenário da ditadura empresarial-militar da década de 1960.
Palavras-chave: Conto. Caio Fernando Abreu. Ditadura militar. Dominação.
Abstract
The present article is concerned with interpreting Caio Fernando Abreu’s tale “A probably blue vest”, highlighting the theme of domination according to sociological thought. The intention is to analyze the influences of a field rich in debates about domination, as well as this historical basis, for Caio F. Abreu’s allegorical confection. To this end, this text dialogues with authors who debated and helped document Brazil’s political and social relations that unfolded in the scenario of the business-military dictatorship of the 1960s.
Keywords: Tale. Caio Fernando Abreu. Military Dictatorship. Domination.
Introdução
Segundo Marcos Napolitano (2007) pode-se entender por arte engajada, no Brasil dos anos 1960, um compromisso com as causas públicas e progressistas, com bandeiras como o anti-imperialismo, a reforma agrária, o socialismo, o comunismo, a defesa do desenvolvimento nacional, da política externa independente e dos países não alinhados (SHIOTA, 2017a). O nacional-popular sugeria o alinhamento de classes sociais diferentes e a incorporação de fontes populares. Após os golpes de 1964 e 1968, emerge a chamada “resistência democrática”. Os impasses das esquerdas, acuadas e isoladas das classes populares pela coerção dos que tomaram o poder de Estado, serviam de motivos para algumas manifestações artísticas engajadas, como o Cinema Novo, uma arte esteticamente plural e ideologicamente eclética (NAPOLITANO, 2007). Além disso,
1* Doutorado em andamento pelo Programa de Pós-Graduação em Sociologia Política da UENF, mestre em Ciências das Religiões e teólogo pela FUV, licenciado em Ciências Sociais pela FAVENI. Membro do grupo de pesquisas CRELIG (Dinâmicas Territoriais, Cultura e Religião). E-mail: nelsonlellis@gmail.com
2** Professor celetista na UEMS/Paranaíba. Doutor em Sociologia pela Unicamp e membro do grupo de pesquisas NEPEC (Núcleo de Estudos em Política, Estado e Capitalismo na América Latina). E-mail: rrshiota@gmail.com
ISSN 1517-5901 (online)
POLÍTICA & TRABALHO
Revista de Ciências Sociais, nº 54, Janeiro/Junho de 2021, p. 186-202
(...) a produção cultural, largamente controlada pela esquerda, estará nesse período pré e pós-64 marcada pelos temas do debate político. Seja ao nível da produção em traços populistas, seja em relação às vanguardas, os temas da modernização, da democratização, o nacionalismo e a “fé no povo”, estarão no centro das discussões, informando e delineando a necessidade de uma arte participante, forjando o mito do alcance revolucionário da palavra poética. (HOLLANDA, 1972, p. 17).
Arte engajada era produzida pelas esquerdas, que foram incapazes de tocar nos fundamentos econômicos e políticos das classes sociais dominantes, mas, apesar disso, as esquerdas teriam sido vitoriosas no debate político-ideológico (BRANDÃO, 1999). Dizia um crítico da época: “de que serve a hegemonia ideológica, se não se traduz em força física imediata?” (SCHWARTZ, 2009, p. 53). A nascente indústria cultural parece iluminar as contradições, pois “paradoxalmente, a arte engajada da esquerda foi incorporada pelo mercado como uma das mais valorizadas formas do consumo cultural da classe média brasileira” (NAPOLITANO, 2007, p. 587). Não é por menos que Adorno e Horkheimer (1973) viam na tensão entre forma e conteúdo o elemento mais essencial da obra de arte, cujo exame vai além do contexto no qual são criadas e operam pelo aprofundamento do sentido social das próprias obras cientes de que, como mercadorias, perdem a autonomia enquanto arte. Essas reflexões servem como ponto de partida para situarmos o nosso personagem em sua trama.
Caio Fernando Abreu (1948-1996) nasceu em Santiago do Boqueirão, no Rio Grande do Sul. Abandonou os cursos de Letras e Artes Cênicas da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) para trabalhar como jornalista. No ano de 1968, perseguido pela ditadura empresarial-militar (DREIFUSS, 1981), foi para a cidade de Campinas (SP) juntamente com a escritora Hilda Hilst, que entendia o objetivo do discurso artístico como a conscientização de setores populares para um destino revolucionário – o que também pode ser notado nos escritos de Abreu, tanto em seu trabalho como jornalista quanto em sua dedicação à literatura e à poesia.
Na fortuna crítica de Abreu tem se sobressaído pesquisas acerca da dimensão literária de sua obra. No campo da Literatura Comparada, por exemplo, Aline Azevedo Bizello (2005) discutiu as relações entre os contos de Abreu com o romance On the Road (do norte-americano Jack Kerouac). Já Roberto Círio Nogueira (2010) observou as alegorias utilizadas em seus contos e a concepção todoroviana dos gêneros adotados. Guilherme Fernandes (2010) atentou para a postura crítica do autor e a maneira como lida com a representação da violência em seus contos. E, como desdobramento de tal produção, é possível encontrar a análise das formas de composição das curtas narrativas de Abreu (PORTO 2011), bem como o mapeamento da construção de suas personae literárias sob a ótica da escrita autoficcional (NOVAIS; GOMES, 2014).
Para análise da obra do escritor gaúcho, as pesquisas supracitadas utilizaram, sobretudo, conceitos do campo da Linguística. Embora a própria relação de seus contos já tenha sido contemplada no que se refere à ditadura empresarial-militar, não há uma hermenêutica que discuta os enquadramentos alegóricos nas cenas da realidade histórica do conto “Uma veste provavelmente azul”, selecionado para o presente artigo, dentro dos aportes oferecidos pelo pensamento sociológico para pensar a alegoria da dominação presente no conto de Caio F. Abreu. A alegoria é uma figura de linguagem usada para escrever uma coisa e significar outra. No conto estudado, personagens imaginários são a expressão de relações sociais de dominação, uma variável constitutiva das relações sociais (APFELBAUM, 1979).
Do conto “Uma veste provavelmente azul”
A obra “O ovo apunhalado”, publicada pela primeira vez em 1975, é dividida por capítulos cujas iniciais adotam as primeiras letras do alfabeto grego: alfa, beta e gama. Há 21 contos dispostos esteticamente nos 3 capítulos: 7 em cada seção. Embora o livro tenha sido publicado em 1975, pelo Instituto Nacional do Livro em parceria com a Editora Globo, os contos foram produzidos entre 1969 e 1973 (NOVAIS; GOMES, 2014). “Uma veste provavelmente azul” abre o segundo momento do livro (beta), cujo conteúdo literário serviu para (re)construir a imagem da atmosfera social e política do Brasil surgida em 1964, com a ditadura empresarial-militar (NOVAIS; GOMES, 2014).
Entre 1945 e 1964, surgiram muitas editoras com uma orientação política de esquerda, como a Brasiliense, a Fulgor, a Livraria São José, a Tempo Brasileiro, a Editora Zahar, a Editora Vitória, dentre outras. Tais editoras possuíam em seus catálogos vários títulos voltados para o público acadêmico, mais especificamente na área das chamadas ciências moles. Contudo, com o início da ditadura empresarial-militar, a política de repressão e censura afetou esse tipo de mercado.
Milhares de livros foram sumariamente confiscados de livrarias e das editoras pelas mais diversas razões: por falarem de comunismo (mesmo que fosse contra), porque o autor era persona non grata do regime, por serem traduções do russo, ou simplesmente porque tinham capas vermelhas (HALLEWEL, 1985, p. 483)
A produção de contos, romances e demais textos críticos, havia sido proibida após o Ato Institucional n.º ٥ (AI-5), em 1968. As editoras progressistas sofriam boicote do regime, que pressionava bancos para não concederem empréstimos ou bancas de rua e livrarias para não venderem os livros daquelas editoras. Para se ter uma ideia, “em fins de 1978 havia perto de quinhentos livros proibidos no Brasil” (HALLEWEL, 1985, p. 501). Além da censura política, havia também as dificuldades econômicas do setor, o que fazia com que ninguém publicasse “qualquer livro que não oferecesse a certeza de ser vendido rapidamente” (HALLEWEL, 1985, p. 458). Todavia, a estigmatização desses textos não foi suficientemente capaz de impedir totalmente a publicação, a circulação e a leitura de muitos deles. Um dos casos é o próprio conto “Uma veste provavelmente azul” que alegoriza o poder e a dominação, na dimensão mais coercitiva, expressa pela solução ditatorial.
Esse tipo de representação da realidade é exemplificado, metodologicamente, por Marin (2001), para o qual é possível enxergar os valores históricos em sintonia com a configuração literária ficcional. O material literário confeccionado, neste caso, serve como testemunho de época utilizando representações (alegorias) para destacar personagens inseridos em determinados eventos.
Walter Benjamin (1984) distingue o símbolo, que busca eternizar e totalizar o sentido de determinado objeto artístico, do método alegórico, que possibilita a renovação de construção de imagens, pois mostra-se aberto para novas interpretações. A dúvida sobre a autenticidade de sua obra, se estaria em sua capacidade crítica materialista (inspirado pelo movimento surrealista) ou pensamentos teológicos (do mundo judaico), fez com que teóricos marxistas criticassem Benjamin pela ambiguidade ou até mesmo inacessibilidade de seus textos. Contudo, após interpretar Baudelaire e escrever “Passagens”, Benjamin afirma que a filologia praticada nos escritos oitocentistas “não pode ser praticada senão pelo marxismo” (BENJAMIN, 2006, p. 518). Tanto na poesia baudelairiana quanto em “Passagens”, aspectos como mercadorias, jogos e fetichismo ajudam a compor um arquivo da vida moderna. Desse modo, a alegoria, além de manter em aberto a interpretação de elementos de um texto, ajuda a reconhecer a temporalidade da sociedade e sua história. A alegoria não é o que está aparente – motivo por que se conseguia criticar e tornar públicas determinadas músicas e textos no período da ditadura empresarial-militar.
Ao descrever – alegoricamente (visto que em tempos de censura e cerceamento às liberdades essa descrição deveria ser velada) – as injustiças, violências e agonias da sociedade brasileira, no conto, Caio F. Abreu convertia o problema político-social em problema interno, com a manifestação estética “atingindo assim a forma de suas criações” (GINZBURG, 2000, p. 44). Embora autores como Georg Lukács (1969) criticassem o caráter alegórico por entender que a crítica ao mundo capitalista não se dava de forma explícita, o trabalho de Abreu busca contrariar tais impressões permitindo ao menos duas coisas: a) registrar a história, tornando conhecido os entraves sociais do país, e; b) fazer com que os leitores recepcionassem esteticamente o texto, observando, de forma sensível, as críticas ali manifestas.
Bittencourt (1999) classifica “Uma veste provavelmente azul” como um conto que trouxe aos leitores uma narrativa carregada de subjetividades, capaz de explorar os cenários da história do país com recursos estilísticos aguçados. Desconsiderar o contexto manifesto no texto tornaria diminuta a manifestação crítica de uma obra que ganhou menção honrosa do Prêmio Nacional de Ficção na década de 1970 (PORTO, 2011).
Dominação: da alegoria ao conceito
A categoria dominação pode ser profícua para iluminar o conto de Caio F. Abreu. No âmbito das Ciências Sociais, a despeito de os autores clássicos já terem oferecido contribuições fundamentais para a elucidação do tema – assim como os intelectuais vinculados à chamada Escola de Frankfurt terem defendido a crítica e a insubordinação a todas as formas de dominação – essa categoria só se rotinizou no campo discursivo precisamente na década de 1960, através das ações dos movimentos de emancipação (APFELBAUM, 1979).
A análise da opressão colonial colocou o tema da dominação no centro discursivo das Ciências Sociais com as contribuições de Aimé Césaire, Franz Fanon ou Albert Memmi desvendando os mecanismos da opressão do ponto de vista dos párias sociais: o judeu, o negro, o colonizado, o proletário, a mulher, também Michel Foucault teve um papel proeminente ao analisar o poder sob novos ângulos e desvendar seus efeitos no domínio da sexualidade (APFELBAUM, 1979). É com o movimento feminista e a teoria feminista, na década de 1970, que o tema da dominação adquire centralidade no discurso das Ciências Sociais, já em avançado processo de institucionalização.
Para os nossos propósitos, interessa-nos aludir às contribuições predecessoras de Weber (1971) sobre o tema da dominação, bem como o modo pelo qual alguns pensadores brasileiros coetâneos a Abreu ponderaram as relações de dominação na formação social brasileira, com suas características e manifestações patriarcais, senhoriais, dominação externa colonial, neocolonial, dependência, estamentos, formas históricas de exploração do trabalho, classes sociais (FREYRE, 1975; MORAIS, 1965; FERNANDES, 2006; PINTO, 1958).
Para Marx (1996) e Weber (1971), a ordem social e a coesão são engendradas e conservadas por consenso e/ou coerção: por dominação, sobretudo, com a ação de instituições como o Estado. Apesar de aproximações possíveis, as teorias desses autores partem de pressupostos epistemológicos e metodológicos que os levam a conceber a dominação de modos completamente distintos. Assim, por exemplo, enquanto Marx (1996) a deriva da estruturação social do trabalho, de modo a ponderar as relações assimétricas entre os indivíduos que se constituem historicamente, Weber (1971) a concebe de modo formal como uma das manifestações principais do poder, atentando-se para as fontes de sua legitimidade, sendo essas oferecidas pelo consenso do dominado, amparado na autoridade da tradição, na coerção do Estado ou na excepcionalidade dos chefes.
Enquanto Weber participou da República de Weimar, anos após, Franz Neumann (1943) vivenciou a ascensão do regime nazista. Como uma mão totalitária, semelhante à do narrador do conto que subjuga os “homenzinhos verdes”, a dominação fascista centralizou o poder no executivo, fomentou a irracionalidade, a manipulação das massas com as técnicas e tecnologias mais avançadas, o niilismo, o relativismo, o pragmatismo e o anti-intelectualismo, acabou com os direitos, sobressaindo a dimensão coercitiva do poder, assim como a liderança carismática. Na polêmica tese do autor, “los grupos gobernantes controlan al resto de la población de una manera directa, sin que medie ese aparato racional aunque coercitivo que hasta ahora se conoce con el nombre de estado” (NEUMANN, 1943, p. 518). Mutatis mutandis, as diferentes formulações no âmbito das Ciências Sociais e do pensamento sociológico, a propósito da dominação, sinalizam que toda relação social é perpassada por relações de dominação e desigualdades (APFELBAUM, 1979).
Como advertidos, leitores já situam o conto no final da década de 1960 e início de 1970, período da ditadura militar, quando a repressão, a censura, o terrorismo de Estado, o medo e a queda de salários eram uma realidade. Além disso, o contexto político-social fora marcado pelo êxodo rural, somado ao crescimento industrial vertiginoso, falava-se em “milagre econômico”. Após anos de recessão, o desenvolvimentismo assumia a feição conservadora, antidemocrática e antipopular, chegara-se ao ápice da produção industrial que, mais tarde, na década de 1990, o neoliberalismo viria para solapar.
Paes (1997) descreve que a década de 1960 teve, além de crescimento econômico, um desenvolvimento tecnológico que atingiu todos, indistintamente. A afirmação de Paes é arriscada, uma vez que a economia brasileira viveu sua crise entre 1961 e 1966, e a mudança de vetor no que tange ao crescimento industrial da ditadura acontece após 1969, por conta desse processo de industrialização (indústrias automobilísticas, produtos eletrônicos etc.) e do AI-5, que pôs fim às agitações e mobilizações contra o novo regime. As contestações sociais apareciam por meios diversos. A despeito da censura aos produtos culturais, havia o movimento hippie, o movimento dos estudantes universitários, o psicodelismo, o punk e a própria literatura. Paes afirma que Caio F. Abreu participou de todos esses movimentos perambulando pelos cenários undergrounds da época.
Como jornalista e dramaturgo, o autor apresenta um cenário com elementos, cores e personagens muito bem-dispostos, a fim de que o leitor coetâneo pudesse identificá-los na realidade política e social. O pano de fundo é a ditadura empresarial-militar e os efeitos que nela foram produzidos ou intensificados, como o terrorismo de Estado, a violência física, a tortura, o assassinato, a exploração do trabalho, a dominação externa, a dominação interna, a dominação patriarcal, a dominação senhorial, as desigualdades, a dominação de estamento, a dominação de classe e a dominação do Estado.
Interessante notar que o narrador do conto participa como personagem principal de uma história de longa duração contada do ponto de vista do vencedor, do inimigo que não tem cessado de vencer. Parece, com isso, que o autor tinha interesse que o leitor refletisse sobre a dominação, a subjugação, a obrigação, a ameaça, a ação coercitiva dos aparelhos do Estado.
Da análise do conto
O conto “Uma Veste Provavelmente Azul”, transcrito abaixo, é uma espécie de “documento” acerca do período mais sinistro da repressão da ditadura no Brasil. O autor trabalha por meio de uma narrativa alegórica evocando, ainda que sem desconsiderar a polissemia, o cenário de “catástrofes incríveis”. É possível captar, pela perspectiva que adotamos, o conflito, a dominação, os antagonismos político-sociais. Em poucas linhas, Caio F. Abreu narra a história de “dois homenzinhos verdes correndo sobre o tapete” e de seus descendentes, dominados por alguém que determina a produção de uma “longa veste provavelmente azul”. Os personagens são apresentados figuradamente, isto é, de forma simbólica, equívoca e ambígua, mas remetem a uma cena palpável ao leitor, uma vez que se trata de uma determinação concreta e vigente há milênios, a realidade da dominação sempre presente nas relações sociais.
Eu estava ali, sem nenhum plano imediato, quando vi os dois homenzinhos verdes correndo sobre o tapete. Um deles retirou do bolso um minúsculo lenço e passou-o na testa. Pensei então que o lenço era feito de finíssimos fios e que eles deviam ser hábeis tecelões. Ao mesmo tempo, lembrei também que necessitava de uma longa veste: uma muito longa veste provavelmente azul. Não foi difícil subjugá-los e obrigá-los a tecerem para mim. Trouxeram suas famílias e levaram milênios nesse trabalho. Catástrofes incríveis: emaranhavam-se nos fios, sufocavam no meio do pano, as agulhas os apunhalavam. Inúmeras gerações se sucederam. Nascendo, tecendo e morrendo. Enquanto isso, minha mão direita pousava ameaçadora sobre suas cabeças (ABREU, 2008, p. 31).
Vejamos de que maneira o conceito-chave apresentado na seção anterior nos ajuda neste exercício hermenêutico para a compreensão do conto. Destacando seis trechos como indícios textuais, verificar-se-á tanto o cenário epocal quanto a postura do autor, que enaltecem a dimensão coercitiva do poder e da dominação. O conto coloca seus leitores frente ao cenário ficcional da obra, a qual expõe um drama de longa duração.
1º trecho – “Uma veste provavelmente azul”.
Caio F. Abreu apresenta, de forma alegórica, ficcional, agentes reais da sociedade de sua época. No prefácio da reedição de “Inventário do irremediável”, o próprio autor apresenta a obra “O ovo apunhalado” como “vagas alegorias sobre a ditadura militar no país” (ABREU, 1995a, p. 18). No termo benjaminiano, as formas estéticas da alegoria se apresentam como verdadeiros conteúdos culturais (PRESSIER, 2006, p. 185).
A análise que se propõe neste exercício sublinha personagens e eventos a fim de apresentá-los dentro do imaginário coletivo, que remete à época e à formação social brasileira. Como destacado por Paula Dip (2011, p. 137, grifo nosso), “a obra de Caio, no futuro, seria analisada por cientistas políticos e considerada um retrato sociopolítico do seu tempo, e ele, um autor lúcido e crítico em relação ao regime militar”.
No trecho 1, a cor azul foi comparada dentro da obra “O ovo apunhalado” e vista como cor de uma vara e de um céu que abriga um sol incapacitante (ABREU, 2008). Para os “homenzinhos verdes”, a cor azul simboliza punição e trabalho inumano. Em outros contos do mesmo livro, a cor azul surge como imagem de desejo e de ostentação para aqueles que dela fazem uso. Seguem alguns exemplos:
Conto |
Cor azul |
Réquiem por um fugitivo |
Unha pintada de azul |
Gravata |
A colcha é azul |
Retratos: domingo |
Mão muito fina e meio azulada |
Cavalo branco no escuro |
Uma parede azul; alguém vestido de azul |
O ovo apunhalado |
Azulejos azuis |
Como já anunciado, a “veste provavelmente azul” capta a intenção do poderio político-militar e econômico, e não da ideologia de esperança para uma mudança de quem oprime. E por que não uma história de seu país? O conto pode ser interpretado sob o ângulo das três raças que constituem a formação social brasileira. Não seriam os “homenzinhos verdes” nativos e africanos escravizados por nobres europeus que acreditavam ter “sangue azul”? Mas, ao invés de uma dialética entre senhor e escravo, tal como pensada por Hegel, a dominação se mantém nesse espaço geográfico que deu origem ao Brasil desde a chegada dos antepassados do narrador.
Gilberto Freyre assegura que o patriarcalismo como forma remanesce na sociedade brasileira e se posiciona em defesa dos valores patriarcais consagrados pelas Forças Armadas (SHIOTA, 2017b). Na mesma linha, Pessoa de Morais (1965) estabelece relações entre o que chamou, eufemisticamente, de “movimento armado de abril” com a cultura política do patriarcado. Segundo ele, tanto a burguesia brasileira quanto os militares tinham uma profunda formação patriarcal e que “por baixo, no entanto, dessas camadas mais visíveis da própria civilização urbana e de massas de hoje, ainda existe entre nós um forte acervo rural e patriarcal, mesmo nos redutos citadinos” (MORAIS, 1965, p. 19).
À época, a farda dos oficiais possuía cor azul. Conhecida como “jaquetão azul”, veio substituir a sobrecasaca (JORNAL DE SERVIÇO, ١٩٧٠, p. ١٩). O narrador, que pertence à classe social dominante, não vê dificuldades em obrigar e subjugar os homenzinhos verdes para que confeccionem uma longa veste azul. Os homenzinhos atendem à ordem porque, aparentemente, não há alternativa. Creem-se verdes!
Ademais, a análise da veste azul pode remeter a outros dois significados: a) da farda de oficiais militares, e; b) da moda com cores fortes (CAPPI, 2010), que buscava se contrapor à vestimenta militar, bem como estabelecer uma outra postura política. Nesse segundo plano, há mais duas características: as roupas hippies, com aspecto desbotado, e; as roupas psicodélicas dos grupos musicais que surgiam para confrontar, com seus próprios estilos, a linha ideológica militar.
Tanto o item a quanto o item b estão ligados ao contexto sociopolítico do conto, uma vez que parecem denotar a forçada “servidão” (WEBER, 1971, p. 217) de quem fabrica as vestes. Neste ponto, a ideia de uma dominação legitimada pela tradição expõe a divisão de classe. Conforme Weber (1971, p. 216): a) a classe em si não constitui uma comunidade; b) são as ações em massa (ou ações comunitárias) que constituem as situações de classe; c) uma característica que determina a diferença entre as situações de classe é o mercado de produtos e a maneira como se dá sua produção. Os “homenzinhos verdes” seriam identificados não por formarem uma comunidade em si, mas pelo fato de que os indivíduos com vestes azuis buscam igualá-los, uniformizá-los.
A dominação modifica suas formas, mas remanesce. Esse era o debate da época acerca da natureza da formação social brasileira e das formas de dominação vigentes, se essa sociedade era de castas, feudal, estamental, patriarcal, capitalista (HIRANO, 2008). Como essa dominação permanece e se modifica ao longo da história? Que modo de produção existiu e existe? É uma sociedade capitalista ou pré-capitalista? Em resposta a tais perguntas, as esquerdas elaboravam estratégias políticas em busca do sujeito da transformação daquela situação social retratada no conto de Caio F. Abreu.
Além disso, a cor azul também aparece no conto “O ovo apunhalado”, presente na obra em questão. Essa é a mesma cor de uma vara (ABREU, 2008, p. 153) e de um céu que abriga um sol incapacitante (ABREU, 2008, p. 154). Ou seja, trata-se de uma cor que abriga um significado que agride o humano, seja por um sujeito (ou grupo) opressor, seja pela própria dimensão da natureza. A resposta para essa questão encontrar-se-ia em outro conto do autor: “Ponto de fuga”, que pertente à obra “O inventário do irremediável” (1970), e que reaparece em “Caio Fernando Abreu: O essencial da década de 1970”. Trata-se de um interlocutor que, caminhando sobre pedras (sua jornada), procura um ponto de referência. O ponto de fuga é a referência de si mesmo numa época de solidão e desencontros com o “eu”. Ao encontrar-se com a moça vestida de azul, percebe-se invadido por essa imagem. A moça é provavelmente uma estátua de pedra. Realidade e imaginação se misturam na intenção de trazer para o leitor e a leitora a complexidade da dialética do ser (SPITZNER, 2013). A moça vestida de azul é uma espécie de ironia, de paradoxo, em que o interlocutor pode dizer que não há salvação no absoluto, na doutrina, na compreensão, há apenas tempo – em que se estabelece a identidade do “eu”. Finalmente, a cor azul não tem conotação positiva.
2º trecho – O sujeito que narra: “Eu estava ali, sem nenhum plano imediato...”.
“Eu estava ali”. Quem pode ser identificado como o “eu” dessa cena? Não há nenhum equívoco em afirmar que se trata do “eu” ventilado no 1º trecho. Esse “eu”, embora não possua um plano imediato, respalda suas ações numa dinâmica que o próprio cenário do conto adverte: ele está fora do tapete. O “lugar” do sujeito é apontado no término do conto, quando narra que sua mão direita pousa “acima” dos homenzinhos verdes. O “eu” representa o coletivo de quem se encontra num lugar opressor.
A expressão “plano imediato” referir-se-ia à ideia militar para algum tipo de intervenção político-social. “Plano imediato” estava também ligado aos inconformados em relação à ditadura; o adjetivo “imediato”, aos resultados buscados pela ditadura. Em contraposição, o “plano remoto” estava ligado às classes sociais dominantes. Dreifuss (1981) desvelou o caráter de classe do golpe de 1964 provando com farta documentação histórica que ele não esteve apenas a serviço de um modelo econômico-corporativo. Mais do que isso, a ditadura surge em proveito da classe capitalista dominante, liderada pela fração mais associada com o capital estrangeiro.
Ao contrário das esquerdas, os vencedores não tinham um projeto de nação com propósitos emancipadores, apenas se contrapunham aos diferentes projetos de transformação social que estavam sendo gestados pelas esquerdas – que grassavam ideologias como: a social-democracia, o nacionalismo, o socialismo, o comunismo de matriz soviética, olhando para a União Soviética, para a China, para Cuba, para os países não alinhados, em busca de um modelo a ser seguido (SHIOTA, 2018). Projetos que eram gestados em meio ao surgimento de novos atores sociais na formação social brasileira, o que Florestan Fernandes (2006) designou como se tratando do surgimento do povo na história – não como povo social (ou patuleia, no vocabulário senhorial), mas o povo político: desde a década de ١٩٢٠ com formas associativas e movimentos sociais de afro-brasileiros que reivindicavam uma segunda abolição, até o interregno democrático quando emergem operários, camponeses, estudantes, ligas camponesas, sindicatos, praças e sargentos, entre outros atores das classes populares.
A ditadura de 1964 “foi, na realidade, uma ditadura de classe” (FERNANDES, 2010, p. 149), que usou a autoridade dos militares para instalar as bases do poder burguês. A composição de interesses públicos e privados, internos e externos, que lhe serviu de base, tinha como objetivo garantir condições de estabilidade para a transição de uma nova modalidade de desenvolvimento do capitalismo dependente. A despeito de privilegiar determinadas classes sociais internas e externas e superexplorar os trabalhadores, a ditadura, além de não resolver a crise do poder burguês, devido aos conflitos intramuros das classes dominantes na repartição da mais-valia relativa produzida no país, ampliou o mercado interno, generalizou as relações capitalistas de produção para toda a sociedade (FERNANDES, 1990).
3º trecho – “...homenzinhos verdes correndo sobre o tapete...”.
O “eu” (representação do grupo opressor) olha para o “tapete”. Esse mesmo elemento que compõe o cenário do conto aparece nos seguintes contos da obra “O ovo apunhalado”:
Conto |
Tapete |
Visita |
A memória que não possui rituais é comparada a uma tapeçaria velha exposta ao vento: frágil |
Sarau |
A imagem de um tapete persa que se tornou antiquário no mercado da cidade |
O dia de ontem |
Local onde uma mulher de vestido estampado fuma com uma piteira |
Retratos (sexta-feira) |
Pessoas pesadas como elefantes esmagam tapetes |
Uns sábados, uns agostos |
Recipiente de fios de linha, cinzas, ponta de cigarro e placa de lama endurecida trazida por sapatos |
O ovo apunhalado |
Curiosamente, a cor do tapete aqui é verde; lugar de metamorfose |
Em suma, o tapete é um adereço que expõe o lugar da “fragilidade”, do “dominado”, da “eternização no mercado”, das relações sociais de exploração e da “metamorfose”. No último conto (quadro acima), o tapete é verde e causa uma transformação radical através do convite: “venha, veja, toque, sinta, seja” (grifo nosso). O conto “Uma veste provavelmente azul” não apresenta a cor do tapete, apenas daqueles homenzinhos que correm sobre ele. O tapete (único lugar dos homenzinhos) os moldou, os tornou verdes, “imaturos”. Todos os que ali vivem e correm são oprimidos e, por isso, dominados – ou: dominados e, por isso, oprimidos. Correm por não haver paz. Não há descanso, há trabalho mal remunerado. Precisam prover o mínimo numa situação desigual instalada. Enquanto o “eu” possui tempo para contemplar, os homenzinhos precisam correr.
O conto de Caio F. Abreu remete aos diferentes arranjos de dominação vigentes ao longo dos séculos. “Não foi difícil subjugá-los e obrigá-los a tecerem para mim. Trouxeram suas famílias e levaram milênios nesse trabalho. Catástrofes incríveis: emaranhavam-se nos fios, sufocavam no meio do pano, as agulhas os apunhalavam. Inúmeras gerações se sucederam” (ABREU, 2008). Além da escravidão e da servidão de negros e indígenas, até mesmo os homens livres eram subordinados a uma teia de relações senhoriais no vasto mundo rural brasileiro. Costa Pinto (1958) sintetiza as diferentes formas de exploração do trabalho vigentes como: renda-trabalho, “quando a parceria consiste em o proprietário ceder a terra em troca de alguns dias de trabalho na semana, em que o lavrador é obrigado a trabalhar nas lavouras do proprietário”; renda-produto, “neste caso, desobrigado de dar dias de trabalho gratuito ao proprietário, o lavrador entrega-lhe uma parte – a terça ou a meia – do que ele produziu como preço do aluguel da terra” (PINTO, 1958, p. 50). A renda-dinheiro ocorria
quando o aluguel da terra é pago tão somente em dinheiro. Esses três tipos não raro aparecem mesclados, especialmente os dois últimos, cabendo ao lavrador pagar ao proprietário da terra uma parte em dinheiro e outra parte em produtos, não somente da lavoura principal, que no caso é o fumo, mas de tudo o que cultivou, inclusive lavouras de subsistência e até o gado miúdo entra nas obrigações da parceria, porcos, cabras etc. (PINTO, 1958, p. 50-51).
Além disso, ele esclarece o padrão de relações de trabalho tradicional:
Além do emprego e do salário, o trabalhador tinha a legítima expectativa de receber, do patrão paternalista, enxoval para o casamento, lugar e material para construir sua casa, auxílio nas necessidades, remédio na doença, batismo dos filhos, escola para alfabetizá-los, recreação nas festas do calendário doméstico e religioso, proteção e apoio nas rixas e demandas, ajuda na hora do enterro. Tudo relativo ao seu status resultava diretamente de sua posição no mundo paternalista, cujas agências e instituições constituíam para ele a esfera global onde sua vida decorria. Por sua vez cabia ao trabalhador, em troca, dar ao patrão, além de trabalho – gratidão, dedicação pessoal, voto, defesa, reverência e prestígio. De parte a parte, todas essas coisas – e não simplesmente a prestação de serviço e sua remuneração – entravam no mútuo e tácito compromisso inerente ao sistema patriarcal. (PINTO, 1958, p. 121).
O que vigorava nesse sistema não era a simples troca de favor, mas a troca de obrigações sociais recíprocas entre indivíduos ocupantes de posições sociais distintas. O aspecto econômico na estrutura de dominação tradicional aproxima-se da dominação legal, em que as articulações na sociedade capitalista não levam em “consideração a pessoa” (WEBER, 2016, p. 545), mas apenas suas regras de conveniência, cuja imagem principal é a subordinação dos inferiores aos superiores. Acreditava-se que o desenvolvimento econômico capitalista acabaria com essas formas de dominação vigentes no vasto mundo rural brasileiro. Acreditava-se ainda na industrialização como panaceia para os problemas brasileiros.
Após um período de estagnação e crise econômica, parecia que o bordão “Brasil, país do futuro”, finalmente se tornaria uma realidade. A partir de 1968, a demanda externa dos produtos nacionais foi favorecida por causa da política de minidesvalorização cambial somada aos “incentivos fiscais e creditícios do governo” (PEREIRA, 2016, p. 132). Segundo Pereira (2016), o que originou a expansão da liquidez real da economia foram três aspectos: a) a elevação do crédito bancário ao setor privado; b) a contrapartida em moeda nacional dos empréstimos externos, e; c) o forte crescimento dos ativos financeiros não monetários.
O “milagre” deu-se pela incorporação da economia brasileira ao capitalismo monopolista, pelo arrocho salarial, pelo aumento da taxa de mais-valia, pela exploração do trabalho respaldada por um governo autocrático e autoritário (FERNANDES, 2006). A massa dos trabalhadores, que fazia o trabalho manual e pesado, no campo e na cidade, nas fazendas e nas indústrias, teve o valor do salário diminuído, sem que diminuísse o tempo ou a intensidade da exploração. Já os trabalhadores do “colarinho branco”, gestores e burocratas, tiveram uma fatia do bolo mais expressiva, a despeito de, na sua maior parte, ter sido abocanhado pelas multinacionais, pelos grandes monopólios produtores de mercadorias e serviços, pelo recém-criado mercado financeiro e de capitais.
“Um minúsculo lenço” (em contraposição com a “longa veste”) que é passado na testa indica a dominação pelo controle do tempo do trabalhador. O suor enxugado pelo minúsculo lenço aponta para que forma de dominação? Seria a extração de mais-valia relativa do dominado pelo dominador com o apoio do braço direito forte do governo militar e defensor do grande capital? O dominador sempre terá longas vestes; o dominado, minúsculo lenço.
O que mais simbolizaria o “lenço”? O lenço possui duas funções: de secar o suor do rosto ou limpar o nariz, bem como ornamentar a cabeça ou o pescoço. São lenços diferentes. O primeiro, quadrangular, guardado no bolso. O segundo, à vista, como símbolo de ostentação e identidade social. Os adeptos do Tropicalismo (movimento de contracultura brasileira), e.g., seriam identificados como pessoas “sem lenço” e “sem documento”, caracterizando “o despojamento de alguns valores que garantiriam a identidade social do sujeito” (TATIT, 2001, p. 185). O “lenço” abarca apenas o primeiro conceito, pois o homenzinho verde (portador do lenço) não possui as características de alguém em estado de liberdade, ou de renúncia, ou de afrontamento. O homenzinho é dominado porque corre sobre o tapete e porque porta um minúsculo lenço para secar o suor do causticante trabalho.
O gesto da mão direita sobre as cabeças dos homenzinhos não pode ser traduzido como a mão que supre a carência afetiva ou que apela a uma reação diante da vida (ABREU, 1995). A mão direita repousa sobre as cabeças dos artesãos de forma ameaçadora. Uma dominação que apela para a coerção e dispensa o consenso.
Conclusão
Para Jaime Ginzburg, Caio F. Abreu faz parte de um grupo de escritores que busca representar as relações humanas em dado contexto nacional atingido “pela opressão sistemática da estrutura social, de formação autoritária” (GINZBURG, 2000, p. 27). Outro autor que auxilia na compreensão deste diálogo entre a obra de Caio F. Abreu e a sociedade de sua época é José Antônio Segatto (1999), em seu artigo Cidadania de ficção. Para esse autor, a sociedade brasileira vivia sob o jugo de um governo militar e autoritário que oprimia as liberdades individuais, censurava os meios de comunicação e controlava, politicamente, as esferas de organização da sociedade. De acordo com Ginzburg, o conteúdo das crises era tematizado e discutido, por “grande parte dos cientistas sociais” e, de modo concomitante, por diferentes manifestações artísticas sendo “criada, ou recriada, inventada ou reinventada artisticamente [...] ela surge de modo peculiar, como representação artística, como figuração estética, por meio de imagens sensíveis” (GINZBURG, 2000, p. 44).
Nessa linha, tentamos mostrar que Caio F. Abreu produziu arte engajada, tinha um compromisso com as causas públicas e progressistas da época, como as reformas de base, a luta contra a ditadura presente no interior das diversas linguagens políticas. Acreditamos que a alegoria da dominação presente no conto possa ser iluminada pelos diversos usos da categoria dominação no pensamento sociológico. Conforme Apfelbaum (1979), as relações sociais são constituídas por relações de desigualdades e de dominação. Curiosamente, quando o tema da dominação se rotinizava no discurso das Ciências Sociais, Caio F. Abreu a torna recurso alegórico de sua literatura para expressar a própria revolta em poucas palavras, de modo contundente e abstrato, valendo-se do gênero conto.
Nos termos benjaminianos, juntar estética e história é um “mandamento metodológico” (PRESSLER, 2006, p. 193). A visão alegórica é, para Benjamin, “[...] a exposição barroca, mundana, da história como história mundial do sofrimento, significativa apenas nos episódios do declínio” (BENJAMIN, 1984, p. 188). Alegoria e dominação têm afinidades eletivas, assim como as ditaduras, as experiências fascistas são a expressão do que o autor chama de “episódios do declínio”. A alegoria tem a capacidade de aturdir o leitor, é “um grande delito contra a paz e a ordem, no campo da normatividade artística” (BENJAMIN, 1984, p. 199).
A dominação, para Weber (1971), requer o consenso do dominado, que a vê como legítima por diferentes razões como pela tradição, pela excepcionalidade da liderança ou pela dominação legal burocrática. Todavia, no conto de Caio F. Abreu a dominação é exercida com base na coerção. O narrador subjuga e obriga os dois homenzinhos verdes a trabalharem para ele durante milênios, “Catástrofes incríveis: emaranhavam-se nos fios, sufocavam no meio do pano, as agulhas os apunhalavam” (ABREU, 2008, p. 31).
Nesse sentido, parece que estamos mais próximos da dominação na concepção de Neumann (1943), que viu de perto a Alemanha nazista, o paradigma de todas as formas de fascismo, já que esse é um fenômeno internacional. “La ideología nacional-socialista carece de toda belleza íntima. El estilo de sus escritores es abominable, las construcciones confusas, la consistencia nula.” E continua: “Toda declaración surge y procede de la situación inmediata y se la abandona en cuanto la situación cambia” (NEUMANN, 1943, p. 57). O exercício da dominação é pautado pela coerção, pela concentração de poder pelo executivo, pelo niilismo, pelo relativismo, pelo cinismo, pelo pragmatismo. O exercício do pensamento é fatal para a dominação fascista e totalitária.
Particularizando a dominação para a formação social brasileira, Gilberto Freyre (1975) e Pessoa de Morais (1965) indicam a presença dos valores patriarcais na sociedade, um notável acervo de valores rurais e patriarcais até mesmo nas grandes cidades e, principalmente, nas Forças Armadas. A discussão teórica consistia em caracterizar: O que é essa sociedade filha da colonização portuguesa e da escravidão de indígenas e africanos? Essa era uma sociedade de castas, feudal, estamental, patriarcal, capitalista? (HIRANO, 2008).
Sem meias palavras, Florestan Fernandes (2006) aponta a existência tanto de relações de dominação internas (dominação senhorial, dominação estamental, dominação patrimonial, dominação burguesa) quanto relações de dominação externas (colonial, neocolonial, imperialista e imperialista total). Na concepção de Florestan Fernandes (2006), coetâneo de Caio F. Abreu, a ditadura empresarial-militar foi o momento em que a burguesia industrial e financeira brasileira tomou para si o controle do poder de Estado, deslocando a supremacia das novas e velhas oligarquias desse poder, mediante o uso da autoridade das Forças Armadas e da associação com as burguesias externas parceiras para integrar o país no circuito do capital monopolista. Com isso, sem as “reformas de base”, as relações pré-capitalistas foram preservadas e articuladas com as novas relações de dominação advindas do capitalismo monopolista e da dominação externa que chama de “imperialismo total”.
Igualmente, Costa Pinto (1958) caracteriza as diferentes formas pelas quais o trabalho tem sido explorado no Brasil, desde o trabalho escravo às relações de trabalho no campo, reguladas pela renda-trabalho, pela renda-produto e a renda-dinheiro, que se mesclavam nos latifúndios brasileiros. Além disso, o sociólogo baiano identifica um padrão tradicional de dominação nas relações de trabalho que exigiam a submissão total do trabalhador ao patrão. O trabalhador era dependente, protegido, servidor e servo do patrão. “Entre eles não havia somente uma relação econômica de emprego e salário, mas, também, relações mais íntimas, das quais dependia sua vida do nascimento à morte” (PINTO, 1958, p. 121).
Apresentamos as informações teóricas e históricas referentes às décadas de 1960 e 1970 – período no qual foi escrito o conto “Uma veste provavelmente azul”, quando a dominação se rotinizava como categoria no discurso das Ciências Sociais. A História e a Linguística, com suas ferramentas e categorias de análise, foram fundamentais nas pesquisas que precederam o presente artigo e trouxeram contribuições tanto em quadros comparativos (entre obras diversas) quanto nas classificações literárias e estruturais de diferentes contos de Caio F. Abreu. O que buscamos trazer como novidade foi uma interpretação do conto a partir da categoria “dominação”. Como anunciado na introdução, havia uma lacuna sobre a análise deste conto, uma vez que do texto não se tinha extraído o cenário epocal com suas discussões que contemplavam o pensamento sociológico.
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Recebido em: 02/09/2019
Aceito em: 13/09/2021
Entrevista
MEMÓRIAS DE AFETO, POLÍTICA E FORMAÇÃO:
o encontro entre Maria Aparecida de Moraes Silva e Heleieth Saffioti
MEMORIES OF AFFECTION, POLICY AND EDUCATION:
the meeting between Maria Aparecida de Moraes Silva and Heleieth Saffioti
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Daniele Motta1*
Elaine Bezerra2**
Resumo
A entrevista com Maria Aparecida de Moraes Silva buscou resgatar a memória, não só no que se refere aos conceitos elaborados por Heleieth, mas a sua atuação como professora no contexto da ditadura militar, a partir da visita à trajetória da entrevistada. A entrevista foi dividida em três momentos. O primeiro aborda a trajetória da nossa interlocutora na sua vida acadêmica. O segundo ponto consiste em focar nas contribuições de Saffioti. Nesse momento, julgamos oportuno conversar sobre a relação do pensamento de Saffioti e a sua atuação na universidade, no campo da pesquisa e do ensino. Focamos na ideia do “nó” e no debate sobre o patriarcado, o abandono da academia e a opção pela militância no campo da luta feminista. Assim, uma das inquietações que norteou esse momento da entrevista foi pensar em que medida o patriarcado, na perspectiva de Saffioti, ajuda a entender os processos de trabalho no campo. O terceiro e último momento diz respeito à contemporaneidade de Saffioti. A proposta é pensar o patriarcado no contexto atual e a teoria do “nó” entre as relações sociais de gênero, classe e raça.
Palavras-chave: Heleieth Saffioti. Memória. Sociologia Rural. Patriarcado.
Abstract
The interview with Maria Aparecida de Moraes Silva sought to rescue the memory, not only with regard to the concepts elaborated by Heleieth, but her role as a teacher in the context of the military dictatorship, based on the visit to the interviewee’s trajectory. The interview was divided into three moments. The first addresses the trajectory of our interlocutor in her academic life. The second point is to focus on Saffioti’s contributions. At this point, we think it is opportune to talk about the relationship between Saffioti’s thought and her role in the university, in the field of research and teaching. We focused on the idea of the “node” and the debate on patriarchy, the abandonment of academia and the option for militancy in the field of feminist struggle. Thus, one of the concerns that guided this moment of the interview was to think to what extent patriarchy, from Saffioti’s perspective, helps to understand the work processes in the field. The third and last moment concerns the contemporaneity of Saffioti. The proposal is to think about patriarchy in the current context and the theory of the “node” between social relations of gender, class and race.
Keywords: Heleieth Saffioti. Memory. Rural Sociology. Patriarchy.
Maria Aparecida de Moraes Silva é professora livre-docente aposentada da Unesp de Araraquara e, hoje, atua como professora sênior e colaboradora do Programa de Pós-Graduação de Sociologia da Universidade Federal de São Carlos (UFSCar). Ela possui mestrado e doutorado em Sociologie Du Développement Iedes – Université Paris 1 (Panthéon-Sorbonne). Atua na área
1* Doutora em Ciências Sociais pela Unicamp, professora substituta da Unesp (Rio Claro), vinculada ao Departamento de Educação. E-mail: daniele_motta@hotmail.com
2** Doutora em Ciências Sociais pela Unicamp e Pós-doutoranda no Programa de Ciências Sociais da Universidade Federal de Campina Grande. E-mail: elainemauriciobezerra@gmail.com
ISSN 1517-5901 (online)
POLÍTICA & TRABALHO
Revista de Ciências Sociais, nº 54, Janeiro/Junho de 2021, p. 204-218
da Sociologia Rural, gênero e memória, tendo publicado, dentre outros, o livro “Errantes do fim do século”, que trata da formação do trabalhador boia-fria no início dos anos 1960 e do seu desaparecimento no final do século XX, em função da modernização pela qual passou a produção de cana-de-açúcar no interior de São Paulo.
Maria Aparecida foi aluna de Heleieth Saffioti durante a graduação e acompanhou, desde então, suas ideias, dialogando diretamente com elas. O prefácio de “Errantes do fim do século” é assinado por Heleieth, onde ela diz que Maria Aparecida M. Silva foi quem melhor entendeu e aplicou a sua concepção do “nó”. Além da relação profissional e acadêmica, as duas tinham proximidade pessoal.
A entrevista foi realizada com a utilização de um gravador de voz. O termo de consentimento foi assinado em duas vias e as cópias foram entregues a nossa interlocutora, conforme orientação do comitê de ética.
O diálogo com a socióloga Maria Aparecida de Moraes foi realizado na cidade de São Carlos, São Paulo, em novembro de 2019.
Entrevistadora: Poderia falar um pouco do seu encontro com Heleieth Saffioti na sua trajetória acadêmica e/ou pessoal?
Maria: Eu cursei Ciências Sociais em Araraquara. Eu entrei em 1964, no ano do golpe. Então, vocês podem imaginar o que foi essa trajetória de fazer um curso de Ciências Sociais naquele momento. Fiz o curso de Ciências Sociais e tive o prazer de ter sido aluna da Heleieth Saffioti durante os 4 anos do curso. Ela ministrava Sociologia e cobria também muitas outras disciplinas. Porque, em virtude do golpe, a faculdade tinha uma dificuldade muito grande de manter os seus professores, sobretudo, na área de Ciências Sociais. Por exemplo, Antropologia: começava com um professor, de repente, o professor não aparecia mais. Geralmente, os professores vinham de São Paulo, sendo que com outras disciplinas acontecia a mesma coisa. Então, Heleieth teve esse papel, extremamente importante, de se responsabilizar por muitas disciplinas para que não ficássemos prejudicados. Só para terem uma ideia, nós entramos em 30 alunos e, no meio do ano, nós éramos apenas cinco. Portanto, houve também (por conta desse grupo muito pequeno) a possibilidade de nos aproximarmos mais de Heleieth e o fato de ela morar em Araraquara também nos aproximou. Porque a maioria dos professores não residia em Araraquara, naquela época.
O que eu posso dizer é que ela foi uma professora fundamental, não somente para minha formação, como também para manter o curso. Ela conseguiu com o seu trabalho, com a sua dedicação - que era plena – sustentar o curso num momento de exceção, apesar da dificuldade e perseguição extremas. Só para terem uma ideia: na turma de 1965 (eu entrei em 1964) entraram três militares no curso. Eles assistiam às aulas fardados, ou seja, não havia nenhuma preocupação em disfarçar. E além deles havia uma pessoa que era informante do SNI1. Contudo, Heleieth nunca deixou de ser marxista. Só que ela era uma professora que tinha uma preocupação muito grande com a formação dos alunos. Além de Marx – e ela se declarava marxista – ela abarcava toda a Sociologia. Era Sociologia clássica, Durkheim, Weber, a Escola de Chicago, a Sociologia americana, outros autores da Sociologia francesa e, assim por diante. Ela não era uma especialista num subcampo da Sociologia, tinha um conhecimento bastante vasto. E não era só a Sociologia que ela conhecia: Antropologia, Psicologia… tanto é que no livro dela nós percebemos a manifestação desse conhecimento que ia além da Sociologia.
Quando eu terminei o curso, no final de 1967 e começo de 1968, eu fui trabalhar no ensino médio. Era o que tinha como opção naquele momento. Porque não havia pós-graduação, a Unicamp2 não existia até então, a USP estava meio distante. Trabalhei durante dez anos no ensino médio como professora. E foi aí que eu vim pra cá [São Carlos], para o Instituto de Educação Álvaro Guião.
Eu sou casada com um químico. Eu posso, depois, contar um pouquinho desse cruzamento de trajetórias pra vocês. Elson3 tinha sido aluno do professor Saffioti4. Elson era de São Paulo, prestou o vestibular na USP (porque naquele momento não havia um vestibular geral, cada instituição fazia o seu vestibular) e, no momento em que ele estava fazendo a prova, adentrou a sala o professor Saffioti, muito conhecido pelos estudantes porque era autor dos livros didáticos adotados no ensino médio. Então, naquele momento, quem fazia o científico5 lia e estudava química pelos livros do Saffioti. Aí ele adentrou a sala e disse: “Sou o professor Saffioti e acabei de criar um curso de Química em Araraquara, caso vocês não sejam aprovados (pois não há vagas pra todos) podem ir pra Araraquara”. Ou seja, ele foi à USP pra procurar aluno, essa era a situação daquele momento. Elson foi um dos que não passaram e, já que havia essa oportunidade em Araraquara, ele mudou seus planos. E foi aí que nós nos conhecemos, porque os alunos se reuniam muito no centro acadêmico. Naquele momento, o movimento estudantil era muito expressivo, tanto a UEE (União Estadual dos Estudantes) quanto a UNE (União Nacional dos Estudantes). Então ele (Waldemar Saffioti) é responsável por esse encontro, se não fosse esse acontecimento, não teríamos nos conhecido.
Quando ele (Elson) já estava aqui [em São Carlos] como professor, em 1975, ele foi a um congresso no México e encontrou um professor do CNRS6 que o convidou pra fazer o doutorado lá. Ele estava terminando o mestrado na USP de São Carlos. Era um momento muito difícil pra eu continuar trabalhando no ensino médio, como eu tinha esse diploma de Ciências Sociais, eu ministrava uma disciplina chamada Estudos Sociais, que era uma disciplina criada pela ditadura. A ditadura fez uma reforma curricular e extinguiu Filosofia, Sociologia, História, Geografia, criando os Estudos Sociais. E como não havia muitos professores, eu pude dar aulas todo esse tempo. Mas, naquele momento, um professor de História ia assumir todas as minhas aulas. Como a situação política do país estava difícil, nós decidimos ir pra França. E lá eu fiz meu mestrado e doutorado. Eu fiz na Paris I.
Entrevistadora: E você e a Heleieth chegaram a ser contemporâneas como professoras?
Maria: Fiquei quase cinco anos em Paris cursando mestrado e doutorado e, então, já optei pela Sociologia Rural. Eu nasci na área rural, este objeto pra mim era muito familiar. Eu queria estudar toda a transformação no estado de São Paulo, naquele período, daquela passagem do que eu chamo de “civilização cafeeira pra civilização canavieira”, a passagem do trabalhador colono para o boia-fria. Eu estudei exatamente esse momento, e quando eu voltei para o Brasil foi aquela preocupação em conseguir emprego. Foi uma peregrinação, de um lugar pra outro. Acabei ficando um ano na Unesp de Marília, como professora visitante, em 1982. Então, Heleieth me convidou pra vir pra Araraquara, e ela me conseguiu uma bolsa de jovem pesquisadora, do CNPq. Isso foi em 1983. Ela tinha acabado de criar o mestrado, optando por se aposentar em seguida. Então, eu praticamente substituí a Heleieth, nós não chegamos a ser contemporâneas. Mas eu entrei como professora no curso de Ciências Sociais por intermédio dessa bolsa, que ela conseguiu, e depois prestei concurso e fiquei até 1997, até me aposentar.
Entrevistadora: E como era a atuação de Heleieth Saffioti na universidade?
Maria: Heleieth era uma pessoa com uma personalidade bem forte, uma mulher que não se curvava a nada e a ninguém! E era uma pessoa dotada de uma autoconfiança muito grande. Ela sabia se impor no debate acadêmico e tinha certeza de que estava trilhando um caminho novo na academia. E eu costumo dizer, e até digo aos meus alunos, que a academia é muito conservadora. Tudo aquilo que você faz de diferente, primeiro, a academia não aceita e, segundo, muitas vezes, você sofre perseguição pelo fato de, exatamente, ter uma ideia nova ou realmente trilhar, ou tentar trilhar, um caminho que a maioria não trilha. E por que Heleieth saiu de Araraquara logo depois de criar o mestrado? Porque ela já não sentia ali um ambiente tão favorável. O fato dela ter ido pra São Paulo tem muito a ver com isso.
Ela teve uma grande dificuldade para criar o mestrado, quer dizer, uma luta que se desenvolveu no período da ditadura, no final da ditadura militar. Tanto é que no rol das disciplinas do curso, ela foi obrigada a nomear uma disciplina chamada “Sociologia do desenvolvimento”. O que era isso? Isso era um título pra disfarçar o conteúdo relativo a Marx. Porque era uma Sociologia baseada em Marx, sob sua responsabilidade. Tanto é que quando eu vim para a Unesp, eu assumi esse curso, durante os 10 anos seguintes, na pós-graduação. Ela utilizou essa estratégia, pois, caso contrário, o curso não seria aprovado pelos órgãos da Unesp, como também fora da Unesp, porque tinha que ter o reconhecimento do curso na Capes, e assim por diante. Então ela soube muito bem driblar esse ambiente, que era hostil, do ponto de vista político e também persecutório. Ademais, o fato de ela trabalhar com a questão de gênero que, em Araraquara, por exemplo, ninguém trabalhava no curso de Ciências Sociais, era mais um agravante.
Entrevistadora: Embora tivesse a perseguição à Heleieth e ao Waldemar Saffioti na época da ditadura, eles não chegaram a ser presos ou exilados. Você consegue dar uma pista de como eles conseguiram se manter na universidade mesmo nesse clima de exílio e repressão?
Maria: Eu não me lembro de a Heleieth falar qualquer coisa referente à ditadura nas aulas dela. Então, como eu acho que Heleieth conseguiu sobreviver? Porque, naquele momento, ela não explicitava o que estava acontecendo, mas ela nos ensinava a refletir sobre o que estava acontecendo. Então eu acho que somente uma pessoa com o seu nível cultural, intelectual e com sua inteligência poderia fazer o que ela fez. O que ela fazia? Ela nos ensinava a refletir sobre o que estava acontecendo, mas ela nunca chegou a uma aula e começava a fazer um discurso contra a ditadura. Mas, ela nos dava exatamente os elementos para que nós fizéssemos isso. Então para vocês terem uma ideia do controle: havia uma biblioteca pequena, os livros eram em inglês, espanhol, francês ou alemão. Então, por exemplo, lia-se Marx, aí íamos para a biblioteca e estudávamos lá. Havia uma bibliotecária chamada Shirley, cuja mesa ficava bem em frente à porta, e tinha um corredor grande, e pegávamos os livros de Marx pra fazer os fichamentos; eram livros que não podiam ser retirados da biblioteca, pois eram alguns poucos exemplares, então tínhamos que estudar na biblioteca. O que a Shirley fazia? Ela batia na mesa (com a caneta) quando os militares estavam se aproximando. E o que nós fazíamos? Muito cautelosamente, guardávamos o livro de Marx na estante e retirávamos outro. Eu me lembro que eu retirava o livro de Dahrendorf7, por exemplo. Aí, o sujeito/militar (havia um deles que tinha um dente de ouro, era um cara sínico) dava uma volta onde estávamos – e, como éramos apenas poucos, geralmente, ficávamos sempre juntos – e dizia “Ah! Vocês estão estudando tal autor?”. E nós: “Sim”. E eu me lembro de estar ali sentada, olhando para ele (não me esqueço daquele sorriso sínico e do dente de ouro). Olha o que fica na memória! Vocês podem imaginar o medo que tínhamos. Era viver o terror na carne e na alma!
Entrevistadora: E como mulher você já sentiu alguma dificuldade dentro do ambiente acadêmico?
Maria: Eu sempre tive a impressão de que pelo fato de eu ter sido indicada por ela eu nunca consegui me integrar naquele departamento [de Sociologia da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Araraquara] e, depois, em 1976, quando foi criada a Unesp, antes havia os institutos isolados. Então, pra esse departamento de Sociologia, vieram professores de outras faculdades. Esse pessoal teve que sair do seu local porque não havia outra alternativa. Então, o fato de terem saído do próprio local e terem vindo pra outro local, eu acho que ali o clima, realmente, não era de muita coesão. E sem contar que Heleieth Saffioti era uma pessoa que se destacava do conjunto dos professores, sem dúvida nenhuma. Não só da Sociologia, mas das outras áreas também. Eu acho que pelo fato de ter entrado pela sugestão dela, pela indicação dela, eu recebi um pouco essa marca. Eu não diria pouco, eu recebi a marca total. Então, eu sentia que eu não era de lá, até me aposentar, tanto é que eu me aposentei em 1997, com apenas 52 anos de idade, e estou trabalhando há 23 anos, além da aposentadoria. Podia ter ficado lá e não fiquei, não tinha clima, eu não tinha muita sustentação ali. Eu tive um papel importante lá porque no início dos anos 1990, o curso do mestrado estava passando por uma dificuldade muito grande, com uma avaliação péssima, e estava correndo, inclusive, o risco de ser fechado. Aí eu assumi a coordenação da pós-graduação, reestruturei o mestrado e criei o doutorado. Eu criei o doutorado em Sociologia, hoje, é em Ciências Sociais.
Entrevistadora: No prefácio do seu livro “Errantes do fim do século”, a Heleieth diz que você foi uma das pessoas que aprenderam bem a ideia do “nó”. Quando você passou a se interessar por essa ideia?
Maria: Eu sempre mantive um contato muito grande com ela e tinha uma curiosidade muito grande de ler tudo o que ela escrevia. Quando ela escreveu “O Poder do Macho”, ela o escreveu acho que em menos de um mês aquele livro, porque era tudo muito rápido. Ela escrevia na máquina, acho que ainda nem era máquina elétrica, depois passou a ser elétrica. Mas ela escrevia com uma rapidez incrível. Eu tinha a curiosidade de estar sempre acompanhando a produção dela. No meu trabalho de doutorado, eu não tinha nenhuma preocupação com a questão de gênero, tinha preocupação com a questão da classe. E, depois, lá8 também onde eu fiz a pós-graduação a questão não aparecia, de maneira alguma. O meu doutorado é orientado pelo marxismo ortodoxo, eu diria. Quando eu vim para Araraquara, era um período bastante propício para desenvolvimento das minhas pesquisas, inclusive as subsequentes porque estava havendo todo aquele movimento dos trabalhadores rurais, os chamados boias-frias. Então a greve de Guariba9, que aconteceu em 1984, depois em 1985, todo esse período foi muito denso politicamente. A década de 1980 foi uma década, assim, de muito transformação. O movimento de luta pela terra, a criação de assentamentos e assim por diante. Até então, enxergava a classe social, tão somente. Logo, eu comecei a me interessar cada vez mais pelos trabalhos de Heleieth. Inclusive esse livro, que foi a tese de livre-docência dela – que eu tive a oportunidade de assistir à defesa10 – eu já o tinha lido e, cada vez mais, fui me interessando por essa questão de gênero. Até que numa das greves – acho que foi na cidade de Barrinha, que é do lado da cidade de Guariba – nós fomos acompanhar um piquete, juntamente com vários alunos. Aí nós observamos que havia algumas mulheres liderando o piquete, havia algumas mulheres, mas a grande maioria das mulheres trabalhadoras rurais não estava presente. Então essa foi uma questão que eu discuti muito com os meus alunos: “por que as mulheres não estão aqui”? Eram, sobretudo, algumas mulheres em cima do caminhão que eram líderes. Elas tentavam impedir os colegas de ir ao trabalho. Muita repressão policial e nós começamos a indagar. Saímos daquele espaço de piquete e fomos até as casas das mulheres, porque nós já a conhecíamos, já estávamos fazendo entrevistas há um tempo com elas e com os trabalhadores também. E nós percebemos o seguinte: que elas não estavam no piquete porque os maridos não permitiam. E a justificativa era que quem estava lá [no piquete] era puta, todas eram putas. E aí que, digamos, a ficha caiu! Tem uma questão aqui além da classe social. Elas não estavam lá e não era por causa do usineiro, do proprietário do canavial. Elas não estavam lá por causa dos maridos. Portanto, é um outro referencial, é uma outra categoria que tinha que ser vista. E, por outro lado, a questão racial era visível. Quer dizer, a maioria era constituída de trabalhadores negros, que vinham da Bahia, naquele momento, sobretudo, do Vale do Jequitinhonha, depois dos outros estados do Nordeste e assim por diante. Foi um cruzamento entre o meu interesse dos estudos de Heleieth e a realidade empírica que eu estava observando e analisando.
Entrevistadora: Como você acha possível pensar o alijamento das mulheres dentro do seu campo de análise, da Sociologia Rural? As conclusões da Saffioti contribuem para essa análise?
Maria: Heleieth, como uma excelente marxista, ela tinha suas análises assentadas na história, certo? Considero que dizer que as mulheres são sempre alijadas do mercado de trabalho não corresponde ao pensamento de Heleieth. Mesmo que isso apareça escrito em determinados momentos, não é esse o pensamento dela. Mas eu pude observar e aprender com ela que pode ter o alijamento e pode não ter. Vai depender exatamente do momento histórico, do processo de acumulação do capital. Porque, às vezes, há momentos em que para o capital interessa muito mais o trabalho da mulher do que o do homem, porque os capitalistas podem pagar menos. Isso se vê através da história, não somente aqui no Brasil, como fora do Brasil. Então eu acho que não se pode tomar essa frase como um essencialismo, porque ela não defendia isso. Por exemplo, nesse momento da greve dos trabalhadores rurais e trabalhadoras [que se referiu acima, na década de 1980], havia uma presença significativa de mulheres no corte da cana. Quando chega a máquina, as mulheres são alijadas do corte de cana – que fica para os homens –, aí as mulheres vão ficar com essas outras funções, que são as mais degradadas, mais periféricas, como recolher pedra, bituca11, espalhar o veneno. Ou então trabalhar, por exemplo, na colheita da laranja, da cebola, do tomate etc. Agora, há a mecanização. Quem são os operadores das máquinas? Quem opera as máquinas? São os homens. Não há mulheres operando máquinas? Uma ou outra. Tratores, quem opera são os homens; caminhões, quem dirige são os homens.
O que eu posso concordar com a frase dela é que, na verdade, a mecanização, levando em conta a realidade que eu estudo, ela alijou, sim, as mulheres de importantes funções e as colocou em piores situações. Mas houve momentos em que as mulheres ocuparam o mercado de trabalho e dividiram esse mercado de trabalho da mesma forma que os homens. Então a minha análise é essa: não se pode tomar ao pé da letra e nem essencializar essa afirmação, porque não corresponde ao trabalho dela ao longo da vida.
Entrevistadora: Um elemento bem importante dos seus estudos é a questão da migração, inclusive, você vai se preocupar com esse fluxo migratório do Vale do Jequitinhonha pra cá. Ele era expressivo também? Vinham muitas mulheres?
Maria: Vinham as famílias. Então, se tomarmos, por exemplo, os dados do IBGE, dos anos 1960, e fizermos uma comparação no período 1960/1970/1980, nas cidades pequenas, as chamadas cidades canavieiras – como, Dobrada, Rincão, Barrinha, Ibaté – vamos ter um crescimento enorme da população. Enorme! A população, praticamente, dobra nesses anos. E a origem é: ou da Bahia ou Minas ou outro estado do Nordeste. Muitos também originários do estado do Paraná, em virtude das mudanças da estrutura agrária daquele momento, com a expulsão de parceiros. Logo havia uma migração, que eu posso dizer, em massa. Vinha toda a família em sua maioria. Depois, na medida em que a mecanização vai sendo colocada em prática, começa uma regulação do mercado de trabalho, até chegar em 2009 em que só aceitavam os homens, não aceitava mais a família.
A cidade de Guariba é paradigmática, porque ela foi criada com a vinda de trabalhadores imigrantes para o trabalho no café, principalmente italianos (no início do século XX). Com a cana, há o crescimento da cidade. É uma cidade cujo espaço é dividido racialmente. De um lado da estrada de ferro (desativada), vivem os antigos moradores, descendentes de imigrantes europeus brancos, e, do outro lado, vivem os migrantes nacionais, negros. No início das migrações nacionais (década de 1960), as moradias eram construídas pelos próprios chegantes. Porque as usinas não tinham preocupação nenhuma com a reprodução dessa força de trabalho. Eram eles próprios que faziam suas casas, e eram casas de barro. Eles traziam esse conhecimento do Nordeste, do Jequitinhonha e construíam as casas das formas mais precárias possíveis. Depois, à medida que a mecanização vai acontecendo, e esse controle do mercado de trabalho vai aumentando, e a demanda de força de trabalho vai diminuindo, há um efeito imediato na divisão sexual do trabalho. O que se tem hoje é praticamente o fim da migração, porque a mecanização, praticamente, completou-se. Há regiões no Estado de São Paulo com 100% do corte mecanizado. No começo dos anos 2000, 2002 – na época em que foi inventado o carro Flex, houve uma explosão na produção da cana pro etanol –; a Pastoral do Migrante estimou em torno de 500.000 migrantes durante a safra. Hoje, este número é inferior a 50.000 migrantes. Para operarem as máquinas, em geral, as usinas capacitaram os melhores cortadores e, sobretudo, aqueles que tinham um nível de escolaridade maior. E a justificativa para não empregarem as mulheres era a seguinte: como a máquina opera à noite (24 horas por dia), esse é um trabalho que não condiz com a mulher. É uma espécie de “discurso protetor” da mulher, então a mulher não é pra fazer esse trabalho, principalmente à noite, por isso que hoje há as mulheres catando pedra, recolhendo os restos de cana (a bituca), empregando veneno etc.
Entrevistadora: Você acha que essa formulação da Heleieth Saffioti sobre o patriarcado pode auxiliar nesses estudos rurais?
Maria: A sociedade rural é extremamente patriarcal. O patriarcado não existe só na classe dominante, nós sabemos perfeitamente que ele estende os seus domínios por toda a sociedade. As famílias rurais são extremamente patriarcais. Por outro lado, o conceito de patriarcado que a Heleieth aborda é, sobretudo, para pensar nesse binômio que ela faz da exploração e dominação. Quer dizer: ela não separa. Não é que somente há uma dominação, no que diz respeito ao patriarcado. Mas ela mostra também que há uma exploração. Exploração/dominação. Portanto, são duas faces inseparáveis. Isso, eu encontro com uma nitidez muito grande em todas as pesquisas que eu analisei.
Numa pesquisa que eu fiz, no Vale do Jequitinhonha (finais da década de 1980), encontrei a divisão sexual do trabalho bem definida numa prática, conhecida como troca de dias. Em se tratando de comunidades, onde, praticamente, não circulava dinheiro, ocorria que, quando certo camponês tinha a necessidade de uma quantidade maior de trabalho, por exemplo, na colheita, ele solicitava a ajuda de outros. Assim era acordada costumeiramente a troca de dias. Quando os homens trocavam os dias de trabalho, a correspondência era 1 por 1; quando era mulher, eram 2 dias de trabalho da mulher equivalia a 1 dia de trabalho do homem. Aí está evidente o nível da dominação e da exploração. Eu via isso com uma nitidez incrível e era algo instituído. Outra questão que eu vi muito lá foi a da violência contra as mulheres. E vi também os homens que tinham duas mulheres, que praticavam a bigamia. E isso acontecia com os proprietários que tinham a esposa legítima, na mesma casa, e a outra, geralmente a empregada, que se transformava na outra esposa. E os filhos de ambas conviviam na mesma casa. Lembro-me bem de ter encontrado uma mulher que estava vivendo sozinha, já idosa, com 60 anos, mais ou menos, e que tinha vivido essa situação. Ela foi trabalhar na casa do proprietário como empregada, tendo vários filhos dele. Ela teve os filhos juntamente com a outra na mesma casa. Quando ele faleceu, as duas eram esposas, mas a mulher [legítima] a expulsou de casa, juntamente com os filhos. Os filhos se dispersaram e ela ficou sozinha. Ela vivia numa extrema miséria. Eu vi isso com uma clareza muito grande.
Mulher, assim, com marcas de facão no rosto em virtude da violência dos maridos, companheiros. Logo, do meu ponto de vista, é um conceito totalmente cabível, principalmente para a análise desses grupos rurais. Agora, é um conceito que precisa ser historicizado. O que percebo é que as mulheres têm capacidade de agência pra dizer não a tudo isso. Eu tive oportunidade, por exemplo, de aprofundar as pesquisas ao longo da vida com as mulheres trabalhadoras rurais nas cidades, sendo que, mais ou menos, um terço delas vive sozinha. São mães chefes de família com os filhos. Elas não vivem com os respectivos pais dos filhos. Eu cunhei o conceito de “circulação dos homens”, porque, em geral, ocorre o seguinte: quando elas expulsam um homem de casa, ele vai para casa da irmã, vai pra casa da mãe, vai pra casa da tia, enfim de outra mulher. Ele fica circulando. Um dado importante é que elas não aceitam pensão ou qualquer ajuda financeira para criar os filhos, porque elas não querem a presença deles. É uma situação complexa. É interessante, também, verificar que o patriarcado não é essencializado e, portanto, é sempre aquilo que o conceito de exploração/dominação nos ensina, segundo Heleieth. Quer dizer: é pensar a sociedade como porosa e é aí que você pode perceber a resistência, a luta, a negação ao sistema de dominação/exploração.
Entrevistadora: Algumas estudiosas que não trabalham com o conceito de patriarcado argumentam que ele está ultrapassado porque refere-se a um momento anterior ao desenvolvimento do capitalismo, ou seja, as modernas relações de produção capitalista teriam superado o patriarcado. O que acha disso?
Maria: Eu penso que tem que tomar muito cuidado, porque as vezes você fala: rural, “Bom, mas é na roça só.” Não! Entra numa dessas usinas para você ver o nível de desenvolvimento científico e tecnológico que há lá. Ao mesmo tempo, bota ali uma mulher pra catar pedra. Eu, por exemplo, fiz uma pesquisa recentemente com as trabalhadoras da laranja, cuja produção possui um nível de desenvolvimento muito grande. O Brasil é o maior produtor de suco de laranja do mundo e o estado de São Paulo é o maior produtor do país, então, o que acontece? Tem as grandes processadoras de suco de laranja, uma delas é a Cutrale, em Araraquara, Citrosuco e Dreyfus, que é uma multinacional francesa. São quatro empresas, na verdade, que dominam o processamento de suco do país. Eu fiquei um dia numa fazenda de laranjas perto de Bauru com oito milhões de pés de laranja. Essa produção de laranja não era para ser processada. O proprietário vendia a laranja para Fortaleza. Eu tive a permissão (depois de milhares de tentativas) pra acompanhar o trabalho da colheita da laranja e, também, verificar como era o processo de trabalho. Havia muitas mulheres colhendo laranja. Há um desenvolvimento tecnológico e científico enorme, e o que que eu encontro? Como é feita a colheita da laranja? Primeiro, a altura da laranjeira: de 7 a 10 metros, logo há necessidade de usar a escada. A escada é de ferro, com 18 degraus, pesando 35 quilos. A trabalhadora (ou trabalhador) está vestida(o) com bota até os joelhos por causa do perigo de cobra, o boné árabe, camisa de manga comprida, calça comprida (os EPIs). Elas(es) portam uma sacola enorme pendurada no pescoço, sobem a escada de 18 degraus; começam a colher as laranjas na parte de cima, utilizando as duas mãos, seguindo o movimento de torção do punho para evitar danificar a laranjeira, e vão colhendo e jogando as laranjas na sacola. Em seguida, colhem no meio da laranjeira, e, quando chegam em baixo, descem da escada e, se cair no chão alguma laranja, recolhem (porque não pode ficar nenhuma laranja no chão). Por fim, despejam as laranjas recolhidas do saco, numa caixa. O trabalho é pago por produção, por caixa de 27 quilos, portanto, essa sacola que fica pendurada no pescoço chega a pesar 27 quilos! Em seguida, o processo recomeça. Mudam a escada de lugar e vão dando a volta na laranjeira para, em seguida, recolher em outra laranjeira. É assim a lida.
Tem que ter essa visão dialética do capitalismo: o desenvolvimento tecnológico altíssimo, sem dúvida alguma, e, combinados com isso, a catadora de pedra, a colhedora e o colhedor de laranja nessas condições. Ali, encontrei outra situação sui generis. Havia uma mulher tratorista e ela era a única mulher dentre quatorze tratoristas homens. Fiz-lhe a pergunta: “Mas como você conseguiu?” E ela: “Muito simples: eu sou a melhor, eu sou melhor que eles”. “Como você é melhor?”
Ela vai manejando esse trator de tal forma que, quando chega no final da fileira de laranjas, ela consegue fazer a manobra mais rapidamente do que eles. E como o trabalho é todo por produção, o rendimento dela é maior. E ela trabalha com veneno. E outra coisa, quando conversei com o técnico, ele me disse o seguinte: “Além dela ser melhor, a máquina com ela não quebra… raramente o trator quebra”. Bom, esse é outro detalhe para pensar. Naquele momento ela não estava distribuindo o veneno, estava verificando se havia pragas nas laranjeiras, esse é um trabalho contínuo. Ela vai dirigindo o trator, no meio das duas fileiras, e ela tem que olhar para ambos os lados pra identificar alguma anomalia nas folhas. Imaginem quantas folhas têm uma laranjeira! Imaginem o preparo e a acuidade visual que essas mulheres têm que ter. Além do trator, eles acoplaram uma parte superior, como se fosse um “andar” acima da cabine do trator, onde ficavam duas mulheres. A tratorista, além de dirigir o trator, tinha que ter essa preocupação de visualizar, ficar o tempo todo olhando ora para um lado, ora para outro. A velocidade do trator estava marcada para 10 km/h. As mulheres que estavam no “andar de cima” olhavam a laranjeira de cima pra baixo. Se elas verificassem alguma anomalia, elas batiam com um cano na cabine; aí a tratorista parava o trator, pegava uma fita adesiva luminescente e a colocava em volta da laranjeira. Este era o aviso para, à noite, o tratorista, que distribui o veneno, enxergar com facilidade a laranjeira com doenças. Trata-se de um trabalho importantíssimo, porque ao invés de colocar veneno em todo pomar, em razão desse trabalho prévio, desempenhado pelas mulheres, o veneno seria distribuído apenas nas laranjeiras afetadas pelas pragas. Sem dúvida, esta prática diminuiu consideravelmente os custos. Somente mulheres fazem isso, porque, segundo o técnico, elas são mais responsáveis que os homens!
Esse é o universo que Marx nos ensina: ele se refere ao laboratório secreto da produção e que a Heleieth aplicou tão bem nos textos dela. Quando se lida com a temática do trabalho, não há como não empregar Marx. E se é o trabalho feminino, não há como deixar as argumentações e o trabalho da Heleieth de lado, de forma nenhuma.
Entrevistadora: Você acha que existe um esquecimento do pensamento da Heleieth no campo das Ciências Sociais?
Maria: Quando ela falou pela primeira vez do “nó” nem foi aqui no meu livro, foi muito antes. Eu organizei um seminário em Araraquara, cujos trabalhos foram publicados no livro, “Mulher em seis tempos”, que contém o texto dela, “Novas perspectivas metodológicas de investigação das relações de gênero”. Ali ela já está falando do “nó”. E eu não vejo que a noção de consubstancialidade seja algo diferente do “nó”, não consigo perceber a diferença, se há diferença eu não sei, mas não consigo perceber. O que vejo é uma espécie de retomada dessa memória, de reconstrução dessa memória e, por que não, do enquadramento dessa memória. Eu acho que esse é o trabalho maravilhoso que vocês estão fazendo nesse momento, e, quando você fala em esquecimento, eu concordo. Hoje, se perguntarmos a um estudante do curso de Ciências Sociais (graduação) se ele leu algum texto de Heleieth, é possível que a grande maioria vai responder que não. E por que não é colocado? Heleieth deveria fazer parte da lista do rol do pensamento social brasileiro. Mas este é um processo.
Entrevistadora: O conceito de interseccionalidade foi cunhado em 1989, nos Estados Unidos, e em 1987, a Heleieth tinha falado da simbiose. Acha que é possível a gente aproximar a teoria da Heleieth com a interseccionalidade?
Maria: É o “nó” frouxo. Eu me lembro dela, assim, mostrando mesmo: uma hora tem uma ponta que é mais apertada, quando ela discutia a questão da identidade, sobretudo. Qual é a sua identidade? É de classe, é de raça, é de gênero? Ou é tudo isso junto? Então ela procurou exatamente fazer isso: entender essas três pontas. Mostrando que, às vezes, em algum momento, era uma identidade que aparecia com mais força e, em outro momento, era outra identidade. Eu procurei fazer isso no capítulo que analisei as mulheres boias-frias a três vozes no livro “Errantes do fim do século”. Analisei três trajetórias de mulheres negras e boias-frias. Quer dizer: cada uma com uma trajetória. Ali dá pra perceber, do ponto de vista da identidade individual, qual é mais forte. Uma é identidade política, a outra é religiosa, a outra é fato de ser mulher (a identidade de gênero), a outra de classe e assim por diante. A contribuição dela foi a de ir além de Marx, sem dúvida alguma, é marxista, mas ela foi muito além de Marx. Ademais, vejo que ela teve a oportunidade de trazer esses outros elementos para entender o mundo social e, principalmente, o mundo capitalista no qual vivemos, sem abandonar a classe social. Porque, muitas vezes, o que se observa é isso, por exemplo: nos estudos de raça, de etnia, identidade, a classe quase não aparece, o trabalho quase não aparece. Discutem-se identidade, identidade, identidade … então o mérito da Heleieth é exatamente esse: não perder a historicidade e a dialeticidade dessas categorias: de classe, de gênero e raça e etnia. E toda vez que ela mencionava a questão da categoria ela dizia: “A categoria é histórica”. Quer dizer: gênero tem que ser analisado do ponto de vista histórico, do mesmo modo a classe. São categorias analíticas e históricas, isso era algo do qual ela não abria a mão.
Entrevistadora: Estamos em um contexto muito complicado na política brasileira e mundial, em que vivemos um momento de uma visão de mundo que é: antifeminista, antimilitante e até anticientífica. Como que você vê o papel da Sociologia e do ofício do sociólogo nesse momento?
Maria: Olha, sem dúvida alguma é um desafio. Mas é o que sempre digo aos meus alunos: sempre vivemos momentos de desafios. O que foi a ditadura? Embora estejamos em outro momento histórico, eu vejo que o papel do sociólogo é fundamental. Porque o sociólogo é capaz de, pelo menos, enxergar além da aparência. É isso o que fazemos. Além desse mundo aparente, procura -se trazer esse outro lado da história, esse subterrâneo da história e, portanto, ter essa visão crítica desse momento histórico que estamos vivendo. Então, eu tenho a impressão de que é fundamental que se sobreviva, que tenha esperanças e que acredite numa utopia para superar esse momento. Veja que não é só em relação às Ciências Humanas, não é só eliminar a Filosofia e a Sociologia, mas é a ciência, o conhecimento. Porque não se acredita no aquecimento global, não se acredita em todas essas evidências científicas e empíricas de que a Terra é redonda etc. Enfim, há uma tendência, cada vez mais forte, para um governo teocrático. E obscurantista. Estamos nesse processo de, talvez, ditaduras teocráticas em que o obscurantismo realmente prevaleça. É claro que também não se pode perder de vista o momento do capitalismo atual. Esse processo de acumulação capitalista e, evidentemente, os limites dessa acumulação. Por exemplo: eu me lembro bem do texto do Marx quando ele faz uma crítica aos sindicalistas alemães no (que é um livro curto, mais pra militante, talvez!) “A crítica do programa de Gotha”, em que ele mostra que a única fonte da riqueza não é o trabalho: “Além do trabalho, da mais-valia, há os recursos naturais”. E, por exemplo: o que se vê no nosso país hoje é uma economia extrativista. É isso, e para isso não precisa haver ciência, não tem que ter conhecimento, não tem que ter educação, porque, é isso que está acontecendo, e é isso que está, na verdade, alavancando a acumulação e a reprodução ampliada do capital no mundo. E, não se pode esquecer que o que está acontecendo aqui seja algo isolado, não é. Portanto, quanto menos pessoas tendo acesso ao conhecimento, tanto melhor.
Nós estamos aí nessa encruzilhada, e os limites desse processo de acumulação. O capitalismo, nesse momento, é como um trem em alta velocidade se dirigindo ao abismo. É isso que estamos observando.
Entrevistadora: Tem mais alguma coisa que a gente não perguntou que gostaria de falar?
Maria: Às vezes pensando na memória dela eu digo que ela teve duas pessoas muito próximas, muito importantes pra sua vida. Uma foi a sua mãe, Dona Ângela, uma mulher também com uma trajetória de trabalhadora. Dona Ângela foi costureira. Era Dona Ângela quem fazia os vestidos dela. Ela estava sempre belissimamente vestida. Era uma modista Dona Ângela, modista muito famosa em Ribeirão Preto, inclusive. Então, destacar o papel da Dona Ângela e o papel dela [Heleieth] enquanto cuidadora. Heleieth cuidou dos pais, primeiro, quando ela veio para Araraquara os pais vieram morar com ela e, depois, quando ela foi para São Paulo (porque Saffioti ficou em Araraquara, e ela foi pra São Paulo), ela levou os pais consigo. Não demorou muito tempo, o pai faleceu, e Dona Ângela viveu apenas alguns meses mais após o falecimento de Heleieth. Dona Ângela ficou cega no final da vida. Quando Heleieth faleceu, a preocupação de seu irmão era evitar que sua mãe soubesse do ocorrido. Disse-lhe que ela havia viajado. Ela tinha um apreço enorme pela mãe, um cuidado muito grande, não só de levar pra morar com ela, mas também para cuidá-la. Dona Ângela estava sempre muito bem cuidada, muitas vezes, com pessoas que ela contratava para ficar com ela durante o dia e, sobretudo, quando viajava. Portanto, penso que Dona Ângela merece ser considerada uma pessoa muito importante e que deu apoio emocional muito forte a ela, além do professor Saffioti. Ele tinha um comportamento e um temperamento totalmente distintos dela. Ele era uma pessoa muito simples, engajado politicamente e sempre muito atento aos êxitos profissionais e intelectuais de Heleieth. Era muito carinhoso com ela. Quando ela se mudou para São Paulo, ele lhe telefonava, geralmente, à meia-noite, porque sabia que ela trabalhava à noite, ela era notívaga. Naquela época não havia WhatsApp (ele faleceu no ano 2000). Ele dizia que à noite, a tarifa telefônica era mais barata. Era um hábito que ocorria mesmo quando ela estava viajando para fora do país. Na reconstrução da memória de Heleieth, vale a pena sempre lembrar dessas duas pessoas: de sua mãe e do professor Saffioti, seu marido.
Referências
MARX, Karl. Crítica ao programa de Gotha. São Paulo: Boitempo, 2012.
SILVA, Maria Aparecida de Moraes. Errantes do fim do século. São Paulo: Editora da Unesp, 1999.
SAFFIOTI, Heleieth. A mulher na sociedade de classes: mito e realidade. São Paulo: Editora Expressão Popular, 2013.
SAFFIOTI, Heleieth. O poder do macho. São Paulo: Moderna, 1987.
SAFFIOTI, Heleieth. Rearticulando gênero e classe social. In: COSTA, Albertina de Oliveira; BRUSCHINI, Cristina (org.). Uma questão de gênero. Rio de Janeiro: Editora Rosa dos Tempos; São Paulo: Fundação Carlos Chagas, 1992. p. 183-215.
SAFFIOTI, Heleieth. Prefácio. In: SILVA, Maria Aparecida de Moraes. Errantes do fim do século. São Paulo: Editora da Unesp, 1999. p. 5-9.
SAFFIOTI, Heleieth. Gênero, patriarcado e violência. São Paulo: Expressão popular: Fundação Perseu Abramo, 2015.
SAFFIOTI, Heleieth. Novas perspectivas metodológicas de investigação das relações de gênero. In: SILVA, Maria Aparecida de Moraes (org.). Mulher em Seis Tempos. Araraquara: UNESP, 1991. p. 141-176.
Recebido em: 04/11/2020
Aceito em: 04/10/2021
1 Serviço Nacional de Informação. O SNI se tornou o principal órgão de espionagem da ditadura, foi fundado em junho de 1964 e concebido pelo general Golbery do Couto e Silva.
2 A Unicamp foi fundada em 1962, mas o Instituto de Filosofia e Ciências Humanas (IFCH), onde os estudos e pesquisas na área da Sociologia acontecem, é de 1968. No entanto, o Programa de Pós-Graduação em Sociologia foi fundado em 1974.
3 Elson Longo da Silva, químico, professor emérito da UFScar, marido da professora Maria A. Moraes Silva.
4 Refere-se ao Waldemar Saffioti, químico e marido da Heleieth Saffioti.
5 O que hoje conhecemos como ensino médio no sistema educacional brasileiro passou a ser chamado assim apenas em 1996, já foi nominado anteriormente de 2o grau e de colegial. Até 1967, o ensino médio era dividido em clássico e científico. Havia uma diferença de ênfase: no científico dava-se mais atenção às Ciências Naturais e no clássico, às Humanidades.
6 O Centre National de la Recherche Scientifique (CNRS) é o maior órgão público de pesquisa científica da França.
7 Ralf Dahrendorf foi um sociólogo alemão.
8 Maria Aparecida fez o mestrado e o doutorado em Sociologie Du Développement Iedes, na Université Paris 1 (Panthéon-Sorbonne), na França.
9 A greve que ocorreu na cidade de Guariba, interior de São Paulo, ocorreu em 1984 e durou quatro dias. Foi um levante de mais de cinco mil trabalhadores rurais (boias-frias) por melhores condições de trabalho. Ao final da greve, parte de suas reivindicações foi atendida.
10 Refere-se à tese “A Mulher na Sociedade de Classes: mito e realidade” que foi defendida na Faculdade de Filosofia Ciências e Letras de Araraquara, em 1967, e publicada em livro em 1969.
11 Bituca é um termo nativo que corresponde aos restos da cana deixados após o corte, manual ou mecânico.
Tradução
REPRODUÇÃO, HABITUS, CAMPO:
como Bourdieu pensa o trabalho?1
REPRODUCTION, HABITUS, FIELD:
how does Bourdieu think work?
____________________________________
Maxime Quijoux*
(Tradução de Maurício Rombaldi**)
Resumo
Embora Bourdieu seja um dos intelectuais mais citados na Sociologia mundial, o seu pensamento sobre o mundo do trabalho permanece, em grande medida, ignorado. Isso se deve à crença amplamente difundida de que o sociólogo francês, ao longo de sua carreira, nada disse para lançar luz sobre esse campo, e a críticas que se restringiram, frequentemente, a apontar os limites e a inadequação do seu conceito de dominação para a análise das relações sociais de produção. A partir de uma leitura abrangente de sua obra, este artigo demonstra como Bourdieu aplica seus principais conceitos – reprodução, habitus e campo – a diferentes espaços do trabalho. Além disso, sua Sociologia conduz a dois resultados: de um lado, permite-nos pensar sobre as subjetividades no trabalho, por meio de uma Sociologia voltada às dinâmicas de longo prazo, articuladas a instituições sociais como a escola e o Estado; de outro, renova a compreensão das relações sociais no trabalho com a análise das lutas simbólicas que envolvem a definição e a legitimidade de cargos e profissões. Mais do que um sociólogo do trabalho, Bourdieu é, acima de tudo, um sociólogo dos trabalhadores.
Palavras-chave: Bourdieu. Trabalho. Habitus. Classes. Campo. Escola.
Abstract
Although Bourdieu stands as one of the most cited intellectuals in the worldwide sociology, his thought on the world of work remains largely ignored. This is due to both the commonly held belief that the French sociologist, throughout his career, has said nothing to shed light on this field, and the critiques often restricted to pointing out the limits and inadequacy of his concept of domination for the analysis of social relations of production. Building on a comprehensive reading of his writings, this article demonstrates how Bourdieu applies his main concepts – reproduction, habitus, and field – to different workplaces. In addition, his sociological approach leads to two results: on the one hand, it allows us to think about subjectivities at work through a sociology focused on long-term dynamics, connected to social institutions such as the school and the State; on the other hand, it renews the understanding of social relations at work through the analysis of symbolic struggles involving the definition and legitimacy of positions and professions. More than a sociologist of work, Bourdieu is, above all, a sociologist of workers.
Keywords: Bourdieu. Work. Habitus. Classes. Field. School.
Quase 20 anos após a sua morte, Pierre Bourdieu continua a ser um dos sociólogos mais citados do mundo. Em meio a esse reconhecimento internacional, o campo do trabalho se destaca por sua persistente circunspecção. Desde a publicação de seus primeiros trabalhos sobre escola e cultura, Bourdieu tem suscitado, entre especialistas interessados pelas problemáticas do mundo do trabalho, na melhor das hipóteses, indiferença e, na pior, franca hostilidade. No seu país de origem, provavelmente o espaço científico onde possui maior influência, os sociólogos do trabalho têm, há muito tempo, acolhido com reservas as teorias do professor do Collège de France. Em um campo de estudo no qual, por muito tempo, o marxismo constituiu o modo de análise hegemônico, as teorias de dominação e a primazia da escola na explicação social têm mantido duradouramente afastadas as ferramentas bourdieusianas das análises do mundo do trabalho. A publicação do texto de Bourdieu “La double vérité du travail”, em 1996, no qual ele considera as formas de autonomia no trabalho como manifestações de uma exploração subjetiva dissimulada, acabou por distanciar consideravelmente os sociólogos do trabalho do pensamento do autor. Quando da publicação, em 2012, de um dicionário do trabalho que reunia os principais estudiosos franceses no tema, Bourdieu foi mencionado apenas três vezes (BEVORT et al., 2012). Em outras partes do mundo, prevalece a mesma postura. Acusado de ter contribuído largamente para o cultural turn das Ciências Sociais, Bourdieu foi considerado responsável pela marginalização da questão do trabalho na análise do mundo social e, da mesma forma, do paradigma marxista (BROOK; DARLINGTON, 2013). Alguns, como Michael Burawoy (2012), julgam que os instrumentos do autor são inoperantes para compreender as relações sociais e a atitude dos dominados, considerando, por exemplo, que o habitus “não é um conceito científico, mas uma noção comum com um nome reluzente – um conceito sem conteúdo” (BURAWOY, 2012, p. 204).
Essa inclinação antibourdieusiana é, no entanto, cada vez mais contestada em meio à comunidade de sociólogos do trabalho. Na França, pesquisas e manuais de metodologia que afirmam explicitamente basear-se na obra do sociólogo têm ocupado um lugar crescente no espaço acadêmico (AVRIL et al., 2010; GIRAUD; YON; BEROUD, 2018). Um colóquio e um livro foram, inclusive, dedicados à relação entre Bourdieu e o trabalho (QUIJOUX, 2015). Da mesma forma, em estudos de língua inglesa, seus conceitos conseguiram lançar nova luz sobre problemáticas de pesquisa (RANDLE et al., 2015; ÖZBILGIN; TATLI, 2005). Quanto aos campos de investigação latino-americanos, os sociólogos já não hesitam em mobilizar suas ferramentas (ROMBALDI; TOMIZAKI, 2017; TOMIZAKI, 2006), particularmente no Brasil, onde Bourdieu está presente há muito tempo (LEITE LOPES, 2013).
Este artigo faz parte desse movimento de apropriação das ferramentas bourdieusianas para a análise do trabalho. Realizada a partir de uma releitura completa da obra do sociólogo na sua língua original, esta investigação hermenêutica visa a examinar a forma como Bourdieu mobiliza esse objeto por meio dos seus principais conceitos. Também demostrarei que ele permite esclarecer os mecanismos de afiliação profissional, bem como a dinâmica da construção de uma atividade ou de uma profissão. De fato, Bourdieu desenvolve pistas interessantes para compreender tanto as condições objetivas quanto as subjetivas nas relações de trabalho: como as pessoas se reconhecem em seu trabalho? Por que e sob quais condições sociais elas são levadas a defendê-lo? O interesse da perspectiva bourdieusiana é retirar o foco central da atividade para revelar as estruturas sociais gerais às quais obedecem os modos de conduta e de práticas profissionais.
Para tanto, primeiramente, nos voltaremos para a reprodução social e para o papel da escola na “fabricação” de trabalhadores. Um segundo momento será dedicado ao papel do habitus na criação de identidades profissionais. Finalmente, a última parte abordará a forma como a noção de campo esclarece a dinâmica das profissões.
Das disposições às posições, da escola ao local de trabalho
Pouco conhecida, a primeira investigação desenvolvida por Pierre Bourdieu versou sobre os trabalhadores assalariados argelinos. No final dos anos 1950, o sociólogo conduziu uma ampla pesquisa destinada a analisar os efeitos da colonização sobre a população. Apoiado por uma equipe de estudantes e estatísticos, ele demonstrou que “na situação colonial”, o trabalho aparece como “o lugar, por excelência, do conflito entre os modelos tradicionais e os importados e impostos pela colonização, ou se quiser, entre os imperativos da racionalização e as tradições culturais” (BOURDIEU et al., 1963, p. 266). A partir de um duplo trabalho estatístico e etnográfico, o autor relatou a forma como a colonização desmonetizara profundamente o mundo camponês baseado em lógicas de honra, trabalho e reciprocidade, para transformá-lo em um universo dominado pelo desemprego e pela precariedade das condições de existência.
Ao retornar à França, Bourdieu voltou-se para a educação e a cultura. Em conjunto com Jean-Claude Passeron, Bourdieu se envolveu em uma nova pesquisa que, no início, não possuía objeto realmente delimitado, exceto pela população estudantil que se apresentava a eles. Ao mesmo tempo uma “petite cuisine permanente”2 e um “grande projeto” (DELSAUT, 2005, p. 69), essa nova pesquisa destinou-se a combater certas ideias preconcebidas sobre a universidade na sociedade francesa. A experiência argelina aparece então como uma fonte de análise: como diz Bourdieu “em particular [...] a relação entre as expectativas subjetivas e as chances objetivas, que eu havia observado no comportamento econômico, demográfico e político dos trabalhadores argelinos, e que tornei a encontrar nos estudantes franceses ou suas famílias” (BOURDIEU, 1987, p. 34). As estatísticas demostram que “um filho de um executivo sênior tem oitenta vezes mais chances de entrar na universidade do que o filho de um trabalhador rural e quarenta vezes mais do que o filho de um operário” (BOURDIEU; PASSERON, 1964, p. 12), uma constatação que levou os autores a falar da “eliminação” das classes mais desfavorecidas. Longe de reduzir as desigualdades de classe, a escola contribui, na realidade, para naturalizar essas clivagens, legitimando o acesso às diversas posições do espaço social que correspondem, em uma época de pleno emprego, a diferentes segmentos do mercado de trabalho. Assim, a exemplo dos subproletários argelinos,
[...] porque o desejo razoável de subir por meio da escola não pode se constituir enquanto as chances objetivas de sucesso forem ínfimas, [...] seu comportamento [dos trabalhadores franceses] é regulado objetivamente por uma estimativa empírica dessas expectativas objetivas, comuns a todos os indivíduos de sua categoria (BOURDIEU, 1966, p. 331).
De modo contrário, tudo encoraja as frações mais favorecidas da sociedade a se envolverem no jogo escolar: como herdeiros do capital cultural, eles se beneficiam tanto mais dessa vantagem quanto ela está próxima das expectativas sociais e culturais da instituição escolar. A correspondência social às vezes é tão forte que se chega a questionar se, “[...] como diziam os romanos, eles não se contentam a ‘ensinar os peixes a nadar’” (BOURDIEU, 1989, p. 101). Sobretudo, a escola é capaz de transformar esse privilégio em “dom”, ou seja, em “graça individual ou mérito pessoal” e, assim, alcança aquilo a que se destina, a saber “[...] inculcar aos destinatários legítimos o arbitrário cultural que se espera que [ela] reproduza” (BOURDIEU; PASSERON, 1970, p. 48).
É por meio do diploma que ela concede – ou não – que a escola mais contribui para legitimar trajetórias e posições sociais. De fato, ela difunde a ideia de “que as pessoas ou os postos que elas merecem, em função de sua instrução e dos seus títulos, desempenha um papel determinante na imposição de hierarquias dentro e fora do trabalho (BOURDIEU, 1980b, p. 256). Para Bourdieu, “[...] agindo como representante do banco central do crédito simbólico que é o Estado, [o diploma] garante e consagra um certo estado de coisas, entre o discurso e a realidade [...]” (BOURDIEU, 1989, p. 538), produzindo, nesse sentido, efeitos determinantes sobre a percepção coletiva dos portadores de diplomas. Ao atribuir “[...] um monopólio legítimo de uma virtude social ou competência, [...] isto é, uma capacidade legalmente reconhecida de exercer um poder eficiente porque legítimo (como o de dar ordens)” (BOURDIEU, 1989, p. 167), esse ato de consagração constitui “[...] o atributo indiscutivelmente mais decisivo (junto com a profissão, para cuja determinação ele contribui fortemente) da identidade social [...]” (BOURDIEU, 1989, p. 165). Consequentemente, a instituição escolar não determina simplesmente o acesso a diferentes cargos ou profissões, que são a base do espaço social. Por meio da força simbólica que o certificado comporta, ela possui um poder de atribuição de status que também condiciona de forma duradoura a relação que os agentes mantêm com o seu trabalho. De fato, o certificado contribui para atribuir uma “essência”, “[...] um direito de acesso a um cargo no qual a maioria das habilidades técnicas necessárias para ocupá-lo são frequentemente adquiridas” (BOURDIEU, 1989, p. 166). Essa consagração é, por vezes, tão forte que, para as escolas e os diplomas mais prestigiosos, chega a instituir “uma relação de ordem definitiva, [...] uma nobreza” (BOURDIEU, 1994, p. 41-42).
Esse vínculo que Bourdieu estabelece entre educação e trabalho o levou a antecipar um fenômeno que afetaria toda a sociedade francesa a partir dos anos 1980. Já nos anos 1960, ele tratou dos corolários da massificação escolar sobre a conduta profissional daquela geração. Ao mesmo tempo em que evoca, junto de Passeron, em A Reprodução, as adaptações erráticas do trabalho docente frente à “diversificação” do público universitário, Bourdieu enfatiza, em especial, o impacto da desvalorização dos títulos acadêmicos sobre as subjetividades. Nesse sentido, enquanto os trabalhadores sem qualificações são os mais expostos aos efeitos dessa desvalorização (BOURDIEU, 1979, p. 150), a maioria dos graduados desta geração – e daquelas que se seguirão – observam uma decepção que resulta “[...] de aspirações desajustadas com relação às suas chances objetivas de realização” (BOURDIEU, 1984, p. 216). Ele especifica: “Esse é o caso, que tem o valor de um limite, dos detentores de um diploma de ensino geral ou de um CAP3 e, até mesmo, de um baccalauréat4 (em 1968, havia milhares de OS – ouvriers spécialisés5 – em posse desse título), os quais são enviados de volta a ocupações manuais que atribuem um baixo valor econômico e simbólico aos diplomas de educação geral e até mesmo aos diplomas técnicos, e que estão, assim, condenados à desqualificação objetiva e/ou subjetiva, bem como à frustração provocada pela experiência da inutilidade do diploma (tal como o jovem trabalhador diplomado que, condenado a fazer o mesmo trabalho de operários desprovidos desse certificado ou, “pior”, de “estrangeiros”, conclui: “Não fiz cursos durante quatro anos para cortar arruelas”) (BOURDIEU, 1984, p. 216).
No entanto, nem todos os agentes estão desencantados com as repercussões dessa crise da instituição escolar sobre o mundo do trabalho. Em razão da sua posição no espaço social, alguns graduados aproveitam a indeterminação de certos cargos para reconverter suas qualificações e manter, assim, suas aspirações profissionais. Nos diz Bourdieu que
Aqueles que pretendem escapar da desclassificação podem tanto produzir novas profissões mais ajustadas às suas pretensões [...] quanto adequar as profissões às quais seus títulos já lhes dão acesso, de acordo com suas aspirações, por meio de uma redefinição que envolva uma reavaliação (BOURDIEU, 1984, p. 167).
Enquanto “desafio de lutas permanentes”, esse ajuste semântico, técnico e social dos postos de trabalho “[...] tem todas as chances de ser tão grande quanto a elasticidade de [sua] definição” (que provavelmente aumentará à medida que se subir na hierarquia dos cargos) e em razão dos novos ocupantes serem de origem social elevada [...]” (BOURDIEU, 1984, p. 1967). Ao investir em profissões novas ou com atribuições confusas como na área cultural ou artística (BOURDIEU, 1992), uma fração das classes dominantes escapa assim à desqualificação social associada à desvalorização de sua formação. Essa salvação social deve-se essencialmente ao “recrutamento [que] ainda se faz, quase sempre, por cooptação, ou seja, na base das ‘relações’ e afinidades de habitus” (BOURDIEU, 1979, p. 168).
Ao final, os grupos que ocupam as mais altas posições no espaço social são mais ou menos afetados pelos efeitos da massificação escolar: Bourdieu procura demonstrar como as frações mais dominantes da sociedade francesa estabeleceram um sistema escolar quase paralelo cuja função consiste em reforçar a endogamia do grupo e sua supremacia. Mediante sua “delimitação seletiva”, seus “ritos institucionais” e seus diplomas, não é somente o ingresso nessas escolas que “[...] tende a livrar os escolhidos das incertezas e imprevistos da história biográfica, conferindo ao ponto inicial da trajetória o poder [...] de delimitar [...] uma classe de trajetórias prováveis” (BOURDIEU, 1984, p. 128); mas também tem um poder performativo, pois “[...] as práticas obrigatórias que o sentimento da diferença impõe aos alunos das aulas preparatórias e das grandes écoles6 tendem a reforçar objetivamente sua diferença” (BOURDIEU, 1984, p. 157). Mas essas escolas têm, também, por missão, formar os futuros chefes de alta hierarquia para as tarefas que seus cargos exigem. Ao considerar que “pessoas sublimes [estão] condenadas à sublimação” (BOURDIEU, 1984, p. 155), Bourdieu se esforça, então, para mostrar o condicionamento dos estudantes, por meio do exercício singular do ensaio sob a pressão permanente de seus professores.
Assim, tudo converge para fazer dessas “escolas de elite” verdadeiras escolas de lideranças: a subordinação da aprendizagem à pressão da urgência e o acompanhamento rigoroso e contínuo do trabalho são bem adequados para inculcar essa relação à cultura, tanto dócil quanto segura, que predispõe mais ao exercício do poder do que à prática da pesquisa que se evoca, em efeito, quando se fala em “cultura geral”. Essa arte de mobilizar instantaneamente todos os recursos disponíveis e aproveitá-los ao máximo, que certos exames competitivos, como o da ENA7, elevaram à mais alta intensidade, e a garantia estatutária que acompanha esse domínio, estão, sem dúvida, no primeiro plano daquelas “virtudes de chefes” que são sancionadas e consagradas por todas as grandes écoles e que predispõem mais aos cálculos pragmáticos e disciplinados para a tomada de decisões do que à ousadia e à quebra de paradigmas da pesquisa científica ou artística (BOURDIEU, 1984, p. 118).
Em suma, longe de isolar o mundo do trabalho das suas pesquisas sobre a escola, como tem sido feito com muita frequência – ele mesmo se refere à “falsa independência entre as variáveis ditas independentes” no que diz respeito à relação entre o título escolar e a profissão (BOURDIEU, 1979, p. 115) – Bourdieu nos oferece, de fato, uma perspectiva de análise muito estimulante ao destacar o papel da instituição escolar na socialização profissional. No entanto, ele não esgota essa questão. A obra de Bourdieu tampouco se limita à escola ou à cultura. Aqui, sua caixa de ferramentas fornece outros conceitos – mais uma vez trazidos da Argélia – que nos permitem pensar sobre os mecanismos sociais presentes no trabalho, principalmente os de habitus e de incorporação.
O trabalho incorporado: habitus, trabalho e espírito de corpo
Em uma crítica contundente ao estruturalismo de Lévi-Strauss, Bourdieu propõe uma nova definição das condutas sociais. Para ele, as práticas dos indivíduos obedecem a seus habitus: produto tanto de uma história coletiva quanto de uma trajetória individual, o habitus é um sistema “de esquemas de percepção, apreciação e ação” (BOURDIEU, 1997, p. 200) de “disposições duráveis e transponíveis” (BOURDIEU, 1980, p. 88), ou seja, o princípio constitutivo de todas as nossas formas de pensar, ser, estar e agir. Programa formatado pela nossa história de classe, o habitus cria “[...] atos de conhecimento prático, fundados no mapeamento e no reconhecimento de estímulos condicionais e convencionais a que os agentes estão preparados para reagir [...]” (BOURDIEU, 1997, p. 200). Pertencer a um grupo social não implica apenas formas de ver, mas também impõe um sentido prático na medida em que “as antecipações do habitus, espécies de hipóteses práticas fundamentadas na experiência passada, conferem um peso desproporcional às experiências iniciais”, levando os agentes a “fazer da necessidade a virtude, ou seja, a rejeitar o que já foi recusado e a almejar o inevitável” (BOURDIEU, 1980, p. 91).
Se a noção de habitus diz respeito, principalmente, a uma socialização decorrente de condições de existência, Bourdieu não hesita em propor variações que se refiram à empresa, à universidade ou à administração. Enquanto instituições, elas possuem uma história específica constitutiva de uma socialização “[...] impondo sua lógica particular à incorporação” (BOURDIEU, 1980, p. 96), ou seja, sendo ao mesmo tempo um pertencimento encarnado “[...] que faz com que o rei, o banqueiro, o sacerdote sejam a monarquia hereditária, o capitalismo financeiro ou a Igreja feita homem” (BOURDIEU, 1980, p. 96), mas também um “sentido prático”, “[...] disposições quase corporais, esquemas operacionais, [...] procedimentos transponíveis, truques, golpes ou astúcias [...]” (BOURDIEU, 1980, p. 115), às vezes impostos pela prescrição das tarefas, às vezes descobertos pela sagacidade do trabalhador.
Conforme vimos, a escola e os diplomas desempenham papel central no ajuste entre as disposições sociais e as aspirações subjetivas, mas, também, como “rito de instituição” entre os membros das classes altas, que atua “não apenas como um direito de entrada, mas também como uma garantia de competência vitalícia” (BOURDIEU, 1989, p. 167). Nesse sentido, a instituição escolar se constitui como uma das propriedades essenciais do habitus profissional8. No entanto, ele não se reduz a isso. Bourdieu sublinha, a esse respeito, que “o processo de transformação pelo qual alguém se torna mineiro, camponês, padre, músico, professor, ou patrão, é longo, contínuo e insensível, e [...] exclui, salvo alguma exceção, conversões repentinas e radicais” (BOURDIEU, 1997, p. 239). Ele se fundamenta nos meandros da socialização primária, já que tal processo “inicia-se desde a infância, quiçá antes mesmo do nascimento (o que se pode observar de modo privilegiado nisso que por vezes chamamos “dinastias” – de músicos, empresários, pesquisadores etc. –, mobilizando o desejo – socialmente elaborado – do pai ou da mãe e, até, de toda uma linhagem); e prossegue, na maior parte do tempo, sem crises ou conflitos – o que não o torna isento de todo tipo de sofrimentos morais ou físicos, os quais, como provações, fazem parte das condições de desenvolvimento da illusio [...]” (BOURDIEU, 1997, p. 239). O habitus do trabalho é, assim, questão de um encontro osmótico entre disposição e posição, de um efeito de espelho social entre indivíduo e instituição: as condições do habitus profissional são, de fato, atendidas:
[...] quando o cargo, mais ou menos institucionalizado, com o programa de ação mais ou menos codificado que lhe é inerente, encontra, como uma peça de vestuário, de uma ferramenta, de um livro ou de uma casa, alguém capaz de se dar bem nele e de se reconhecer nele o suficiente a ponto de retomá-lo por sua própria conta, de tomá-lo em suas mãos, de assumi-lo, e de se deixar possuir por ele (BOURDIEU, 1997, p. 221).
As instituições do trabalho, a partir daí, oferecem uma multiplicidade de casos de habitus profissionais que obedecem, todos, aos mesmos mecanismos sociológicos. Assim, ao lado das várias figuras do agente burocrático – funcionário público ou trabalhador de escritório9:
o garçom de café não representa o papel de garçom de café, como queria Sartre. Ao vestir o seu uniforme, [...] seu corpo, onde está inscrita uma história, casa com a sua função, ou seja, uma história, uma tradição, que ele apenas viu encarnada em corpos ou, melhor, nesses trajes habitados por um certo habitus ao que se denomina garçons de café [...] uma forma de manejar a boca ao falar ou de mover os ombros ao caminhar que lhe parecem ser constitutivas do ser social do adulto feito. Não se pode nem mesmo dizer que ele se concebe como garçom de café; ele se encontra muito envolvido na função para a qual foi socio-logicamente destinado [...] (BOURDIEU, 1997, p. 221-222).
Esse habitus faz eco ao dos professores, sobre os quais Bourdieu regularmente abordou o trabalho e as condutas relacionadas. Assim como o garçom, o professor exerce a função que lhe é atribuída pela instituição: aqui, “o cerimonial de prontidão e solicitude” (BOURDIEU, 1997, p. 222) dá lugar “[...] ao figurino de palavras que é para o professor aquilo que a bata ou o casaco branco é para o cozinheiro, o cabeleireiro, o garçom ou a enfermeira [...]: as proezas tipicamente carismáticas, tais como acrobacias verbais, alusões herméticas, referências desconcertantes ou a obscuridade peremptória, bem como as receitas técnicas que servem de suporte ou subsídio, tais como a ocultação de fontes, a introdução de anedotas combinadas ou a fuga de expressões comprometedoras [...]” (BOURDIEU; PASSERON, 1970, p. 159) desenham inúmeras práticas de trabalho, isto é, uma profissão incorporada, ponto alto da união entre uma trajetória social e uma instituição.
Os professores universitários aparecem, aqui, como casos paradigmáticos: provenientes, frequentemente, de meios privilegiados, o homo academicus geralmente experimenta uma escolaridade “exemplar”, o que significa que “não é possível determinar [...] [se] é o bom aluno que escolhe a escola ou se é a escola que o escolhe, pois tudo em sua conduta dócil indica que ele a escolheu” (BOURDIEU, 1997, p. 239). No entanto, nem todos eles desfrutam da mesma “hereditariedade social” ou dos percursos escolares mais prestigiados, de modo que existe um verdadeiro “espaço docente”: Bourdieu mostra que a polarização que estrutura o mundo acadêmico entre as faculdades de ciência e letras, de um lado, e as de direito e medicina, de outro, resulta de situações sociais diferenciadas, que por sua vez produzem habitus e práticas profissionais (BOURDIEU, 1984, p. 70-72). Assim, se:
[...] os professores de ciências e letras que, provenientes das classes populares ou médias, devem ao seu sucesso acadêmico o acesso às classes superiores e, também, aqueles que são oriundos do corpo docente se encontram fortemente inclinados a reinvestir fortemente na instituição que tão bem recompensou seus investimentos anteriores e estão muito pouco inclinados a buscar outros poderes além dos acadêmicos, [...] professores de direito, três quartos dos quais vêm da burguesia, ocupam com mais frequência do que os professores de ciências ou letras posições de autoridade na universidade e posições de poder no meio político ou, até mesmo, no mundo dos negócios (BOURDIEU, 1984, p. 74-75).
Nesse contexto, estes últimos aparecem como figuras paroxísticas do habitus profissional: para esses agentes oriundos de meios “dinásticos” sociais, escolares e profissionais, o acesso à profissão de professor de direito ou de medicina consagra não apenas a harmonia entre posições e disposições, mas, também, implica o pertencimento a um “corpo”, isto é, a um grupo profissional. Fundamentado sobre um processo de seleção drástico, o ingresso nessa profissão se baseia, segundo Bourdieu, menos no reconhecimento de competências específicas do que na afinidade de um habitus de classe feito “espírito de corpo”, típico, nesse sentido, da nobreza do Estado:
Verdadeiro direito de entrada no grupo, isso que chamamos de “espírito de corpo” [...], ou seja, essa forma visceral de reconhecimento de tudo aquilo que compõe a existência do grupo, sua identidade, sua verdade, e que o grupo deve reproduzir para se reproduzir, parece indefinível porque não pode ser reduzido às definições técnicas de competência oficialmente exigidas para a entrada no grupo. (BOURDIEU, 1989, p. 430).
Mas as transposições do habitus sobre as representações profissionais também dizem respeito às elites econômicas tradicionais. As grandes sociedades estão divididas:
[...] entre os chefes de Estado, colocados à frente de grandes negócios fortemente ligados ao Estado, tais como grandes empresas industriais (empresas nacionalizadas, empresas de economia mista ou empresas dependentes dos mercados estatais) ou grandes bancos, [...] e os chefes do setor privado, em bancos e empresas industriais ou comerciais privadas, que são (relativamente) menores e menos vinculadas ao Estado (BOURDIEU, 1989, p. 430).
Essa polarização remete a formas de socialização e de habitus distintas entre “os primeiros, [...] provenientes de famílias de altos funcionários públicos ou de profissões liberais”, o que é típico de trajetórias de herdeiros:
[...] colocados sob o signo do público em grandes lyceés d’Etat, em grandes écoles, na alta administração e em grandes organismos do Estado (em particular, a Inspeção de Finanças, o Conselho de Estado e o corp de mines) e, finalmente, em grandes empresas nacionais. (BOURDIEU, 1989, p. 431).
E os segundos, “[...] herdeiros de grandes dinastias burguesas ou provenientes da pequena burguesia do comércio ou do artesanato” com origens mais “modestas”, que têm estado essencialmente no setor privado, tanto em suas carreiras educacionais quanto profissionais “[...] mais frequentemente em uma empresa de propriedade de sua família” (BOURDIEU, 1989, p. 431). No entanto, Bourdieu demonstra que esse princípio histórico de legitimidade está sendo gradualmente corroído sob as críticas dos novos ingressantes no campo. Em um mundo econômico agora descrito como “moderno”, essa nova nobreza gerencial e tecnocrática encarnaria “o sentido da evolução” da história no lugar dos owners, de uma burguesia “tradicional” incapaz de se adaptar pelo simples fato de dominar o campo (BOURDIEU, 1989, p. 457).
Em última análise, o habitus profissional aparece como uma extensão e uma confirmação do habitus de classe: resultado esperado de uma programação social instituída fora do mundo do trabalho, ele opera e se adapta de acordo com as expectativas do cargo e da profissão, especialmente se a instituição que contrata o trabalhador lhe confere a liberdade de realizar as tarefas e as missões a ele confiadas. Se o trabalho é uma atividade humana baseada na produção de um bem ou de um serviço, Bourdieu demonstra, enfim, que ele é a expressão encarnada das relações sociais e dos conflitos que dividem nossas sociedades. O habitus produzido pelo trabalho é, portanto, parte de interações mais complexas, envolvendo grupos maiores. A noção de campo se apresenta, então, como a outra grande ferramenta heurística para a compreensão do fenômeno do trabalho.
Profissões em luta e lutas de classificação: o trabalho como campo
Embora a fabricação do trabalhador em Bourdieu se deva, em grande parte, a mecanismos de socialização primária – o ambiente social de origem, a escola – e secundária – a trajetória social, a compatibilização das disposições sociais e as exigências de um trabalho –, na visão do autor, ela também é uma questão de construção social, de normas e de representações produzidas por diferentes categorias de agentes sobre as atividades, os setores e os ofícios que compõem o mundo do trabalho. Para Bourdieu, o trabalho é um campo, um “[...] espaço estruturado de posições (ou cargos) cujas propriedades dependem de sua posição neste espaço [...]” (BOURDIEU, 1980b, p. 113), dentro do qual agentes ou instituições se engajam em um conjunto de lutas visando ao “[...] monopólio da violência legítima (autoridade específica) [...] ou seja, em definitivo, à conservação ou à subversão da estrutura de distribuição de capital específico” (BOURDIEU, 1980b, p. 114). Em outros termos, assim como o mercado, a arte ou o esporte, o trabalho é um espaço social no qual diferentes agentes se opõem para impor seu domínio e, assim, obter “benefícios específicos assegurados pelo campo” (BOURDIEU, 1984, p. 22). Porém, dominar não consiste em simplesmente ascender a uma posição de poder nesse espaço, mas também visa “[...] a ser percebido como se percebe, a apropriar-se de sua própria objetivação ao reduzir sua verdade objetiva à sua intenção objetiva” (BOURDIEU, 1979, p. 259), bem como a fazer de sua visão de mundo e de suas divisões, produto de seu habitus, um nomos, um princípio de divisão universal (BOURDIEU, 1992, p. 222).
O conceito de campo foi inicialmente elaborado para compreender a gênese, o desenvolvimento e as condições de imposição de regras literárias e artísticas contemporâneas (BOURDIEU, 1971). As “revoluções simbólicas” promovidas por Flaubert, Baudelaire ou Manet consistiram em contestar as convenções burguesas, políticas e estatais que dominavam a literatura e a pintura na época. Mas o seu sucesso também implicou uma redefinição da própria profissão de escritor e pintor, de acordo com as expectativas sociais – em grande parte inconscientes – dos pretendentes que se acotovelavam na entrada do campo. Abominar a arte burguesa tanto quanto o “laissez-aller espontâneo dos boêmios” (BOURDIEU, 1992, p. 132), essa “dupla ruptura” se baseia não somente na recusa de submeter sua arte a poderes econômicos, políticos ou acadêmicos, mas também em uma nova forma de escrever ou de pintar, seja quanto aos temas abordados – e, mais precisamente, quanto ao seu ecletismo, quer dizer, o “belo” como “vulgar”, tornando o vulgar belo – seja na forma de transcrevê-los, dominada por um controle absoluto da forma: Flaubert afirma assim “escrever bem o medíocre” (BOURDIEU, 1992, p. 161) enquanto Baudelaire pretende “abolir a distinção entre forma, conteúdo, estilo e mensagem” (BOURDIEU, 1992, p. 182), ambos movidos pela ambição artística de oferecer uma “visão intensificada do real” (BOURDIEU, 1992, p. 184), levando Bourdieu a qualificar seu estilo como “formalismo realista” (BOURDIEU, 1992, p. 182).
Ainda que Bourdieu destaque as condições socio-históricas que permitiram a “institucionalização dessa anomia” (BOURDIEU, 1992, p. 222), ele mostra aqui, sobretudo, que nem todos os “trabalhadores” estão subordinados à execução de tarefas, missões ou funções. Bourdieu, de fato, estende rapidamente os mecanismos que conduziram à autonomia do campo artístico para aqueles que constituem um conjunto de grupos profissionais. Ele sublinha que “cada produtor, escritor, artista, estudioso, constrói seu próprio projeto criativo”, no entanto, dentro dos limites autorizados “às categorias de percepção e apreciação do seu habitus, segundo uma determinada trajetória, e em função também da propensão de apreender ou recusar uma ou outra possibilidade, inspirada pelos interesses associados à sua posição no jogo” (BOURDIEU, 1994, p. 72). O autor demonstra que, embora “padres, juristas, intelectuais, escritores, poetas, artistas, matemáticos” (BOURDIEU, 1994, p. 67) disponham de uma autonomia profissional suficiente para definir tanto as suas atribuições quanto as suas prerrogativas, esses grupos profissionais também estão sujeitos a tentativas de intrusão por parte de elementos externos – geralmente neutralizados pelo princípio da concorrência e de numerus clausus – mas também, e sobretudo, à competição permanente entre seus membros quanto ao sentido a ser atribuído às suas missões e/ou às suas produções. Esse entendimento é então construído de acordo com suas próprias posições e interesses, em relação àqueles dos outros membros do grupo. Assim, tal como ocorre no campo artístico, as profissões intelectuais são atravessadas por dinâmicas relacionais divisionistas, como entre as escolas de vanguarda e as estabelecidas. Desse modo, por trás de uma ciência que se apresenta voluntariamente como “pura e desinteressada”, as descobertas e controvérsias científicas que inquietam estudiosos envolvem interesses particulares cujo principal desafio consiste em impor sua autoridade científica a seus “pares concorrentes”, sinal, segundo Bourdieu, de um alto grau de autonomia do campo (BOURDIEU, 1976). O espaço docente ilustra bem esses mecanismos: enquanto os “clínicos” e os “fundamentalistas” se opõem no campo do ensino da medicina (BOURDIEU, 1984), os membros das faculdades de letras são divididos entre partidários de uma legitimidade estritamente universitária “fundamentada, principalmente, no domínio dos instrumentos de reprodução do corpo docente, do júri da agrégation10, do comitê consultivo das universidades11[...]” e aqueles que confiam em seu “[...] prestígio científico medido pelo reconhecimento concedido pelo campo científico”, mas, também, pela mídia “[...] que é o índice tanto de um poder de consagração e de crítica quanto de um capital simbólico de notoriedade” (BOURDIEU, 1984, p. 107-108). Entre essas profissões, o mundo jurídico se constitui como um “caso de manuais”, uma vez que se apresenta como um exemplo paradigmático da noção de campo sem, no entanto, dispor da autonomia que a sua definição pressupõe: se a atividade judicial está, de fato, baseada na luta pelo “monopólio do legítimo exercício da competência judicial”, opondo juristas exegetas e juízes encarregados da aplicação das leis, esse conflito é indispensável para o funcionamento do campo, já que ambos concorrem, por meio de seus respectivos trabalhos – de codificação, de um lado, e de interpretação, de outro –, para a regulamentação de regras e práticas profissionais. De fato, toda a sua atividade consiste em “[...] determinar os conflitos que merecem atenção e a forma específica que devem tomar a fim de se constituírem debates jurídicos adequados” (BOURDIEU, 1986, p. 11). Intermediário entre o mundo profano e o mundo sagrado da justiça, o campo jurídico “[...] é [portanto] inseparável da instauração do monopólio desses profissionais sobre a produção e a comercialização dessa categoria particular de produtos que são os serviços jurídicos” (BOURDIEU, 1986, p. 11).
Se o sociólogo evoca o trabalho como um “campo de lutas” que opõe patrões e trabalhadores (BOURDIEU, 1980b, p. 251), os quais requerem meios de ação específicos, a exemplo da greve (BOURDIEU, 1987), sua definição de trabalho está longe de ser estritamente materialista. Nesse sentido, as reivindicações que emanam do mundo do trabalho resultam de disputas que se desenvolvem em arenas frequentemente distantes dos locais de trabalho. Como um “banco central de capital simbólico”, o Estado se constitui, ao mesmo tempo, como o espaço, o ator e a instituição que mais contribui para essas lutas: pensa-se imediatamente no seu papel como árbitro em negociações coletivas (BOURDIEU, 1987); mas, para Bourdieu, sua influência vai muito além do papel que lhe é oficialmente atribuído no âmbito das relações industriais. Uma vez mais, por meio do diploma que emite, a escola – e, portanto, o Estado – é onipresente “[...] nos conflitos, nas negociações, nos contratos individuais ou nos acordos coletivos que são firmados entre empregadores e empregados a respeito de todas as questões que os separam”: a definição dos postos de trabalho, ou seja, das tarefas que os ocupantes devem realizar e daquelas que têm o direito de recusar; as condições de acesso aos cargos, ou seja, as propriedades, particularmente os títulos escolares que os ocupantes dos cargos devem possuir; as remunerações, absolutas e relativas, nominais ou reais; e os nomes das profissões, que fazem parte da remuneração simbólica – positiva, no caso de posições de prestígio, ou negativa, no caso de profissões malvistas, vergonhosas ou inglórias, frequentemente usadas como insultos e designadas, no uso oficial, por eufemismos (BOURDIEU, 1989, p. 172). No entanto, o diploma escolar nunca é capaz de definir a totalidade das características de uma função, a qual está sujeita a contingências profissionais e a apropriações individuais. Desse modo, “[...] a existência permanente de uma discrepância – maior ou menor, dependendo do momento e do setor – entre o simbólico e o técnico, entre o nominal e o real, abre infinitas possibilidades a estratégias destinadas a aproximar o nominal do real ou o real do nominal” (BOURDIEU, 1989, p. 173). Nesse sentido, o mundo do trabalho em Bourdieu não é apenas a extensão de um habitus e de uma condição de classe e, em efeito, de reprodução social: como campo, ele é um espaço dinâmico no qual diferentes agentes – principalmente sindicatos e empregadores – se opõem e tentam impor suas definições sobre “[...] os nomes das profissões ou dos postos de trabalho [...], assim como sobre os títulos escolares, as armas e os espaços de luta e de negociação” (BOURDIEU, 1989, p. 174).
Não podendo ser reduzido às suas dimensões materialistas, o campo do trabalho em Bourdieu, portanto, não se limita a uma divisão social que contrapõe prosaicamente patrões e assalariados. Para o sociólogo, a empresa, por exemplo, está longe de constituir um lugar homogêneo: modelo emblemático que deve contribuir para um bom funcionamento, o organograma reúne “[...] agentes cujos interesses específicos estão ligados a cada uma dessas organizações e funções, e que podem entrar em conflito por múltiplas razões, em particular, pelo poder de decidir sobre os rumos da empresa” (BOURDIEU, 2000, p. 93). Aquilo que frequentemente se apresenta como estratégias decorrentes de concertações, na realidade corresponde mais à soma:
(...) de inúmeras decisões, pequenas ou grandes, ordinárias ou extraordinárias, que, em cada caso, são o produto da relação entre, de um lado, interesses e disposições associados a posições nas relações de força dentro da empresa e, de outro, da capacidade de fazer valer interesses ou disposições, que, por sua vez, também dependem do peso dos diferentes agentes envolvidos na estrutura e, portanto, do volume e da estrutura do seu capital (BOURDIEU, 2000, p. 94).
Consequentemente, “(...) o ‘objeto’ daquilo que às vezes se denomina ‘política da empresa’ nada mais é do que o campo da empresa” (BOURDIEU, 2000, p. 94), ou seja, é menos o resultado de escolhas pessoais ou de trocas coletivas do que o resultado de uma luta desigual entre agentes, com trajetórias e habitus diferenciados, que tentam, de todas as formas – principalmente por meio do seu capital escolar e simbólico – impor sua visão sobre a condução da empresa.
Possivelmente, mais do que outros conceitos de Bourdieu, o campo se apresenta como uma das noções que dispõe das propriedades mais ricas para se analisar o mundo do trabalho: ao tornar a luta, particularmente a simbólica, o princípio motor da constituição de um grupo ou de um espaço social, ele oferece possibilidades de análise tão vastas quanto os objetos do campo da “Sociologia do trabalho”, abrangendo tanto o estudo das profissões, das relações profissionais e da conflitualidade, quanto o das empresas e das organizações.
Conclusão
A obra de Pierre Bourdieu parece ter muito mais a dizer sobre o trabalho do que ela permite supor a priori: os objetos que a tornaram célebre são capazes de oferecer muito mais do que os títulos aos quais são frequentemente reduzidos. Por exemplo, com frequência omite-se, em sua conhecida análise da “escola conservadora”, a tênue ligação entre a instituição escolar e o trabalho: encarregada de preparar subjetivamente os indivíduos para as posições para as quais estão socialmente programados, a escola exerce uma influência sem equivalentes no mundo profissional, tanto nas atitudes individuais quanto nas estruturas que as determinam, como demonstram suas pesquisas sobre a desclassificação. Mas, enquanto teoria geral do mundo social, a sua Sociologia dispõe, sobretudo, de um conjunto variado de ferramentas capazes de levantar problemáticas antigas e permanentes sobre o mundo do trabalho. Seu conceito de habitus permite, assim, compreender melhor os mecanismos de apropriação de um cargo ou, mais amplamente, de socialização profissional: ao lançar luz sobre as condutas no trabalho por meio do encontro – feliz ou não – entre trajetória social, propriedades e definições de um cargo, Bourdieu supera a armadilha de uma leitura sincrônica – frequente nas condições de trabalho – e mostra que a relação com o trabalho é o resultado de uma articulação complexa entre as socializações primária e secundária. O habitus no trabalho, portanto, não pode ser reduzido à expressão profissional de uma relação social situada. Para Bourdieu, o trabalho é um campo, um lugar de confronto entre posições antagônicas no qual cada parte tenta impor sua dominação. O sociólogo não se contenta, aqui, em imitar Marx: se o mundo do trabalho se fundamenta em lutas de natureza materialista, ele destaca a centralidade dos conflitos simbólicos, particularmente em torno das taxonomias que enquadram o trabalho ou que orientam as políticas de uma empresa. Ao postular que o conflito por ganhos específicos tem o efeito de circunscrever determinados interesses e, consequentemente, de delimitar atores e espaços sociais, as noções de habitus e de campo tornam possível ir além do trabalho assalariado, para abranger todos os universos nos quais as atividades produtivas são realizadas. Bourdieu mostra, em numerosas ocasiões, não apenas que o trabalho não é necessariamente o resultado de uma dominação estrutural ou institucional, mas que ele produz lutas, em especial, pela sua definição, e conforma grupos profissionais: artistas e cientistas, advogados e acadêmicos, todos têm em comum o fato de estarem unidos por um conflito sobre as prescrições de sua posição, função ou missão.
Por fim, compreende-se o mal-estar que muitos sociólogos do trabalho sentem em relação à obra de Pierre Bourdieu. Enquanto eles estão acostumados a analisar o seu tema, com maior frequência, sob o prisma da atividade, do conflito, da empresa ou da instituição, o sociólogo francês está interessado no making of dos trabalhadores: de um lado, na forma pela qual o seu pertencimento de classe e sua trajetória produzem disposições profissionais particulares; e de outro, no modo pelo qual esses mesmos trabalhadores lutam para impor a definição de seu trabalho e de sua profissão. Bourdieu é, portanto, um pensador da socialização profissional em uma acepção diacrônica e antropológica. Dito de outra forma, ele reinsere o trabalho na sociedade no ponto onde a especialização disciplinar havia acabado por isolá-lo. Assim, em vez de se persistir na desqualificação da pertinência das ferramentas bourdieusianas para pensar o trabalho (HIKARU DESAN, 2013; BURAWOY, 2019), parece mais sensato se apropriar dessas ferramentas, como alguns já estão fazendo ao relacionarem classes sociais, estilos de vida e trabalho (ATKINSON, 2009; HALFORD; STRANGLEMAN, 2009; LAURISON; FRIEDMAN, 2016). Mesmo que se ofereçam perspectivas, sem dúvida, passíveis de correção, seus conceitos permanecem fecundos. De fato, ao propor uma Sociologia do Trabalho integrada, Bourdieu abre a possibilidade de refazer o trabalho enquanto objeto central na compreensão das sociedades.
Referências
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Recebido em: 12/07/2021
Aceito em: 04/10/2021
1 Este texto provém da obra Bourdieu et le Travail que editei e escrevi em conjunto com outros autores e que foi publicada, em 2015, pela Presses Universitaires de Rennes.
* Doutor em Sociologia pelo Institut de Hautes Etudes de l’Amérique Latine (IHEAL), de Paris. Pesquisador do CNRS, membro do Laboratoire Interdisciplinaire de Sociologie Economique (LISE) do Conservatoire National des Arts et Métiers (CNAM), em Paris. Sociólogo do trabalho, além de produzir Bourdieu et le Travail, é autor de diversas obras sobre a retomada de empresas e cooperativas na Argentina e na França. Atualmente, é membro das revistas Terrains & Travaux e Nouvelle Revue du Travail. E-mail: maxime.quijoux@lecnam.net
** Doutor em Sociologia pela Universidade de São Paulo (USP). Professor do Programa de Pós-Graduação em Sociologia da Universidade Federal da Paraíba (UFPB). Atualmente é editor associado da Revista Brasileira de Ciências Sociais (RBCS/ANPOCS) na área de Sociologia e coordenador do GT10 da Associação Brasileira de Estudos do Trabalho “Trajetórias e Disposições Sociais em meio às Reconfigurações do Mundo do Trabalho”. E-mail: mauricio.rombaldi@gmail.com
2 Com a expressão petite cuisine permanente, remete-se à ideia de uma dimensão “artesanal” do processo desenvolvido pela equipe de pesquisa (nota do tradutor).
3 O certificat d’aptitude professionnelle (CAP) é o diploma mais baixo do ensino técnico francês.
4 O baccalauréat é o diploma concedido no final do ensino médio que permite o acesso ao ensino superior, em particular à universidade.
5 Os ouvriers spécialisés são os trabalhadores menos qualificados na organização do trabalho.
6 No sistema de ensino superior francês, as grandes écoles são instituições públicas que preparam os futuros funcionários do alto escalão do Estado francês. Altamente seletivas, elas reúnem as elites econômicas, políticas e burocráticas que ocuparão a maior parte das posições de poder nas empresas e nas administrações francesas.
7 A ENA (Escola Nacional de Administração) é uma grande école que prepara os futuros executivos e líderes do Estado francês.
8 Bourdieu jamais se referiu propriamente a um “habitus profissional”. Essa formulação, entretanto, não parece abusiva e nos permite, aqui, facilitar a compreensão da sua obra.
9 Quando Bourdieu menciona o “agente burocrático”, ele está se referindo tanto ao trabalhador do Estado – o funcionário público – como, também, ao do setor privado – por meio do trabalhador de escritório, o comercial (nota do tradutor).
10 A agrégation é um concurso altamente seletivo para se tornar professor, o que permite um melhor salário e uma maior mobilidade no ensino médio e superior.
11 Os comitês consultivos remetem às instâncias de gestão dos cursos, das disciplinas e dos universitários dentro das faculdades.
ISSN 1517-5901 (online)
POLÍTICA & TRABALHO
Revista de Ciências Sociais, nº 54, Janeiro/Junho de 2021, p. 220-236
Resenha
MASCULINIDADES PETROLEIRAS:
Trabalho e Gênero na Argentina
PETROLEUM MASCULINITIES:
Work and Gender in Argentina
____________________________________
Guillermo Stefano Rosa Gómez1*
Manoel Cláudio Mendes Gonçalves da Rocha2**
PALERMO, Hernán. La producción de la masculinidad en el trabajo petrolero. Buenos Aires: Biblos, 2017. Disponível em: http://www.ceil-conicet.gov.ar/2017/06/libro-la-produccion-de-la-masculinidad-en-el-trabajo-petrolero-hernan-palermo/ Acesso em: 15 set. 2021
Resumo
Apresentamos a obra de Hernán Palermo, La producción de la masculinidad en el trabajo petrolero, fruto de longa etnografia realizada entre os trabalhadores petroleiros na Argentina e tema de sua tese de doutoramento. Partindo de uma mirada gramsciana em interface com a história social feminista, o autor mobiliza as categorias de hegemonia empresarial e disciplina fabril a fim de compreender os processos de fabricação e mutação das masculinidades, inseridos no contexto de privatização e desmantelamento da empresa petroleira estatal YPF. O estudo acompanha a masculinidade como um fenômeno social, que se reforça tanto nos espaços de trabalho como no ambiente familiar. A análise aponta para a maneira como a fabricação de masculinidades no universo petroleiro se desdobra de formas múltiplas, que podem incluir, por exemplo, as masculinidades heroicas e as masculinidades infantilizadas. As reflexões de Palermo constituem uma importante contribuição para os estudos antropológicos do trabalho por trazerem à discussão a interconexão entre a disciplina empresarial/laboral e as relações de gênero, assim como os modos como tais relações são transformadas em um contexto de reestruturação produtiva.
Palavras-chave: Antropologia do Trabalho. Gênero. Masculinidades. Disciplina Fabril.
Abstract
The book of Hernan Palermo comes from long-time ethnographic research that fundament his PhD dissertation about oil workers in Argentina. From a Gramscian point of view together with the feminist social history the author mobilizes the concepts of company hegemony and factory discipline in order to comprehend the processes of building and mutation of masculinities during the privatization and dismantling of the YPF company. The research presents the masculinity as a social phenomenon which reinforce itself in both work and domestic environment. The study points out to the ways that the constructions of masculinities between oil workers can be multiple and complex, including the heroic masculinities to the infantile ones. The reflections of Palermo present significant contribution to the anthropological work studies, bringing into attention the relation between company discipline and gender relations during contexts of productive restructuring.
Keywords: Anthropology of Work. Gender. Masculinities. Factory discipline.
1* Doutorando em Antropologia Social na Universidade Federal do Rio Grande do Sul (PPGAS/UFRGS). E-mail: guillermorosagomez@gmail.com
2** Doutor em Antropologia Social pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). Mestre em Antropologia pela Universidade Federal do Pará (UFPA). Graduado em Ciências Sociais (UFPA). E-mail: manoelrochacs@gmail.com
ISSN 1517-5901 (online)
POLÍTICA & TRABALHO
Revista de Ciências Sociais, nº 54, Janeiro/Junho de 2021, p. 238-245
O livro de Hernán Palermo1, “La producción de la masculinidad en el trabajo petrolero”, lançado em 2017 pela editora argentina Biblos, é resultado do diálogo profícuo entre os estudos das masculinidades e a Antropologia do Trabalho. Baseado em longa etnografia entre os trabalhadores petroleiros na Argentina, tema de sua tese de doutoramento (2012), Palermo dá vazão analítica para os processos pelos quais se constitui a “cultura de gênero” nos universos de trabalho. O autor assume o universo laboral e os espaços de trabalho como um foco privilegiado para discutir a formação da masculinidade, desde uma mirada gramsciana e com o suporte da história social feminista2. Em complemento, atenta para as formas como o universo “extralaboral”, tal como o ambiente familiar e doméstico, se apresentam intimamente relacionados à esfera do trabalho, no que tange aos processos de construção de masculinidades no trabalho petroleiro. O estudo se insere no debate teórico que toma como premissa as masculinidades em seu caráter plural e enfoca as formas como elas são socializadas e estabelecidas.
A análise da intersecção entre processos de socialização e fabricação das masculinidades com as experiências do mundo do trabalho está apoiada no conceito de “hegemonia empresaria”, que designa o “caráter envolvente do ejercicio del poder” (PALERMO, 2017, p. 24) para muito além dos espaços laborais e profissionais. Já a categoria de “disciplina fabril”, outro eixo de análise, é utilizada para pensar as políticas institucionais de arregimentação e controle da mão da obra.
A investigação do autor demonstra que existe um “amalgama entre la masculinidad y la disciplina fabril” (PALERMO, 2017, p. 136), isto é, parte das imposições e controles empresariais reside em impor um determinado comportamento de gênero. Partindo dessa argumentação, Palermo retoma a fundação, em 1922, da Yacimientos Petrolíferos Fiscales (YPF), empresa estatal argentina dedicada à exploração do petróleo. A YPF centralizava ao redor dela os projetos de vida dos funcionários: o acesso ao serviço de saúde, a educação dos filhos, as alternativas de lazer, a política de moradia, que se apresentavam em intensa relação com a empresa. Em 1989, a YPF entrou em um processo de privatização que durou dez anos, culminando na perda do emprego, na terceirização do trabalho e na transformação drástica das formas de disciplina. Uma das propostas do estudo apresentado nesse livro é abordar as mutações nos modelos de masculinidades sob as circunstâncias do processo de desmantelamento de uma disciplina empresarial estatal.
Com esse enfoque, se apresenta ao leitor(a) uma etnografia dos espaços de trabalho e dos lares dos petroleiros, especialmente na cidade de Comodoro Rivadavia, cidade média do sul da Argentina. O livro se divide em cinco capítulos dos quais faremos uma exposição objetivando tornar a resenha didática, facilitando o acesso às temáticas debatidas pelos pesquisadores e pesquisadoras interessado(a)s.
No primeiro capítulo Trabajo y masculinidad heroica, Palermo aborda a manufatura histórica – empresarial e estatal – da narrativa do heroísmo dos trabalhadores petroleiros a partir da análise das representações coletivas em torno da YPF. Estas são reforçadas pelo imaginário que consolida como indissociável o trabalho petroleiro, a masculinidade e os projetos de desenvolvimento nacional. O autor evidencia como a construção da masculinidade hegemônica se relacionou com o “nacionalismo petroleiro” e com a “argentinização da força de trabalho”. Nesse sentido, a gestão empresarial buscava constituir os trabalhadores do petróleo como “soldados” e “heróis” dedicados ao labor em prol da nação. Esse ideal de masculinidade do trabalhador nacional é constitutivo da própria paisagem das cidades petroleiras e evidente em seus monumentos: seja do general Mosconi, primeiro presidente da estatal, seja dos trabalhadores comuns, com o torço nu, exibindo o uso da força física enquanto atributo reverenciado. Trabalhar para a YPF significava servir à Argentina, e a imagem do petroleiro foi transformada no modelo de trabalhador nacional.
Com a convergência das narrativas de desenvolvimento industrial, da masculinidade e da constituição da nação, a morte de petroleiros “em serviço” passou a ser interpretada e valorada positivamente, alicerçando imagens do sacrifício patriótico. Nesse caso, foram erigidos outros tipos de monumentos para homenagear os caídos. Tal como no caso de soldados mortos em guerras, esse tipo de construção teve o intuito de valorizar um esforço transcendental daqueles que propulsionaram e deram base aos ideais da “nação argentina”.
A narrativa do homem petroleiro e trabalhador nacional precisou de um contraponto binário para se estabelecer. Se, de um lado, havia imagens dos homens fortes, destemidos, quase personagens militares, de outro, estavam as mulheres doces, suaves e com habilidades de cuidado. As “rainhas do petróleo” – título atribuído em cerimônias de coroação e festas populares, organizadas pela empresa em meados da década de 1950 – não tinham poder algum. Palermo demonstra como as diferenciações dos comportamentos de gênero são historicamente localizadas e diretamente relacionadas com as políticas empresariais. A YPF elegeu, e se esforçou por manter, um modelo hegemônico de família.
O capítulo seguinte Estructuras de significación de la masculinidad, propõe pensar essas formas de construção das significações de gênero, forjadas no mundo do trabalho como demandas da disciplina fabril. As administrações empresariais, na perspectiva de Palermo, tiveram papel preponderante na coordenação e direção das formas sociais de viver, pensar, sentir e praticar as relações de gênero. Parte desse processo se materializa em ações que configuraram o universo laboral petroleiro enquanto um espaço que “no es para señoritas” (PALERMO, 2017, p. 57), ou seja, exclusivamente masculino e que delimitava claramente a fronteira entre masculino e feminino, público e privado, positivo e negativo. Esse tipo de construção/valoração binária se manifesta como consequência, por exemplo, da extensa jornada de trabalho, que circunscreve o petroleiro a longos períodos afastado do convívio familiar, fator que contribui para demarcar simbólica e temporalmente os contornos do universo masculino do petróleo e seu alijamento dos “espaços feminizados” da casa e do cuidado.
Se a disciplina empresarial da Yacimientos Petrolíferos Fiscales foi preponderante na constituição das masculinidades identitárias dos trabalhadores, o que acontece quando essa organização é descontinuada? Qual o impacto da privatização dessa empresa para a organização dos papéis sociais de gênero, estabelecidos em amálgama com a organização do trabalho? Seguindo essas pistas, Hernán retoma as narrativas de trabalhadores que associam o processo de privatização da YPF com a perda de masculinidade. Os impactos da privatização foram interpretados pelos trabalhadores enquanto um processo de “castração” – “nos cortaban las bolas” (PALERMO, 2017, p. 60) – e a perda de capital econômico e social decorrente do desemprego foi comparada ao ato de ser “penetrado” e, portanto, desautorizado em sua masculinidade. A perda do trabalho “esterilizou” os trabalhadores petroleiros.
O processo de privatização modificou o próprio significado do trabalho: quando se estava engajado em um projeto da nação, a YPF era o fim último. Quando privatizado, o trabalho petroleiro passa a ser apenas um meio, uma forma de aquisição de boa remuneração. Os trabalhadores não se veem mais como membros da “família ypefeana” ou “ypefeanos” mas, simplesmente, “petroleros”. O que antes era um orgulho geracional de se ter pai e avô tendo a mesma profissão foi substituído pela atitude de não querer o mesmo destino para os filhos, que devem projetar “algo mejor para su vida” (PALERMO, 2017, p. 64). As transformações produtivas e disciplinares, a privatização e a instabilidade laboral mediante a ameaça do desemprego, fragmentaram um modelo de organização comunitária, de família e, principalmente, de masculinidade.
O capítulo três Poder, alienación y masculinidad: la consolidación de la hegemonia empresaria y sus fissuras aborda como a disciplina fabril formata e idealiza um tipo de sujeito ideal, o “sujeto fabril-petrolero-masculino” (PALERMO, 2017, p. 78), e de que maneira essa idealização se efetiva no cotidiano de trabalho. De acordo com Palermo, a masculinidade é construída tanto pelas práticas dos trabalhadores como pelos processos empresariais e, ainda que seja protagonizada pelos petroleiros mediante seu reconhecimento identitário, ela beneficia o processo de exploração. Um dos exemplos potentes dessa argumentação é o da invisibilidade dos acidentes de trabalho: para os petroleiros, “ser homem” perpassa a capacidade de “aguentar” os golpes e acidentes, considerados “cositas” (PALERMO, 2017, p. 89). Nesse contexto, as cicatrizes são marcas de uma masculinidade quantificável.
A negação da condição de vulnerabilidade no espaço de trabalho e a suavização da gravidade dos acidentes são comportamentos associados à constituição de um modelo de masculinidade do qual a empresa se beneficia. Aguentar o que vem pela frente, resolver sem perguntar, suportar as adversidades e riscos determinados pelo poço de extração – um espaço de trabalho masculinizado e com agência sobre os petroleiros – são algumas das características que formam um “verdadeiro homem”. A masculinidade no universo petroleiro conduz a um perverso paradoxo: ao mesmo tempo em que quem a exerce se sente dominante a partir de uma posição hierarquizada de gênero – e efetivamente o é, em relação às mulheres – exercê-la contribui para sua vulnerabilidade frente aos interesses empresariais.
Como em todo regime disciplinar, existem muitas formas de subverter os parâmetros hegemônicos. A etnografia de Palermo atenta para as complexidades implicadas na configuração de masculinidades “fora da norma empresaria”. O autor aponta as táticas mobilizadas pelos petroleiros que são capazes de produzir fissuras no disciplinamento. Dentre elas, estão as “artes na demora” que frustram interesses empresariais de suprimir e/ou controlar os tempos não produtivos. Porém, mesmo as masculinidades contra-hegemônicas não conseguem se descolar da estrutura hierarquizada de gênero, na qual o masculino se afirma superior ao feminino.
Visando a acompanhar essas complexidades na relação entre norma fabril e constituição de comportamentos de gênero, o quarto capítulo, Masculinidades infantilizadas testa os alcances da hegemonia empresarial – que, segundo a perspectiva de Gramsci, nasce na fábrica e dali se estende – e examina os desdobramentos da administração empresarial na vida cotidiana dos petroleiros e de suas famílias. Palermo mira o lar sem esquecer da disciplina, considerando a dinâmica familiar um dos aspectos fundamentais na constituição de classe e o salário uma das repercussões dos processos de trabalho no mundo “de fora”.
A relação entre os petroleiros e seu núcleo familiar se define pelo conceito de “patriarcado do salário”, no qual a divisão sexual do trabalho coloca os homens no papel de provedores, enquanto reserva às mulheres o trabalho não pago e não reconhecido, que tem o propósito de recuperar e reproduzir a força de trabalho. Na cidade de Comodoro Rivadavia, principal universo de pesquisa de Palermo, isso implica a constituição de uma série de representações que circulam no espaço público sobre as mulheres e homens da comunidade petroleira. Na conversa informal dos bairros populares, os petroleiros são “machos con plata” – decorrente de histórica posição econômica privilegiada em comparação com boa parte da classe trabalhadora argentina – enquanto suas esposas são “encantadoras dos homens petroleiros”, que utilizam de ardis para controlar seus companheiros e usufruir de seus salários. Os estigmas, quando direcionados às mulheres, somam violência de classe e gênero.
Como afirma Hernán, a “condicion de hombre, si bien fue una entrada privilegiada al trabajo, cerró otras puertas” (PALERMO, 2017, p. 28). Assim, no espaço doméstico, o poder masculino é renegociado, sendo a mulher quem assume a gestão financeira da família. Daí é gestado o conceito de masculinidade infantilizada. Hernán estabelece essa categoria para fazer referência a um conjunto de narrativas dos trabalhadores petroleiros que abordam a maneira como esses percebem seu “retorno” ao espaço da casa. Os relatos focam desde a administração feminina do salário até as reclamações de que as mulheres são “quejosas”3 (PALERMO, 2017, p.109) quando manifestam o esforço em garantir as responsabilidades masculinas para com a família, que envolvem o compromisso com uma vida ordenada e alijada das saídas noturnas, do álcool e da infidelidade. Na interpretação do autor, a mulher age como uma extensão da disciplina fabril, fazendo com que seus maridos/trabalhadores descansem e recuperem as energias para a jornada de trabalho seguinte. Ainda no regime das masculinidades infantilizadas, os trabalhadores relatam “perda” da família, característica histórica do trabalho por turnos que alija o trabalhador do espaço da casa. Essa separação também é agravada pela debilidade corporal, o cansaço e a surdez, que se tornam mais explícitos nas dinâmicas do lar.
O afastamento masculino do espaço da casa desencadeia outra violência de gênero, que recai sobre as mulheres: as acusações de infidelidade feminina. Surge a figura do trabalhador “cornudo” que opera como uma desvalorização da masculinidade, ativando um regime de emoções específico: “el temor de perder el bien más preciado de la masculinidad: el domínio del cuerpo feminino” (PALERMO, 2017, p. 113).
A gestão feminina e a ausência ou menor autonomia no uso do próprio salário, o corpo debilitado e que carece de cuidados quando volta ao lar – que também pode ser tratado com menosprezo pela inaptidão quando requisitado “fora do trabalho” – e a perda do domínio sobre o corpo feminino: todas essas características fazem com que os trabalhadores se sintam “tratados como crianças” quando regressam do trabalho.
O conceito de “masculinidades infantilizadas” funciona para dar vazão à maior complexidade dos papéis de gênero, sem necessariamente recorrer às contraposições binárias, assim como permite ao autor reforçar a demonstração de que a disciplina fabril se estende para esses papéis e comportamentos. Quanto ao uso desse conceito, cabem duas ressalvas críticas. A primeira é o cuidado para não naturalizar o discurso dos trabalhadores, assumindo as falas de que são “infantilizados”, despossuídos ou sem poder. Palermo segue esse desafio, refletindo, por exemplo, sobre a folga como momento que coincide com a violência contra a mulher. O segundo ponto é o de refletir sobre a condição de gênero do pesquisador em campo, tema que é apresentado no quinto capítulo, mas que contribuiria à problematização das falas dos interlocutores se abordado anteriormente no capítulo 4.
Deve-se reforçar que as falas de “masculinidades infantilizadas” aparecem em encontros etnográficos de um pesquisador homem dialogando com outros homens ou com as esposas desses. Se pensarmos a relação de diálogo e produção compartilhada dos dados etnográficos como mediada por sujeitos com gênero – e levarmos em contar a maneira com que o gênero do pesquisador ou pesquisadora influencia no que os interlocutores e interlocutoras relatam –, veremos a infantilização dos homens petroleiros como profundamente relativa a um contexto de fala e como modo narrativo mais predominante nos homens do que nas mulheres.4
Posto isso, adentramos o último capítulo, Feminización y violencia en el trabajo. Nele, Palermo direciona o olhar analítico para os espaços de trabalho, demonstrando que a masculinidade, por ser um valor estimado, exige a manufatura de diversas ações de rejeição à feminilidade. O autor busca interpretar os comportamentos jocosos e/ou violentos entre os homens trabalhadores, que têm como objetivo confirmar sua virilidade. A condição compartilhada de masculinidade do pesquisador e dos interlocutores permitiu acessar as narrativas que mencionam brincadeiras cotidianas e com conotação sexual que povoam o universo petroleiro.
O processo de ascensão profissional impõe a necessidade de “ser homem” e se comportar de acordo. A masculinidade tem um imperativo de ser constantemente revalidada e afirmada perante os pares por meio de demonstrações de força, rituais de iniciação, atos batismais e os diversos tipos de “bromas”5. Por isso, para adentrar no trabalho petroleiro, os iniciantes passam por um verdadeiro processo pedagógico, ministrado pelos trabalhadores antigos, visando a reprimir qualquer indício de feminilidade nos iniciados.
A juventude se apresenta enquanto antítese da masculinidade (pois é vista como uma masculinidade inacabada/atenuada) e os trabalhadores chamam a si mesmos de “viejos6”, termo que é menos um marcador geracional e mais um indício de poder masculino e de demarcação de uma experiência laboral: o corpo do trabalhador petroleiro é um corpo envelhecido, debilitado pelo trabalho no “pozo”7 e, por isso, masculinizado. Após a privatização, foi comum a entrada de profissionais jovens para cargos de chefia, o que instaurou uma contradição no ethos petroleiro: as brincadeiras, que tinham como alvo recorrente os “pendejos, menuditos, flaquitos, canários” (PALERMO, 2017, p. 131) – termos êmicos usados para designar os novos em serviço – evitavam as chefias.
As narrativas petroleiras convergem para situar o cenário de trabalho no qual aguentar intempéries de frio e calor extremos é elemento que “transforma em homens” os iniciados. Porém, como já mencionado, sempre existe um risco, ojerizado, de feminização. Faz-se necessário remover do próprio espaço laboral os significantes femininos, dotando-o de um estatuto masculino, “o poço” – com controle e poder de mando sobre os trabalhadores – e o mundo externo se transformam em sinônimos para o feminino.
Por fim, concluímos que o livro de Hernán Palermo é uma contribuição relevante para os estudos antropológicos do trabalho e das masculinidades na América Latina. As reflexões apresentadas mostram como a manufatura das masculinidades no universo petroleiro ora favorece as demandas de produção e acumulação de capital, bem como a exploração e dominação exercidas pelas empresas, ora reconfigura as relações de gênero, a divisão do trabalho entre os sexos e os papéis femininos e masculinos em arranjos complexos.
Se a formação da classe trabalhadora não é algo dado, mas sim um processo pedagógico de formação, Palermo evidencia como essa construção perpassa modelos e papéis de gênero e família intrincadamente relacionados às exigências empresariais. O conceito de “disciplina fabril” auxilia a pensar a influência das lógicas empresariais para além dos espaços laborais. O autor aborda temas fundamentais como a violência sexual entre trabalhadores ou a violência de gênero desses trabalhadores com suas esposas, que só uma etnografia atenta e eticamente comprometida conseguiria narrar e captar. Enfatizamos sua capacidade de investigar de que formas um processo de privatização e transformação macroeconômico se relaciona com as transformações das masculinidades laborais, assim como possibilita analisar um processo de reestruturação produtiva a partir da ótica das relações de gênero. Essa etnografia do trabalho petroleiro segue os fios do complicado enredamento entre gênero e disciplina empresarial, fazendo do livro de Hernán Palermo uma importante leitura tanto nos estudos das masculinidades como das antropologias do trabalho, com o potencial de fomentar novos debates, críticas e investigações.
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PALERMO, Hernán. Masculinidades en la industria del software en Argentina. Revista Internacional de Organizaciones, Tarragona, n. 20, p. 103-121, jun. 2018.
Recebido em: 07/06/2020
Aceito em: 11/08/2020
1 Hernán Palermo é doutor em Antropologia Social pela Universidade de Buenos Aires (UBA) e pesquisador do Centro de Estudios e Investigaciones Laborales (CEIL-CONICET).
2 Um bom exemplo é o livro da historiadora Silvia Federici (2017), “Calibã e a bruxa: Mulheres, corpo e acumulação primitiva”, recentemente lançado no Brasil pela editora Elefante, no qual a autora argumenta que a repressão ao corpo feminino e a divisão sexual do trabalho foram fundamentais para a consolidação do capitalismo.
3 Queixosas.
4 O próprio autor já revisa esses pontos no seu aprofundamento dos estudos de masculinidades em outro contexto profissional, o dos programadores de software (PALERMO, 2018).
5 Piadas.
6 Velhos.
7 Poço.