Revista de Ciências Sociais - Política & Trabalho

Programa de Pós-Graduação em Sociologia

Centro de Ciências Humanas, Letras e Artes

Universidade Federal da Paraíba

Publicação semestral do PPGS/UFPB

55 - Junho/Dezembro de 2021

ISSN 1517-5901 (online)

CONSELHO EDITORIAL

César Barreira (Brasil), Christian Azais (França), Cynthia Lins Hamlin (Brasil), Edgard Afonso Malagodi (Brasil), Emília Araújo (Portugal), Howard Caygill (Reino Unido), Frédéric Vandenberghe (Brasil), Jacob Carlos Lima (Brasil), Joanildo A. Burity (Brasil), José Arlindo Soares (Brasil), Julie Antoinette Cavignac (Brasil), Lee Jonathan Pegler (Holanda), Marie-France Garcia-Parpet (França), Paulo Henrique Martins (Brasil), Regina Novais (Brasil), Rubens Pinto Lyra (Brasil), Sandra J. Stoll (Brasil), Theophilos Rifiotis (Brasil), Vera da Silva Telles (Brasil), Zhou Zhiwei (China).

EDITORIA

Maurício Rombaldi, UFPB, Brasil

Miqueli Michetti, UFPB, Brasil

COMITÊ EDITORIAL

Miqueli Michetti, UFPB, Brasil

Mauricio Rombaldi, UFPB, Brasil

Sérgio Botton Barcellos (coordenador do PPGS) UFPB, Brasil

Patrícia Alves Ramiro (vice-coordenadora do PPGS) UFPB, Brasil

Editora-assistente

Ana Carolina Costa Porto (Bolsista Fapesq-PB)

REVISORA

Ana Carolina Costa Porto (Bolsista Fapesq-PB)

DESIGN GRÁFICO

Projeto gráfico da capa: Jonas de Sene Pinto

Fotografia: Mirella Brito

Diagramação: Brunos Gomes

A apresentação de colaborações e os pedidos de permuta e/ou compra devem ser encaminhados ao PPGS/UFPB:

Universidade Federal da Paraíba – Programa de Pós-Graduação em Sociologia

Centro de Ciências Humanas, Letras e Artes – Bloco V – Campus I – Cidade Universitária CEP 58.051-970
João Pessoa – Paraíba – Brasil – Telefax (83) 3216 7204 - E-mail: politicaetrabalho@gmail.com

POLÍTICA & TRABALHO

Revista de Ciências Sociais

Publicação do Programa de Pós-Graduação em Sociologia

da Universidade Federal da Paraíba

(Campus I - João Pessoa)

Ano XXXVIII

Número 55

Junho/Dezembro de 2021

ISSN 1517-5901 (online)

Programa de Pós-Graduação em Sociologia - UFPB

indexação

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)

Biblioteca Central - Campus I - Universidade Federal da Paraíba

CENTRO DE CIÊNCIAS HUMANAS, LETRAS E ARTES

Diretora: Mônica Nóbrega

Vice-Diretor: Rodrigo Freire

PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM SOCIOLOGIA

Coordenador: Sérgio Botton Barcellos

Vice-coordenadora: Patrícia Alves Ramiro

Revista de Ciências Sociais - Política & Trabalho está licenciada

com uma Licença Creative Commons - Atribuição-NãoComercial 4.0 Internacional.

Qualquer parte desta publicação pode ser reproduzida, desde que citada a fonte PPGS/UFPB.

R449 Revista Política e Trabalho / Programa de Pós-Graduação em

Sociologia – Vol. 1, Ano 38, n. 55 (jun./dez. 2021). João Pessoa, 2021.

241p.

1517-5901 (online)-1. Ciências Sociais. 2. Política. 3. Trabalho.

UFPB/BC CDU: 32

UNIVERSIDADE FEDERAL DA PARAÍBA

Reitor: Valdiney Gouveia

Vice-Reitora: Liana Filgueira

Pró-Reitor de Pós-Graduação e Pesquisa: Fernando Guilherme Perazzo Costa

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SUMÁRIO

Editorial

DOSSIÊ

MORAL E POLÍTICA

APRESENTAÇÃO | Alexandre Werneck, Simone Brito

CRISE OU REPARAÇÃO: narrativas político-morais em torno da pensão indenizatória para crianças com Síndrome Congênita do Vírus Zika no Brasil |
Letícia Ferreira

DE INSENSATOS Y CASAS SOBRE ARENA: Responsabilidad Política, Activismo Social y Legitimidad Moral en el Marco de un Conflicto Ambiental en una Ciudad de la Costa Atlántica Argentina | Gabriel D. Noel, Lucía de Abrantes

POPULAÇÃO DE RUA, A PANDEMIA DA COVID-19 E AS POLÍTICAS DA VIDA E DA MORTE | Patrice Schuch, Calvin da Cas Furtado, Daniela Bianchi, Caroline Silveira Sarmento

JUSTA OU INJUSTA: as moralizações do falecimento de idosos atendidos por cuidadoras | Ana Bárbara Araújo, Vittorio Talone

DIREITOS HUMANOS E CINISMO LEGAL: perspectivas e atitudes diante de normas de direitos humanos | Mariana Possas

PARA UMA SOCIOLOGIA PRAGMÁTICA DA MORAL DA POLÍTICA:
Crítica, “bem de todos” /” bem comum” e “comparecimento” |
Alexandre Werneck

ARTIGOS

PATRIMÔNIO DO TRABALHO E A CIDADE: conexões com as políticas públicas para crianças e jovens | Bárbara Birk de Mello, Norberto Kuhn Junior, Margarete Fagundes Nunes

TRABALHO POR PLATAFORMAS DIGITAIS NA ALEMANHA: uma análise sobre o mercado de trabalho e a decisão judicial 9 azr 102/20 da Corte Federal Trabalhista (bundesarbeitsgericht) | Bruna da Penha de Mendonça Coelho

ENTRE COACHES E COLABORADORES: o sujeito do desempenho |
Simã Catarina de Lima Pinto

FEMINISMO MARXISTA E PSICOLOGIA: o trabalho reprodutivo na formação da subjetividade das mulheres | Maísa Martins Lopes Araújo Brito, Gilson Gomes Coelho

FICAR MAL NA FOTOGRAFIA: Representação estereotipada do delegado de informação médica em filmes e séries de televisão | Manuel Soares

A PROPOSTA EDUCACIONAL DO BRIGADEIRO EDUARDO GOMES COMO CANDIDATO À PRESIDÊNCIA DA REPÚBLICA PELA UDN, EM 1945 |
Lucas Mateus Vieira de Godoy Stringuetti

RESENHA

A ESPERANÇA ENQUANTO CATALISADORA DA AÇÃO POLÍTICA |
Felipe Rocha de Carvalho

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CONTENTS

Editorial

DOSSIER

MORALITY AND POLITICS

PRESENTATION | Alexandre Werneck, Simone Brito

CRISIS OR REPARATION: political-moral narratives on the indemnity pension for children with Congenital Zika Virus Syndrome in Brazil | Letícia Ferreira

OF FOOLISH MEN AND HOUSES BUILT ON SAND: Political Responsibility, Social Activism and Moral Legitimacy in an Environmental Conflict in a City of the Argentinean Atlantic Seabord | Gabriel D. Noel, Lucía de Abrantes

HOMELESS POPULATION, THE COVID-19 PANDEMIC AND THE POLITICS OF LIFE AND DEATH| Patrice Schuch, Calvin da Cas Furtado, Daniela Bianchi, Caroline Silveira Sarmento

FAIR OR UNFAIR: the moralizations of the death of elderly people assisted by caregivers | Ana Bárbara Araújo, Vittorio Talone

HUMAN RIGHTS AND LEGAL CYNICISM: perspectives and attitudes towards human rights norms | Mariana Possas

TOWARDS A PRAGMATIC SOCIOLOGY OF MORALITY OF POLITICS: Critique, “Good of All”/“Common Good” and “Intervention” | Alexandre Werneck

ARTICLES

WORK PATRIMONY AND THE CITY: connections to public policies for parents and young people | Bárbara Birk de Mello, Norberto Kuhn Junior, Margarete Fagundes Nunes

WORK BY DIGITAL PLATFORMS IN GERMANY: an analysis on labour market and judicial decision 9 azr 102/20 of the federal labour court (bundesarbeitsgericht) | Bruna da Penha de Mendonça Coelho

BETWEEN COACHES AND COLLABORATORS: the performance subject | Simã Catarina de Lima Pinto

MARXIST FEMINISM AND PSYCHOLOGY: the reproductive work in shaping women’s subjectivity | Maísa Martins Lopes Araújo Brito, Gilson Gomes Coelho

BLURRED PICTURE: Stereotyped representation of the pharmaceutical sales representative in movies and TV shows | Manuel Soares

THE EDUCATIONAL PROPOSAL OF BRIGADIER EDUARDO GOMES AS CANDIDATE FOR THE PRESIDENCY OF THE REPUBLIC BY THE UDN, IN 1945 | Lucas Mateus Vieira de Godoy Stringuetti

REVIEW

HOPE AS A CATALYST FOR POLITICAL ACTION | Felipe Rocha de Carvalho

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EDITORIAL

O número 55 da Revista Política & Trabalho brinda seu público leitor com o dossiê Moral e Política, que trabalha uma das problemáticas mais complexas e fascinantes das ciências sociais e da filosofia, bem como da vida ordinária: as definições sociais do “bom” e do “justo”, as discussões sobre a natureza do bem público, as disputas entre demandas ético-morais concorrentes, e a recorrente e conflituosa “contraposição entre o reconhecimento do que a vida é e o que ela deveria ser”. Para retratar as muitas tensões envolvidas na economia entre valores morais e vida política, os organizadores Alexandre Werneck (UFRJ) e Simone Brito (UFPB) congregam seis artigos inéditos que, a partir das perspectivas disciplinares da sociologia e da antropologia da moral, permitem compreender a formação das disputas normativas e o engajamento dos atores sociais, de modo a situar o vocabulário moral e a constituição dos dilemas éticos contemporâneos. Em conjunto, os textos ajudam a sustentar a perspectiva de que a moral é uma dimensão inescapável da vida social e, diante disso, às ciências sociais urge compreender o que há de moral em qualquer fenômeno social. Por jogarem luz sobre diversas faces da dimensão moral inerente à política, pensada em seu sentido amplo, os artigos do dossiê escapam à pergunta simplista sobre uma possível e mesmo necessária separação entre política e moral. No mais das vezes a partir de uma aproximação pragmática, apostam na pertinência de se “adotar uma postura moral compreensiva”, que tome por objeto as várias moralidades em jogo nos muitos mundos que podem ser pesquisados.

Além dos artigos e da apresentação que constituem o dossiê, essa edição da P&T é composta por seis outros artigos de fluxo contínuo e uma resenha. Esse número se inicia com um estudo que estabelece uma espécie de transição entre os temas do dossiê e um conjunto de pesquisas que abordam a temática do trabalho. O artigo “Patrimônio do trabalho e a cidade: conexões com as políticas públicas para crianças e jovens”, escrito por Bárbara Birk de Mello, Norberto Kuhn Junior e Margarete Fagundes Nunes, apresenta uma análise sobre a relação entre a construção histórica do trabalho como um valor e as políticas públicas destinadas a crianças e jovens no município de Novo Hamburgo (RS) nos anos 1990, destacando conflitos e tensões entre o que denomina “patrimônio do trabalho” e a implantação do Conselho Tutelar (CT) e do Conselho Municipal dos Direitos da Criança e do Adolescente (CMDCA) nesse território, marcado por grande volume de trabalho infantil à época, em especial no setor coureiro-calçadista.

O artigo seguinte, de autoria de Bruna da Penha de Mendonça Coelho, se intitula “Trabalho por plataformas digitais na Alemanha: uma análise sobre o mercado de trabalho e a decisão judicial 9 AZR 102/20 da corte federal trabalhista (Bundesarbeitsgericht)”. Ao aliar sociologia e direito, tematiza as reconfigurações da relação juslaboral no chamado “capitalismo de plataforma”, tomando por objeto as disputas judiciais em torno dos vínculos laborais dos chamados crowdworkers e de uma “plataforma de microtarefas” naquele país europeu. Traz ainda reflexões de cunho teórico-empírico para pesquisas comparativas sobre o assunto entre Alemanha e Brasil.

Na sequência, temos “Entre coaches e colaboradores: o sujeito do desempenho”, estudo teórico em que a autora, Simã Catarina de Lima Pinto, propõe um “diálogo” entre o “homem da empresa” analisado por Michel Foucault e o “sujeito do desempenho” de Byung-Chul Han, para refletir sobre “colaboradores” e “coaches” como sujeitos produzidos pela chamada “sociedade do desempenho”, apontando como as práticas corporativas extrapolam atualmente a esfera do trabalho e alcançam as demais instâncias da vida.

Encadeia-se a esse o artigo “Feminismo marxista e psicologia: o trabalho reprodutivo na formação da subjetividade das mulheres”, escrito a quatro mãos por Maísa Martins Lopes Araújo Brito e Gilson Gomes Coelho. A partir de uma revisão de literatura, discutem o conceito de trabalho reprodutivo tal como ele tem sido desenvolvido no feminismo marxista. Sustentam que sua naturalização afeta a vida concreta e subjetiva das mulheres, precisando, por essa razão, ser considerado tanto nas análises quanto nas intervenções nos campos de atuação psicológica.

Com “Ficar mal na fotografia: Representação estereotipada do delegado de informação médica em filmes e séries de televisão”, Manuel Soares analisa a representação que é feita de “propagandistas de laboratório” (chamados de “delegados de informação médica” em Portugal, onde o artigo é escrito) em filmes e séries de televisão, para perceber a imagem pública desses profissionais. Partindo da sociologia das profissões e da oposição conceitual entre profissões e ocupações, tendo por pano de fundo a hierarquia das profissões, conclui que a imagem construída nas obras analisadas se fundamenta em estereótipos que traçam um retrato negativo do profissional em questão.

O último artigo desse número traz à tona o contexto histórico de 1945, momento em que ocorreram eleições políticas no Brasil, depois de quinze anos de governo Vargas. Em “A proposta educacional do Brigadeiro Eduardo Gomes como candidato à presidência da república pela UDN, em 1945”, Lucas Mateus Vieira de Godoy Stringuetti analisa como o brigadeiro Eduardo Gomes (1896-1981), candidato à Presidência da República pelo partido da União Democrática Nacional (UDN) em 1945, derrotado por Dutra, tratou a temática da educação no Brasil. Além de ajudar a entender o momento político, social e econômico do país naquele contexto, o texto traz reflexões sobre o que considera “ideias revolucionárias” sobre educação defendidas pelo então candidato.

A edição 55 se encerra com a resenha “A esperança enquanto catalisadora da ação política”, em que Felipe Rocha de Carvalho avalia o mais recente livro da antropóloga Rosana Pinheiro-Machado, “Amanhã vai ser maior: o que aconteceu com o Brasil e possíveis rotas de fuga para a crise atual”, publicado pela editora Planeta do Brasil em 2019. Escrito no ápice da ascensão da extrema direita no Brasil, o livro contribui para a difícil compreensão dos movimentos sociais atuais, além de instigar reflexões importantes para a própria mobilização política no país.

Boa leitura!

Os editores

ISSN 1517-5901 (online)

POLÍTICA & TRABALHO

Revista de Ciências Sociais, nº 55, Junho/Dezembro de 2021, p. 9-11

Dossiê

Moral e Política

MORAL E POLÍTICA

MORALITY AND POLITICS

___________________________________

Alexandre Werneck (UFRJ)

Simone Brito (UFPB)

Nos diagnósticos da experiência contemporânea, a recente vitalidade do autoritarismo costuma ser retratada a partir de suas cruzadas morais (e por suas correspondentes adjetivações): misóginas, racistas, homofóbicas, demofóbicas, entre outras formas de negação do reconhecimento e produção de bodes expiatórios. Ainda que essas cruzadas e movimentos de reformas moral não sejam uma novidade no cenário político, contribuem para a agudização da crise dos valores democráticos, gerando a percepção de que formas de moralismo estariam se sobrepondo ao debate público. No mesmo sentido, diante de tragédias e crises que precisam articular atores da esfera pública para sua solução, costuma-se demandar que não se faça política, que o tratamento dado à dor e ao sofrimento de populações atingidas esteja fundamentado numa forma de ação ética/moral “pura”. Mas a economia entre valores morais e vida política é tensa e sua compreensão, um projeto intelectual urgente.

O conflito entre moral e política é tanto um dos problemas mais complexos da tradição filosófica – e sociológica e antropológica – ocidental quanto uma das questões mais comuns de nosso cotidiano. As elaborações intelectuais sobre a natureza do bem público e os debates corriqueiros sobre o cinismo da política e dos políticos, ainda que se apresentem em contextos distintos, indicam uma ação recorrente para os atores sociais: refletir e encontrar repostas para a desordem provocada pela sobreposição entre interesses “egoístas” e sentidos de bom e justo construídos pelos atores. Assim, de modo geral, a referência à relação entre política e moral como problema costuma traduzir a ansiedade gerada pela contraposição entre o reconhecimento do que a vida é e o que ela deveria ser e, ao mesmo tempo, um impulso de traçar modos de agir que resolvam essa contraposição. É interessante notar que aquilo que muitos interpretam como a “desordem moral” de nossa época pode ser traduzido como uma dificuldade de compreender as disputas entre demandas ético-morais concorrentes.

A ideia deste dossiê é lidar com esses problemas por meio das perspectivas disciplinares da sociologia e da antropologia da moral. Nosso objetivo é demonstrar como essa abordagem ajuda na compreensão das múltiplas tensões encapsuladas no uso dos termos moral e política, apontando para estratégias de pesquisa que permitam compreender a formação das disputas normativas e o engajamento dos atores sociais, situando o vocabulário moral e a constituição dos dilemas éticos contemporâneos. Obviamente, não há um acordo no interior das disciplinas da sociologia e antropologia da moral sobre como isso deve ser feito, mas nos concentramos num impulso comum aos estudos sociológicos e antropológicos da vida moral, que é a suspensão (no sentido fenomenológico) do poder do normativo em favor da investigação sobre a produção, usos e disputas de valor pelo próprios atores sociais, permitindo compreender como eles valoram, avaliam e valorizam os elementos que, na vida comum, qualificam o bem comum – ou, como sugere um de nós em seu artigo – o “bem de todos” (um designativo de direcionamento do bem para uma totalidade abstrata que ultrapassaria mesmo os bens de partes envolvidas em uma disputa).

Desse modo, começamos com o artigo de Letícia Ferreira, “Crise ou reparação: Narrativas político-morais em torno da pensão indenizatória para crianças com Síndrome Congênita do Vírus Zika no Brasil”, que, ao analisar a concessão de pensões às famílias de crianças acometidas pela síndrome congênita do vírus zika, permite acompanhar as tramas e disputas narrativas no desenvolvimento de um problema público. De um lado, a percepção da negligência do Estado ao não permitir condições de vida dignas que impediriam o desenvolvimento da síndrome e, consequentemente, a necessidade de reparação; de outro, o argumento de que a crise e o controle de gastos impedem esse mesmo Estado de suprir as necessidades de todas as famílias acometidas pela síndrome.

A partir da trajetória das mães das crianças afetadas pelo vírus, acompanhamos como a gestão do problema de direcionado do benefício termina por sobrepor as ideias de controle do gasto público à necessidade de reparação. O artigo apresenta a constituição e normalização de uma situação extremamente desafiadora, tanto moral (para os atores) quanto analiticamente (para análise da moral): o que ocorre quando mães e crianças que passaram por tantas dificuldades são colocadas na posição de terem que se defender da acusação de querer demais do Estado. A necessidade de reparação vai se perdendo em meio ao jogo burocrático e as mães ficam entre esperança e decepção. Desse modo, o trabalho permite observar o modo como os valores são mobilizados no campo burocrático e a razão econômica compete com a necessidade de reparação, mesmo diante de uma situação em que todos afirmam o compromisso com o bem-estar de crianças e suas famílias.

Também no caminho de compreensão da constituição dos problemas públicos, “De insensatos y casas sobre arena: Responsabilidad política, activismo social y legitimidad moral en el marco de un conflicto ambiental en una ciudad de la costa atlántica argentina”, artigo de Gabriel Noel e Lucía de Abrantes, nos apresenta o rico e denso campo de disputas morais constituídas a partir do projeto de construção do complexo hoteleiro Mandalay, no balneário de Villa Gesel, Argentina. Pensado originalmente como um projeto ecológico e sustentável, a construção do Mandalay é interrompida por uma grande reação popular ao que seriam seus riscos para o ambiente e as futuras gerações, mas também por uma profunda desconfiança sobre a atuação e a confiabilidade dos agentes públicos e seus interesses. A partir de uma longa pesquisa etnográfica, os autores indicam dois aspectos importantes sobre o caso muito importantes para o campo da pesquisa em sociologia e antropologia da moral: a) a disputa não se refere a uma simples oposição entre ecologistas e capitalistas, mas a formas alternativas de pensar a ecologia e o desenvolvimento; b) ainda que a controvérsia faça uso das linguagens econômica e jurídica, sua principal referência é uma conjuntura moral: o modo como os diversos cursos de atuação produzem na população sentidos do que é legítimo e do que é inegociável. Essa controvérsia, então, revela a textura e a constituição dos processos de adesão a valores e, consequentemente, ajuda a compreender o papel das disputas morais na constituição de projetos políticos.

Dando continuidade ao caráter produtivo da moral para o campo político, apresentamos “População de rua, a pandemia da Covid-19 e as políticas da vida e da morte”, de Patrice Schuch, Calvin Furtado, Caroline Sarmento e Daniela Bianchi, sobre as condições da população de rua no cenário da pandemia da Covid-19. A partir de um longo engajamento etnográfico com as populações de rua em Porto Alegre, os autores apresentam um mosaico das diversas situações e ameaças vividas por essas populações durante a pandemia, um “evento crônico agudizado” que, como demonstram, atualizou as formas da necropolítica. O artigo busca apresentar a trama formada pela experiência e pela mobilização da população de rua e de ativistas em tensão com os burocratas e as tecnologias de governo, chamando atenção para uma importante mudança na constituição desse espaço moral: a reintrodução no campo de gramáticas morais baseadas no sofrimento individualizado que contrastam com o ativismo da área, que vinha se baseando na linguagem dos direitos. Nesse sentido, a pandemia não apenas ampliou o sofrimento e reforçou as desigualdades já presentes, mas pode ter contribuído para modificar os processos de legitimação moral das pessoas em situação de rua.

Os valores associados à vida e à morte também são problematizados no artigo de Anna Bárbara Araújo e Vittorio Talone, “Justa ou injusta: As moralizações do falecimento de idosos atendidos por cuidadoras”. A partir de um trabalho de campo com cuidadoras de idosos atuantes em uma política pública do município de São Paulo, os autores analisam como essas mulheres “moralizam” a morte: como algumas podem ser consideradas “justas”, “injustas”, “evitáveis” ou “naturais”, possibilitando a compreensão da gramática que lhes permite dar sentido à experiência da morte e ao trabalho que realizam. Os autores apresentam propostas que se mostram caminhos ou modelos muito importantes a serem seguidos na pesquisa sociológica sobre a moral: a retomada da centralidade da educação das emoções e a análise das lógicas de comunicação por meio dos sentimentos e a produção de um modelo de análise dos processos coletivos de ressignificação de valores (da experiência da morte) a partir do trabalho ativo sobre o self.

O artigo de Mariana Possas, “Direitos humanos e cinismo legal: Perspectivas e atitudes diante de normas de direitos humanos”, analisa os usos e representações das normas legais de direitos humanos no Brasil contemporâneo a partir de entrevistas com imigrantes brasileiros no Canadá. A autora apresenta duas contribuições que merecem destaque: a) uma discussão sobre o modo como os atores se relacionam com as normas legais; e b) elementos para discussão sobre aspectos particulares da percepção de brasileiros sobre os direitos humanos – a partir de seu distanciamento em relação ao próprio país. Ao entrevistar esses brasileiros sobre suas percepções acerca dos direitos humanos, a autora demonstra como esse conjunto de normas emerge aos olhos deles, simultaneamente, como uma estratégia suspeita, quando se refere a bandidos, e uma regra bem-vinda, quando se aplica aos entrevistados – imigrantes indocumentados no Canadá em busca de visto de permanência. Assim, o texto demonstra como o processo de construção de sentidos das normas de direitos humanos pode ser altamente vinculado às experiências pessoais, não significando o reconhecimento de grupos vulneráveis.

Por fim, o artigo de Alexandre Werneck, “Para uma sociologia pragmática da moral da política: Crítica, ‘bem de todos’/ ‘bem comum’ e ‘comparecimento’”, traz uma proposta teórica para orientar a pesquisa sobre a relação entre moral e política na sociologia da moral, apontando respostas para as questões colocadas no início desta apresentação. Dando continuidade a seu projeto de sociologia pragmática da moral, o autor propõe colocar entre parênteses as abordagens normativas desenvolvidas no âmbito das sociologias da moral de tradição crítica para que a pesquisa se concentre na forma como os atores constroem a dimensão moral da política – ou seja, como determinam o que é “bem” e o que é “todos”, em um quadro em que o “bem de todos” se mostra a variável valorativa em questão seja qual for o modelo de política que se opere. Para o autor, as tentativas de estabelecer os limites entre moral e política a partir de fundamentos normativos terminariam por submeter tanto a vida moral quanto a análise dessa a um simplismo imperdoável, o da afirmação de que a moral é, “na verdade”, o “escamoteamento” das verdades do poder, do interesse ou de outras esferas da vida social. A partir dessa perspectiva, ele delineia um horizonte claro para a compreensão das formas da moral e do moralismo na política: a pesquisa centrada nos atores e em seus movimentos para definir o que é a política – como esforço para definir o que é tratável como bem de todos.

Como era nosso desejo ao propor o dossiê, o conjunto de artigos aqui coligido permite uma boa visão da complexidade da relação entre moral e política no contexto contemporâneo e introduz os aspectos centrais da contribuição da sociologia e da antropologia da moral à compreensão dos problemas públicos da contemporaneidade. Nesse sentido, a gama de questões políticas aqui apresentada chama atenção para como a pauta de uma análise científica da moral ocupa uma dimensão da vida social mais do que qualifica um tipo de sociação: não se trata de compreender o que seja fenômeno moral ou não, mas de compreender o que há de moral em qualquer fenômeno e, por conseguinte, o esforço aqui revelado permite perceber a dimensão moral da(s) política(s) mais do que se perguntar se a política pode ou não ser moral. E no duplo diapasão explorado classicamente desde Weber, eles ainda chamam atenção para como a ciência precisa fundamentalmente encarar uma operação moral em si mesmo: é possível ultrapassar moralismos simplistas e adotar uma postura moral compreensiva, isto é, aquela que adota como objeto justamente as várias moralidades em jogo em seus mundos pesquisados.

Boa leitura!

ISSN 1517-5901 (online)

POLÍTICA & TRABALHO

Revista de Ciências Sociais, nº 55, Junho/Dezembro de 2021, p. 13-16

CRISE OU REPARAÇÃO:
narrativas político-morais em torno da pensão indenizatória
para crianças com Síndrome Congênita do Vírus Zika no Brasil
1


CRISIS OR REPARATION:

political-moral narratives on the indemnity pension for children
with Congenital Zika Virus Syndrome in Brazil

____________________________________

Letícia Ferreira*

Resumo

Em 2015, no contexto da epidemia do vírus zika no Brasil, achados científicos estabeleceram a relação entre o vírus e uma síndrome neurológica que atingiu fetos e bebês de mulheres que contraíram o zika durante suas gestações. Já em 2020, encerrando o debate em torno de algumas consequências daquela epidemia, foi sancionada a Lei Federal 13.985/20, que concede pensão especial vitalícia a crianças acometidas pela síndrome. Por meio da análise de dispositivos legais, documentos e pronunciamentos públicos de parlamentares e de mães de crianças atingidas pelo zika reunidas em associações, o artigo recompõe as etapas principais da disputa pela pensão no Brasil, iluminando duas questões: primeiro, o caráter ambivalente de todo o processo, e segundo, as narrativas político-morais alternadamente evocadas para justificar a relevância, os termos e os critérios de elegibilidade da pensão – a narrativa da reparação e a da crise. Demonstro que a pensão representa uma conquista para as mães de crianças acometidas pela síndrome e uma derrota nos termos principais de sua concessão, e argumento que essa ambivalência se relaciona, por um lado, com características especialmente restritivas da pensão em relação a outras pensões indenizatórias já instituídas no Brasil e, por outro, com a consolidação da narrativa da crise em detrimento da narrativa da reparação

Palavras-chave: Pensão indenizatória. Síndrome congênita do vírus zika. Crise. Reparação.

Abstract

In 2015, in the context of the Zika virus epidemic in Brazil, scientific findings established the relationship between the virus and a neurological syndrome affecting fetuses and babies of women who contracted Zika during their pregnancies. Ending the debate about some consequences of that epidemic, Federal Law 13.985/20 was enacted in 2020. The Law guarantees a lifetime pension to children affected by the syndrome. Drawing from legal instruments, documents, and public statements by parliamentarians and mothers of children affected by Zika linked to family associations, the paper recomposes the main stages of the dispute over the pension, illuminating two issues: first, the ambivalence of the whole process, and second, the political-moral narratives alternately claimed to justify the relevance, terms and eligibility criteria of the pension - the narrative of reparation and the narrative of the crisis. It demonstrates that the pension represents both an achievement for the mothers of children affected by the syndrome and a defeat in the main terms of its concession, arguing that this ambivalence is related, on the one hand, to the highly restrictive characteristics of this pension in relation to other indemnity pensions previously instituted in Brazil and, on the other hand, with the consolidation of the crisis narrative to the detriment of the reparation one.

Keywords: Indemnity pension. Congenital zika virus syndrome. Crisis. Reparation

No final de 2015, a epidemia do vírus zika atingiu seu pico no Brasil. Em um processo caracterizado por importantes achados científicos (DINIZ, 2016a; FREITAS et al, 2018), foi estabelecida a relação entre o vírus e anomalias neurológicas de fetos e bebês nascidos de mulheres que contraíram o zika durante suas gestações, dentre as quais se destacava a alteração nas medidas e na formação do crânio dos bebês, configurando casos de microcefalia. O conjunto dessas anomalias logo se revelou mais complexo do que quadros comuns de microcefalia, passando a ser designado Síndrome Congênita do Vírus Zika (SCZ), doença sobre a qual ainda tem sido produzido conhecimento inédito à medida que as crianças da chamada “primeira geração” crescem. Entre novembro de 2015 e maio de 2017, o Brasil esteve em estado de “Emergência em saúde pública de importância nacional” (Espin) em função da doença, condição à qual se somou, em fevereiro de 2016, a “emergência em saúde pública de importância internacional” declarada pela Organização Mundial da Saúde (OMS).

Enquanto a Espin vigorou, o tratamento da SCZ como problema sanitário recebeu atenção e espaço significativos não só em noticiários e meios de comunicação de massa, mas também em editais e programas de fomento à pesquisa científica exclusivamente voltados para a questão, além de iniciativas diversas e investimentos de monta por parte do Ministério da Saúde. A sistematização do conhecimento rapidamente produzido a respeito da síndrome revelou de modo incontornável sua “geografia social” (LESSER; KITRON, 2016), iluminando sua relação com o quadro de desigualdades sociais de longa duração que marca o território e a população brasileiros. O enfrentamento da síndrome, nesse sentido, não só desvendou seus elementos de problema de saúde pública, como também colocou em relevo sua inegável faceta de problema social, tornando imperativo considerar os aspectos geográficos, econômicos, raciais, étnicos, de classe, de gênero e de geração determinantes das localidades, das mulheres e das crianças específicas que ela atingiu (NUNES; NACIF PIMENTA, 2016). Tratava-se, afinal, de uma doença pouco conhecida que acometia majoritariamente fetos e bebês de mulheres nordestinas, jovens, pobres, identificadas como negras ou indígenas, que em sua maioria vivenciaram sua primeira gravidez ainda na adolescência (ANIS, 2017) e que contraíram o vírus porque vivem em localidades com difícil acesso à água potável, desprovidas de infraestruturas de saneamento básico e excluídas de programas de combate ao mosquito Aedes Aegypt, vetor de transmissão da zika e de outras doenças como a dengue e a febre amarela.

A produção antropológica brasileira sobre a SCZ vem analisando com propriedade sua faceta de problema social. Trabalhos etnográficos realizados no âmbito de grandes projetos de pesquisa coletivos2, além de um número crescente de dossiês dedicados ao tema em periódicos indexados3 e de coletâneas4, têm analisado principalmente a dimensão de gênero da questão e a “discriminação interseccional” (DINIZ, 2016b, p. 3) que recai sobre as mães das crianças atingidas pela doença, analisando temas como o cuidado das crianças (FLEISCHER, 2017; ALVES, 2018; MOREIRA; MENDES; NASCIMENTO, 2018; WILLIAMSON, 2018); as relações entre cuidado, maternidade e deficiência nos casos de SCZ (SCOTT et al., 2017); as especificidades da maternidade vivida em famílias atingidas (ALVES; FLEISCHER, 2018); os direitos reprodutivos das mulheres e como eles têm sido mobilizados e/ou violados no âmbito da síndrome (CARVALHO, 2017; CAMARGO, 2016). Também as especificidades de realizar pesquisa etnográfica sobre o tema no contexto da emergência (LIRA; SCOTT; MEIRA, 2017) e acompanhar itinerários terapêuticos (SCOTT et al., 2018), bem como de acompanhar mulheres saturadas pelo excesso de pesquisadores interessados na condição de seus filhos (LIRA; PRADO, 2020; MATOS; SILVA, 2020) foram tema de análises pungentes, que adensaram o tratamento da questão como problema de saúde global5. Também a produção de conhecimento científico sobre o vírus esteve no foco de recente dossiê organizado por Reis-Castro, Fleischer e Segata (2020).

A reflexão aqui proposta soma-se a essa rica produção antropológica sobre a SCZ, privilegiando uma dimensão que até o momento recebeu atenção menos sistemática: sua construção e tratamento não como problema sanitário, social ou científico, mas como problema público. Baseando-se na ideia de que uma questão ganha estatuto de “problema público” se e quando se torna matéria de controvérsias, conflitos e denúncias na arena pública, constituindo-se como problema em relação a interesses, valores e crenças manifestos na forma de indignação moral e de demandas coletivas (GUSFIELD, 1980), o texto resulta de uma pesquisa em andamento que entende que identificar os agentes, disputas, linguagens e gramáticas morais por meio das quais a SCZ tornou-se matéria de controvérsias e demandas coletivas no Brasil é fundamental para conhecermos como ela tem sido governada e vivida no país. A pesquisa pretende contribuir para o crescente conjunto de estudos etnográficos sobre “ativismo das vítimas” (VECCHIOLI; LEAL, 2017; JIMENO, 2010) e que discutem as relações entre laços familiares, sofrimento e formas de mobilização social (LEITE, 2004; FREIRE, 2010; VECCHIOLI, 2018; ZENOBI, 2014; AROSI, 2013; ARAÚJO, 2007). Não obstante, pretende somar-se também ao universo das análises antropológicas dos direitos e de outras tecnologias de governo que têm enfatizado sua dimensão moral e performativa (SCHUCH, 2009; VIANNA, 2015), em especial a partir de contextos de disputa, reivindicação e luta por justiça.

O artigo propõe uma reflexão sobre a iniciativa mais recente que congregou agentes públicos e familiares de crianças atingidas pela SCZ em torno da gestão do problema no Brasil: a pensão especial mensal, vitalícia e intransferível destinada a crianças portadoras da síndrome que foi instituída em abril de 2020 pela Lei Federal 13.985/20. A pensão é amplamente tratada em documentos, discursos e pronunciamentos públicos de diferentes agentes como “pensão indenizatória”, e não raras vezes é apresentada como análoga a seus precedentes históricos no Brasil: as pensões especiais concedidas a vítimas da Talidomida;6 familiares de vítimas fatais da hemodiálise de Caruaru;7 vítimas do acidente do Césio ١٣٧ em Goiânia;8 e atingidos pela hanseníase submetidos ao isolamento e à internação compulsória no país.9 Para analisar a pensão, referências fundamentais são Matos (2018), Scott (2020) e a reflexão de Lacerda (2020) sobre indenizações como políticas de direitos humanos e de justiça social no Brasil.

A análise aqui apresentada é um primeiro resultado parcial da pesquisa iniciada em janeiro de 2020, quando comecei a levantar os dispositivos legais e iniciativas oficiais voltadas para a gestão da SCZ que vigeram no Brasil entre 2016 e 2020 a partir do webiste oficial do Congresso Nacional e de páginas do governo federal na internet. Em uma segunda etapa da pesquisa, iniciada em abril de 2020, passei também a acompanhar a atuação de algumas associações de familiares de crianças atingidas pela síndrome através de seus perfis em redes sociais como Instagram e Facebook.10 Embora as trajetórias militantes de algumas das mães de crianças com a SCZ já tenham sido analisadas em artigos e dossiês publicados recentemente (PINHEIRO; LONGHI, 2017; MATOS; LIRA; MEIRA, 2018), suas estratégias de atuação e formas de mobilização ainda não foram alvo de reflexão antropológica mais sistemática. As condições sociais de emergência da militância em torno da síndrome, sua relação com os feminismos e suas disputas com outros ativismos são aspectos apontados na literatura que merecem atenção (MATOS; LIRA; MEIRA, 2018), assim como suas formas de protesto, seus principais pleitos e de que modos acionam uma linguagem emocional em suas reivindicações. Essas são questões que pretendo analisar futuramente. Aqui, o foco central é a pensão vitalícia garantida pela Lei 13.985/20.

O artigo recompõe as principais etapas do processo de demanda, disputa e concessão da pensão, tratando de iluminar dois aspectos centrais do processo e da pensão propriamente dita: primeiro, seu caráter ambivalente, e segundo, as duas narrativas político-morais evocadas para justificar sua relevância, seus termos e seus critérios de elegibilidade – a narrativa da reparação e a da crise. Busco demonstrar que a pensão representa ao mesmo tempo uma conquista para as mães de crianças acometidas pela síndrome e uma derrota nos termos principais de sua concessão, disputados por essas mulheres desde 2016, e convoco a noção de desamparo (dereliction) proposta por Hoag (2014) para tratar dessa ambivalência. Em seguida, demonstro como o desamparo experimentado por essas mulheres se relaciona, por um lado, com características inéditas da pensão em relação a outras pensões de natureza indenizatória instituídas no Brasil e, por outro, com a consolidação da narrativa da crise, em detrimento da narrativa da reparação, como justificativa dos termos de elegibilidade e do caráter restritivo da pensão.

Os (des)caminhos da pensão

Dois âmbitos de problematização da SCZ revelaram-se especialmente dinâmicos desde os momentos iniciais da epidemia de zika no Brasil: por um lado, a elaboração de dispositivos legais e iniciativas oficiais por parte de agentes e instituições públicas atuantes em instâncias jurídicas e legislativas estaduais e nacionais, em que leis, ações diretas, medidas provisórias, projetos de lei, portarias ministeriais e editais circularam desde o final de 2015; e, por outro, o processo de reunião de mães de crianças nascidas com a doença em associações sediadas em diferentes localidades do país. Essas associações têm reivindicado reconhecimento e direitos para as crianças acometidas pela SCZ, e o foco de minha pesquisa até o momento tem sido o acompanhamento de duas de suas frentes de atuação: (1) a denúncia de dificuldades no acesso a benefícios, recursos e serviços públicos necessários para o cuidado das crianças, feita por meio de seus perfis públicos em redes sociais e de sua inserção em matérias jornalísticas e meios de comunicação de grande circulação; e (2) a apresentação de demandas por meio da interlocução direta com agentes públicos, também relatada e divulgada sistematicamente nas redes sociais das associações, além de descrita na literatura antropológica sobre o tema (MATOS; LIRA; MEIRA, 2018; MATOS; QUADROS; SILVA, 2019; MATOS; SILVA, 2020).

Essas associações, como a União de Mães de Anjos (UMA), em Pernambuco, a Associação Mães de Anjos da Paraíba (Amap), a Associação de Famílias de Anjos do Estado de Alagoas (Afaeal), a Associação Filhos de Benção, atuante no Ceará, a Associação de Pais de Anjos da Bahia (Apab) e a Associação Lótus, sediada no Rio de Janeiro, têm tido atuação local desde o ano de 2016, reunindo e prestando assistência mútua a famílias de crianças com SCZ. Elas têm propiciado redes de troca de experiências entre mães, que em muitos casos geram estreitos laços de amizade; orientação técnica e efetiva provisão de tratamentos para as crianças por meio de parcerias com profissionais e instituições de saúde; e, ainda, distribuição de doações na forma de alimentos, fraldas, suplementos alimentares e outros insumos necessários para a manutenção das crianças. Essas associações têm também se articulado em nível nacional desde julho de 2017, quando se reuniram na Frente Nacional por Direitos das Pessoas com a Síndrome Congênita do Vírus Zika (FNDPSCZ). A atuação da Frente, até o momento, centrou-se justamente no pleito pela pensão especial sancionada pela Lei Federal de abril de 2020.

O pleito pela pensão remonta a dificuldades encontradas pelas mães ainda quando seus filhos eram recém-nascidos, o Brasil se encontrava em Espin e o pouco que se conhecia sobre a relação entre o vírus e os comprometimentos neurológicos das crianças já apontava para seu alto grau de dependência e para a gravidade continuada de seus quadros de saúde. Diante das muitas necessidades dessas crianças, as agências locais do Instituto Nacional de Seguridade Social (INSS) brasileiro receberam diretrizes formais11 para conceder o Benefício de Prestação Continuada (BPC) a essas crianças em regime de “prioridade da prioridade” (MATOS; QUADROS; SILVA, 2019). O BPC é um programa assistencial de transferência de renda no valor de um salário mínimo, destinado à proteção de idosos e de pessoas com deficiência de qualquer idade que tenham impedimentos de longo prazo e que comprovem não possuir meios de prover a própria manutenção ou tê-la provida por sua família.

A “prioridade da prioridade” implicou marcação acelerada das perícias médica e social necessárias para a concessão do benefício, o que, importa registrar, foi matéria de indignação da parte de movimentos de familiares de pessoas com outras deficiências, que se sentiram “esquecidas” (MATOS, 2018, p. 7) ou viram o andamento dos tratamentos e demandas de seus filhos impactado pela priorização de crianças com SCZ (MATOS; LIRA; MEIRA, 2018, p. 147). Além disso, o regime de “prioridade da prioridade” se estendeu para além do campo da seguridade social, tendo o Ministério das Cidades publicado uma Portaria em julho de 2016 concedendo condições especiais para as famílias atingidas pela SCZ no programa habitacional Minha Casa, Minha Vida (MCMV). Essas famílias passaram a ser dispensadas do sorteio por meio do qual unidades habitacionais da primeira faixa do programa (destinada a famílias com renda mensal máxima de R$ 1,8 mil) são alocadas.12

Não obstante essas condições especiais no MCMV e a marcação acelerada de perícias no INSS, não foram poucas as mães de crianças com SCZ que enfrentaram dificuldades para fazer valer seu caráter prioritário, principalmente em relação ao BPC. O regime de prioridade não alterou as exigências formais feitas pelo INSS para concessão do benefício em outros casos de pessoas com deficiência, dentre as quais destacam-se: (a) o teto de renda familiar: o BPC só é concedido a beneficiários cuja renda familiar per capita seja menor que ¼ (um quarto) do salário mínimo; (b) a impossibilidade de acumular o benefício com salário-maternidade13; (c) a proibição da manutenção, pelas mães dos beneficiários, tanto de vínculo empregatício formal quanto de contribuição ao INSS como “dona de casa” para garantir sua futura aposentadoria; e (d) a extinção do benefício quando do falecimento do beneficiário.

Antropólogas que analisaram a percepção das mães de crianças com SCZ em relação ao BPC (MATOS; QUADROS; SILVA, 2019) argumentam que essas exigências formais não só tornaram muitas crianças inelegíveis ao benefício, como afetaram de modo decisivo suas relações intrafamiliares e os projetos de futuro de suas mães. Há casos de mães de crianças com SCZ divorciadas que deixaram de demandar pensão alimentícia para seus filhos para garantir que o valor de sua renda familiar não ultrapassasse o teto exigido pelo INSS, e outras que temem os efeitos da extinção do benefício quando das mortes das crianças, já que deixaram seus trabalhos para assumir o intenso cuidado demandado pelas crianças e não têm fonte de renda. Ademais, há casos de mães que tiveram o benefício negado em função da perícia social obrigatória realizada pelo instituto, que avaliou suas condições materiais de vida e mesmo características físicas de suas casas como indícios de que seus filhos não precisariam do BPC. A despeito do regime de “prioridade da prioridade”, portanto, as famílias atingidas pela SCZ foram submetidas a uma “armadilha” apontada por estudiosos do Serviço Social (BARBOSA; SILVA, 2003) como característica do BPC: a “armadilha da pobreza”, engendrada pelo formato do próprio benefício. Em todos os casos de concessão do BPC para pessoas com deficiência, a unidade alocadora do benefício é a pessoa com deficiência, mas a unidade de comprovação da renda requerida é a família. Todos, portanto, têm que se manter abaixo do teto de renda, consideravelmente mais baixo em relação à média aplicada em outros benefícios no Brasil (MATOS; QUADROS; SILVA, 2019, p. 243). Essa armadilha compromete não só a manutenção das crianças e de suas casas no presente, mas também inviabiliza os futuros das mães.

Foi diante da experiência concreta de dificuldades para obter o BPC, dos efeitos perversos das exigências formais do INSS e, principalmente, com a consolidação de seu processo de reunião e interação sistemática em associações locais que as mães de crianças com SCZ firmaram a narrativa central articulada pela Frente Nacional por Direitos das Pessoas com a Síndrome Congênita do Vírus Zika (FNDPSCZ) para levar adiante o pleito por uma pensão de caráter indenizatório: “o BPC destinado à pessoa com deficiência não atende às necessidades nem às especificidades de uma deficiência que foi gerada, segundo o discurso das famílias, por negligência do Brasil em promover políticas efetivas de saneamento básico, acesso à água potável e controle do vetor da zika” (MATOS; QUADROS; SILVA, 2019, p. 229). Nota-se, então, que assim como em outros casos recentes de indenizações concedidas no Brasil, também para o caso da SCZ uma dimensão central da pensão seria “o reconhecimento da responsabilidade do ‘Estado’ que legitima anos de luta (...), e também produz uma narrativa sobre os fatos e sobre a própria posição ou identidade de ‘vítima’ ou ‘familiar de vítima’”. (LACERDA, 2020, p. 265).

Quando a Frente Nacional foi criada, quatro projetos de lei propondo a instituição de uma pensão especial para as crianças com SCZ já haviam sido apresentados por parlamentares no Congresso Nacional, dois na Câmara dos Deputados e dois no Senado Federal.14 Os dois propostos na Câmara previam a instituição da pensão e o pagamento de uma indenização para cada família atingida; já os dois propostos no Senado previam apenas a instituição da pensão, apresentando-a como uma pensão de caráter indenizatório, proposta no sentido de “mitigar o sofrimento dessas famílias e compensar parte das dificuldades que elas terão de enfrentar” (PL 255/2016) ou, em outros termos, de consistir em uma “indenização parcial”:

indenização, porque foi a negligência do Estado no combate ao mosquito que nos leva a atribuir-lhe responsabilidade pelas consequências. Mas indenização parcial, porque é evidente que o ônus material e espiritual que recai sobre as pessoas e as famílias não é passível de ser devidamente indenizado por qualquer dinheiro no mundo. (BRASIL, 2016).

A importância de propiciar a reparação de um dano irreparável é mobilizada nos quatro projetos de lei propostos no Congresso entre 2015 e 2017. Todos apresentam a necessidade de compensar as famílias e mitigar o sofrimento que lhes foi causado por “negligência do Estado”, termos que começam a aparecer com regularidade também nos pronunciamentos públicos das lideranças de associações de mães que se articularam na FNDPSCZ a partir de julho de 2017.

Entre esperanças e frustrações

Lideradas por Germana Soares, mãe de Guilherme, portador da SCZ, e presidente da associação pernambucana “União Mães de Anjos” (UMA),15 em março de 2018 algumas mães foram recebidas pelo ministro Osmar Terra, então à frente do Ministério do Desenvolvimento Social (MDS)16, e por seu então secretário-executivo Alberto Beltrame. Conforme relata Silvana Matos (2018), que acompanhou a Frente na reunião, o encontro centrou-se em três temas: demandas por reformas nos termos de concessão do BPC, o estado atual da assistência social e em saúde em diferentes localidades do país, e o pleito por uma pensão indenizatória. Dois dos quatro PLs referentes à pensão acima mencionados foram debatidos com o ministro e o secretário, e as mães saíram da reunião “com a promessa, nunca cumprida, de uma nova reunião com cinco ministérios e diversos órgãos e secretarias, incluindo o INSS para discutir os projetos de lei, a pensão indenizatória e a reformulação dos Protocolos de saúde, assistência social, seguridade e educação.” (MATOS, 2018, p. 10)

Não obstante o não cumprimento dessa promessa, o processo seguiu por outros caminhos ou, como afirmou Germana Soares nas redes sociais da UMA, “pela porta ao lado, através da Ministra Damares no Ministério da Mulher, Família e Direitos Humanos” (PERFIL DE INSTAGRAM UMA, 5 set. 2019), confirmando os achados de Lacerda (2020) quanto à recorrente personificação da administração pública em casos de indenização por violações de direitos no Brasil. Nos termos de Lacerda, nesses casos “a administração pública brasileira é objeto de um processo de personificação em que se torna não apenas possível como desejável a transformação de governos e setores de serviços públicos em ‘pessoas’ capazes de se responsabilizar e de se desculpar” (LACERDA, 2020, p. 270). Precisamente nesse sentido, em maio de 2019, um seminário aconteceu no Ministério da Mulher, Família e Direitos Humanos, contando com uma palestra da própria Germana e com a presença, considerada decisiva pelas mães, da primeira-dama Michelle Bolsonaro, que desde a posse do presidente Jair Bolsonaro apresenta-se publicamente como defensora da causa das pessoas com deficiência. Em sua fala no seminário, Germana:

focou na negligência, nas dificuldades básicas ainda persistentes de transporte para tratamentos cedidos pelas prefeituras e TFD [tratamento fora do domicílio, necessário para crianças que vivem em cidades desprovidas de serviços de saúde especializados e que se deslocam regularmente para as capitais de seus estados], transportes públicos, acessibilidade, assistência primária na saúde, omissão na educação. A 1ª Dama (sic) se comprometeu a empurrar esse pleito juntamente com a Ministra Damares e o Ministro Osmar Terra. (PERFIL DE INSTAGRAM UMA, 5 set. 2019).

Para as mães, o seminário foi fundamental para os acontecimentos posteriores, por elas muito celebrados: quatro meses depois, em uma solenidade que contou com a presença de algumas delas, de seus filhos, do ministro Osmar Terra e da primeira-dama, o presidente Jair Bolsonaro assinou uma Medida Provisória (MP) que “institui pensão especial destinada a crianças com microcefalia decorrente do Zika Vírus, nascidas entre 1º de janeiro de 2015 e 31 de dezembro de 2018, beneficiárias do Benefício de Prestação Continuada” (MP 894/19). A MP foi imediatamente encarada pelas mães como uma vitória e comemorada em seus perfis de redes sociais com fotografias de algumas delas ao lado de Terra e de Michelle Bolsonaro e textos emocionados. Embora fosse também vista como incompleta e restritiva, a MP foi investida de muita esperança na possibilidade de sua implementação e também da posterior reforma de alguns de seus termos no processo que teria início a partir daquele momento: as audiências públicas no âmbito da Comissão Parlamentar mista que apreciaria a possibilidade de sanção da Medida na forma de lei. No perfil da UMA em uma rede social, Germana publicou:

o BPC é uma prisão sem grades, composto por vários pré-requisitos, a família tem que ter renda de até R$ 220,00 por pessoa, não pode trabalhar, não pode ter cerâmica em casa, não pode ter eletrodomésticos considerados de luxo, como geladeira de duas portas, microondas, ar-condicionado, máquina de lavar. Carro nem pensar...(...) Queríamos uma portaria mais completa, como solicitamos, pois não tem décimo terceiro, são pra crianças nascidas de 2015 até 2018, não acumula por morte e permanece com um salário mínimo dando continuidade a situação de vulnerabilidade dessas famílias. Porém, a mãe que tiver condições poderá trabalhar. Não haverá teto máximo de renda. A mulher se quiser poderá casar sem se preocupar que a renda do marido cause a suspensão desse dinheiro. Se tornou uma pensão para casos de tragédia pública e que será pago pela União. (PERFIL DE INSTAGRAM UMA, 5 set. 2019).

A esperança, contudo, rapidamente cedeu lugar a uma análise mais detida dos termos da MP e a uma intensa frustração manifestada pelas mães através de uma nota oficial publicada pela FNDPSCZ, dois dias após a solenidade de assinatura da Medida. A publicação de notas é uma forma de atuação acionada pelas mães também diante de outras demandas, como, por exemplo, o pleito por transparência e participação na produção e divulgação de conhecimento científico sobre a doença (LIRA; PRADO, 2020; MATOS; SILVA, 2020). No caso da MP da pensão, a nota qualificava a Medida como “restritiva e injusta” e elencava uma série de pontos problemáticos: a abrangência limitada a crianças que já recebem o BPC, excluindo portanto todas aquelas que nunca acessaram esse benefício ou tiveram seu pedido negado pelo teto de renda, além de restrita a crianças nascidas até 31 de dezembro de 2018, excluindo possíveis vítimas nascidas depois dessa data17; a impossibilidade de acúmulo da pensão com eventuais indenizações pagas pela União em função da mesma matéria; a necessidade de perícia médica feita pelo INSS que ateste a relação entre a condição da criança e a contaminação anterior da mãe pelo vírus, exigência problemática em função da inexistência de protocolos de diagnóstico da zika no momento em que o Brasil viveu o surto epidêmico; e o fato da MP não prever qualquer tipo de reparação para mães que tiveram filhos com SCZ que faleceram em decorrência da doença antes da edição da MP. A nota é encerrada com a expressão da decepção das mães e o reconhecimento de que a pensão por elas tão celebrada consistia basicamente em um substituto do BPC, disponível apenas para crianças que já o recebiam e, portanto, desprovido de quaisquer especificidades de caráter propriamente reparatório:

O Estado reconheceu a sua responsabilidade na epidemia que assolou o país, pela inexistência de controle eficaz do mosquito transmissor e na falta de saneamento básico. A pensão especial deverá ser a reparação mínima para tanta negligência. (...) As famílias vítimas dessa epidemia têm enfrentado diversos problemas ao longo de seus caminhos, além de toda dificuldade de acesso às políticas públicas e concessão de direitos, o esgotamento físico, psíquico e emocional, não bastasse tudo que passam, agora elas veem suas esperanças se esvaírem; (...) Ao criar a MP o governo não amplia o acesso à política pública, mas tão somente permite uma migração do BPC para a pensão vitalícia das crianças que já recebiam o benefício. (UMA, 7 set. 2019)

A decepção experimentada pelas mães diante da MP evidencia de modo exemplar o estado liminar entre política e prática a que Colin Hoag (2014) se refere a partir da noção de desamparo (dereliction). O autor propõe esse conceito para descrever “momentos em que observadores esperançosos (por exemplo cidadãos, antropólogos, burocratas) de processos burocráticos tornam-se céticos: quando sua perspectiva prospectiva sobre um documento que ainda não chegou desliza para uma perspectiva retrospectiva sobre fracasso burocrático” (HOAG, 2014, p. 411-412). Esse desamparo, argumenta Hoag, é uma condição de quase-cuidado e quase-abandono, e deve ser tematizada em análises antropológicas sobre precariedade legal e práticas burocráticas. Exemplar na manifestação dessa condição, a nota foi publicada nos perfis públicos de algumas associações nas redes sociais acompanhada de uma fotografia do momento em que o presidente da República assinou a MP, o título “FARSA!” em letras vermelhas e o seguinte comentário: “Fomos enganadas, meus queridos, nos foi apresentado um documento que seria a Medida que o presidente iria assinar, dois dias depois da cerimônia o documento que foi pro Diário Oficial era totalmente outro. Fomos vítimas de um golpe.” (PERFIL DE FACEBOOK UMA, 7 set. 2019.)

Um mês depois da publicação da nota, já no processo de instauração da Comissão Mista designada para analisar a MP, a Procuradoria Federal dos Direitos do Cidadão do Ministério Público Federal (MPF) publicou uma Nota Técnica apontando inconstitucionalidades na MP. A Nota Técnica reconhece a relevância da pensão, mas aponta que a MP fere dois princípios constitucionais: (1) a isonomia, ao destinar a pensão “a crianças com microcefalia”, já que a SCZ é uma doença mais abrangente que pode ou não provocar microcefalia, e também ao restringir-se a crianças “nascidas entre 1º de janeiro de 2015 e 31 de dezembro de 2018”; e (2) a inafastabilidade de jurisdição, ao condicionar o recebimento da pensão à desistência de ação judicial que tenha a mesma matéria. Para o MPF, condicionar o recebimento da pensão a esse tipo de desistência é negar às famílias acesso à justiça. Ademais, a Nota Técnica do MPF se posiciona contrária ao dispositivo da MP que estabelece que a pensão não pode ser acumulada com o recebimento do BPC, sublinhando a importância de marcar a natureza específica de cada um desses dispositivos, já que a pensão tem natureza indenizatória, ao passo que o BPC é um benefício assistencial. Diz o documento:

Ao assim dispor, a medida provisória prevê, na verdade, mera substituição do benefício pela pensão, além do que, crianças que hoje não recebem o BPC, inclusive por falhas no sistema [do INSS], continuariam a não recebê-lo, agora sob a forma de pensão. Se a pensão especial tem cunho indenizatório e, portanto, é medida que tem em conta a negligência estatal e se propõe a superar o quadro de desigualdade por ela gerado, ela deve alcançar todas as crianças portadoras de referida moléstia, independentemente da situação financeira da família respectiva. Sua natureza, insista-se, é absolutamente distinta do BPC, de caráter assistencial, e não o substitui. (BRASIL, 2019a).

Evidenciando a temporalidade circular e a notável capacidade de orientar os sujeitos para o futuro, características de processos burocráticos (HOAG, 2014), as esperanças das mães foram renovadas com o início efetivo dos trabalhos da Comissão Mista, em outubro de 2019. Um dia antes do início das audiências públicas da Comissão, algumas delas foram recebidas novamente por Osmar Terra para “alinhar solicitações que tornem a MP 894/19 mais inclusiva de modo que atenda a todas as crianças que foram vítimas” (PERFIL DE INSTAGRAM UMA, 8 out. 2019), ocasião em que apresentaram as alterações necessárias ao texto da Medida. Ao longo dos trabalhos da Comissão, porém, essa esperança mais uma vez se combinou com seu oposto: a frustração, o desgaste e o cansaço diante do adiamento e suspensão de algumas sessões, da ausência de convidados e especialistas esperados nas audiências, de pronunciamentos considerados decepcionantes, desnecessários e até perversos, além do fato de que todos os presentes nessas reuniões, com exceção dos parlamentares, tiveram que arcar por conta própria com sua ida a Brasília, o que implicou um custo muito alto para elas próprias, além de causar grande parte das ausências de especialistas. A frustração diante dessas questões foi ainda agravada pela decepção, por um lado, de verem a consolidação da vinculação da pensão ao recebimento prévio do BPC e, por outro, de perceberem que os ganhos efetivos de suas demandas por alteração nos termos da pensão estavam se reduzindo ao aumento dos marcos cronológicos de nascimento das crianças contempladas (para incluir as nascidas em 2019) e à possibilidade de acumularem o salário-maternidade do INSS com a pensão.

A frustração, o desgaste, o cansaço e a decepção das mães foram apresentados em um vídeo feito por Germana Soares no Plenário da Câmara dos Deputados e publicado em tempo real no perfil público da UMA em uma rede social. Mesmo o cansaço, contudo, foi apresentado no vídeo acompanhado de expressões de tenacidade e resistência, iluminando a imbricação entres esses afetos e a luta por justiça nos ativismos de vítimas em que a maternidade é elemento central (VIANNA; FARIAS, 2011; VIANNA, 2015):

(...) estou aqui com a Alessandra, que é a presidente da AFAEAL, que é a Associação de Famílias de Anjos do Estado de Alagoas, e a gente tá com essa cara de defunto porque é muito desgastante, muito cansativo, muito cansativo conversar com esse povo. E a gente ainda escuta de um representante aqui do governo, lá do Ministério da Cidadania, que a gente quer arrancar demais do governo. Arrancar demais: viver de um salário mínimo pra todos [da família], né? Isso é arrancar demais. Porque pra quem não sabe, vai ficar mais ou menos 700 casos sem incluir na pensão vitalícia porque não têm BPC, e a pensão está atrelada ao BPC. Entraram os casos de 2019, o salário-maternidade, que se a mulher trabalhasse ela não poderia acumular o salário maternidade junto com a pensão. Agora pode. Oh, meu Deus, devolveu um direito [com expressão de ironia]. Aí eles acham grande coisa, sabe? Além de ser um salário mínimo que quase não dá pra nada, que não dá pra nada, quando vai tirar aluguel, sustentar uma casa, leite, fralda, suplemento, um remédio feito um Sabril, que é um anticonvulsivante que custa R$ 300,00, aí esse povo não vive, né? Sobrevive. Aí a gente fala e eles pensam que a gente está brincando, que a gente quer arrancar demais do governo. (...) A gente está aqui longe dos filhos, longe do lugar onde a gente vive, entendeu?, numa situação difícil por aqui, mas a gente está resistindo. A gente vai continuar. Vamos aguardar amanhã e a gente dá notícias, tá bom? A gente está cansada. Cansada de verdade. Cansada de estar aqui, cansada de bater de frente, cansada de exigir algo que é nosso, cansada de falar por todos e ninguém ouvir. E depois quando a gente fala que a gente é invisível é que eles falam assim: “poderia não ter acontecido nada”. Como se isso fosse um favor do governo. Isso não é favor, é direito. E se é um erro, o governo sim precisa assegurar nossos direitos e precisa fazer uma reparação, que já é uma reparação mínima. Mínima, mínima, mínima. Mas pro governo já é muita coisa... Muita coisa é a forma como a gente vive e a vida que a gente leva, o estado de miserabilidade que essas famílias enfrentam. O abandono da família, o abandono do Estado, está demais.” (PERFIL DE INSTAGRAM DA UMA, 15 out. 2019).

No dia seguinte à publicação desse vídeo, o relatório final da Comissão Mista foi aprovado por unanimidade. O documento recomendava somente as alterações no texto da MP destacadas por Germana no vídeo, somando-se apenas a correção da qualificação das crianças a que a pensão se destina (não mais “crianças com microcefalia decorrente do zika vírus”, e sim “crianças com Síndrome Congênita do Zika Vírus”). À parte essas mudanças, o texto da MP permaneceu o mesmo, garantindo a pensão exclusivamente a beneficiários do BPC, e assim seguiu para tramitação no Congresso Nacional. Um dia antes do vencimento do prazo de validade da MP, já em fevereiro de 2020, o Senado aprovou o texto da Medida e, em 7 de abril, quando o Brasil e o mundo já viviam uma nova epidemia, ela foi sancionada como lei.

Crise ou reparação

Nos perfis públicos da UMA, Germana Soares celebrou a lei com um pequeno texto carregado da ambivalência também presente em suas postagens anteriores sobre todo o processo que precedeu a sanção:

Tenho a honra de anunciar que no último dia prestes a vencer a MP 894/19 foi assinada e sancionada como Lei. Muitas coisas para melhorar, tantas crianças nem de perto são atingidas pelas regras desta agora lei, é necessário alterar tantas coisas para de fato uma qualidade de vida para essa família e para que essa reparação seja para todos que tiveram seus destinos traçados. Parabéns a todas as mães (...) Um direito conquistado na dor, no sofrimento e na coragem de todas. Avante para as próximas conquistas. (PERFIL DE INSTAGRAM UMA, 8 abr. 2020).

Ainda que tenha renovado as esperanças das mães, esperanças agora investidas na possibilidade de “melhorar” a lei, a pensão especial revela-se consideravelmente restrita não só diante do pleito inicial dessas mulheres, mas também em comparação com as pensões especiais de natureza indenizatória que a precederam no Brasil. A pensão concedida a pessoas acometidas pela Síndrome da Talidomida (Lei n° 7.070/1982), por exemplo, não impôs nenhum intervalo temporal de nascimento dos atingidos como critério de concessão, nem impediu o acúmulo da pensão com indenização por dano moral concedida por lei específica, como faz a pensão da SCZ. Já a pensão concedida aos atingidos pela hanseníase (Lei 11.520/07), embora também não seja acumulável com indenizações, não impede o recebimento de qualquer benefício previdenciário como, por exemplo, o BPC. No caso das crianças com SCZ, como visto, a pensão substitui o BPC e não pode ser acumulada com ele (Art. 2º), sendo devida apenas a partir do primeiro dia de cessação do pagamento desse benefício pelo INSS. Ainda, a pensão destinada a familiares de vítimas da hemodiálise de Caruaru (Lei 9.422/1996), ao beneficiar justamente os familiares, garantiu sua provisão diante do falecimento das vítimas, algo vetado no caso das mães de crianças com SCZ. Na eventualidade do falecimento das crianças, as mães que deixaram seus trabalhos para cuidar dos filhos não terão como se manter.

No texto da lei, o único indício do caráter reparatório da pensão aparece no seu artigo 4º, que dispõe sobre vinculação orçamentária e estabelece que “as despesas decorrentes desta Lei correrão à conta da programação orçamentária Indenizações e Pensões Especiais de Responsabilidade da União”. Os outros seis artigos indicam, diferentemente, uma vinculação muito mais clara da pensão com o universo dos direitos previdenciários do que com o direito à reparação, sobretudo ao delegar a gestão da pensão ao INSS e à Dataprev (Empresa de Tecnologia e Informações da Previdência), determinando inclusive que ela fica condicionada à realização de “exame pericial por perito médico federal [do INSS] para constatar a relação entre a síndrome congênita adquirida e a contaminação pelo vírus da zika” (Art. 2º, parágrafo único). Essa vinculação, vale notar, apareceu também na pauta da sessão do Senado Federal em que a Lei da pensão foi sancionada, que reuniu às discussões sobre a pensão da SCZ outra matéria considerada afim: a inclusão da fibromialgia na lista de doenças que asseguram a seus portadores a dispensa de carência para usufruto de dois benefícios previdenciários regulados pelo INSS, o auxílio-doença e a aposentadoria por invalidez.

Ao consolidar o deslocamento no caráter da pensão, que de um instrumento reparatório demandado pelas mães configurou-se finalmente em um benefício previdenciário em tudo semelhante ao BPC, a lei não alterou efetivamente a situação das famílias vitimadas pela epidemia de zika no Brasil – nem as que já recebiam o BPC, nem as que não o recebiam e por isso mesmo estão fora de seu escopo. Para compreender essa configuração tão restritiva da pensão, bem como o relativo desparecimento de seu desejado caráter reparatório, é especialmente produtivo examinar os termos nos quais o tema foi tratado em diferentes ocasiões pelo agente público mais frequentemente apresentado pelas mães como central em todo o processo aqui descrito: o atual deputado federal pelo estado do Rio Grande do Sul e ex-ministro, Osmar Terra, filiado ao Movimento Democrático Brasileiro (MDB). Terra é médico de formação e atualmente exerce seu sexto mandato na Câmara dos Deputados.

Ainda em 2016, enquanto o Brasil encontrava-se oficialmente em estado de emergência, o deputado foi coordenador da “Comissão Especial da Câmara dos Deputados para o combate ao zika vírus”. Nessa função, em diferentes eventos públicos Terra já se pronunciava em defesa de uma pensão vitalícia para crianças com SCZ. Os argumentos em que baseava essa defesa, contudo, passavam por outros caminhos que não a necessidade de reparação às famílias. Ao falar para uma plateia de magistrados no seminário “A mulher e os efeitos do zika vírus na saúde e na plenitude dos seus direitos”, Terra defendeu a pensão articulando o desconhecimento que então se tinha sobre o número de casos no Brasil, o custo alto dos tratamentos de que as crianças necessitariam, a situação de crise financeira e ajuste fiscal em que o país se encontrava e, ainda, uma possível judicialização excessiva de demandas:

Temos uma epidemia grave de zika vírus, que vai ter proporções impressionantes. Um por cento da população é gestante e terá filhos este ano, para ter ideia do número de casos. Não temos a informação adequada sobre o número de casos, não sabemos porque não tem exame. (...) Estamos diante de uma situação gravíssima, ainda mais com o Brasil em crise, com grandes cortes no orçamento.  A Saúde teve um corte excepcional de R$ 20 bilhões. Os magistrados devem se preparar porque vai ter uma enorme judicialização, a partir do meio do ano. Haverá uma demanda gigantesca por medicamentos e tudo o que se precisa para cuidar de uma criança com microcefalia. (EPIDEMIA do zika vírus custará R$ ٣ bilhões por ano ao Brasil..., 2016).

Na ocasião, Terra apresentou a possibilidade de instituição de uma pensão como forma de evitar ou ao menos minimizar custos por ele mesmo projetados. Para o deputado, “uma criança [com SCZ] gasta em média R$ 35 mil anuais com acompanhamento médico e remédios” – o que, vale dizer, é quase o triplo do montante que cada família contemplada com a pensão receberá por ano, a julgar pelo valor atual do salário mínimo no Brasil. Além dessas especulações de custos, o deputado também especulou em relação aos números de casos registrados no país, afirmando que “antes da epidemia, a média anual no Brasil era de 170 casos de microcefalia. Este ano, a estimativa é que sejam notificados 50 mil bebês com microcefalia. A cada semana, o número de registros aumenta de 5 a 10% o número de notificações”. Contrariando essa estimativa, o boletim epidemiológico do Ministério da Saúde contabiliza o total de 3.474 casos confirmados no Brasil entre 2015 e 2019 (MINISTÉRIO DA SAÚDE, 2019).

Mais de três anos depois dessas falas aos magistrados, ao se pronunciar em uma das audiências públicas realizadas no âmbito da Comissão Mista que analisou a MP 894/19 e já na condição de ministro, Osmar Terra manteve posição semelhante: “O nosso objetivo é um só: beneficiar o máximo que for possível, que a lei permitir, sem correr risco de irresponsabilidade fiscal, e beneficiar as mães, as famílias das crianças que foram vítimas dessa tragédia do Zika vírus” (OSMAR Terra diz que MP da microcefalia também, 2019). Embora afirmasse que o propósito da pensão seria “beneficiar o máximo que for possível”, naquela ocasião o ministro defendeu a manutenção do menor intervalo temporal de nascimento das crianças a serem beneficiadas pela pensão (de 1º de janeiro de 2015 a 31 de dezembro de 2018), justificando a restrição com o seguinte argumento: “a pensão vitalícia para crianças com microcefalia é de extrema importância, mas não pode gerar prejuízo para os cofres públicos em momento de crise”.

Cotejadas com os PLs sobre o tema, com documentos oficiais como a Nota Técnica do MPF e, sobretudo, com as falas e demandas das mães de crianças com SCZ, essas e outras falas e posicionamentos de Osmar Terra demonstram que a pensão foi publicamente tratada a partir de duas narrativas que, a julgar pelos termos definitivos em que ela foi instituída como lei, revelaram-se excludentes: a narrativa da negligência do Estado e da consequente necessidade de reparação e a narrativa da crise e da consequente necessidade de controle de gastos públicos.

Considerações Finais

Como demonstra Freire (2019), narrativas de crise, especialmente quando acionadas no âmbito da saúde, constroem tanto contextos que justificam medidas de austeridade quanto recortes espaço-temporais que ao mesmo tempo ocultam e permitem manejar a precariedade e a escassez perenes com que as vidas de determinadas populações são administradas. Conforme argumenta o autor, a “crise” pode operar como ponto nodal de modos de governo que administram não a escassez de recursos disponíveis, embora assim se apresentem, mas sim administram pela escassez. Isto é, governam populações, relações, territórios e problemas por meio da alocação de poucos recursos para determinadas questões. Levar esse argumento a sério não implica, evidentemente, negar a materialidade de contextos de crise. Antes, implica entender que contextos de crise agudizam e intensificam quadros de escassez, precariedade e desigualdade. A meu ver, as falas públicas de Osmar Terra em relação à pensão para crianças com SCZ e sua ênfase não na necessidade de reparação das famílias, mas sim na importância do controle dos gastos públicos, podem ser interpretadas a partir dessas ideias, revelando assim ao menos parte de seus sentidos.

Mães de crianças com SCZ que também se pronunciaram nas audiências públicas no âmbito da Comissão Mista – que apreciou a Medida Provisória que criou a pensão – manifestaram seu descontentamento com a ênfase no controle dos gastos descrita acima, chamando a atenção para a desproporção entre o impacto da pensão no Orçamento Público e os impactos que a SCZ provocou em suas vidas. Thamires dos Santos, mãe de Miguel, afirmou: “Só falam de impacto orçamentário. Qual o impacto no orçamento se estamos há quatro anos com impacto na vida? Não podemos ver isso como uma esmola. A sociedade nos vê como oportunistas, nunca como guerreiras” (FAMILIARES criticam MP que prevê pensão para crianças com microcefalia por zika..., 2019). Também Germana Soares se pronunciou no mesmo sentido: “R$ 3,5 milhões por ano do Estado brasileiro para a mãe que sofre, que não tem apoio, que não tem o Estado do seu lado, não é nada. Um salário mínimo às vezes é um jantar que acontece aqui em Brasília”.

Considerando o caráter restritivo da pensão tanto em relação às demandas das mães quanto em comparação com pensões semelhantes, é possível afirmar que a narrativa da crise foi capaz de se sobrepor à narrativa da reparação na construção da SCZ como problema público no Brasil. Se na denúncia dos problemas enfrentados em relação ao BPC e na negociação pela pensão vitalícia a experiência das mães de crianças atingidas pela síndrome foi marcada pela ambivalência, pareceria razoável inferir que o resultado final desse processo, a pensão propriamente dita, também se caracterizaria pela ambivalência. No processo, a ambivalência aponta para a coexistência entre esperança e decepção que descrevi a partir da noção de desamparo (HOAG, 2014), ao passo que, no resultado, veríamos a articulação entre as narrativas da crise e da reparação. Contudo, o que o material que tenho analisado sugere é que o resultado da disputa em que as mães de crianças com SCZ estiveram e ainda estão engajadas, com esperanças ciclicamente renovadas em meio à decepção, é marcado não pela coexistência entre essas narrativas, mas pelo desaparecimento daquela que sublinha a necessidade de reparação.

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Recebido em: 01/06/2021

Aceito em: 14/02/2022


1 Esse artigo é resultado parcial do projeto “A Síndrome Congênita do Zika Vírus como problema público: disputas, linguagens e gramáticas morais”, financiado pela Bolsa de Produtividade em Pesquisa do CNPq (nível 2). Versões anteriores do texto foram apresentadas na Mesa Redonda “Políticas de reparação e indenização no Brasil e na Argentina: perspectivas a partir da antropologia do Estado e do ativismo das vítimas”, da 32ª Reunião Brasileira de Antropologia, e na Mesa Redonda “Saúde, Justiça e Direitos: perspectivas etnográficas sobre a ‘judicialização da saúde’”, da IV Reunião de Antropologia da Saúde. Agradeço aos colegas Paula Lacerda, Diego Zenobi, Virginia Vecchioli, Lucas Freire, Ciméa Beviláqua e Leonardo Pedrete pelos debates estimulantes em torno das ideias aqui reunidas.

* Professora adjunta do Departamento de Antropologia Cultural (DAC) e do Programa de Pós-Graduação em Sociologia e Antropologia (PPGSA) da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Jovem Cientista do Nosso Estado (Faperj) e Bolsista de Produtividade em Pesquisa do CNPq – Nível ٢. E-mail: leticiacarvalho@gmail.com

2 Exemplos relevantes são as pesquisas “Etnografando Cuidados e Pensando Políticas de Saúde e Gestão de Serviços para Mulheres e Seus Filhos com Distúrbios Neurológicos Relacionados com Zika em Pernambuco, Brasil”, coordenado por Russell Parry Scott na UFPE; o projeto “Microcefalia, deficiência e cuidados: Um estudo antropológico sobre os impactos da síndrome congênita do vírus Zika no estado de Pernambuco”, desenvolvido na UnB sob coordenação de Soraya Fleischer; e as pesquisas realizadas pelo Anis – Instituto de Bioética – sob coordenação da antropóloga Débora Diniz.

3 Exemplos desses dossiês são: “Zika Vírus e Síndromes Neurológicas Congênitas: contribuições do/para o campo de estudos de gênero”, publicado nos Cadernos de Gênero e Diversidade (2017); o espaço temático “Zika e gravidez”, nos Cadernos de Saúde Pública (2016); o dossiê “Zika vírus: uma epidemia em/e seu mundo social”, da revista Interface (2018); e o dossiê “Antropologia e as outras Ciências da Epidemia do Vírus Zika”, da revista Ilha – Revista de Antropologia (2020).

4 Em 2020, foram publicadas as coletâneas “Micro: contribuições da antropologia”, organizada por Soraya Fleischer e Flávia Lima (2020) e “Práticas sociais no epicentro da epidemia do Zika”, organizada por Russell Parry Scott, Luciana Lira e Silvana Matos (2020).

5 Sobre o entendimento da Síndrome Congênita do Vírus Zika como problema de saúde global, ver Nunes e Nacif Pimenta (2016) e Ventura (2016).

6 A Talidomida é um medicamento que está fora de circulação desde 1962 por ter gerado importantes malformações em crianças cujas mães fizeram uso dela durante suas gestações. Houve nascimento de crianças com essas malformações no Brasil mesmo após a suspensão da circulação do medicamento. Em 1982, a Lei Federal 7.070/82 institui uma pensão especial para pessoas nascidas com deficiência decorrente da Talidomida.

7 Em 1996, pacientes que realizaram hemodiálise em uma clínica na cidade pernambucana de Caruaru foram vítimas de uma intoxicação hepática. Dentre as vítimas, 60 pessoas faleceram em decorrência da intoxicação. Em 1996, a Lei Federal 9.422/96 concedeu pensão vitalícia para os dependentes das vítimas fatais.

8 Em 1987, o manuseio de um aparelho de radioterapia fora de funcionamento gerou um acidente com centenas de vítimas diretas e indiretas, conhecido como “acidente do Césio 137” - em referência à substância radioativa presente no equipamento. Em 1996, a Lei Federal 9.425/96 destinou pensão vitalícia às vítimas.

9 Em 2007, a Lei Federal 11.520/07 concedeu pensão vitalícia às pessoas atingidas pela hanseníase e que foram submetidas à política de isolamento e internação compulsória em hospitais-colônia, que esteve vigente no Brasil entre as décadas de 1930 e 1980.

10 O recurso às redes sociais foi uma alternativa ao projeto inicial de realizar trabalho de campo na sede de algumas dessas associações, suspenso em função da pandemia de covid-19. Desde abril de 2020, tenho sistematizado quinzenalmente as postagens em redes sociais de quatro associações de familiares de crianças com SCZ: União Mães de Anjos (UMA), Associação das Famílias de Anjos do Estado de Alagoas (Afaeal), Associação Lotus, e Associação Mães de Anjos da Paraíba (Amap). Para a sistematização das postagens, conto com o apoio das bolsistas de Iniciação Científica Beatriz Dantas (Faperj) e Victoria Peters (Pibic/CNPq).

11 Portaria número 58, de 3 de julho de 2016, do Ministério do Desenvolvimento Social e Agrário.

12 Portaria número 321, de 14 de julho de 2016, do Ministério das Cidades. Disponível em: https://www.in.gov.br/materia/-/asset_publisher/Kujrw0TZC2Mb/content/id/23181077/do1-2016-07-15-portaria-n-321-de-14-de-julho-de-2016-23181030. Acesso em: 10 out. 2020.

13 Salário-maternidade é o benefício previdenciário garantido à gestante, adotante ou mulher que tenha realizado aborto legal no Brasil e que contribua para o INSS. O benefício é devido durante o período de afastamento da mulher de suas atividades laborais, no prazo de vinte e oito dias antes e noventa e um dias após o parto.

14 São eles: PL 3974/2015, de autoria da deputada federal Mara Gabrilli (PSDB/SP); PL 4187/2015, de autoria do deputado federal Pompeo de Mattos (PDT/RS); PL 255/2016, de autoria do senador Eduardo Amorim (PSC/SE); e PL 452/2017, de autoria do senador Lindbergh Farias (PT/RJ).

15 A UMA é sediada em Recife e assiste famílias de todo o estado de Pernambuco. O protagonismo de Germana e da UMA na atuação de mães de crianças com SCZ relaciona-se certamente ao fato de Pernambuco ser o estado com maior número de casos confirmados de SCZ no Brasil entre 2015 e 2019. Não obstante, Germana destaca-se também por seu carisma, articulação e evidente habilidade e domínio da cena em apresentações públicas, seja em programas de televisão de grande audiência, como o antigo “Caldeirão do Huck”, apresentado por Luciano Huck na Rede Globo de Televisão (que recebeu Germana em abril de 2018 em um quadro sobre “histórias inspiradoras”), seja em uma entrevista publicada em um respeitado periódico da área de Antropologia (MATOS; LIRA; MEIRA, 2018).

16 O Ministério do Desenvolvimento Social (MDS) foi extinto em junho de 2019 e suas funções foram então atribuídas ao Ministério da Cidadania, que havia sido criado em janeiro do mesmo ano.

17 Os boletins epidemiológicos do Ministério da Saúde contabilizam 55 casos confirmados de SCZ em 2019, que ficariam excluídos. (Disponível em: http://www.saude.gov.br/boletins-epidemiologicos. Acesso em: 12 set. 2020).

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POLÍTICA & TRABALHO

Revista de Ciências Sociais, nº 55, Junho/Dezembro de 2021, p. 17-36

DE INSENSATOS Y CASAS SOBRE ARENA:

Responsabilidad Política, Activismo Social y Legitimidad Moral en el Marco de un Conflicto Ambiental en una Ciudad de la Costa Atlántica Argentina


OF FOOLISH MEN AND HOUSES BUILT ON SAND:

Political Responsibility, Social Activism and Moral Legitimacy in an Environmental Conflict in a City of the Argentinean Atlantic Seabord

____________________________________

Gabriel D. Noel*1

Lucía de Abrantes**

Resumen

A partir de un abordaje etnográfico de los principales conflictos suscitados en torno de la construcción del megacomplejo hotelero denominado “Mandalay” en la ciudad de Villa Gesell (Buenos Aires, Argentina), el presente texto utiliza una aproximación de análisis de caso extendido para revelar algunos de los principales recursos movilizados por los habitantes de la mencionada localidad en la articulación de un repertorio moral e identitario. A lo largo del mismo y a partir de una exposición y análisis pormenorizado de los principales eventos y argumentos desplegados, procuraremos mostrar de qué manera una controversia que comienza y se manifiesta primordialmente en un lenguaje acerca de oportunidades económicas, responsabilidades políticas y normativas jurídicas está haciendo referencia, en realidad, a una coyuntura moral que nos permite poner de relieve algunas de las principales tensiones y conflictos presentes en la escena local y que termina por configurar un repertorio que servirá de plataforma para iniciativas ulteriores en defensa del medio ambiente.

Palabras Clave: Moralidades. Activismo. Ambientalismo. Política.

Abstract

From an ethnographic reconstruction of the main conflicts brought about by the building of the hotel megacomplex named “Mandalay” in the city of Villa Gesell (Buenos Aires, Argentina), the following text proposes an extended case approach as a resource for revealing some of the main resources mobilized by the inhabitants of the aforementioned settlement in order to build a moral and identity repertoire. Throughout the paper, following the exposition and close analysis of the main events and arguments that were deployed, we will attempt to show how the ways in which a controversy beginning and manifesting mainly through a language of economic opportunities, political responsibilities and legal norms is actually referring to a moral conjuncture that allows us to bring in sharp relief some of the main tensions and conflicts present in the local scene by that time and that will give birth to a repertoire that would be used as platform for further initiatives on behalf of the environment.

Keywords: Moralities. Activism. Environmentalism. Politics.


1* Gabriel D. Noel es Lic. en Antropología (UNLP) y Dr. en Ciencias Sociales (UNGS). Se desempeña como Profesor Titular en la carrera de Antropología en la Escuela IDAES-UNSAM y es investigador de CONICET con sede en la misma institución. E-mail: gnoel@unsam.edu.ar

** Lucía de Abrantes es Lic. en Sociología (UBA), Mgr. en Antropología Social (FLACSO Argentina) y Dra. en Antropología Social y Cultural (UNSAM). Se desempeña como Auxiliar Docente en la carrera de Antropología en la Escuela IDAES-UNSAM. E-mail: deabranteslucia@gmail.com

ISSN 1517-5901 (online)

POLÍTICA & TRABALHO

Revista de Ciências Sociais, nº 55, Junho/Dezembro de 2021, p. 37-62

… y todo aquel que oyere estas palabras mías y no las ponga en práctica, será como el hombre insensato que edificó su casa sobre arena: cayó la lluvia, vinieron los torrentes, soplaron los vientos, irrumpieron contra aquella casa, y grande fue su ruina”.

Mateo 7, 26-27

Los Inicios: el Proyecto “Mandalay”

Corrían los últimos meses del año 2007 cuando, sobre el fondo de la ansiedad y las expectativas que preceden regularmente al inminente comienzo de la temporada estival, tomaron notoriedad pública entre los habitantes de Villa Gesell1 las noticias y los detalles relativos al lanzamiento de un megacomplejo hotelero denominado “Mandalay”, sobre el extremo norte de la ciudad. La intensa campaña de prensa impresa y online – de alcance nacional e incluso internacional – acompañada por los materiales puestos en circulación en toda clase de soportes por los propios responsables de la iniciativa2 dejaba en claro que se trataba de un monumental proyecto de alta gama destinado a consumidores de élite y con un considerable poder adquisitivo. Los bullet points de folletos, gacetillas y páginas web3 lo caracterizaban como un “exclusivo proyecto residencial único en Villa Gesell, con inversión de U$S 20.000.000” que se emplazaría “en el privilegiado parador Punta Norte, zona costera de Villa Gesell lindante con Cariló”4 y que estaría conformado por “cuatro complejos urbanísticos residenciales de primer nivel (Premium Condo Residences)” con vista al mar, para un total de 168 unidades – 18 de un dormitorio (60 a 80 m2) y 24 de dos dormitorios (103 a 127 m2) por complejo – “con los más exclusivos servicios y amenities”, cocheras, ascensores y “terminaciones de calidad”, “hall de ingreso de jerarquía” y seguridad permanente en un predio total de 56.400 m2 (y 21.400 m2 construidos) con 400 metros de frente a la playa virgen y más de 250 metros de arena hasta la línea del mar. También se destacaba con énfasis “la optimización de las vistas naturales de todas sus unidades funcionales” a la vez que se hacía hincapié en la plena satisfacción de los estándares propios de “la creciente demanda y exigencias del turismo nacional e internacional de características ABC1”. Asimismo, aunque se anticipaba el inicio del proceso de construcción recién para finales del año 2009, los blurbs y gacetillas de la propia constructora declaraban tener el 60% de un primer edificio ya vendido – el Mandalay Aqua Residences and Resorty anticipaban la pronta oferta de espacios en un segundo – el complejo Terra todo ello bajo la modalidad de “fideicomiso inmobiliario (Real Estate Trust).

Más allá del familiar vocabulario del registro inmobiliario de alta gama con su proliferación de anglicismos y la alusión casual al monto de una inversión que, a escala del de las iniciativas locales habituales, sólo podía calificarse de astronómico, quedaba claro también a partir de otros elementos presentes en las piezas de esta campaña de difusión que el target previsto coincidía con la pequeña pero creciente franja de sectores altos y medio-altos identificados con la espiritualidad New Age y la “vida verde” (SEMÁN; VIOTTI, 2015; FUNES, 2016). Como han mencionado diversos investigadores, son estos mismos actores quienes en la década precedente habían alimentado la población de buena parte de los countries y barrios cerrados de la periferia del Área Metropolitana de Buenos Aires (SVAMPA, 2001), como también así algunas localidades dentro de los lindes del propio partido de Villa Gesell que habían experimentado un crecimiento literalmente explosivo (NOEL, 2013a). Así, como estos mismos materiales declaraban explícitamente:

Mandalay cuenta con diseño exclusivo, es único en el casco urbano de Villa Gesell. Ofrecerá el mayor confort para un público exigente que desea conectarse con el universo, con la esencia de la vida en un paisaje de ensoñación: bosque, mar y dunas (…) Mandalay está íntimamente ligado al término de origen sánscrito MANDALA, cuyo significado es centro o círculo mágico. El mandala es un instrumento de contemplación, meditación, concentración y relajación, originada en la India, pero fue en el Tibet donde alcanzó su pleno desenvolvimiento artístico y meditativo. Este proyecto de cuatro edificios se inspira particularmente en las mandalas hindúes basadas en los cuatro elementos: Ignis, Terra, Aqua y Ventus, conforman un complejo edilicio de diseño, solidez, y detalles constructivos de calidad.

Esta combinación y coexistencia entre los registros del consumo de élite (con su léxico de exclusividad y privilegio) y el de la sensibilidad new age (y el consecuente lenguaje ecologista, orientalista y espiritualista) constituirá un recurso habitual en la totalidad de los materiales de la campaña, como puede verse en esta gacetilla de prensa que los yuxtapone sin solución de continuidad: “El proyecto de inversión contará con todos los servicios de primer nivel, con distintas áreas de actividades y servicios, cuidando la perfecta armonía e integración ecológica con el entorno.”

Ahora bien: como puede suponerse, esta masiva, hiperbólica y omnipresente presentación en sociedad de “Mandalay”, estuvo precedida por una laboriosa serie de negociaciones que se sucedieron a la factura original del proyecto. Las mismas habían comenzado casi dos años atrás, en 2005, a partir de la iniciativa de la ya mencionada inmobiliaria local, Gianini, que había adquirido el terreno (ocupado por una serie de estructuras inconclusas) a su propietario original y comenzado un proceso destinado a consensuar la iniciativa con la administración municipal a cargo del intendente Luis Baldo (por entonces en su tercer período consecutivo de gobierno). Cabe señalar que para la época en que la misma comenzó a registrar sus primeros avances, Villa Gesell ya acumulaba prácticamente una década de recesión, estancamiento y depresión económica generalizada, suscitada en primer lugar por la paridad peso-dólar5 y sus efectos negativos sobre un turismo doméstico repentinamente sometido a la competencia desfavorable con destinos externos más baratos y atractivos (NOEL; DE ABRANTES, 2014) y agravada ulteriormente por la eclosión de la crisis de diciembre de 2001 y sus consecuencias inmediatas6. En un escenario como este apenas puede extrañar que un proyecto como “Mandalay” fuera visto como una oportunidad dorada por parte de los representantes de la gestión municipal, que le rindieron una calurosa bienvenida:

Imagináte lo que era para nosotros, en ese momento ¿no? No solo una oportunidad de salir de la malaria, porque el proyecto prometía traer inversiones, dar laburo, directa e indirectamente… y además, y esto no es poco en una ciudad [turística] como esta, volver a colocar a Villa Gesell en el mapa del turismo, y en especial de un turismo ABC1 que por esos años no había estado eligiendo precisamente Villa Gesell… y con eso ponerle la tapa a mucha gente que decía que Gesell se había venido abajo (Bernardo, 53 años, funcionario municipal retirado).

Como resultado de esta feliz convergencia, los desarrolladores de la iniciativa – que ya contaban con cierta experiencia en proyectos a nivel local7 – habían comenzado las tratativas con la Secretaría de Planeamiento del Municipio a fines de asesorarse respecto de las restricciones y requisitos legales y administrativos a los que deberían sujetarse. Tal como lo evocara Mauricio, uno de los responsables originales del proyecto con quien tuviéramos ocasión de conversar in extenso a comienzos de 20128, esto implicó fundamentalmente interiorizarse acerca del Código de Edificación vigente y realizar los debidos estudios de impacto ambiental:

Con [la Secretaría] de Planeamiento nosotros armamos un proyecto que se… alineó absolutamente dentro de los cánones municipales, absolutamente y (…) en el medio tuvimos que hacer un impacto ambiental que … bueno, llevó mucho tiempo, hubo que hacer montones de cosas… y el proyecto se fue – er.. la palabra no es ‘negociando’ – consensuando, [eso]… consensuando con la administración [de Baldo] (Mauricio, 59 años, inversionista del Proyecto “Mandalay”).

La firma definitiva del proyecto, sin embargo, debería postergarse a partir de una situación imprevista: los estudios de impacto se extienden hasta pocas semanas antes de la elección en la que Baldo debía renovar su mandato por cuarta vez consecutiva, y en la cual era, en principio, el favorito (NOEL, 2014a). Ante esta situación, el intendente prefiere demorar la firma de la autorización para comenzar las obras a los efectos de no dar la impresión de que se trata de un “arreglo” de último momento destinado a obtener un rédito personal o electoral. Sin embargo, y contra todo pronóstico, Baldo sufre una derrota estrepitosa a manos de su contrincante, Jorge Rodríguez Erneta, que obtiene casi el 61% de los votos (contra el 29,5% del intendente saliente) (NOEL, 2020a). La victoria de su contrincante abre, por consiguiente, un imprevisto espacio de incertidumbre que implica, a todos los efectos, que las negociaciones deban recomenzar de cero:

[El problema es que] se fue la administración Baldo [y] no llegó a aprobar… Baldo creía que ganaba y yo me acuerdo que nos juntamos con Baldo… no me voy a olvidar nunca, nos juntamos con Baldo en lo de Gianini, ponéle que las elecciones fueron en octubre, nos habremos juntado, no se, diez días antes, veintipico de septiembre [y nos dice]: ‘No se preocupen que ni bien pase la elección se los firmo, porque si firmo ahora va a haber quilombo’. ¡Todo bien! [Pero la derrota] fue aplastante, Erneta lo hizo mierda. Bueno, lo hizo mierda y nosotros nos quedamos con un proyecto con el cual [ya] se habían invertido dos millones de dólares (Mauricio, 59 años, inversionista del Proyecto “Mandalay”).

La reacción inicial de la gestión entrante fue, como puede pensarse, de suspicacia y las relaciones iniciales no estuvieron exentas de tensión y de recelo recíproco:

… y bueno, hubo que ir a ver a Erneta. Bueno, nos tuvimos que aguantar, este… te diría que… todo un año. Todo un año porque, bueno, Erneta pensaba que era todo un arreglo con Baldo. Bueno, conocimos a la gente que maneja [la Secretaría de] Planeamiento, a Luis Castellani [y toda su gente], [mientras tanto] seguimos haciendo [otras] cosas en Gesell (Mauricio, 59 años, inversionista del Proyecto “Mandalay”).

Mas luego de un año de laboriosa renegociación – año durante el cual, no es ocioso recordarlo, la expansiva campaña de difusión que reseñáramos en los primeros párrafos del presente texto había sido lanzada y estaba funcionando a plena potencia – obtuvieron el apoyo irrestricto (e incluso entusiasta) de la nueva gestión municipal. Una gestión que, además de revelarse receptiva a los mismos argumentos de crecimiento, desarrollo y reposicionamiento turístico que habían resultado persuasivos para sus predecesores, se mostraba sumamente interesada en las posibilidades de empleo y prosperidad prometidas por la construcción del complejo, en el marco de lo que por entonces se denominaban (con un entusiasmo quizás un tanto excesivo) “políticas neokeynesianas” y que constituían un nodo retórico central de la gestión de Rodríguez Erneta (NOEL, 2014a, 2020a):

Finalmente se autoriza la obra, [aunque] hubo que hacer adaptaciones, negociaciones, [cosas que nos pidieron, como abrir una calle y un estacionamiento público], explicar [todo de nuevo] mil veces… charlas, este… se maneja todo el proceso licitatorio, se licita, preadjudican, hablamos con Erneta y costó, pero finalmente nos dieron luz verde (…) y apoyo absoluto. ¡Absoluto! (Mauricio, 59 años, inversionista del Proyecto “Mandalay”).

Así fue que comenzado 2009, transcurridos casi cuatro años de su concepción original – y más de uno de su avasallante presentación en sociedad – “Mandalay” estaba listo para salir de los planos, los renders y los anuncios de prensa: había llegado el tan anticipado momento de dar comienzo a las obras que habrían de materializar el nuevo y ambicioso complejo en el extremo norte de la ciudad de Villa Gesell.

La Confrontación: el Conflicto en torno de “Mandalay”

Tanto el entusiasmo como el alivio de las partes hasta entonces involucradas habrían de mostrarse, sin embargo, tan prematuros como efímeros: casi en el mismo momento en que el ambicioso complejo residencial comienza a dejar atrás su estatuto de proyecto para concretarse sobre el terreno, habrá de encontrar una oposición tan espectacular como imprevista encarnada en diversos actores individuales y colectivos de la ciudad, hasta entonces ausentes o invisibles. Estos actores, embanderados en una causa de explícita inspiración “ecológica” o “ambiental” (HERNÁNDEZ, 2019) – y claramente poco impresionados por las pretensiones de “armonía” y “equilibrio” deudoras de la “sensibilidad verde” y la espiritualidad New Age desplegada en los ya citados folletos y gacetillas de prensa – habrán de manifestarse mediante diversas formas de activismo que rápidamente cobrarán fuerza y ganarán apoyos, en un proceso que terminará por interpelar a la totalidad de los principales sectores de la escena política local, e involucrar indirectamente a varios otros actores de la ciudad, muchos de ellos sin una historia previa de participación o movilización. Puesto de manera algo más clara, “Mandalay” no sólo devendrá objeto de una confrontación: alcanzará un estatuto de cause célèbre, obteniendo incluso esa presencia en los medios metropolitanos a la que se suele consagrar como “nacional”9. Tal como Mauricio lo evocara con amargura:

[… y ya teníamos todo abrochado] y se arma el quilombo… primero dos pibes, después tres pibes, después cinco pibes, después el movimiento del Faro Querandí, no sé como se llama10… y se para la obra (…) aparecieron cuando se empezó a tocar el médano, no bien empezó la obra. Aparte este es un médano que si vos lo viste arranca en el punto más bajo en la parte norte y va subiendo. Se arrancó por el punto más alto (…) el punto más visible, y bueno, … entonces arrancaron estos pibes (…) que desde mi punto de vista, te diría – y te hablo de los bienintencionados – en su 95% son fundamentalistas y el otro 5% no tiene poder de decisión (Mauricio, 59 años, inversionista del Proyecto “Mandalay”).

Cabe señalar que, aún cuando no pudieran anticipar la intensidad ni la virulencia de la reacción colectiva, los desarrolladores eran conscientes, a partir de su experiencia previa en la zona, de los riesgos inherentes a una construcción de gran envergadura en la primera línea del mar. Justamente por eso, según nos aseguraban, habían mantenido largas conversaciones con el Municipio para obtener las autorizaciones debidas e informarse sobre las limitaciones establecidas por el Código de Edificación entonces vigente, particularmente cuando la Gestión Baldo había dado amplia publicidad a lo largo de todo el año 2006 a una serie de iniciativas destinadas a paliar (o incluso revertir) los severos efectos de una erosión costera suscitada por los excesos de la intervención antrópica (y en particular por la infraestructura situada sobre la línea de playa)11:

…y el proyecto tenía algunas cosas que hacían que fuera mirado con… algún recelo (…) te diría que fundamentalmente estar construyendo en primera línea de mar, eso es lo que genera algún recelo (…) por eso lo hablamos bien en el Municipio, cumplimos con todas las normas y los Códigos… y obtuvimos la autorización para mover 400 metros de arena del frente costero… no es que nos mandámos de una [por la nuestra] (Mauricio, 59 años, inversionista del Proyecto “Mandalay”).

No obstante estas precauciones y el – siempre según Mauricio – escrupuloso respeto por los códigos y normativas vigentes, el conflicto en torno de “Mandalay” escalará en forma dramática en un plazo relativamente breve, en una coreografía que habrá de involucrar recursos judiciales (HERNÁNDEZ, 2020) movilizaciones públicas, performances de protesta en clave situacionista, notas de prensa, columnas de opinión y cartas abiertas en los principales medios de comunicación – locales primero y metropolitanos después – declaraciones televisivas y radiales de políticos y abogados y discusiones en todos los foros públicos y privados de la ciudad.

Como el propio Mauricio nos adelantara ya, las movilizaciones colectivas comienzan cuando, a raíz de las obras de nivelación de la duna, una serie de organizaciones locales de la sociedad civil, entre las que se destacan las agrupadas por la “Red Ambiental Querandí”12, deciden intervenir públicamente. Tal como lo consignara una de las primeras notas de prensa que buscaba presentar una cobertura sistemática de la protesta13:

Los vecinos del concurrido balneario, preocupados por la inminente destrucción de los médanos y la inacción de quienes deberían fiscalizar emprendimientos de tal magnitud, comenzaron a realizar presentaciones ante organismos municipales y provinciales y a movilizarse para proteger el ecosistema costero (…) ‘Todo este conflicto se inicia a raíz que la Municipalidad aprueba, en principio temporalmente, que un mega emprendimiento inmobiliario se instale en los últimos médanos vírgenes de Villa Gesell. A partir de que las maquinas empezaron a cavar para iniciar la construcción, los vecinos comenzamos a preguntarle al Concejo Deliberante de qué se trataba el proyecto y fuimos al Municipio a pedir explicaciones al Secretario de Planeamiento de Obras Públicas’ [sic], expresa Daniel Fernández, vocero de la Asamblea Ciudadana en Defensa del Médano Costero” (…) “‘Nosotros hicimos varias denuncias en distintos organismos provinciales y nacionales, en la OPDS – Organismo Provincial para el Desarrollo Sostenible de la Provincia de Buenos Aires – , en la Fiscalía General de la Nación también, y finalmente se acercaron hasta el médano costero peritos y representantes de la Fiscalía. Vinieron, tomaron fotografías y se las llevaron para evaluar, no sabemos cómo sigue ese trámite, nosotros lo que tenemos pensado hacer próximamente es una denuncia’, adelanta Fernández14.

Como puede verse, pese a las vehementes y explícitas protestas en contra de los desarrolladores del proyecto, los “vecinos15 movilizados alegan inacción y ausencia de fiscalización por parte del Municipio, acusaciones que pronto habrán de deslizarse – como veremos – hacia las de complicidad, connivencia o incluso cohecho. Consecuentemente, como la misma fuente reseña, el 7 de junio del mismo año 2010 estos vecinos realizan una presentación ante el Honorable Concejo Deliberante de Villa Gesell a través de la cual solicitaban la consulta de los planos de obra aprobados de acuerdo con la normativa vigente y el ya mencionado estudio de impacto ambiental presentado por los responsables del emprendimiento. Además, exigieron se les informara la fecha de la última fiscalización fehaciente y la putativa existencia de alguna causa preexistente contra el mismo. Los fundamentos de los mencionados pedidos tenían que ver con el hecho de que, pese a lo afirmado explícitamente por Mauricio, estos vecinos movilizados declaraban públicamente que ni los planos de obra estaban aprobados, ni se había realizado estudio de impacto ambiental alguno. Como nos señalara Rosario, una de las activistas involucrada en las movilizaciones:

El municipio mentía e iba contra todo aquello que había prometido (…) Habíamos logrado un plan de manejo costero, la creación de la reserva, estábamos trabajando para revertir los errores de muchos años y de pronto cae este martes trece” (Rosario, 65 años, militante y activista).

Al mismo tiempo, ante la indignación suscitada por lo que perciben como irresponsabilidad, indiferencia y falta de respuesta de las instancias gubernamentales pertinentes estos actores decidirán pasar a la acción directa: movilizarse y “ponerle el cuerpo a las topadoras”, como lo evocaran varios de nuestros informantes y las por entonces abundantes notas de prensa:

Al ver que no teníamos respuestas de ningún organismo, un grupo de vecinos junto con algunos guardaparques municipales y ambientalistas, nos movilizamos hasta el médano y pusimos el cuerpo delante de las maquinas impidiendo que continúen la extracción de arenas [sic], manifiesta Fernández16.

“Enviamos notas al Concejo Deliberante. Allí, nos trataron como si estuviéramos delirando. No nos quedó otro camino que ponernos delante de las máquinas. Ante la contundencia de los vecinos, se retiraron. Se difundió el reclamo en todo el pueblo y recibimos un apoyo fuerte”, recuerda Pablo Domínguez, uno de los vecinos que inició la protesta. “Recibimos apoyo de mucha gente, ONGS, diputados nacionales, provinciales y hasta medios nacionales”.17

Fue una locura ese momento… mucha adrenalina… [fue] plantarse directamente en el camino de las máquinas… como el video ese famoso de la plaza de Tiananmen (Maricel, 26 años, militante y activista).

Aguantamos, nos organizamos y defendimos lo nuestro (…). No íbamos a permitir que se lleve adelante este negociado que a nosotros, como geselinos, no nos beneficiaba en ningún punto (Rosario, 65 años, militante y activista).

Aún así, estas primeras iniciativas de activismo no despertaron demasiada preocupación entre los desarrolladores, que calificaban a sus protagonistas – como lo haría Mauricio varias veces a lo largo de nuestro intercambio – como “un puñado de locos, los loquitos de siempre, que hagas lo que hagas siempre te van a hacer quilombo”. Teniendo en cuenta asimismo, que si bien existía a nivel local una preocupación por los problemas ambientales18, ésta no había logrado hasta el momento articularse en una causa susceptible de asumir notoriedad y estructurarse bajo la figura de un problema público (DE ABRANTES, 2021), no resulta llamativo encontrar que la respuesta inicial de los responsables del complejo haya consistido, simplemente, en alambrar el área para evitar las intrusiones y nuevas intervenciones como las ya descriptas. Sin embargo, esta iniciativa sería pronto resignificada por los participantes de las protestas en clave de provocación y habría de desencadenar, en consecuencia, violentas repercusiones de los principales voceros del movimiento en la prensa radial y escrita así como en los principales foros y redes sociales. Así, Daniel Fernández y Pablo Domínguez declaraban:

Está todo el predio alambrado, hay dos hectáreas de playa y lo que se ve es un alambre de 1.80 metros de altura, con postes cada 5 metros, con 4 garitas policiales, guardias de seguridad y perros. O sea es una cosa increíble, en Villa Gesell nunca se vio esto19.

“Logramos que la obra se pare, pero luego la empresa alambró el predio y se excedió del predio. Eso fue una invasión del espacio público. Además, puso matones. Una forma de intimidar a los vecinos. También, habían puesto un Falcon verde en la puerta como recordando otros tiempos de la Argentina”20, denuncia Domínguez. La empresa de seguridad que “custodiaba” el predio tuvo que retirarse porque no se encontraba inscripta en el registro del Ministerio de Seguridad21.

Mas las manifestaciones ulteriores no se limitaron a protestas aisladas y declaraciones a la prensa: en la misma vena de “poner el cuerpo” y en una forma quizás inusual, pero no por eso menos efectiva de activismo, Norberto Tomys, conocido por los locales como “el loco Tomys” y sobrino nieto del fundador de la ciudad, Carlos Gesell (NOEL, 2012), se encadena a los postes perimetrales del alambrado, atrayendo de manera inmediata la atención de los medios periodísticos metropolitanos y otorgando por tanto al conflicto una nueva inflexión en su grado de visibilidad, publicidad e intensidad:

Norberto Tommys [sic], un sobrino nieto del fundador de la Ciudad, Carlos Gesell, se encadenó este miércoles a los postes del alambrado perimetral que instalan en la playa, al norte de la ciudad, donde se planea construir un mega emprendimiento inmobiliario, que se comercializa bajo el nombre de fantasía ‘Mandalay’. ‘Tommy’, tal su apodo, es conocido por su bohemia, y su ‘bajo perfil’, y vive en el sur de la ciudad, en terrenos heredados de la familia Gesell. Ayer junto a un numeroso grupo de vecinos protagonízó la ‘resistencia civil’ ante el avance del alambrado perimetral del Complejo, que se construye en plena zona de berma de la playa, espacio que va entre el mar y el pie de médanos, especialmente protegido por el Código de Aguas, que establece la prohibición de construir en ese espacio. El episodio fue cubierto por Canal 13 de Capital Federal, Radio 10 en el programa de Rolando Hanglin y en el transcurso del día otros medios de alcance nacional se interesaron por el tema22.

Finalmente, el 5 de julio de 2010, transcurrido un mes de los primeros requerimientos presentados ante las autoridades locales y frente a una falta de respuesta que asumen como signo de un desinterés literalmente intolerable (cuando no como inequívoco signo de complicidad y connivencia con los responsables del proyecto contra el cual se movilizan), los activistas de la “Red Ambiental Querandí” deciden comenzar un acampe en el predio de las obras que habrá de extenderse a lo largo de tres meses:

“Desde el 5 de junio [sic] estamos instalados en el médano manteniendo un campamento, Al principio nos resguardábamos en las casas próximas y después la gente se fue solidarizando y nos fue alcanzando cosas, un vecino trajo leña, otro trajo una carpa y así nos fuimos equipando. Además recibimos colaboración de la gente que se daba cuenta de lo que estaba pasando y lo que estábamos haciendo”, cuenta Daniel Fernández23.

Con el paso del tiempo, se irán sumando al acampe, en forma permanente, recurrente o intermitente cada vez más personas, a título individual o acompañadas de sus grupos familiares, la inmensa mayoría de ellas – como hemos ya adelantado – sin historias previas de movilización o de participación en la protesta colectiva. Tal como recordara Rosario: “El movimiento de los geselinos fue impresionante (…) Se sumaban personas de todas las edades y sectores. Esta causa nos unió” (Rosario, 65 años, activista y militante).

Con el transcurrir de los días, tanto la masividad de los apoyos como el compromiso sostenido con la protesta constituirán fuente de perplejidad y sorpresa no sólo para los desarrolladores del proyecto y las autoridades locales, sino incluso para la inmensa mayoría de los habitantes de una ciudad que, según nuestros interlocutores locales señalaran unánimemente a lo largo de más de una década de trabajo de campo, “siempre fue pasiva”, “una sociedad de borregos”, “gente acostumbrada a agachar la cabeza” o “una ciudad con gente que no se moviliza por nada, no importa lo que les hagas”24. Luego del primer mes de permanencia ininterrumpida, comenzarán a organizarse en la sede del acampe charlas informativas y actividades culturales y artísticas varias, todas ellas con el objetivo declarado de informar a la comunidad de Villa Gesell acerca de la necesidad e importancia de preservar el sistema de dunas costeras amenazado por “Mandalay” (y a fortiori por proyectos de idéntica inspiración y naturaleza). Como resultado de esta prolífica actividad de activismo ambiental, cultural y artístico – en cuya enumeración no taxativa podemos incluir varios abrazos simbólicos al médano, recitales, clases abiertas de yoga y charlas y debates sobre el ecosistema costero y su conservación – se habrá de conformar la que será la principal y más visible encarnación de este nuevo sujeto colectivo: la “Asamblea Ciudadana Villa Gesell en defensa del Médano Costero”, habitualmente apocopada como “Asamblea en Defensa del Médano Costero”.

Más importante aún, la continuidad y la masividad del acampe serán vistas por sus principales voceros como garantía de que los desarrolladores del complejo no podrán seguir avanzando con las obras sobre la playa, tal como lo afirmara el ya citado Fernández: “El acampe lo que está asegurando que el tema continúe, nosotros la primera vez le pusimos en frente de la maquina y le dijimos ‘no’. Otras veces que intentaron entrar, llamamos a la policía y los sacaron” 25

Como quiera que sea, a partir de ese momento inaugural, las manifestaciones públicas ya no se detendrán. En ocasiones habrán de acompañar incluso las intervenciones habitualmente más silenciosas en sede judicial (HERNÁNDEZ, 2020). Así, Eduardo Cobo, el director de una ONG local denominada “Centro de Orientación y Defensa al Consumidor” (CODECO), organizará en marzo de 2012 una conferencia de prensa a la entrada de la Sede Municipal para brindar información de lo actuado ante la Justicia y de su resultado: la obtención de una Medida Cautelar que puso freno legal a las tareas de nivelación del médano. A estos efectos citará, en la mencionada conferencia, los resultados de la intervención realizada por el Juzgado en lo Contencioso Administrativo de Dolores, a cargo del juez Antonio Marcelino Escobar, que dispusiera dar marcha atrás con la construcción de nuevas urbanizaciones sobre el frente costero de esa ciudad que hubieran sido autorizadas por la comuna “en forma irregular” – situación que afectaba de manera eminente a “Mandalay”26. Asimismo, proseguía Cobo, el fallo exigía al Municipio que se abstuviera de dictar la declaración de impacto ambiental o aprobar los emprendimientos cuestionados “sin asegurar y garantizar la participación ciudadana, la información pública y adecuada y la intervención de las distintas autoridades competentes a nivel provincial”27.

Asimismo, un comunicado de prensa de la misma entidad emitido con posterioridad a esas declaraciones públicas de su director consignaba que esta instancia judicial había “generado un estado de júbilo, no solo en las personas que desde un principio se movilizaron para impedir este irreversible daño, sino en la mayoría de la población. Hemos recibido, por parte de comerciantes geselinos, donaciones de carnes y facturas para parrilla, con el objetivo de festejar este logro conseguido en la Justicia”28. A estos efectos se anunciaba mediante el mismo medio la realización de una jornada cuyo cronograma de actividades preveía una radio abierta, la entrega pública al Departamento Ejecutivo de la Municipalidad del oficio que ordenaba la inmediata paralización de las obras, y un asado público que se compartiría con los vecinos presentes y los empleados municipales.

Mientras tanto, enfrentados a más de un año y medio de recursos judiciales, declaraciones, movilizaciones y repercusiones públicas en su contra y sin poder avanzar con la obra por razones tanto legales como sustantivas, los desarrolladores del proyecto comenzaron – ahora sí – a entrar en pánico y a hacer igualmente públicas sus protestas ante lo que veían como un avasallamiento inexplicable de sus derechos legítimos y reproches injustos frente a su cumplimiento estricto de los debidos procedimientos, basado – como hemos señalado – en una larga experiencia de emprendimientos exitosos (e incontestados) en el mismo distrito y en análogas condiciones29. Como nos señalara Mauricio con amargura:

…pero bueno, escucháme, porque esto … el tipo que compró esto, que pagó por esto, y que está en derecho de hacerlo, ¿quien [lo compensa]?… ¿quienes juntan la plata? ¿Cómo es esto, ustedes lo compran, como hacen? Todo muy lindo… pero los derechos adquiridos de los inversionistas y propietarios y del fideicomiso fueron literalmente pisoteados (Mauricio, 59 años, inversionista del Proyecto “Mandalay”).

Sin embargo, como descubrirán con consternación, sus protestas caerán en oídos sordos: no es sólo la posibilidad de llevar adelante el proyecto según lo previsto lo que se desvanece rápidamente delante de sus ojos, sino aún la de hacer oír sus argumentos en condiciones mínimamente ecuánimes. Los desarrolladores afectados por la movilización pública no sólo no encuentran forma de hacer pie en los medios y foros locales para dar cuenta de su posición y de sus razones30 sino que incluso cuando se establezcan a pedido de la justicia y bajo el auspicio de actores locales instancias de mediación y diálogo – como las Audiencias Públicas demandadas por el fallo arriba reseñado – queda claro que les resultaba imposible encontrar terrenos para articular acuerdos sobre bases putativamente compartidas o a partir de un intercambio de argumentos y contraargumentos; refutaciones y evidencia:

[Cuando los tuvimos enfrente vimos que] los argumentos seguían siendo tan inconsistentes como al principio, primero que [si] el terreno era privado [o no era privado]… Ah, después argumentaban que la arena se había robado, la arena que sacaban [del pozo de la obra, cuando con] la arena se había hecho un convenio con la Municipalidad para ponerla en el cementerio, porque el cementerio necesitaban la arena… y te decían que no, que eso era mentira y bueno todos los mitos: que los camioneros nuestros [iban armados] (…) y así ¿viste? Cuando… cuando vos respondés una, caen con otra, cuando te decían… el tema de la ruptura de la cadena de médanos, nosotros habíamos demostrado en el [estudio de] impacto que eso estaba más atrás [de donde era la obra], y que aparte hacíamos una… que… una especie de recomposición de médanos porque el proyecto así lo planteaba. Cuando se decía que … ellos suponían que vos ibas a hacer perforaciones en las napas y [no:] allí el agua corriente llega hasta la esquina y nosotros prolongábamos la red … las cloacas están en la esquina, se hacían pozos nuevos… o sea… todos los argumentos que vos esgrimías y las soluciones que vos planteabas [chocaban contra la misma conclusión]: “No tiene que estar”. No importa lo que vos les dijeras o cuántas veces les respondieras sus objeciones con papeles y pruebas la respuesta terminaba siendo siempre la misma: “el problema es otro… el problema del medio ambiente está por encima de todos estos los derechos. ‘Mandalay’ se tiene que ir. Punto” (Mauricio, 59 años, inversionista del Proyecto “Mandalay”).

Como quiera que sea, con el transcurso del tiempo las intervenciones más espectaculares y visibles irán cediendo el paso progresivamente a las algo más silenciosas – aunque nunca exentas de repercusiones – intervenciones judiciales (HERNÁNDEZ, 2020). Así, aunque la causa “Mandalay” haya de prolongarse sobre las mismas líneas durante más de una década31, lo cierto es que hacia 2015 no encontramos ya en la escena pública y mediática más que referencias ocasionales y esporádicas a una polémica cuyo momento álgido ha quedado inequívocamente en el pasado, especialmente cuando los objetivos inmediatos de la movilización y la protesta – la interrupción y paralización de las obras – han sido a todos los efectos alcanzados y con creces.

Aún así, como queda claro incluso a partir una exposición tan esquemática y estilizada como la que hemos construido en los párrafos precedentes, hay más en el affaire “Mandalay” que la impugnación a las autoridades políticas y el litigio judicial que constituyen sus manifestaciones más visibles. Los eventos que hemos reseñado y que abarcan algo más de cinco años de confrontación exasperada (y de cuyo despliegue y principales repercusiones fuimos testigos directos en nuestro trabajo de campo etnográfico)32 sugieren, por el alcance y el grado literalmente inéditos de la movilización y el compromiso ciudadanos, lo exasperado de los argumentos y las referencias explícitas o elípticas a una serie de tropos y evocaciones de notoria resonancia en la esfera local – y de los que nos ocuparemos en breve – la posibilidad o incluso la conveniencia de abordarlos como un caso extendido (VAN VELSEN, 1967; HANDELMAN, 2006; GAZTAÑAGA, 2014). Un abordaje procesual de esa naturaleza debería permitirnos poner de relieve algunas de las principales tensiones y conflictos presentes en la escena geselina de comienzos de la segunda década del siglo33. A partir de una perspectiva de esta clase esperamos mostrar que una controversia que comienza y se manifiesta primordialmente, y como ya adelantáramos, en un lenguaje acerca de oportunidades económicas, responsabilidades políticas y normativas jurídicas está haciendo referencia, en realidad, a una coyuntura moral, entendiendo por “moral” toda práctica que involucre la referencia a uno o más valores imputables a algún colectivo del que uno o más agentes reclaman adhesión, y que configuran grados de obligación y deseabilidad relativa de uno o más cursos de acción comparado con otros posibles (NOEL, 2013b, 2014b; FIRTH, 1964; BALBI, 2008)

Tal como el propio Mauricio sugiere con inusual penetración en las palabras que acabamos de citar, si todos los argumentos jurídicos – en la esfera legal – y procedimentales – en la esfera político-administrativa – terminan zozobrando, es porque acaban por estrellarse contra un insalvable escollo moral: no sólo se trata en el fondo de que el problema sea que el proyecto “Mandalay” se encuentre en infracción por no ajustarse al derecho y a la normativa vigente, o que las autoridades políticas del distrito hayan decidido cerrar los ojos en aras de un beneficio político o económico; se trata – como mostraremos en lo sucesivo – de que a los ojos de sus impugnadores el mismo adolece de un carácter insalvablemente ilegítimo, en tanto representa una impugnación intolerable a un conjunto de compromisos valorativos que sus defensores consideran indeclinables y – por tanto – innegociables, apoyados a su veces en un conjunto de repertorios y recursos que, al momento de la polémica, cuentan con amplia pregnancia entre amplios sectores de la sociedad local.

Los Fundamentos de la Controversia: Mandalay” como Causa y Cruzada Moral

La primera clave de que los activistas enfrentados al proyecto “Mandalay” se movilizaban por algo más que una cuestión meramente política o judicial – aunque, como ya adelantamos, uno y otro registro fueran abundantemente utilizados en el discurso en el que éstos formulaban sus demandas34 – la encontramos en la omnipresencia y aparición recurrente de teorías conspirativas en una búsqueda por dar cuenta de lo que estos actores percibían como una serie de comportamientos y omisiones inexplicables por parte de las autoridades del distrito. En efecto: como hemos mostrado en otras ocasiones (NOEL, 2011a, 2020a) – y no reclamamos por supuesto originalidad alguna a este respecto (BOLTANSKI, 2016) – las teorías conspirativas son habitualmente movilizadas por los geselinos a modo de suplemento para zanjar la brecha de lo que se percibe como una inconsistencia o un enigma inexplicable a partir de las razones y justificaciones explícitamente provistas o públicamente disponibles para dar cuenta de un evento. Puesto de manera ligeramente más sencilla: si la evidencia disponible se muestra insuficiente para volver inteligible una anomalía, es porque deben existir elementos adicionales y ocultos que provean la clave para su comprensión, y que es menester, por consiguiente, develar y exponer. De esta manera, si las autoridades constituidas de las dos principales fuerzas políticas del distrito35 accedieron de manera entusiasta a la concesión de un proyecto como “Mandalay”, tan claramente lesivo a los intereses de la ciudad que gobiernan y que han jurado defender, es porque han de estar impulsados por intereses espurios, ocultos y en el extremo inconfesables.

La avenida más obvia para esta operación de develación se sigue, como puede preverse, del célebre adagio “follow the money”. Así, como hemos mencionado, desde el principio se hicieron presentes alusiones a cohechos, “negociados” e incluso asociaciones ilícitas que, a través de expeditivas y discretas negociaciones “entre gallos y medianoche” justificarían la aparente inacción e indiferencia de las autoridades políticas del distrito ante los reclamos de quienes se movilizaran en contra del proyecto y sus argumentos, percibidos como apodícticos. Así lo anunciaba públicamente una nota de prensa, que incluía afirmaciones de Pablo Domínguez en ese sentido:

Incluso algunos diputados del Frente Para la Victoria (el mismo partido que gobierna en Villa Gesell) nos dijeron que este negocio era lavado de dinero (…) Los concejales que votaron a favor de este proyecto lo hicieron sin consulta previa con nadie y en 48 horas cerraron el negociado36.

Los propios desarrolladores agregan a estas imputaciones iniciales la mención de una serie de acusaciones adicionales a las que debieron enfrentarse a lo largo del conflicto y que tienen que ver ya no sólo con la ilegitimidad de las putativas motivaciones económicas y egoístas de “los políticos” a la hora de avalar y aprobar el proyecto – y sobre las que volveremos en breve – sino con la propia naturaleza de los agentes responsables por la inversión y la iniciativa:

¡Qué no dijeron! … que el grupo era un grupo extranjero [que venía a quedarse con los médanos]37…. [de] todo, [de] todo.. (…) cuando compramos esa estructura este… también se empezó a decir que era – me acuerdo en ese momento decía, ¡mirá qué ridículo, eh!… un consorcio de comisarios y policías de la Provincia de Buenos Aires… ese era el argumento en ese momento, de comisarios de Buenos Aires38 (Mauricio, 59 años, inversionista del Proyecto “Mandalay”).

Más allá de estas impugnaciones generalizadas basadas en la naturaleza sospechosa, encubierta y moralmente reprobable de los presuntos involucrados en el proyecto, queda claro tanto de las notas de prensa como de las afirmaciones de nuestros propios interlocutores ya presentadas que la cuestión del lucro constituía uno de los puntos principales de contención en el conflicto.

Como hemos ya señalado en otras ocasiones, esta preocupación cobra sentido en el marco de la articulación y despliegue de un repertorio que de la mano de una serie de inflexiones políticas y morales surgidas al calor y a la sombra de la ya mencionada “crisis del 2001” y de las correlativas críticas al neoliberalismo que la había engendrado, busca por primera vez poner de relieve y en cuestión el lugar y los efectos – deletéreos, se entiende – del “desarrollo”, el “crecimiento”, la “prosperidad” y el lucro como motores y clave de interpretación de la historia de la ciudad (NOEL, 2016, 2020a). Así, para el momento en que el conflicto en torno de “Mandalay” entra en su fase más activa, masiva y visible, este repertorio de impugnación – que oportunamente denomináramos “de los fenicios” – y que denuncia como principal producto de la ética y la épica fundacionales el advenimiento de una ciudad mezquina, fragmentada, desigual y excluyente – muchas veces en un registro abiertamente confrontativo, polémico y plebeyo (NOEL, 2014a) – se encuentra en plena vigencia entre los sectores autoidentificados como “progresistas” de la ciudad y, a fortiori, entre gran parte de una ciudadanía que apenas puede sustraerse al clima retórico engendrado por una crisis de alcance y repercusión nacional que aparece aún como demasiado reciente. La siguiente declaración periodística de Pablo Domínguez recapitula perfectamente la vigencia de estos recursos:

Los funcionarios en Villa Gesell se transformaron en vendedores inmobiliarios. Llegó una cultura de countries. Ciudades de cartones que les subsidiamos nosotros, los vecinos. Es una clara política neoliberal de avance de los espacios públicos, privatización, exclusión, empresas de afuera, precarización del trabajo39.

Como nos lo señalara el propio Mauricio, los argumentos de esta naturaleza ocuparon un lugar de nota más de una vez en las impugnaciones sufridas por el proyecto:

… es como que para… para una parte de la sociedad local está mal que vos vayas a hacer negocio, eso me había olvidado de decírtelo y era un… algo que sí, nos plantearon muchas veces. Y vos decís, ¿está mal que quiera hacer negocios? ¿Está mal…? (Mauricio, 59 años, inversionista del Proyecto “Mandalay”).

Al mismo tiempo, aparece explícitamente movilizada en el marco de este repertorio una distinción moralmente cargada entre “lo privado” – entendido como síntoma y sinónimo de un horizonte neoliberal objeto de crítica por parte de los activistas – y “lo público” – como parte de una serie de bienes colectivos que es necesario defender y proteger de la voracidad egoísta de quienes quisieran reducirlos a un mero “negocio”. Como nos lo indicó Maricel, una joven geselina comprometida con esta causa:

“¿Quiénes eran los que venían a hacer estos negocios? Esa era la pregunta. No eran geselinos, eran capitales extranjeros y a ellos no les importaba este lugar, ni los recursos, ni nada (…) era venir y montar el negocio” (Maricel, 26 años, militante y activista).

Apenas hace falta señalar que el “ambiente” o el “medioambiente” – así como todos los cognados específicos que lo especifican o funcionan como su sinécdoque – “el médano”, “la playa” – constituye el más importante de estos activos objeto de protección y custodia (NOEL, 2011b). En efecto: en un contexto en que la epopeya de la lucha fáustica contra la naturaleza a partir de la cual se han construido las principales narrativas fundacionales de la ciudad y sus héroes (NOEL, 2012; DE ABRANTES, 2021) ha sido reemplazada, a través de sucesivas inflexiones, por un conservacionismo generalizado (HERNÁNDEZ, 2019) que la (re)sacraliza y que supedita a su protección la evaluación moral de cualquier propuesta argumentada en términos de “progreso”40, las “oportunidades” y “promesas” esgrimidas por los responsables del proyecto y sus aliados en las gestiones municipales locales (y de los que nos ocupáramos en la sección introductoria del presente texto) estaban condenados a ser relativizados, ridiculizados y en último término impugnados en términos de una crítica a la “ambición” y los intereses especulativos de los representantes de un sector privado indiferente a los efectos deletéreos de sus intervenciones sobre los bienes colectivos.

No somos locos que no queremos progreso, defendemos nuestros recursos naturales. No vamos a permitir que la ambición de los que construyen nos arruine la playa 41.

Así es también que los voceros de la Asamblea podían estigmatizar los argumentos de las autoridades políticas en favor del proyecto acusándolos de estar basados en “la lógica de inversión típica de los ’90” o celebrar el fallo judicial, que destacaba entre sus considerandos “el derecho de las generaciones futuras a gozar de un medio ambiente sano por sobre el interés inmediato de explotar empresarialmente los recursos naturales sin controles adecuados por parte de los distintos funcionarios públicos responsables” por su posición “a favor de la defensa del espacio público y el medio ambiente”42.

Al mismo tiempo, los asambleístas parecían convencidos de que el predio sobre el que estaba previsto desarrollar el complejo era de propiedad privada y no pública:

…la gente pensaba que era un terreno municipal y que había sido una negociación con la Municipalidad (…) no podían creer que ese terreno fuera un terreno privado. Era un terreno privado que debe tener de privado, no se, cuarenta años, [que] ha pasado por varios dueños (Mauricio, 59 años, inversionista del Proyecto “Mandalay”).

Pero en cualquier caso las protestas de los desarrolladores en este sentido constituían a sus ojos poco más que un irrelevante non sequitur o, en todo caso, una irritante provocación adicional que pedía a gritos una intervención estatal que defendiera los intereses y los bienes públicos y colectivos, bajo la premisa fundamental de que el medio ambiente y su protección constituyen valores absolutos a los que deben subordinarse todos los derechos adquiridos – en especial cuando se trata de derechos de actores privados que actúan sobre la base de su propio beneficio:

Queremos que se respete la altimetría natural del relieve de la playa y si para eso hay que expropiar este lugar, que se expropie43.

No nos importaba quién tenía la propiedad o el dominio del predio, nos importaba la ciudad en la que vivimos, nuestros recursos, nuestro provenir y nuestro futuro (…) eso es nuestro y de nadie más ¿íbamos a dejar eso en manos de un conjunto de negociantes que lo único que quieren es hacer plata con nuestra tierra? Claramente no (Rosario, 65 años, militante y activista).

Más allá del modo en que los activistas movilizados contra el proyecto “Mandalay” construyen su lugar de enunciación, no quisiéramos dejar de señalar aquí la importancia de reconocer que no tiene mayor sentido reservarles la exclusividad de una putativa “sensibilidad ecológica” o “ambiental” (HERNÁNDEZ, 2019) de la que se seguirían automáticamente tomas de posiciones virtuosas que los opondrían a los inescrupulosos agresores del ambiente. Tal posición implicaría el error (etnográficamente inexcusable) de tomar literalmente y al pie de la letra las justificaciones nativas de los propios actores, así como el intelectualismo ético que constituye su fundamento. Lo que hay en juego, por el contrario, es una serie de recursos socialmente disponibles (Noel 2013b) que ambos contendientes movilizan en busca de legitimación, conformando repertorios específicos de acción con desigual eficacia. Así, como hemos ya señalado, el proyecto mismo había movilizado recursos “ecologistas” y “ambientales” – obviamente abiertos a la impugnación como parte de una maniobra de greenwashing por parte de sus opositores – mientras que éstos son acusados de practicas un “fundamentalismo verde” o un hippismo ingenuo, anacrónico o incluso reaccionario por parte de los desarrolladores como Mauricio y sus aliados. Insistimos: no se trata de un movimiento “ecologista” contra “capitalistas voraces” (esta es la posición nativa de los activistas) sino dos formas alternativas de pensar la “ecología”, la relación con el “ambiente” y a fortiori las relaciones entre “desarrollo” y lo “sustentable”, y que comparten recursos retóricos y morales.

A las acusaciones de apropiación indebida y ambición desmedida que se conciben y argumentan como sintomáticas del condenable y condenado mal del “neoliberalismo”, viene a agregarse la ya mencionada acusación de forastería que oyéramos de labios de Maricel. Como hemos mostrado en otras ocasiones (NOEL, 2011a, 2014a, 2020a), en el contexto del advenimiento de Rodríguez Erneta al sillón municipal, la cuestión de la autoctonía (RETIÈRE, 2003) como garantía de legitimidad identitaria, integridad moral y autenticidad del compromiso en el marco de una relación sustantiva y genuina con la ciudad y su gestión cobra un relieve tan inusual como fundamental en el paisaje discursivo del distrito. En este sentido, la ubicua acusación de que “Mandalay” es un proyecto que “viene de afuera” – o mejor aún, que es impuesto desde fuera – con la indiferencia, la connivencia, la cooperación o la complicidad de los políticos locales, refuerza con inusual intensidad la vehemencia de las críticas. Como el propio Mauricio nos lo confesara, incluso varios estudios jurídicos y de arquitectura locales, con una actitud elogiosa respecto del proyecto e inicialmente interesados en sumarse, retirarán rápidamente su apoyo, se declararán prescindentes o incluso se sumarán a la ofensiva cuando los activistas comiencen a articular en forma segmentaria su oposición – esto es, en términos de autóctonos versus foráneos – y los actores individuales y colectivos del mundo profesional (arquitectos, desarrolladores y agentes inmobiliarios, constructores, abogados) elijan cada vez más entre paréntesis sus intereses económicos y corporativos en aras de evitar un conflicto abierto con buena parte de sus conciudadanos, vecinos, amigos y clientes sumados a – o en declarada simpatía con – la oposición movilizada contra el proyecto. Según Mauricio, a ellos se les unirán por despecho y a modo de retribución, quienes habían quedado afuera del proyecto o se sintieron postergados por no haber sido convocados a participar:

Lo loco es que al principio todos querían sumarse, porque veníamos de afuera con un proyecto con unos montos que en Gesell no son los que se mueven [habitualmente]… pero en cuanto empezaron las protestas mucha gente, arquitectos… el mismo Colegio [de Arquitectos] y muchos abogados locales que habían quedado afuera se sumaron a la carnicería. Y a lo mejor eso se subestimó y no se manejó bien, no se manejaron los abogados [de allá] que había que manejar de entrada, terminamos con abogados que no tenían que haber hecho entrar, pero viste, después que se jugó el partido [todos somos directores técnicos]… (Mauricio, 59 años, inversionista del Proyecto “Mandalay”).

Los arquitectos locales, por su parte, justifican retrospectivamente su cambio de posición como parte de un aprendizaje y una sensibilización hacia cuestiones ambientales que no habría estado presente en su entusiasmo inicial. Así, Matías, miembro del Colegio señalaba algunos años más tarde:

Acá se tuvo que aprender mucho (…) al principio, te soy sincero, no teníamos mucha conciencia de los impactos que podía generar una construcción desmedida (…) fuimos aprendiendo en el camino, a encontrar el equilibro: construir, pero proteger el lugar en el que vivimos (…) “Mandalay” [e iniciativas similares] nos dejan enseñanzas que no hay que pasar por arriba (Matías, 50 años, miembro del Colegio de Arquitectos).

Como quiera que sea – y como puede verse claramente a partir de las palabras de Mauricio, que incluso en fecha tan temprana como enero de 2012 se refiere a “Mandalay” en pretérito indefinido y asume flemáticamente haber recibido una derrota irreversible – la articulación a partir y a través de la movilización colectiva de todos estos recursos y repertorios – las imputaciones de intereses y alianzas espurias, la impugnación sobre la base del repertorio de los “fenicios” de una putativa filiación neoliberal, los argumentos en torno de la incompatibilidad entre los beneficios privados y los intereses públicos y en particular los relativos a la conservación del ambiente y la operación de deslegitimacion fundada en una forastería que deviene sinónimo de la indiferencia, el desinterés o la falta de compromiso con los genuinos intereses de la ciudad – habría de mostrarse fatal para el proyecto y sus promotores, defensores y aliados locales, cada vez más menguados. Aún cuando el procedimiento en sede judicial se prolongue, de acuerdo con los morosos tiempos acostumbrados del proceso legal, hasta el día de la fecha sin haber alcanzado sentencia definitiva44, queda claro para todos los contendientes en esta disputa quiénes se han hecho con la palma de la victoria y quienes han sufrido por el contrario una derrota estrepitosa. Mientras tanto, en el proceso de la controversia se ha construido y reforzado una manera particular de pensar el “ambiente costero”, sus posibilidades, sus limitaciones y el modo en que configura potenciales iniciativas de “crecimiento y desarrollo”, sobre la base de una serie de recursos y repertorios ampliamente disponibles y con amplia penetración y pregnancia. Los años ulteriores conocerán la estabilización y ascendencia hegemónica de este dispositivo moral que, una vez asentado, habrá de devenir plataforma y recurso para nuevas causas, conflictos y confrontaciones (DE ABRANTES, 2021). En este sentido, “Mandalay” constituye un punto de inflexión en el modo en que muchos de los habitantes de Villa Gesell – y en particular los más identificados con la “causa ambiental” – pensarán en lo sucesivo su relación con el distrito, con su paisaje y con las intervenciones previstas sobre el uno y sobre el otro.

Reflexiones Finales: la Génesis de un Repertorio

Como hemos ya señalado, el presente texto se propuso analizar en clave de caso extendido los principales conflictos y polémicas desplegadas en torno a la construcción del megacomplejo hotelero “Mandalay” para mostrar de qué manera una controversia que en su forma manifiesta se despliega en el marco de una serie de debates políticos y jurídicos encuentra su fundamento último en un terreno moral, que registrará efectos adicionales en un proceso de identificación colectiva que ganará intensidad y urgencia crecientes a medida que la confrontación avance y se radicalice. Asimismo, como hemos procurado mostrar a lo largo de nuestro análisis, los principales emprendedores morales (BECKER, 2009) del affaire “Mandalay” recogen, explicitan y articulan un conjunto de recursos socialmente disponibles que consiguen movilizar exitosamente contra una iniciativa que consideran una agresión contra su ciudad, sus intereses y – a fortiori – su esencia. Como hemos tenido ocasión de ver, muchos de los más prominentes y visibles de entre estos recursos fueron forjados al calor de la “crisis del 2001” y de su correlativa impugnación retrospectiva de la “lógica de los 90’” – entre ellos la censura hacia la búsqueda desmedida del lucro, las críticas hacia la especulación inmobiliaria irrestricta y las denuncias respecto del laissez faire (o incluso la complicidad) gubernamental respecto de los intereses “privados” en detrimento de la protección de los bienes comunes; así como una omnipresente sospecha por default hacia “la política” y “los políticos” heredera de la consigna maximalista del “que se vayan todos”. Otros por su parte – como las acusaciones de forastería y de traición a los intereses de la comunidad o las sensibilidades “verdes” o “ecológicas” – aunque recogidos y movilizados a partir de una disponibilidad suscitada por su presencia relativamente ubicua en diversos escenarios y soportes, encontrarán una modalidad de formulación que los traducirá en un registro explícita y reconociblemente local (NOEL, 2011b; DE ABRANTES, 2021). Como quiera que sea todos ellos terminarán por configurar el repertorio moral e identitario (NOEL, 2013b)45 de cuya génesis ha procurado dar cuenta el presente texto, y que en virtud de una eficacia tanto operativa – en confrontaciones con terceros – como identitaria – en la consolidación de un colectivo de enunciación y predicación colectiva – no sólo habrá de servir de plataforma a toda una serie de iniciativas ulteriores “en defensa del medio ambiente” en el partido de Villa Gesell sino que será incluso proyectado retrospectivamente a iniciativas y conflictos que precedieron cronológicamente a las circunstancias específicas que le dieron origen (DE ABRANTES, 2021).

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Recebido em: 02/08/2021

Aceito em: 26/10/2021


1 Villa Gesell es una localidad de la costa atlántica bonaerense que, para aquel entonces, contaba con más de 25.000 residentes permanentes y constituía el tercer destino turístico (y el segundo balneario) de la Argentina (NOEL, 2020a).

2 El desarrollo de “Mandalay” estaba a cargo de “NB Developer S.A.” y su gerenciamiento de “Estrategias y Desarrollos Inmobiliarios S.A.” (EYDISA). El diseño del proyecto estuvo a cargo del estudio “DDM Diaz Dib Monfort Arquitectos” y su comercialización se repartía entre los operadores inmobiliarios “Covello Propiedades” (en Buenos Aires) y Roberto Gianini (en Villa Gesell).

3 La mayor parte de las citas de la presente sección introductoria hacen referencia a los ya mencionados materiales de difusión generados y puestos en circulación por los propios responsables del proyecto, tanto en forma online como impresa y muchos de los cuales ya no se encuentran disponibles en virtud de las vicisitudes ulteriores que afectaran al mismo (y de las que el presente texto dará cuenta abundante). A fines de no entorpecer en exceso la lectura con una sucesión incontrolada de referencias consignamos aquí algunas de las fuentes aún disponibles al momento de la redacción del presente texto y en las que pueden recogerse la multiplicidad de caracterizaciones oficiales y oficiosas de las que haremos uso a lo largo de toda esta primera sección: https://www.skyscrapercity.com/threads/villa-gesell-mandalay.1092781/; http://revistamym.blogspot.com/2010/06/mandalay-comenzo-la-construccion-del.html https://www.asteriscos.tv/realestate-448.html; https://www.arquimaster.com.ar/especiales/nota_mandalay.htm; https://issuu.com/elcoblog/docs/anuario09; http://www.revistavivienda.com.ar/destacadas/proyecto-residencial-en-villa-gesell (todas ellas tienen como fecha de última consulta el 19 de julio de 2021).

4 La mención de Cariló, un exclusivo balneario de élite situado en el vecino partido de Pinamar, resulta cualquier cosa menos casual en la medida en que éste constituye el ejemplo por antonomasia de esa combinación de privilegio, consumo conspicuo y naturismo new age que el proyecto “Mandalay”, como veremos, intentará promover (NOEL, 2018), y al que se lo intenta en consecuencia asociar por yuxtaposición (omitiendo que el mencionario balneario “lindante” se encuentra a más de 15 km de distancia).

5 La Ley de Convertibilidad, que los argentinos suelen denominar “el 1 a 1” (ROIG, 2016), fue sancionada el 27 de Marzo de 1991, durante el gobierno de Carlos S. Menem, bajo los auspicios del entonces Ministro de Economía, Domingo Cavallo, en un intento de detener un proceso hiperinflacionario desencadenado en 1989. La ley estipulaba una paridad cambiaria fija entre el peso argentino y el dólar estadounidense, para lo cual exigía la existencia de respaldo en reservas para el circulante en pesos. Si bien la convertibilidad consiguió su efecto inmediato y trajo una relativa liquidez a los sectores medios y medio altos, materializada en diversas formas de consumo conspicuo, sus efectos en el mediano y largo plazo fueron ruinosos para la economía argentina, y causa inmediata de la “crisis de 2001” (cf. Nota 6 infra).

6 “La crisis de 2001” o “Diciembre de 2001” hace referencia en Argentina a una serie de eventos que configuraron la mayor crisis institucional, política, social y económica de las últimas décadas, y que representaron la eclosión de las consecuencias acumuladas de una década de políticas neoliberales inspiradas en el denominado “Consenso de Washington” (véase Pereyra, Vommaro y Pérez, 2013).

7 Entre sus antecedentes se contaba la construcción exitosa entre 2001 y 2002 de un Hotel y Spa de alto perfil (Villa Gesell Spa) ubicado sobre la costanera en la zona céntrica, así como otras iniciativas adicionales dirigidas a targets análogos (esto es, de alto poder adquisitivo) en las localidades del sur del partido.

8 La evidencia analizada a lo largo del presente texto fue obtenida en gran medida a partir del trabajo de campo etnográfico de sus autores en la ciudad de Villa Gesell entre 2007 y 2014 (Noel) y 2015 y 2020 (de Abrantes) (a la que se suma un encuentro en Buenos Aires con los responsables del proyecto “Mandalay” en enero de 2012 del primero de los autores). Los datos obtenidos de las etnografías en cuestión surgieron, como principales recursos metodológicos, de la observación, entrevistas en profundidad y el análisis de fuentes documentales, material de archivo y medios de prensa. Salvo cuando se trate de referencias de prensa públicamente disponibles o de declaraciones igualmente públicas, los nombres han sido cambiados u omitidos para proteger la confidencialidad de nuestros interlocutores.

9 A modo de ejemplo, véase https://www.clarin.com/sociedad/Polemica-proyecto-inmobiliario-Villa-Gesell_0_B18mhwlAD7e.html (Fecha de última consulta: 19 de julio de 2021).

10 El movimiento al que Mauricio hace referencia es la “Red Ambiental Querandí” (cf. Nota 12, infra).

11 Las principales iniciativas incluyeron la remoción del asfalto de la antigua Avenida Costanera, el desmantelamiento de los viejos paradores de hormigón para reemplazarlos por nuevas estructuras erigidas sobre pilotes de madera y la realización de tareas de “enquinchado” para la recuperación de la duna costera (cf. https://www.pagina12.com.ar/diario/sociedad/3-92361-2007-10-03.html, fecha de última consulta: 19 de julio de 2021).

12 Acerca de la “Red Ambiental Querandí” y su historia puede consultarse http://redambientalquerandi.blogspot.com/2010/09/los-verdes-y-su-historia-en-villa.html (fecha de última consulta: 19 de julio de 2021). Véase también de Abrantes (2021).

13 Al igual que lo refiriéramos para los materiales de publicidad y difusión del propio proyecto “Mandalay” (cf. Nota 2, supra), muchas de las fuentes pertenecientes a redes sociales, medios electrónicos y prensa acerca del conflicto ya no se encuentran disponibles. Una vez más hemos optado en consecuencia por hacer uso de fuentes accesibles al momento de la escritura del presente texto, aún cuando como es de esperar, su número es exiguo cuando se lo compara con el de las circularan en el momento más álgido del conflicto.

14 “Polémico Proyecto Hotelero en Villa Gesell” por Florencia Yaniello en Tinta Verde, 19 de julio de 2010, disponible en http://tintaverde.com.ar/?p=391 (fecha de última consulta: 19 de julio de 2021).

15 Como veremos en lo sucesivo, la calificación de los participantes en la protesta como “vecinos” resulta omnipresente en todas las declaraciones públicas. Aún cuando no podemos entrar aquí en detalles, nuestras indagaciones etnográficas sobre este nominativo muestran – como suele suceder con los usos habituales de este término en la Argentina contemporánea – que la denominación expresa a la vez un intento por “despolitizar” y “desprofesionalizar” la protesta (“vecino” es sinónimo de “persona común y corriente”, sin marcas partidarias y se opone por tanto a “militante” o “activista”, que expresarían intereses parciales y sesgados) y por otro lado generalizarla a la totalidad de población (puesto que “vecino” constituiría el objeto de una predicación común extensible a todos los residentes de Villa Gesell, o al menos los residentes “de bien”, aquellos que comparten un sentido común moral que los enunciadores consideran a la vez sensato e indiscutible).

16 “Polémico Proyecto Hotelero en Villa Gesell” por Florencia Yaniello en Tinta Verde, 19 de julio de 2010, disponible en http://tintaverde.com.ar/?p=391 (fecha de última consulta: 19 de julio de 2021).

17 “La Defensa de la Tierra también en las Costas” por Maricel Robaldo en RedEco Alternativo, 20 de enero de 2011, disponible en http://www.redeco.com.ar/nacional/ambiente/4855-la-defensa-de-la-tierra-tambin-en-las-costas (fecha de última consulta: 19 de julio de 2021).

18 Según nuestros interlocutores el discurso ambientalista habría comenzado a hacer pie en la ciudad de Villa Gesell hacia finales de los años setenta, cuando los principales recursos paisajísticos que posicionaban esta ciudad en el mercado turístico nacional empezaron a degradarse, corroerse o agotarse, y su deterioro impulsó el desarrollo de un conjunto de asociaciones civiles locales con esta impronta. Según Sandro – uno de los pioneros de este movimiento a nivel local – estas asociaciones habrían empezado a intervenir en un repertorio de problemáticas emergentes: limpieza de las playas, rescate de animales, cuidado de la flora autóctona y concientización sobre las características, debilidades y potencialidades del entorno, entre otras. Sin embargo, el foco que terminaría por concentrar los distintos esfuerzos de los espacios y articularlos en movimientos más organizados giró en torno del “proceso de urbanización, la especulación inmobiliaria y los efectos producidos por la carga del turismo masivo” (Sandro, 68 años, militante y activista).

19 “Polémico Proyecto Hotelero en Villa Gesell” por Florencia Yaniello en Tinta Verde, 19 de julio de 2010, disponible en http://tintaverde.com.ar/?p=391 (fecha de última consulta: 19 de julio de 2021).

20 Los Ford Falcon color verde oliva fueron el vehículo de preferencia de los Grupos de Tareas militares y policiales responsables por los secuestros y desapariciones en el marco del terrorismo de estado en la última dictadura argentina (1976-1983).

21 “La Defensa de la Tierra también en las Costas” por Maricel Robaldo en RedEco Alternativo, 20 de enero de 2011, disponible en http://www.redeco.com.ar/nacional/ambiente/4855-la-defensa-de-la-tierra-tambin-en-las-costas (fecha de última consulta: 19 de julio de 2021).

22 http://www.sigesell.com.ar/noti.php?ok=2202 (fecha de última consulta: 19 de julio de 2021).

23 “Polémico Proyecto Hotelero en Villa Gesell” por Florencia Yaniello en Tinta Verde, 19 de julio de 2010, disponible en http://tintaverde.com.ar/?p=391 (fecha de última consulta: 19 de julio de 2021).

24 Los testimonios corresponden, respectivamente, a Martha (docente terciaria, 50 años), Maricel (militante y funcionaria, 26 años), Guillermo (periodista, 61 años) y Juan José (abogado, 32 años).

25 “Polémico Proyecto Hotelero en Villa Gesell” por Florencia Yaniello en Tinta Verde, 19 de julio de 2010, disponible en http://tintaverde.com.ar/?p=391 (fecha de última consulta: 19 de julio de 2021).

26 También a “Altamar Ciudad Natural”, un emprendimiento contemporáneo de escala aún mayor (esto es una urbanización de pleno derecho) al norte del distrito, cerca del límite con el vecino partido de Pinamar. A estos efectos véanse Hernández (2020) y https://www.sectorinformativo.com/noticias/3787-el-concejo-deliberante-aprobo-la-nueva-ciudad----altamar--, fecha de última consulta: 19 de julio de 2021).

27 “La Justicia ordenó frenar construcciones en Gesell” en El Día, disponible en https://www.eldia.com/nota/2012-4-7-la-justicia-ordeno-frenar-construcciones-en-gesell (fecha de última consulta: 19 de julio de 2021). Uno de los problemas adicionales del proyecto, sobre el que en principio no nos extenderemos aquí, tiene que ver con que el Municipio había asumido como de su exclusiva competencia la facultad de intervenir sobre una jurisdicción cuya fiscalización le pertenece de hecho a organismos provinciales (en especial a la Autoridad del Agua de la provincia de Buenos Aires, señalada por los desarrolladores como su principal antagonista a nivel gubernamental).

28 “Qué dice el fallo que frenó el negocio en Villa Gesell”, disponible en https://www.latecla.info/41092-que-dice-el-fallo-que-freno-el-negocio-en-villa-gesell (fecha de última consulta, 19 de julio de 2021). Interesantemente, el único comentario que recibiera la nota publicada online – a cargo de Marcelo Tedescor, internauta geselino cuyos posteos en redes solían mostrar afinidad con el espacio político y la gestión del intendente Rodríguez Erneta – vuelve sobre los argumentos iniciales de apoyo al proyecto, y lamenta las oportunidades perdidas por su interrupción: “Empezando por lo ultimo: difundir el cronograma de alguien que festeja una accion judicail en contra de una inversion de U$S 20 millones no es periodismo, pero aun así, me quedo con el programa del asado, hay que ser ridiculo para hacer un asado festejando que [sic]. No saben que el Sr. Cobos vive de juntar juicios para abogados geselinos que tranzan [sic] en Dolores. Para explicarlo mejor hoy a un abogado con más plata y un juez que por lo menos le hace el caldo gordo. Mientras el pueblo mira cosas mas reales como su trabajo, la educacion de sus hijos. Que pena que se traguen operaciones judiciales y le publique el cronograma”.

29 Como argumentara el propio Mauricio, existen muchos otros proyectos en el distrito, tanto propios como ajenos, a los que podrían habérsele interpuesto idénticas objeciones que a Mandalay (y en algunos casos con mayor fundamento) y que sin embargo no suscitaron reacción o resistencia:

Aparte vos ves lo injusto de “Mandalay” es que…¿cómo no puedo yo hacer un [proyecto como] “Mandalay” si como te digo se está haciendo todo esto que se está haciendo [en otros lugares del partido, y con un impacto mucho mayor sobre la línea de playa?… “Monterrey”, “Dunas de las Pampas”… ¡No tiene sentido, esto es mucho menos dañino! Si lo otro fuera [más amigable, pero no, es al revés]… esto no tiene ni punto de comparación, pero bueno… realmente… era… es… era o es… er…una obra superadora para lo que se hace en Gesell (…) Si en lugar de Barrio Norte donde estaba el “Mandalay” [que es zona que está ya edificada] hubiera estado donde yo estoy haciendo el proyecto este “Dunas de las Pampas” [que es playa virgen]… ¡eso si que es meter… eso si que es algo [como si] te metieras dentro del mar, la construcción… (Mauricio, 59 años, inversionista del Proyecto “Mandalay”).

Como puede verse, Mauricio otorga un lugar central en la explicación de la visibilización del proyecto su localización geográfica: el “barrio norte”, el área fundacional de la ciudad y una de las más emblemáticas de la misma (NOEL; DE ABRANTES, 2014).

30 Interrogado respecto de su acceso a los medios locales, Mauricio nos relató el caso de un columnista y periodista local que le habría solicitado una suma de dinero a cambio de “hablar a favor de Mandalay… y como obviamente le dijimos que no, el tipo se transformó como en el campeón de los anti-Mandalay, al punto que se lo terminó comiendo el personaje”.

31 Al momento de la escritura del presente texto, las últimas noticias publicadas sobre el affaire “Mandalay” datan de agosto de 2020 y hacen referencia al cierre de la etapa de presentación de pruebas de la causa judicial. A estos efectos véase: https://elfundadoronline.com/nota/55863-tras-diez-anos-se-acerca-el-final-de-la-causa-que-paralizo-el-emprendimiento-mandalay y https://www.minutog.com/5-medio-ambiente/18547-concluyo-la-etapa-de-pruebas-en-la-causa-mandalay/?pagina=3 (fecha de última consulta: 19 de julio de 2019).

32 cf. Nota 8, supra.

33 Un análisis reciente cuya inspiración resulta en muchos sentido análoga a la que aquí se despliega puede encontrarse en Koberwein (2020). Asimismo, para el caso brasileño, puede consultarse Dantas (2016), Queiroz Pereira (2020) y especialmente la etnografía de Mello y Vogel (2004) que presenta numerosas analogías con el caso analizado en el presente texto.

34 La respuesta a la cuestión de qué dimensión se utiliza como lenguaje para dar cuenta de cuál (o cuáles) otras no es, por supuesto, algo que pueda establecerse con prescindencia de la indagación etnográfica, como lo ha mostrado entre otros Edmund Leach (1961). Nuestra afirmación no debe por tanto entenderse como queriendo argumentar que lo político y lo jurídico serían epifenómenos debajo de los cuales estarían, siempre y en toda cuestión, la moral o lo moral sino entenderse como afirmando que en el caso particular del conflicto que el presente texto reseña, uno y el otro funcionan como lenguajes para dar cuenta de un conflicto respecto del cual sus actores intervienen en una esfera fundamentalmente moral (y en el extremo identitaria, en la medida en que de los compromisos morales en juego refieren con frecuencia a una afirmación explícita de la “auténtica identidad” o “esencia” geselina). Acerca de la “autonomía” de la esfera moral y de la necesidad de considerarla más que un mero epifenómeno de dimensiones putativamente más sustantivas, véase Balbi (2008, p. 61-86).

35 No debemos olvidar que los dos intendentes sucesivos comprometidos activamente con el proyecto, Luis Baldo y Jorge Rodríguez Erneta pertenecen a fuerzas políticas enfrentadas y que a su vez encarnan las dos corrientes mayoritarias de la Argentina en la segunda mitad del siglo XX (Unión Cívica Radical y Partido Justicialista, respectivamente). Asimismo en la impugnación conjunta y solidaria de ambos funcionarios y de sus partidos por parte de algunos de los activistas más movilizados resuenan los ecos de la consigna “Que se vayan todos”, uno de los lemas centrales de las protestas surgidas al calor de la crisis de 2001.

36 “La Defensa de la Tierra también en las Costas” por Maricel Robaldo en RedEco Alternativo, 20 de enero de 2011, disponible en http://www.redeco.com.ar/nacional/ambiente/4855-la-defensa-de-la-tierra-tambin-en-las-costas (fecha de última consulta: 19 de julio de 2021).

37 La cuestión de la extranjería – sobre la que volveremos en breve – cobra sentido a partir de su resonancia con las preocupaciones, recurrentes en la prensa progresista en general y ambientalista en particular, acerca de la compra masiva de tierras y la ulterior privatización en zonas ambientalmente protegidas y paisajísticamente privilegiadas (en particular la Patagonia andina) en manos de magnates extranjeros – de los cuales los casos paradigmáticos son Luciano Bennetton y Joe Lewis. La imputación, por tanto, busca poner en serie estos hechos públicamente conocidos y reprobados con la putativa apropiación del médano costero, la playa y la costa a mano de “capitales foráneos”. Resulta sugestivo, en este sentido, que mientras que los desarrolladores del proyecto y las autoridades locales invariablemente refieren los montos de las inversiones ligadas al proyecto “Mandalay” en dólares estadounidenses – moneda corriente de todas las operaciones inmobiliarias y el mercado de bienes raíces en la Argentina – sus impugnadores las traducen y presentan en varias ocasiones en euros, como suerte de elíptica implicatura de la participación de capital europeo.

38 La Policía de la Provincia de Buenos Aires o “la Bonarense” comenzó a ser conocida como “la maldita policía”, a partir de su participación en el secuestro y posterior asesinato del reportero gráfico José Luis Cabezas en 1997 en el partido de Pinamar. La implicación de la fuerza en el homicidio y el consecuente escándalo y exposición pública de la misma, rompe con una serie de pactos de convivencia entre el poder policial y el político en la provincia y a partir del cual comienza a tomar estado público la participación pública y notoria de varias de sus autoridades y efectivos en hechos delictivos (muchos de ellos violentos) de amplia resonancia, incluyendo tráfico de personas, homicidios y femicidios, secuestros extorsivos y piratería del asfalto (ISLA; MÍGUEZ, 2003). Así, la mención de un “consorcio de comisarios” busca como objetivo suscitar un escándalo moral superlativo ligado al carácter insalvablemente oprobioso de sus agentes y principales beneficiarios.

39 “La Defensa de la Tierra también en las Costas” por Maricel Robaldo en RedEco Alternativo, 20 de enero de 2011, disponible en http://www.redeco.com.ar/nacional/ambiente/4855-la-defensa-de-la-tierra-tambin-en-las-costas (fecha de última consulta: 19 de julio de 2021).

40 Como hemos visto (cf. Nota 11, supra) el propio Baldo en el último tramo de su mandato había tomado y avalado una serie de iniciativas, ampliamente elogiadas (y por tanto legitimadas) sobre la base de su acuerdo con este credo conservacionista y con las críticas implícitas al “desarrollo salvaje” de las décadas precedentes.

41 “La Defensa de la Tierra también en las Costas” por Maricel Robaldo en RedEco Alternativo, 20 de enero de 2011, disponible en http://www.redeco.com.ar/nacional/ambiente/4855-la-defensa-de-la-tierra-tambin-en-las-costas (fecha de última consulta: 19 de julio de 2021).

42 “La Defensa de la Tierra también en las Costas” por Maricel Robaldo en RedEco Alternativo, 20 de enero de 2011, disponible en http://www.redeco.com.ar/nacional/ambiente/4855-la-defensa-de-la-tierra-tambin-en-las-costas (fecha de última consulta: 19 de julio de 2021).

43 “Polémico Proyecto Hotelero en Villa Gesell” por Florencia Yaniello en Tinta Verde, 19 de julio de 2010, disponible en http://tintaverde.com.ar/?p=391 (fecha de última consulta: 19 de julio de 2021).

44 cf. Nota 31, supra.

45 Aunque por razones de extensión no hayamos podido ocuparnos aquí de la cuestión, cabe señalar que la controversia “Mandalay” también tiene como resultado la consolidación de un repertorio de acción colectiva (MERKLEN, 2005).

POPULAÇÃO DE RUA, A PANDEMIA DA COVID-19

E AS POLÍTICAS DA VIDA E DA MORTE


HOMELESS POPULATION, THE COVID-19 PANDEMIC

AND THE POLITICS OF LIFE AND DEATH

____________________________________

Patrice Schuch*1

Calvin da Cas Furtado**

Daniela Bianchi***

Caroline Silveira Sarmento****

Resumo

Este artigo tem por objetivo refletir sobre a pandemia da covid-19 e as políticas de vida e morte, tentando evidenciar o caráter produtivo da moral na constituição de novos cenários e questões para o nosso mundo. Realizaremos tais reflexões a partir de um engajamento etnográfico das formas de mobilização em torno da proteção da população de rua no cenário da pandemia da covid-19. Mostramos como a pandemia da covid-19 pode ser entendida simultaneamente como uma espécie de “evento crônico agudizado” que coloca em cena formas de governo necropolíticas, implicando definições sobre o valor e o sentido da vida e da morte de determinadas populações na gestão da pandemia. Ressaltamos também as formas de mobilização do ativismo político da área que, desde a década de 2000, se caracteriza pelo crescente uso da linguagem dos direitos e da denúncia das desigualdades, chamando atenção para o fato de que a pandemia pode estar (re)introduzindo gramáticas morais associadas à vivência de rua que trabalham a partir da sua associação com o sofrimento individualizado. Essas dimensões recolocam certa tensão moral estruturante desse campo de intervenção social, entre o sofrimento individual e as desigualdades das infraestruturas de vida das pessoas.

Palabras Clave: População de rua. Moral. Pandemia da Covid-19. Necropolítica.

Abstract

This article aims to reflect on the Covid-19 pandemic and the politics of life and death, trying to highlight the productive character of the moral in the constitution of new scenarios and questions for our world. We will carry out such reflections from an ethnographic engagement with the forms of mobilization around the protection of the homeless population in the Covid-19 pandemic scenario. We will show how the Covid-19 pandemic´s can be understood simultaneously as a kind of “chronic acute event” that brings into scene necropolitical forms of government, implying in the management of the pandemic definitions about the value and meaning of life and death of certaine population. We will also emphasize the forms of mobilization of political activism in the area, which, since the 2000s, has been characterized by the growing use of the language of rights and the denunciation of inequalities, drawing attention to the fact that the pandemic may be (re)introducing moral grammars associated with living on the streets that work from their association with individualized suffering. These dimensions restore a certain structural moral tension in this field of social intervention, between individual suffering and the inequalities of people’s life infrastructure.

Keywords: Homeless population. Moral. Covid-19 pandemic. Necropolitics.


1* Professora do Departamento e do Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). E-mail: patrice.schuch@gmail.com

** Doutorando em Antropologia Social pela UFRGS. E-mail: calvinfurtado@gmail.com

*** Mestranda em Antropologia Social pela UFRGS. E-mail: danielabianchi_@hotmail.com

**** Doutoranda em Antropologia Social pela UFRGS. E-mail: caroline.sarmento@gmail.com

ISSN 1517-5901 (online)

POLÍTICA & TRABALHO

Revista de Ciências Sociais, nº 55, Junho/Dezembro de 2021, p. 63-76

Paisagens

https://www.fmirobcn.org/media/upload/cache/fjm04718cd00000p000_1000.jpg

Joan Miró, Paisatge, 1968 – Fundació Joan Miró, Barcelona1

Passando pelas ruas silenciosas da cidade em que residimos, Porto Alegre, nos meses iniciais da pandemia da covid-19, uma tela de Miró teimosamente fazia-se lembrar para uma de nós, a pesquisadora Patrice Schuch. A pintura intitulava-se “Paisagem”, foi produzida em 1968 e é composta por um único ponto azul sobre a tela branca. Patrice conheceu a obra quando visitou a Fundação Joan Miró, em Barcelona, no fim de 2018, e foi lá que percebeu que, ao lado da obra, estava escrito:

“‘O silêncio é uma negação do ruído, mas acontece que o menor ruído no silêncio se faz enorme!”, comenta Miró. Um ponto difuso como único elemento referencial adquire uma grande relevância, mas também faz ressoar o espaço. Este ponto, então, torna o espaço presente ao tempo em que enfatiza a trama, a materialidade da superfície” (Fundação Joan Miró).

Por que pensar nessa “Paisagem”? Talvez porque, tal como na tela, em que um ponto difuso como único elemento referencial adquiria grande importância, a presença solitária da população em situação de rua, durante os meses iniciais da pandemia, fazia-se notar, na cidade silenciosa. Assim como na obra de Miró, em que o ponto como único referencial também fazia ressoar o espaço, a presença solitária daquelas pessoas repercutia o espaço vazio, numa dinâmica em que as presenças e ausências interrogavam sobre a relação entre o ordinário e o extraordinário no contexto da pandemia da covid-19, sobre urgências e permanências, sobre a materialidade das tramas, nos termos de Miró. Interroguemo-nos sobre isso.

Interrogações

Este artigo tem por objetivo refletir sobre a pandemia da covid-19 e as políticas de vida e morte, tentando evidenciar o caráter produtivo da moral na constituição de novos cenários e questões para o nosso mundo, especialmente relacionadas, em nossas pesquisas, com a configuração de figuras de pensamento e de ação associadas às pessoas em situação de rua. Realizaremos tais reflexões a partir de um engajamento etnográfico das formas de mobilização em torno da proteção da população em situação de rua no cenário da pandemia da covid-19 feito por ativistas e profissionais da área, via rede de WhatsApp, que Patrice Schuch, Calvin Furtado e Caroline Sarmento participaram ao longo de 2020 e de 2021, bem como através da experiência prática e reflexiva de Daniela Bianchi, como trabalhadora e pesquisadora do Serviço de Abordagem Social de Rua na cidade de Porto Alegre, no sul do Brasil.

Nesse coletivo de WhatsApp, realizamos o que Leitão e Gomes (2017) descreveram como um “acompanhamento” produzido no meio digital, ele próprio possibilitado pelos contatos offline anteriormente realizados na área do ativismo e no estudo das políticas para população em situação de rua. O grupo de WhatsApp recebia em média dez postagens ao dia e estava formado por cerca de quarenta participantes, de diversos posicionamentos no campo de atenção à população em situação de rua em Porto Alegre. Para fins deste artigo, não nos deteremos na especificação de cada sujeito ou associação que compõe o grupo, bastante diverso. Mas podemos dizer que no grupo realizamos participações variadas, desde a inserção em redes de ajuda no recolhimento e entrega de bens e materiais de proteção, passando pela participação em pronunciamentos públicos para sugestão de políticas de atendimento, até a divulgação de textos, podcasts e seminários em que participamos como comunicadores sobre o tema. Todas essas ações foram realizadas em sintonia com a ideia de criação do coletivo, de apoiar, dar visibilidade e ampliar as preocupações sociais e políticas sobre a situação de rua no contexto da pandemia da covid-19.

Nossa participação foi possibilitada pela inserção de pesquisa que temos já há dez anos sobre o tema. Tais estudos abrangeram a temática das práticas de governo direcionadas à população em situação de rua no Brasil, através de pesquisas quali-quantitativas sobre a rede de serviços à população em situação de rua em Porto Alegre2. Adiciona-se ao grupo de WhatsApp, as pesquisas na área e a perspectiva vivencial da trabalhadora social e pesquisadora Daniela Bianchi, que efetuou suas atividades como trabalhadora do serviço de abordagem às pessoas em situação de rua durante a pandemia, possibilitando acompanhar situações importantes do desenrolar das maneiras de governar esse público durante o período de exceção sanitária.

A partir dessa associação entre metodologia de trabalho em redes de WhatsApp e formas de inserção profissional e de pesquisa no campo de estudo que são de mais longo prazo, nosso interesse é compreender as tecnologias de governo empregadas durante a pandemia da covid-19 como práticas burocráticas em que programas e projetos de atendimento à população em situação de rua ganham corpo. Tomamos tais elementos não apenas como técnicas e procedimentos neutros de ação, mas como materialidades de operações morais onipresentes, mas por vezes invisíveis, em que o valor e a legitimidade das vidas e das mortes se encontram evidenciadas. Seguindo tal proposta, a moral torna-se um elemento fundamental de produção de distinções, especificações e modos de desigualar coisas, princípios e pessoas, sendo as tecnologias e as infraestruturas de governo instrumentos de diferenciação de populações. Há, portanto, uma relação importante entre moral, tecnologias de governo e infraestruturas de vida e morte.

Em nossa perspectiva, valores morais não podem ser entendidos exclusivamente como guias de comportamento e/ou princípios abstratos normativos do “deve ser” e tampouco possuem o valor simplesmente integrativo (BAUMARD; SPERBER, 2007). A partir de um entendimento contrastivo e diferenciador em relação a perspectivas normativas sobre o assunto, temos trabalhado na esteira das análises de Didier Fassin (2009, 2010a, 2010b, 2012) sobre o tema – as quais ele mesmo refere que não têm a ver nem com o descritivo (costumes e hábitos de um grupo social), nem com o prescritivo (conformidade a normas superiores), mas é uma perspectiva na qual a moral ganha uma compreensão eminentemente produtiva. Isto é, a moral trabalha para diferenciar, avaliar, especificar e desigualar princípios, coisas e pessoas, no imbricamento das esferas da vida (FASSIN, 2009, 2010a, 2010b, 2012). É nessa direção que argumentamos que estudar tecnologias de governo não é compreender apenas o funcionamento de técnicas e procedimentos, mas também envolve a problematização dos valores e dos sentidos associados às vidas e às mortes humanas.

A partir desse ponto de vista, recuperamos inicialmente uma pesquisa sobre os modos de funcionamento dos abrigos e albergues na cidade de Porto Alegre, para mostrar como seu cotidiano se realiza a partir de uma hierarquia de causas e modos de estar na rua que operava cotidianamente, nas burocracias dos serviços, para conformar o atendimento a esse público, contrastando com as narrativas soberanas de aquisição de direitos. Na sequência, mostramos como a pandemia da covid-19 pode ser entendida simultaneamente como uma espécie de “evento crônico agudizado” que coloca em cena formas de governo necropolíticas, implicando, na gestão da pandemia, definições sobre o valor e o sentido da vida e da morte de determinadas populações, como a população em situação de rua. Por fim, atentamos para as mobilizações e solicitações de proteção à população em situação de rua no período da pandemia para mostrar que a pandemia parece provocar a (re)introdução de gramáticas morais associadas ao sofrimento individualizado para compor à vivência de rua, contrastando com o ativismo da área que, nos últimos anos, baseou-se na linguagem dos direitos e na denúncia das desigualdades sociais como forma de luta política e construção da legitimidade moral das pessoas em situação de rua.

Hierarquias

“O pessoal compara muito morador de rua com pombos. Como eles querem se livrar dos pombos, eles querem se livrar do morador de rua da mesma forma. Tem muito pretexto para acabar com a vida do pombo. ‘Olha, as fezes do pombo trazem doenças que estão matando’. ‘Olha, por onde os pombos passam eles trazem praga, podem matar você, a sua família, você vai morrer por isso’. O pessoal na rua, tá sem banheiro, faz coco aqui, urina ali, a cidade querendo ou não fica com um cheiro forte de urina, especialmente nos centros, então isso para eles, são pombos mesmo, tanto que tem gente que distribui comida envenenada. O Estado tem essa ideia”. (Sebastião, ativista dos direitos das pessoas em situação de rua, em entrevista realizada por Calvin Furtado).

Esse é o depoimento de Sebastião, ativista dos direitos das pessoas em situação de rua. A sua fala foi recolhida por um de nós, o pesquisador Calvin Furtado, durante o acompanhamento da “Marcha da População de Rua” e “Ato público na Esplanada dos Ministérios”, realizados em agosto de 2019, em Brasília. Assim como Sebastião – que expõe com ênfase o processo de desumanização sofrido pela população em situação de rua – a denúncia da violência sofrida e motivada pela simples possibilidade de existir tem sido constantemente efetivada por movimentos sociais e lideranças políticas da área no Brasil (ver, entre outros: Fernandes e Schuch, 2015; Furtado, 2017 e 2018; Jaenisch, 2007; Melo, 2013, Sarmento, 2020; Schuch, 2015; Silva, 2014 e 2017).

Recusando perspectivas assistencialistas e caritativas que são históricas nessa área de intervenção, desde a sua criação, em 2004, o Movimento Nacional da População de Rua (MNPR) tem denunciado com veemência frequentes ações de extermínio frente à população em situação de rua e a negligência estatal na prevenção e apuração de crimes realizados contra pessoas em situação de rua. Essa população, no Brasil, em sua maioria, é composta por homens, negros, extremamente vulnerabilizados socialmente em termos de acesso ao trabalho, vínculos relacionais e também em relação às políticas de saúde (SCHUCH; FURTADO; SARMENTO, 2021). Segundo o Cadastro Único para Programas Sociais do Governo Federal (Cadastro Único) havia, em fevereiro de 2020, em torno de 146.802 pessoas que indicaram se encontrar em situação de rua no Brasil (BRASIL, 2020). Manifestações coletivas como marchas, audiências públicas e vigílias em relação aos mortos têm reivindicado a inscrição política das violências sofridas a partir da vida nas ruas. Tais eventos reforçam a noção de que mesmo abarcando um número crescente de pessoas e sendo alvo de programas e políticas para sua atenção, como a Política Nacional da População em Situação de Rua (2009), as percepções sobre as suas formas de vida estão longe de afirmarem a sua legitimidade social e política.

Isso evidencia-se também nas formas de organização burocrática do atendimento em abrigos e albergues para essa população que, em Porto Alegre, seguiam um plano sugestivamente intitulado de “Plano de Enfrentamento à Situação de Rua”, o qual ordinariamente operava para filtrar e diferenciar os sujeitos das políticas. Em pesquisa sobre o tema junto à rede de serviços como abrigos, albergues e casas de convivência de Porto Alegre, Schuch et al. (2017) perceberam uma terceirização progressiva dos serviços que diminuía a responsabilização estatal sobre a questão, bem como uma limitação das possibilidades de acesso não mediado aos espaços e um número de vagas manifestadamente menor em relação ao número de pessoas em situação de rua, o que acabava produzindo variados processos de rotatividade entre usuários, baseados numa acentuada seletividade na recepção e permanência de pessoas usuárias. Tais critérios de diferenciação acionavam dimensões morais associadas ao trabalho, bem como às justificativas relacionadas ao estar em situação de rua – se por uma questão de doença, imigração, ou falta de vínculos sociais.

Assim, a pesquisa apontou que pessoas que estavam trabalhando poderiam não apenas ter prioridade na aquisição da vaga, como também permanecer até o dobro do tempo prescrito aos demais usuários no abrigo, podendo também ter flexibilidade nos horários de acesso ao equipamento (SCHUCH et al., 2017). Outras categorias eram os doentes, os imigrantes e os idosos, que passaram a ocupar os equipamentos para população em situação de rua de forma prioritária, numa hierarquia moral de legitimidade de causas de estar na rua que acabava sendo percebida como excludente para aquelas populações mais classicamente associadas à situação de rua, causando, inclusive, formas de tratamento diferenciadas das pessoas dentro do mesmo equipamento, como nos disse Ivo, usuário entrevistado:

“Os que mais utilizam os albergues agora, no momento, sem ser as pessoas que são velhas e as pessoas que não são daqui de POA é esse pessoal que trabalha na Cootravipa, empresa de limpeza pública. Esses acessam bem mais, está entendendo? Não que quem está na rua não possa. Os que estão na rua não acessam porque eles são, como o cara falou, humilhados. Por isso que eles estão na rua. E lá é horário para tudo. Tem que calar a boca, tem que tirar o boné, tem que fazer o que eles querem e na rua não (SCHUCH et al., 2017, p. 45).”

Temos aqui uma forma de engajamento moral associada à legitimidade de causas e modos de estar na rua que operava cotidianamente nas burocracias dos serviços para conformar o atendimento a esse público, contrastando com as narrativas soberanas de aquisição de direitos. A compreensão dessa forma de engajamento pode contribuir para responder a uma pergunta interessante que o antropólogo Akhil Gupta (2012) se faz quando estuda os projetos de desenvolvimento e combate à pobreza na Índia, em que observa a proliferação dos programas de inclusão, mas a permanência das mortes por pobreza: afinal, como essa violência é rotinizada e naturalizada nas ações estatais?

A Morte, em Cena

Em tempos de pandemia da covid-19, essa situação de vulnerabilidade social, política e burocrática dificulta o acesso às políticas de prevenção à contaminação e faz com que essa população fique à margem de políticas generalistas, as quais uniformizam o risco, excluem as desigualdades das condições de vida e focam no combate às ameaças biológicas do vírus (BIEHL, 2021; CADUFF, 2020; DAS, 2020; SCHUCH; VICTORA; SIQUEIRA, 2020; SEGATA, 2020; SEGATA et al., 2021). Como sabemos, a gestão da pandemia no Brasil tem sido realizada em meio a uma heterogeneidade em termos de posições e possibilidades de gestão, as quais produzem um cenário de incerteza e desconfiança – cenário esse propício para, no que se refere à população em situação de rua, haver a produção de inúmeros rumores, como, por exemplo, de que o álcool em gel e as máscaras distribuídas estariam contaminados. Mais do que pensar em termos de “realidade” em oposição à “imaginação”, preferimos tomar tais narrativas como modos de inscrição pública de uma memória política sobre os riscos da vida na rua, das desconfianças em relações às doações de bens e das formas estatais de produção e invisibilidade das violências – já explícitos nas narrativas de envenenamento de pessoas vítimas de doações de alimentos em cenários anteriores à pandemia – como trouxemos anteriormente no depoimento do ativista Sebastião. Tais narrativas revelam o espaço moral em que a população em situação de rua se vê sujeita, marcado pela percepção da falta de reconhecimento social, pela violência e por tentativas de extermínio, os quais ressurgem em novas formas neste cenário de incerteza e medo produzido pela pandemia.

De outro lado, também chama a atenção, no conjunto das estratégias de gestão da pandemia no país, o seu caráter biomédico e um tanto quanto generalista em termos de pensar o risco da contaminação como advindo do encontro singular de corpos orgânicos e vírus. Isso porque, à exceção da população de idosos e da população de gestantes, lactantes e das pessoas com certas doenças crônicas – tais como doença cardiovascular, doença respiratória crônica, hipertensão, diabetes, insuficiência renal e câncer – há pouco espaço para o dimensionamento das desigualdades sociais, políticas e culturais presentes nas dinâmicas de vidas de populações específicas.

A grande parte das políticas contra o contágio pelo novo coronavírus no Brasil excluiu sistematicamente as desigualdades de acesso às infraestruturas de cuidado e negligenciou as realidades locais das populações marginalizadas, como as pessoas em situação de rua – foco deste artigo – e a população de indígenas, por exemplo, cujos movimentos organizados têm apontado a ação genocida das políticas de atendimento (WAGNER; ACEVEDO; ALEIXO, 2020). Essas e outras mobilizações das comunidades marginalizadas no Brasil – tal como no caso da criação de painéis comunitários em favelas cariocas, destinados a informar sobre a expansão e a intensificação das mortes por covid-19 em tais comunidades (MENEZES; MAGALHÃES; SILVA, 2021) – podem ser vistas como tentativas de visibilização da inscrição política das mortes por covid-19 em grupos socialmente vulnerabilizados, chamando a atenção para a realidade das populações marginalizadas e a importância de se refletir sobre outros marcadores, além daqueles puramente orgânicos, na produção da pandemia.

Em sintonia com tais movimentos, variados pesquisadores das ciências humanas têm mostrado que a pandemia da covid-19 é um espelho da desigualdade (BIEHL, 2021; CADUFF, 2020; DAS, 2020; SEGATA, 2020; SCHUCH; VICTORA; SIQUEIRA, 2020). O vírus encontra na desigualdade social as condições ideais para abater populações historicamente menos favorecidas. Por suas condições precárias de vida, tais populações têm maior dificuldade de acessar políticas de prevenção – como, por exemplo, obter água, sabão, álcool em gel e uma casa que permita o distanciamento social, para o caso da covid-19. Essas dificuldades fazem com que populações vulneráveis, como as pessoas em situação de rua, fiquem à margem de políticas globais generalistas, muitas vezes focadas no combate às ameaças biológicas do vírus.

Como temos notado, a ameaça da covid-19 não é apenas viral, mas coproduzida pelas condições desiguais de vida das pessoas. Se isso é verdade, o combate à pandemia implica necessariamente enfrentar uma urgência (o aparecimento do vírus da covid-19) e uma permanência (a desigualdade entre as condições de vida de indivíduos e populações); é neste relacionamento entre urgências e permanências que tem sentido utilizar a ideia da pandemia da covid-19 como um “evento crônico agudizado”, tal como Paul Farmer (2012) propôs para a análise do terremoto no Haiti, o qual acentuou vulnerabilidades e violências estruturais ora presentes na sociedade haitiana.

Levar em conta a associação entre urgências e permanências implica reconhecer que as perspectivas biomédicas generalistas podem ser necessárias, mas insuficientes para proteger populações marginalizadas. A boa estruturação do sistema de saúde, o investimento em políticas científicas, a expansão da testagem, a democratização da vacinação e um aparato eficiente de gerenciamento de populações precisam estar associados a políticas específicas, visando ao combate da permanência da situação de precariedade social e política em que certas populações se encontram. Para populações social e politicamente vulneráveis – como as pessoas em situação de rua – as políticas podem fazer diferença decisiva entre a vida e a morte.

No caso da população em situação de rua em Porto Alegre, como já afirmamos (SCHUCH; FURTADO; SARMENTO, 2020a, 2020b), a política generalista de gestão da pandemia pode ser percebida como uma necropolítica, nos termos propostos por Achille Mbembe (2006). Chamar a atenção para a noção de necropolítica é importante não apenas porque enfatiza o caráter relevante das políticas na produção da vida e da morte, mas também porque oportuniza reflexões acerca da própria constituição da relação entre soberania, comunidade e política. Mbembe (2006) sugere que as teorias normativas de democracia tomaram como expressão máxima da soberania a produção de normas gerais por um corpo composto por homens e mulheres livres e iguais, capazes de autoconhecimento, autoconsciência e autorrepresentação. Ao contrário, a proposta do autor (MBEMBE, 2006) está dirigida à consideração de categorias da política menos abstratas do que a razão como a verdade do sujeito, destacando a centralidade das definições em torno da vida e da morte de populações, mas que também – poderíamos acrescentar – são definições que implicam o valor e o sentido da vida e da morte de determinadas populações.

Em um capítulo de sua dissertação de mestrado em andamento sobre o Serviço de Abordagem Social de Rua, uma de nós, a pesquisadora e trabalhadora do serviço Daniela Bianchi, relata um atendimento que realizou, feito em março de 2020. A narrativa de Daniela descreve uma cena de morte, produzida institucional e politicamente na rotina das burocracias de atendimento à população em situação de rua:

“Assim que fomos identificadas com nossos clássicos coletes verdes e o carro com a placa, a pessoa que acionou a Central de Abordagem, moradora de uma das casas da rua onde a Margarete estava deitada, nos chamou desde sua janela. Estava preocupado com a saúde dela. Refere que ligou para a SAMU mas mandaram ligar para a Central de Abordagem (o SAMU não leva muito a sério quando o destinatário do atendimento é portador do rótulo Pessoa em Situação de Rua, nem mesmo numa pandemia, quando uma das queixas verbalizadas eram dor nas costas e dificuldades para respirar). Após conversarmos com a “solicitante”, nos aproximamos de Margarete, bem devagar, chamamos ela, pedimos licença para chegar perto. Seu discurso estava confuso, umas das tantas frases foi “aceito ir num lugar que tenha TV”, mas ela não conseguia se levantar, estava sem roupa, apenas usava um “tomara que caia” e de resto, completamente nua, queixava-se de dor nas costas e sintomas respiratórios. A nossos olhos primava um atendimento em saúde. Minha colega ligou para SAMU, e após algum tempo negociando com o médico (sim, tem processo de convencimento em cada ligação feita para Emergência Hospitalar quando se trata de Pessoa em Situação de Rua) um automóvel se deslocaria, porém não sabiam informar o tempo de demora. Estrategicamente pedimos ao vizinho que ligasse de novo, a experiência nos ensinou que quanto mais ligações para a mesma ocorrência mais chances de demorarem menos. Uma hora esperando e nada do SAMU vir. Ligamos novamente e fomos informadas que uma ambulância já estava a caminho. A ambulância chegou, levaram ela para o Pronto Atendimento mais próximo, e nós ficamos na torcida para que ela não fosse só avaliada e liberada, pois estava muito frio na rua e claramente ela estava em uma situação de extrema fragilidade. Para nossa surpresa, na segunda-feira recebemos nova solicitação de abordagem: a Margarete estava deitada nas mesmas condições que sexta, porém em uma outra esquina do bairro. Novo processo, aciona SAMU, negocia, ambulância vem e a Margarete novamente para emergência. O Serviço de Abordagem Social de Rua tem plantão centralizado aos finais de semana e no domingo tinham recebido uma “solicitada” para Margarete também. Mesma situação, mesmo encaminhamento: SAMU e translado para Emergência Hospitalar. “Qualificamos” com o Serviço Social do Pronto Atendimento e, tanto na sexta-feira, como no domingo a Margarete deu entrada, mas foi liberada em seguida. Não sabemos exatamente o que aconteceu depois da mobilização e tensionamento com o Serviço Social, mas provavelmente acharam critérios clínicos para transferência e internação num Hospital. Margarete veio a falecer uma semana depois, apenas com hipóteses diagnósticas e sem teste de COVID-19, pois não foi considerada a possibilidade que ela pudesse ter coronavírus” (BIANCHI, 2021, p. 17-18).

Pensamos no ponto da tela de Miró, com a qual iniciamos esse artigo; pensamos na questão de Gupta (2021): como a violência é rotinizada e naturalizada nas ações estatais? Pensamos sobre a questão de Mbembe (2006): sob quais condições práticas se exerce o direito de matar, deixar viver ou expor à morte? Pensamos na Margarete.

Mobilizações

Mas não pensamos sozinhos. Na última seção de nosso artigo, gostaríamos de trazer alguns aspectos de uma rede de mobilização social em proteção à população em situação de rua, que emergiu na cidade de Porto Alegre no início de abril de 2020. Formada por ativistas, pesquisadores, trabalhadores sociais da área e filantropos, esse coletivo produz uma forma de engajamento moral com a questão da população em situação de rua que reivindica o valor e o sentido de suas vidas, embora trabalhem com gramáticas morais distintas em relação às formas de atendimento. Patrice Schuch, Calvin Furtado e Caroline Sarmento acompanharam esse coletivo durante todo o ano de 2020 e início de 2021, por meio de um grupo de WhatsApp, criado para informar e gerir tais formas de mobilização.

Além da inscrição da memória das formas de mobilização e resistência política frente ao descaso do poder público em relação à população em situação de rua, manifestado pela falta de materiais de higiene, diminuição das vagas para acolhimento institucional, fechamento de pias e banheiros públicos na cidade, fundamentais nas dinâmicas de vida da população em situação de rua, ao longo de sua existência, o grupo também passou a funcionar como uma maneira de controle social das próprias transformações sociais na vida de sujeitos e populações marginalizadas, provocadas pela pandemia da covid-19. É nesse sentido que tais práticas podem ser vistas como formas de inscrever politicamente os efeitos da pandemia no agravamento das desigualdades sociais e seus impactos na vida de determinados sujeitos. Possibilitam compreender, também, que a pandemia se torna um evento que suscita a consideração da indissociável relação entre a desigualdade social e a configuração da situação de rua, rompendo com a visão usual que a toma como um problema individual. Essa percepção fez com que o trabalho desenvolvido pela rede acabasse abarcando não apenas os sujeitos em situação de rua, mas as populações marginalizadas na cidade – ligando o ponto às tramas da tela, se quiséssemos usar os termos inspirados em Miró.

Por outro lado, é interessante perceber que a acentuação da situação de desigualdade trazida à tona no cenário da pandemia foi um mote para os clamores de engajamentos morais motivados pela própria urgência da ação devido a mais básica necessidade de sobrevivência: a fome. Variadas foram as doações motivadas pela temática da fome, que reverberou para além das pessoas do coletivo, as quais traziam ao grupo, nos meses iniciais da pandemia (abril e maio de 2020), oferecimentos de doações que chegavam até nós, advindos de pessoas e grupos sem proximidade direta com o ativismo na área. Tais agentes estavam interessados em “ajudar” as pessoas em situação de rua, mostrando-se afetivamente comovidos com o sofrimento individual daqueles que permaneciam na rua em um contexto de pandemia. Esse modo de mobilização é relevante porque chama a atenção não apenas para os determinantes biológicos do risco frente à covid-19, mas também para os efeitos da pandemia nos corpos vulnerabilizados.

Por outro lado, também convida a pensar sobre a sua excepcionalidade, efeitos e sobre o tipo de relação de aproximação e distanciamento com a situação de rua. Nesta via, sugerimos que tal dimensão possa ser aproximada ao que Luc Boltanski (1999) denominou de política de piedade, operada pela sensibilização dos espectadores provocada pelo sofrimento à distância, muitas vezes configurado a partir de situações singulares de tragédias, desastres e epidemias. As reflexões de Boltanski (1999) contribuem ao chamar atenção para um engajamento moral que se faz numa dupla via, a qual implica tanto o distanciamento do espectador/doador, quanto a condição de excepcionalidade do evento causador – neste caso, a pandemia da covid-19. É estratégico lembrar, neste sentido, o contraste entre a grande solidariedade frente à fome na época da emergência sanitária e a permanência da vulnerabilidade social e política da população em situação de rua, tão denunciada pelo ativismo. Ou, em termos artísticos, pensar em como o ponto difuso como único elemento referencial faz ressoar o espaço, na tela de Miró.

Também, as produções de Didier Fassin (2001, 2010) sobre as políticas de compaixão e as políticas de justiça trazem nuances importantes a nossa reflexão. Analisando as solicitações de asilo por razões humanitárias e os pedidos de concessão de auxílio para desempregados e sem documentos na França (FASSIN, 2001), o autor percebe a importância do que denomina de política da compaixão, em que a retórica do sofrimento individual e dos sentimentos morais associados à variabilidade das situações de sofrimento sobrepõe-se à da política da justiça (da equidade, dos direitos), raramente mencionada pelos solicitantes. Como já afirmamos (SCHUCH; FURTADO; SARMENTO, 2021), a análise de Fassin (2001, 2010) é especialmente interessante para o caso das mobilizações em questão, pois as perspectivas assistencialistas e caritativas são históricas nessa área de intervenção aos outrora chamados “sofredores de rua” (GABORIAU, 2011; MELO, 2013; SCHUCH, 2015). Nos últimos anos, o Movimento Nacional da População de Rua (MNPR) tem recusado tais engajamentos e insistido que é preciso passar da “ajuda” aos “direitos” – veja-se o slogan frequentemente usado no ativismo: “A população de rua tem fome. Tem fome de direitos” (MELO, 2013; SCHUCH, 2015).

Ficamos pensando nesse slogan quando, a partir de 2020, começamos a perceber, na cidade, uma variedade de pessoas nas ruas e esquinas, solicitando ajuda para suas necessidades. Em uma importante esquina do centro da cidade de Porto Alegre, encontrava-se um artista popular, uma estátua viva, todo prateado, que anunciava em um cartaz, solicitando uma esmola: “Não foi o vírus que me matou. A despensa vazia é que está me matando. Pai de 2 filhos pequenos sem trabalho”. Ainda no centro de Porto Alegre, podemos ver um homem vestido de palhaço, que escreveu em letras garrafais em seu cartaz: “Desempregado sim, parado nunca. 2 sacos de pipoca por R$2,00”. No bairro Bom Fim, encontramos um casal que apelava para contribuições, escrevendo num cartaz: “Por favor, eu e minha mulher precisamos de ajuda. Deus abençoe”. E assim continuamos a encontrar várias dessas formas de mobilização individualizadas, que trabalham com os cartazes como formas de apelo à caridade, mantendo certa distância entre o solicitante e o possível doador, mas inscrevendo publicamente sua necessidade de auxílio numa gramática moral muito específica: do merecimento da ajuda em função da perda do trabalho durante a pandemia, da figura moral do provedor ou de uma gramática da dádiva divina, implicada como retribuição à doação.

Essas novas mobilizações nos fazem interrogar: o que a (re)introdução dessas gramáticas morais associadas ao sofrimento individual e à busca por caridade produzirá como efeitos, na configuração dos engajamentos morais em torno da população em situação de rua, cujo ativismo reivindica uma inscrição coletiva do sofrimento e luta por direitos? Quais seus significados na produção dos sujeitos em situação de rua e nas práticas cotidianas de seu governo?

Interrogações Finais

São perguntas para seguir pensando. Como um evento crítico que simultaneamente suscita mobilizações que trabalham a partir e na relação com as infraestruturas desiguais de vida das populações marginalizadas, a pandemia parece atualizar uma tensão moral estruturante desse campo de intervenção social, entre a individualização do sofrimento ou o seu relacionamento com as desigualdades das infraestruturas de vida das pessoas.

Neste artigo, trabalhando a partir dessa ambiguidade constitutiva entre individualização do sofrimento e visibilidade das desigualdades de vidas e mortes, chamamos a atenção para o fato de que a pandemia parece funcionar simultaneamente como um evento que acentua dinâmicas humanitárias marcadas pela urgência da ação em face aos “sofrimentos” individuais e renova ativismos cotidianos que acionam uma subjetividade política calcada na denúncia das desigualdades. Parece-nos importante seguir investigando na medida em que, entre sofrimentos e desigualdades, ordinário e extraordinário, urgências e permanências, o ponto como único referencial e os espaços em branco da tela, tramas morais em torno do valor e legitimidade das vidas das pessoas em situação de rua são constituídas e atualizadas.

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Recebido em: 05/12/2021

Aceito em: 29/03/2022


1 Ver no catálogo de obras da Fundação Joan Miró: https://www.fmirobcn.org/en/colection/catalog-works/5442/p-landscape-p

2 O engajamento de pesquisa com a população em situação de rua vem formando uma rede de estudos antropológicos sobre o tema. Em termos mais diretamente vinculados ao nosso próprio trabalho, temos: Patrice Schuch coordenou estudos quali-quantitativos sobre as características sociais e a relação com serviços públicos da população de rua na cidade de Porto Alegre nos anos de 2007 (SCHUCH et al., 2008), 2012 (SCHUCH et al., 2012) e 2016 (SCHUCH; GEHLEN; SILVA, 2016), tendo orientado diversas dissertações de mestrado e tese de doutorado sobre o tema. Calvin Cas Furtado realizou sua dissertação de mestrado em Políticas Públicas sobre a institucionalização da luta dos direitos humanos da população em situação de rua (FURTADO, 2017) e atualmente finaliza pesquisa de doutorado sobre a produção política das mortes da população de rua no Brasil. Daniela Bianchi é mestranda em Antropologia Social e desenvolve uma pesquisa sobre as práticas de governo dos trabalhadores no Serviço de Abordagem Social de Rua, em que também é uma profissional do atendimento. Caroline Silveira Sarmento (SARMENTO, 2020) desenvolveu sua dissertação de mestrado a partir do estudo da retirada de filhos de mulheres em situação de rua e atualmente avança na pesquisa com esse tema em seu doutorado, em andamento.

JUSTA OU INJUSTA:

as moralizações do falecimento de idosos atendidos por cuidadoras


FAIR OR UNFAIR:

the moralizations of the death of elderly people assisted by caregivers

____________________________________

Anna Bárbara Araujo*1

Vittorio Talone**

Resumo

Com base em um trabalho de campo acompanhando cuidadoras de idosos que atuam em uma política pública do município de São Paulo, propomos uma discussão sobre como elas qualificam e, assim, lidam de diferentes formas com a morte da população por elas atendida. Dialogando com o arcabouço analítico da sociologia pragmática, mostramos como as cuidadoras “moralizam” variadamente a morte, por exemplo, como “justa”, “injusta”, “evitável” ou “natural”, o que depende das circunstâncias da morte, das condições de vida do idoso e da relação estabelecida com eles. Tais qualificações também são influenciadas pelas formas como as profissionais se sentem, isto é, por suas sensações e afetos, causando efeitos na continuidade de suas vidas pessoais e/ou profissionais. Assim, analisamos as formas pelas quais as cuidadoras aprendem a lidar com a morte dos idosos não apenas no processo de somar “bagagens de experiência”, mas por serem direcionadas a um (e exercerem o) “trabalho afetivo”, o que envolve uma “educação das emoções”. Argumentamos que a qualificação e, logo, a moralização das mortes varia segundo um trabalho ativo de interpretação e reinterpretação das experiências, o que inclui uma modulação do próprio âmbito afetivo-intensivo.

Palavras-chave: Morte. Cuidado. Moral. Trabalho afetivo.

Abstract

This article is based on field work conducted among elderly care workers in a public policy in the city of São Paulo, Brazil. We propose a discussion on how they qualify and thus deal in different ways with the death of the ones they assist. Through the analytical framework of the pragmatic sociology, we show how care workers diversely “moralize” death, e.g., as “fair”, “unfair”, “avoidable” or “natural”, depending on the circumstances of the event, on the life conditions of the elderly and on the relationship established with them. Such qualifications are also influenced by the way the professionals feel, i.e., by their sensations and affects, causing effects on the continuity of their personal and/or professional lives. Thus, we analyze the ways in which care workers learn to deal with the death of the elderly not only by gathering a “baggage of experience”, but by being directed to (and exercising) an “affective work”, which involves an “education of emotions”. We argue that the qualification and, therefore, the moralization of death vary according to an active work of interpretation and reinterpretation of the experiences, which includes a modulation of the affective-intensive scope itself.

Keywords: Death. Care. Moral. Affective work.


1* Professora Adjunta do Departamento de Ciências Sociais da Universidade Federal do Rio Grande do Norte

(DCS/UFRN). E-mail: anna.araujo@ufrn.br

** Pesquisador de pós-doutorado (Faperj nota 10) do Programa de Pós-Graduação em Sociologia e Antropologia da Universidade Federal do Rio de Janeiro (PPGSA-UFRJ) e do Núcleo de Estudos da Cidadania, Conflito e Violência Urbana (NECVU-UFRJ). E-mail: vittorio.talone@gmail.com

ISSN 1517-5901 (online)

POLÍTICA & TRABALHO

Revista de Ciências Sociais, nº 55, Junho/Dezembro de 2021, p. 77-92

Introdução1

Neste texto, discutiremos como o processo de morrer e a morte de idosos são moralizados por terceiros que estavam profissionalmente em contato com aqueles. Ou seja, analisaremos como, a partir do contato com o falecimento de idosos, essas pessoas mobilizam noções como morte justa/injusta e natural/não natural. Faremos isso partindo das narrativas de cuidadoras de idosos que atuam em uma política pública do município de São Paulo e que, em suas rotinas de trabalho, com alguma frequência, lidam com a morte dos idosos atendidos. As cuidadoras estão em contato cotidiano com os idosos em seus domicílios e desenvolvem relações interpessoais com eles, estando frequentemente presentes em seus processos de adoecimento e/ou de morte. Assim, em geral acompanham mais de perto, em termos de contato afetivo/emocional, esses processos do que enfermeiros, médicos e outros profissionais de saúde, embora não tão de perto quanto os familiares dos idosos, o que oferece, argumentamos, um ponto de vista privilegiado para discutir a moralização das mortes.

Nesse sentido, destacaremos que a forma como as cuidadoras encaram tais fenômenos depende de suas concepções sobre a “justiça da morte” (definida à frente) e de um processo de “naturalização da morte”. Tais qualificações, por sua vez, são fruto de um duradouro “trabalho afetivo” – desenvolvido por elas em sua prática profissional e discutido, por suas equipes de trabalho, em palestras e em treinamentos.

O artigo se insere nas discussões sobre a dimensão emocional e moral do trabalho de cuidado, mobilizando um arcabouço analítico inspirado na sociologia pragmática (BOLTANSKI, 2009; BARTHES et al., 2016) e pela filosofia pragmatista americana (JAMES, 1907; DEWEY, 2007; PEIRCE, 1998) para discutir em que medida a morte integra as rotinas de trabalho das cuidadoras e como ela é mobilizada, interpretada e vivenciada por essas profissionais. Assim, ao tratarmos sobre “moral” e “moralização”, dialogamos como uma sociologia da moral que desloca a moral para o lugar de objeto (WERNECK, 2012a)2. Aqui a pensamos como quadros plurais de referência para as pessoas, “gramáticas” segundo as quais elas relacionam referências sobre o “bem” e as experiências vivenciadas/observadas. Ao refletirmos sobre qualificações como “justo”, “injusto” e “natural”, por exemplo, lidamos com tramas complexas de referências a formas de bem e o estabelecimento de normalidades nelas baseadas (WERNECK, 2012a).

O texto se divide em quatro partes, além desta introdução: 1) Começamos com uma breve apresentação a respeito de como a morte foi discutida e interpretada por parte da literatura sociológica e sobre como a noção figura neste texto a partir da pesquisa empírica em questão. 2) Em seguida, discutimos mais substantivamente sobre a pesquisa e a metodologia por meio da qual os dados apresentados foram recolhidos. 3) Com isso, analisamos como a moralização das mortes pelas cuidadoras de idosos envolve a classificação das mortes como “justas” ou “injustas”; “naturais” ou “não naturais”. Por fim, 4) debatemos sobre as formas de aprender a lidar com a morte por parte das cuidadoras – implicando uma discussão sobre a experiência pessoal/profissional e sobre “trabalho afetivo” (HARDT; NEGRI, 2001), o que envolve uma “educação das emoções” (QUÉRÉ, 2018).

Envelhecimento e morte

Segundo Douglas J. Davies (2005), uma “história da morte” é tão complexa quanto a experiência de cada pessoa para com ela, pois cada ser tem a sua própria narrativa autobiográfica relacionada com a morte3. Nesse sentido, a “morte [seria] especialmente importante porque fornece um contexto primordial [em que] a motivação pela vida pode ser verificada” (DAVIES, 2005, p. 12).

A morte, assim como o nascimento, é tida por Edmund Husserl (apud STEINBOCK, 1998, p. 181) como uma “ocorrência essencial para a constituição do mundo [moderno]”: ela se estende para antes e para depois de nós em uma comunidade de gerações, sendo a realidade inexorável de toda vida humana ao menos em sua dimensão física – ela é onipresente (KEARL, 1989). De maneira geral, a morte seria uma situação limite e inescapável, traduzida em um status de passagem/transição “não agendado” (GLASER; STRAUSS, 1965) para a própria pessoa em vias de óbito e para os profissionais lidando com a situação, como as cuidadoras. No final das contas, a morte é um problema dos vivos (ELIAS, 2011).

No entanto, ainda que, consequentemente, estejamos cientes de que ela pode se concretizar a qualquer momento, levando-nos a tomar precauções especiais de cuidado e de controle contra a ameaça de aniquilação (ELIAS, 2011), esse conhecimento não é viável de ser exercido a todo instante na vida cotidiana. Nós não refletimos ininterruptamente sobre isso, estando alertas a cada possível causa de decesso – na maior parte do tempo operamos em um estado de crença, no sentido de Charles S. Peirce (1877).

Em razão disso, nos casos como os que veremos à frente, as pessoas, como as cuidadoras, podem se “surpreender” com algumas mortes – ainda que os idosos sob seus cuidados estivessem em situação delicada e/ou com idade muito avançada. As atividades corriqueiras e o exercer da profissão de cuidadoras podem ser conduzidas sem que haja, necessariamente, uma reflexão corrente a respeito da possibilidade da morte. A morte “injusta”, por exemplo, é precisamente aquela não esperada (por motivos diversos); e o lidar “adequado” com a morte é algo a ser aprendido – tema de nossa última seção –, traduzindo-se no não deixar se abalar de forma “incapacitante” ou prejudicial à própria saúde, à convivência com os familiares ou à rotina de trabalho.

Como abordamos especificamente a morte de pessoas idosas e que necessitaram, em algum momento de suas vidas, de uma cuidadora, cabe outra consideração. Além do fim efetivo da vida de forma repentina, temos a morte gradual (ELIAS, 2011): as pessoas envelhecem e adoecem, gerando uma série de efeitos duráveis sobre si e sobre terceiros, causando consequências sobre a continuidade de suas existências.

Portanto, o contato com a morte ou com sua possibilidade iminente dão origem a autorreflexões e a ponderações sobre situações (pessoais e profissionais) que cercam o falecimento. A forma como ela acontece e como as pessoas a consideram – se justa ou injusta – causam diferentes efeitos para aqueles que permanecem. Por exemplo, as cuidadoras podem se abater, mas prosseguir no trabalho; outras podem ficar deprimidas e decidirem por deixar a carreira. Por isso, é relevante mapearmos as variadas maneiras como as profissionais em questão podem “moralizar” a morte de um idoso, pois têm impactos distintos sobre a rotina de trabalho e sobre suas decisões pessoais.

Quando falamos aqui de diferentes formas de “moralizar”, reconhecemos moral como um quadro plural de sentidos que podem ser mobilizados pelas pessoas para sustentar suas próprias ações (WEBER, 2001; WRIGHT MILLS, 1940; WERNECK, 2012b); o que tem íntima relação com as motivações subjacentes às ações das pessoas – motivações essas alocadas e sustentadas pelos próprios atores. E o motivo é o “contexto de significado” (WAGNER, 2012) aparecendo como a razão da conduta em um mundo.

Por fim, julgamos adequado destacar brevemente formas específicas como a literatura científica abordou essa relação das cuidadoras com a morte dos beneficiários de cuidado. Longe de pretendermos esgotar o debate, aqui mencionamos dois trabalhos relevantes para nossa discussão.

O estudo de Jason Rodriquez (2009) em lares de idosos norte-americanos mostra que as trabalhadoras de cuidado usam uma retórica da morte ativa, isto é, partilham da crença de que os idosos tinham algum tipo de controle sobre as condições e a duração de suas mortes. Dependendo da situação, por exemplo, acreditava-se que os residentes poderiam “esperar” para morrer quando a família chegasse, ou quando seus familiares ou a cuidadora deixassem o quarto, optando por morrer sozinhos. A atribuição dessa agência é uma construção moral feita pelas trabalhadoras do cuidado de modo a aplacar a sensação de perda e gerenciar seus próprios afetos/emoções diante da morte das pessoas de quem cuidavam diariamente.

Já o estudo de Roi Livne (2014) sobre o mercado de cuidado paliativo mostra como a ética desse tipo de cuidado dota o processo de morrer de novos significados, enfatizando as virtudes de se alcançar a aceitação e limitando os tratamentos de saúde considerados invasivos, agressivos e meramente postergadores da morte. Nesse caso, os trabalhadores do cuidado são instados a promover a boa morte: pacífica, natural e sem sofrimento.

Nesses dois trabalhos, fica claro que o trabalho de cuidado, seja com idosos e/ou com pacientes terminais, envolve um esforço de compreensão e de ressignificação da morte. Ao conferir agência aos “moribundos” ou efetivamente positivar a morte (como o fim natural de um processo biológico), as cuidadoras buscam encontrar maneiras de lidar com ela, lhes dando alguma inteligibilidade. No caso das cuidadoras abordadas aqui, destacaremos como elas elaboram estratégias distintas para lidar com a morte envolvendo tanto uma 1) moralização variada da morte que depende fundamentalmente das condições em que essas ocorreram, quanto um 2) aprendizado prático e profissional de como lidar com ela (inclusive, afetivamente).

A experiência com a morte por cuidadoras do PAI

A pesquisa que baseia este texto consistiu em um estudo etnográfico realizado com cuidadoras de idosos que atuam no PAI (Programa Acompanhante de Idosos), uma política pública do município de São Paulo voltada ao cuidado domiciliar de idosos frágeis e vulneráveis. Cada equipe do PAI atende cerca de 120 idosos e é composta por um quadro multiprofissional, que inclui médico, enfermeiro, assistente social, dois técnicos de enfermagem, motorista, secretária e dez cuidadoras. Atualmente há mais de 50 equipes em funcionamento. O PAI é centrado justamente na figura das cuidadoras, também chamadas de acompanhantes, e essas são as profissionais que têm contato de forma mais durável com os idosos. No PAI, cada cuidadora atende em torno de doze idosos, realizando visitas domiciliares e os acompanhando em idas a hospitais e a centros de saúde, auxiliando-os em idas ao supermercado e à farmácia, fazendo caminhadas, entre outras atividades. Em geral, as visitas para cada idoso têm duração de uma hora e meia e a quantidade de visitas por semana depende do grau de vulnerabilidade social e física do idoso. Cada cuidadora pode passar meses ou até anos atendendo o mesmo idoso até que ele deixe o programa, seja por receber “alta”, por ser encaminhado para outro programa, por mudança de endereço ou por óbito.

Cabe notar igualmente que os idosos atendidos, em geral, têm doenças crônicas, sendo as mais comuns a diabetes e a pressão alta, mas poucos são gravemente dependentes (necessitando de ajuda no banho ou estando acamados, por exemplo). Ou seja, são idosos que têm problemas de saúde, mas não estão, em geral, à beira da morte.

O artigo se baseia nos dados recolhidos por Araujo (2019b) em três meses de trabalho de campo com uma equipe do PAI localizada em uma região de classe média baixa de São Paulo. Do início de abril ao final de junho de 2017, foram conduzidas quase quinhentas horas de trabalho de campo. As atividades realizadas pelas cuidadoras foram observadas cinco dias por semana, durante seu horário de trabalho. Mais especificamente, examinou-se o trabalho das cuidadoras em suas rotinas administrativas, reuniões, conversas informais e, principalmente, em suas interações com os idosos.

Também foram realizadas vinte entrevistas com cuidadoras de outras equipes do PAI, localizadas em diferentes regiões da cidade. As entrevistas tiveram como objetivo discutir as experiências de trabalho das cuidadoras e, em particular, a relação que estabelecem com os idosos. Grande parte das perguntas feitas às cuidadoras foram inspiradas nos dados coletados durante o trabalho de campo.

Mortes justas e mortes injustas

Embora o argumento de Elias (1994, 2011) exponha como, nas sociedades civilizadas, a morte e as doenças foram se tornando mais previsíveis, exigindo de cada indivíduo um grau mais elevado de antecipação e de controle das paixões; também há a possibilidade de que as pessoas experimentem o falecimento de idosos (por vezes “sofrido”) como um rompimento repentino. Há casos em que uma preparação prévia efetiva não é possível: pela pouca experiência pessoal e/ou profissional, pelo forte apego ao falecido, por ter sido fruto de complicações urgentes etc. Nesses casos, há uma enorme “força emocional de (...) morte” (ROSALDO, 1993, p. 167), rompendo drástica e permanentemente uma relação íntima particular. São situações em que “deve-se considerar a posição do sujeito dentro de um campo de relações sociais, a fim de compreender a sua experiência emocional” (ROSALDO, 1993, p. 167), isto é, a relação com o idoso, o tempo e a qualidade das experiências, a existência ou não de discussões coletivas sobre a morte e o luto no trabalho, entre outros elementos.

A cuidadoras relatam sofrer de forma mais penosa quando consideram que a morte de um idoso foi “injusta”, por vezes, não esperada. Seria o oposto de quando consideram que a pessoa estava mal e em sofrimento, tendendo a interpretar a morte como “alívio” e “descanso” para o idoso. Vejamos o seguinte trecho de entrevista4:

Pesquisadora: E algum idoso que você acompanhava já veio a falecer?

Cuidadora 1: Já. Já, já.

Pesquisadora: E como foi pra você?

Cuidadora 1: Pra mim foi muito triste. [...] A minha supervisora chamou até a psicóloga pra conversar comigo. Porque, assim, a gente sabe que é o fim pra eles,? Que a gente tenta dar uma qualidade de vida pra eles ir bem, mas a gente sabe que agora é a etapa final. Só que, assim, quando o idoso falece por doença ou pela velhice... Mas ela não [a idosa sob cuidado]. Ela era... O marido batia nela. E era idoso também, né? Já levei ela na delegacia da mulher. Já tentamos tirar ela de lá. Ela não quis. E ele empurrou ela e ela caiu. Depois que ela caiu, ela não andou mais. Parou de andar, ficou internada na Santa Casa, voltou, sabe? Tem um filho que, pra mim, também foi... Não cuidou dessa parte do pai e da mãe, né? Porque ele tava no meio dos dois. Então, eu acho que ele ficava meio perdido. Não sei. Então, pra mim, foi triste. Porque, pra mim, não foi uma morte assim... Pra mim, foi provocada. Porque, depois dessa queda, ela fez a cirurgia na coluna. Porque teve... Ela parou de andar por causa da queda. Tinha que descomprimir alguma coisa que eu não sei o nome. E,, depois acho que não ficou uma semana e ela faleceu. Eu fui no velório, fui no enterro. Mas, pra mim, assim, foi uma perda muito grande. Porque, pra mim, era pra ela estar aí!

Nesse caso, a morte da idosa é entendida, pela cuidadora, como consequência direta de violência doméstica. Parte do “sofrimento injusto” dos idosos parece estar ligado justamente às violências5, ao esquecimento ou descuido da própria família, a algum acidente evitável, entre outras possibilidades similares. Como resultado, tem-se a ampliação do sofrimento da própria cuidadora, que, nesse caso, relata dificuldades em aceitar a morte da idosa e, inclusive, coloca sua ocorrência como disruptiva para sua rotina de trabalho – trata-se da interpretação sobre a morte e da atribuição causal para a sua ocorrência a partir das consequências causadas por uma ação (PEIRCE, 1998; JAMES, 1907), por exemplo, um ato de violência física.

Se no caso acima o falecimento é qualificado como injusto pois foi precipitado por uma agressão física, por violência doméstica, outro exemplo é o de uma cuidadora que interpreta a causa do falecimento da idosa de quem cuidava, e que estava em curatela judicial, pelo fato de a idosa não ter tido acesso a um remédio crucial ao seu tratamento. Para a profissional, não foi providenciada a tempo a compra do remédio, que estava em falta para distribuição gratuita no posto de saúde, culminando na morte injusta e sofrida da idosa. A cuidadora tomou como determinante para a deterioração da saúde e para o eventual falecimento da idosa a não ingestão por mais de uma semana desse medicamento, de uso contínuo:

Cuidadora 2: Então, isso, pra mim, me doeu muito porque não precisava ter sido assim. Porque a gente poderia, pelo menos, ter dado pra ela uma morte mais tranquila, né, mais assistida. Ela foi assistida, mas complicou muito, você percebe? O que falta, às vezes, uma coisinha simples que desencadeou a outra e desencadeou e a gente não tem como consertar mais. Muito dolorido, viu? Muito triste, muito, muito, muito, porque não precisava ser. E ela falou pra mim. Ela falou pra mim assim: “Eu não precisava estar passando por isso”. Eu falei: “Realmente”.

O caráter de “injusto” de uma morte também pode ser constatado a partir dos variados efeitos negativos sobre a própria pessoa em contato com aquele que faleceu (TALONE, 2020), como é o caso para algumas cuidadoras. A profissional cuja fala é destacada a seguir, por exemplo, chegou a mudar temporariamente de ocupação, narrando como motivo a desilusão e o sofrimento com a morte inesperada – e injusta – de uma idosa. Ela compara tal situação com a experiência de ter cuidado de seu próprio pai com câncer em estágio terminal antes de trabalhar com essa idosa6:

Cuidadora 3: Então, eu perdi uma paciente e eu fiquei deprimida. Porque eu sou bobona, né? Então, eu gostava muito dela, ela era minha filha. E eu perdi ela. (...) O meu último trabalho particular foi no [Hospital ...]. Foi lá que eu perdi ela. (...). E,, eu fiquei deprimida um ano. Não quis saber de fazer nada disso [profissão de cuidadora]. Comecei a fazer outras coisas, comecei a mexer com cabelo. Falei: “eu não quero mais. Isso não é pra mim”. A vida é ingrata. A gente cuida, se mata, dá tudo, e a morte vem e leva da sua mão sem você poder fazer nada. Eu fiquei meia... sabe? Muito frustrada! Porque eu tinha certeza que ela ia durar muito. E infelizmente ela teve um AVC hemorrágico de grande expansão. Não teve... Realmente não tinha o que fazer. E eu não me conformei. Aí, eu fiquei um ano fazendo outras coisas, mexendo com cabelo, com unha, essas coisas assim. (...) Mas nem quando meu pai morreu eu fiquei tão deprimida que nem eu fiquei com essa idosinha que eu perdi.

Pesquisadora: E por que você acha que foi tão...

Cuidadora 3: Porque ela só tinha Alzheimer. Ela SÓ tinha Alzheimer. Ela internou com infecçãozinha de urina. (...) Isso me deu, sabe, aquela... Sabe aquela sensação de impotência de tudo? Foi por isso que eu fiquei com depressão. [Por causa da] impotência. Ela só tinha Alzheimer. Ela ia [viver] anos ali! Entendeu? Mas, assim, como dizem, né? É AVC, acidente vascular cerebral. Então, é um acidente.

Pesquisadora: Não tem como...

Cuidadora 3: Não tem como. Então foi... Foi... Foi um susto pra mim. Eu não... Sabe uma coisa que você não espera? O meu pai eu já tava esperando, né? Devido à doença dele. Ela não! Eu não tava esperando, aí foi aquela... Sabe? Eu demorei pra aceitar. Foi bem complicado. Aí, eu falei: “eu não quero mais cuidar de idoso! Porque nossa, meu Deus do céu, eu não aguento. Já perdi dois. Porque ela... Né? Não, não quero mais, não quero, não quero.

Nesse caso, a cuidadora atuava de maneira particular, sozinha, antes de adentrar uma equipe do PAI. Ou seja, não teve acesso ao apoio de uma equipe multidisciplinar e de colegas com experiências parecidas para lidar com a morte da idosa cuidada. Isso pode fazer com que o sofrimento seja experimentado de maneira solitária, podendo impossibilitar ou retardar a ressignificação e/ou a dessingularização da experiência (POLLAK, 1990; BOLTANSKI, 2004; TALONE, 2020). Esses são mecanismos que podem aliviar o luto por meio do compartilhamento de emoções/afetos, incluindo o sofrimento e o sentimento de injustiça entre colegas cuidadoras (BORGEAUD-GARCIANDÍA, 2012), e/ou pela canalização da dor em ações específicas – como de conscientização, por exemplo. Na ausência desses mecanismos, as sensações de impotência e revolta frente à morte podem ser amplificadas.

Essas situações de “contato com a morte” e seus efeitos se dão de forma distinta quando as cuidadoras consideram a morte do idoso como algo natural. Aqui, a morte passa a ser encarada como o desfecho previsível de um processo de adoecimento e/ou como alívio do sofrimento dos idosos. A morte passa a ser enquadrada/compreendida como um fenômeno calculável e como fim de um ciclo de martírios. Nesse caso, a moralização passa pelo entendimento, da cuidadora, de que se efetivou o “bem do outro” (WERNECK, 2012b, p. 304), isto é, a pessoa – por mais triste que possa ficar com a morte do idoso – nota o bem exclusivo de um terceiro (no caso, o idoso) como o fator central de uma situação:

Pesquisadora: E já aconteceu de algum idoso que você acompanhava vir a falecer?

Cuidadora 4: É, deixa ver, aconteceu. (...). Aí, fiquei chateada. A gente fica triste,? Porque a gente convive, vai fazendo parte do nosso convívio,? A gente tá sempre ali, toda semana. Aconteceu de falecer. A gente sente, sim,? (...). Eu senti, mas eu via que era uma pessoa que tava sofrendo muito,? Que precisava... A gente pensa assim: descansou, né? Fiquei chateada, mas aconteceu, faleceu.

A morte ainda é compreendida como um acontecimento triste, mas que, ao menos, “aliviaria” o sofrimento do idoso sob cuidado. Com isso, não cai sobre ela a carga negativa de “injusta” ou de “sofrida”. Passemos agora para outra experiência, a de uma idosa com Alzheimer que faleceu após sofrer uma queda e quebrar o fêmur. Em seguida ao acontecimento, sua acompanhante foi até a casa da filha para conversar sobre o luto.

Cuidadora 5: Mas, num geral, foi melhor pra ela porque ninguém merece viver desse jeito. Aí, a gente foi uma tentando levantar a moral da outra: “foi melhor pra ela. Tá num bom lugar, tal, tal”. E a gente ficou de boas também. E hoje a gente só conversa, ficamos amigas. Porque tem isso também, você ganha muita amizade, né? Você conhece muita gente. Isso tudo te engrandece como pessoa. Muito. E é isso. Você cresce muito como pessoa. Vendo o sofrimento dos idosos. Eles sofrem demais.

Nota-se como uma mesma doença – o Alzheimer – pode ser encarada por uma cuidadora como algo não grave, enquanto para a outra ela é vista como desencadeadora de sofrimentos e problemas pessoais/profissionais. Ou seja, não há, necessariamente, uma correspondência definida entre a situação dos idosos atendidos e o modo como suas mortes são interpretadas e moralizadas.

No último caso, não apenas há a questão do “alívio” relativo a uma condição de vida precária (pelas complicações de um acidente), como há uma dimensão de “aprimoramento” pessoal, em âmbito íntimo (experiência de vida e maturidade) e profissional (“bagagem de experiência”). Trata-se do “aprendizado” com a morte, o que nos leva à seção a seguir. É com base nessas diferentes formas de compreensão a respeito da morte, sustentadas por bases de sentido distintas, que entendemos existir diferentes “moralizações” da morte por parte das cuidadoras.

Aprendendo a lidar com a morte

Sobre sentimentos, afetos e emoções

Para James (1890a), a emoção começaria e terminaria por efeitos e manifestações, pois a vida mental em sua totalidade é entrelaçada à nossa estrutura corporal (JAMES, 2013). Isto é, um primeiro indicador de como pensar e analisar nosso âmbito afetivo se dá pelos efeitos constatados pelas pessoas em pesquisa, classificando certas sensações como “dor”, “tristeza”, “raiva”, “ansiedade extrema” etc. Pensamos esses elementos – partindo do constatado e comunicado pelas pessoas no exercício de suas falas e de suas lembranças –, como sugerido por John Dewey (1896), como um “circuito completo”. A proposta do pensador americano é interessante para esta pesquisa pela centralidade do afeto em ação (GARRISON, 2003). Nosso foco é dar conta do que direciona e molda a ação e as interpretações: os movimentos e seus efeitos explicam atitudes emocionais, não o inverso. Pensamento, afeto, ação, cognição etc., estão em um mesmo processo duracional-extensivo dos esforços das pessoas para coordenar seus comportamentos nas situações em que se encontram no presente. Cognitivo, afetivo e prático, no final das contas, são abstrações (QUÉRÉ, 2018).

Em suma, aqui chamamos de afeto aquilo manifestado no corpo na passagem de uma “realidade à outra” – considerando a existência de uma pluralidade de mundos (JAMES, 1907; SCHÜTZ, 1945) –, ou seja, é algo constituído como uma transição vivida (DELEUZE, 2017). No caso desse estudo, isso se traduz no rompimento de uma relação: a da profissional com o idoso que veio a falecer. Afetos são, portanto, viscerais (SEIGWORTH; GREGG, 2010; VANDENBERGHE, 2017): fluxos de energia pulsante, como intensidades, tendências e potencialidades que podem ser sentidas. Mas eles também podem ser caracterizados (e muitas vezes o são) como emoções – dor, tristeza, raiva, sofrimento. Tais afetos e/ou emoções “circulam” na mente/nos corpos das pessoas nas mais diversas situações como energia emocional (COLLINS, 2004), transportando-se entre essas7. Assim, as emoções podem operar mediando a relação entre o psíquico e o social e entre o individual e o coletivo (AHMED, 2004), interessando-nos justamente investigar a socialidade delas8.

A emoção (de tristeza, dor e/ou raiva, por exemplo, podendo haver composição entre essas) está ligada a um modo de conduta, a uma forma de se comportar e à qualidade de uma situação – como ela está sendo definida pela pessoa (THOMAS, 1923). As sensações de injustiça ou de algo ruim “inominável” sentido e comunicado, e o torpor sentido por algumas trabalhadoras, são afetos estritamente ligados a certas experiências e lembranças recuperadas ou despertadas repentinamente em certas situações. Pensamos o afeto mais como uma “coordenação problemática” de sensações (concretas ou imponderáveis) na definição de situação e a emoção como um ajuste agêntico da atitude com um fim representado (QUÉRÉ, 2018).

Optaremos por usar os termos “afeto” ou “sentimento” para traduzir esse âmbito de fenômenos vivenciado pelas cuidadoras. Mobilizamos esses termos para dar conta dos diferentes efeitos intensivos sentidos no corpo e suas modificações/alterações/reinterpretações. Essa discussão é necessária para entendermos como as cuidadoras buscam lidar com e “educar” tais sensações9, possibilitando a continuidade de suas rotinas nas dimensões pessoal e profissional.

O trabalho afetivo (ou como “educar” os sentimentos)

A moralização das experiências das cuidadoras sobre a morte dos idosos não é algo que se dá “naturalmente”, sem elaboração, mas muitas vezes é fruto de um trabalho ativo sobre os próprios sentimentos/afetos, construído e efetivado a partir de reuniões com equipes, pelo apoio psicológico e na frequência a palestras sobre luto e finitude. Ou seja, as concepções que elas têm sobre a morte (as “moralizando”) e a forma com que lidam com isso são também parte de seu trabalho e dependem de um processo de aprendizagem/modelagem10.

Para compreender esse processo, mobilizamos a noção de trabalho afetivo. Esse diz respeito à faceta do trabalho imaterial relativo à produção de subjetividades coletivas, da socialidade e da vida (HARDT, 1999). O filósofo e teórico literário Michael Hardt defende que a categoria de trabalho afetivo permite compreender diferentes âmbitos de como é possível se criar vida, isto é, de como em diversos domínios profissionais existe a produção e a reprodução dos afetos11.

Como observado no trabalho de campo, os espaços de comunicação formais e informais das cuidadoras são ambientes para se adquirir as habilidades necessárias ao trabalho, incluindo sua dimensão afetiva. Assim, o trabalho afetivo das cuidadoras envolve duas dimensões/diretrizes inter-relacionadas: 1) a comunicação por meio de sentimentos (ou os sentimentos como recursos mobilizados no trabalho), que se expressam especialmente no estabelecimento de relações íntimas (ARAUJO, 2019b); e 2) um trabalho ativo sobre o self (sobre o próprio self e sobre o self dos idosos) (ARAUJO, 2019b). Nesse texto, mostrou-se como o trabalho afetivo opera no cotidiano das cuidadoras de idosos em suas interações diárias com aqueles atendidos pelo programa. O trabalho afetivo também orienta a experiência que as cuidadoras têm com os processos de morte dos idosos de quem cuidam. O que fica evidente, por exemplo, nessa narrativa de uma cuidadora sobre a aceitação da morte:

Cuidadora 3: Se o paciente é terminal, é terminal, então. É frustrante? É. Mas a gente tem que encarar. A gente tem que encarar que eu vou indo, vou indo, vou indo, vou indo, mas aqui [eventualmente] já não tem mais pra onde eu ir, né? Então, eu não posso me frustrar porque chegou o fim; o limite da onde eu ir. Eu tenho que começar de novo, né? É assim que eu tô lidando agora, depois que eu aprendi, né? [risos]. Agora eu já sei como que é. A gente pode vir só até aqui. Passar disso, cai. Então, eu aprendi. (...)? Tem que passar pra aprender, né? É aprender na raça, como se diz.

Apesar da importância, constatada por meio do trabalho de campo e das entrevistas, de vivenciar e de aprender com as próprias experiências, há nas falas das cuidadoras o reconhecimento da importância do trabalho em equipe para ajudar a ressignificar as experiências de morte dos idosos atendidos. A ressignificação, fruto desse trabalho afetivo, tem como resultados tanto a diminuição do sofrimento quanto a possibilidade de continuidade do trabalho:

Cuidadora 6: E morre porque chegou a hora, mas pra nós é sofrimento. Só que a gente tem, às vezes, um cuidado,? Em equipe eles veem pra ensinar você a aceitar a perda deles [idosos]. Porque a gente não pode misturar, mas quem tem coração mistura um pouquinho. Não tem jeito, não tem jeito. Então, a gente sente muito a morte de cada um. Tinha uma que morreu faz pouco tempo, eu fiquei com ela oito anos. (...) Eu me controlei emocionalmente, mas ainda hoje eu sinto a falta dela. Era uma japonesa de 85 anos. (...). Então, não tem como eu falar pra você: “Morreu, ah é mais uma que foi e tá bom, já viveu muito”. Não tem como. Você sente assim um pouco, sim, doí um pouquinho. Você se controla emocionalmente pra não chorar,? Mas, assim, eu sinto muito. Mas eu consigo não misturar as coisas. Mas a gente sente a falta deles.

Pesquisadora: Mas como faz pra continuar o trabalho? Não querer parar, não querer só ficar triste. Como é que você faz?

Cuidadora 6: O que eu faço: eu tento desencanar do pensamento. Aí, eu chego aqui na minha equipe [e] tem todo aquele apoio,? Porque, quando se vai um, a gente sabe que todas sentem. Então, a gente começa a apoiar, começa a falar: “ó, se foi, chegou a hora, não tinha como viver mais, ela já tava com noventa anos – né, que tem muitos de noventa e oitenta e cinco anos, até cem – e vai entrar outra maravilhosa igual a ela”. (...) No comecinho do Programa, eu chorava bastante. Aí, teve uma psicóloga que veio ajudar a gente a saber aceitar a perda e isso me ajudou muito. Hoje eu não choro mais. Assim, eu choro um pouquinho por dentro, mas eu consigo desencanar porque tem outras idosas maravilhosas também. Aí, você vai se apegar mais àquelas ali que já tá com a gente,? A outra já foi, não volta mais. Mas, assim, se falar que não tem sentimento, é mentira, a gente sente. Mas, assim, que não atrapalha a minha vida na minha casa, com o meu filho, com o meu marido, isso não envolve. Eu não levo o problema daqui pra minha casa, disso eu tenho certeza. Saí daqui, eu deixei tudo aqui. Lá eu sou outra, eu sou eu.

Parte do trabalho afetivo, então, envolve certa colocação “em comum” das experiências de contato com a morte e dos sentimentos despertados como efeito, significando uma possível dessingularização da situação em que se vivenciou o falecimento de alguém e uma atenuação do sofrimento subsequente. Parte da variação entre as “moralizações” também dialoga com o afeto despertado e com a possibilidade de sua ressignificação – como acontece no caso do trabalho de alguns grupos de apoio, por exemplo (TALONE, 2020). Busca-se fazer com que as profissionais aprendam a redirecionar sensações “negativas”, canalizando a energia na formação de um objeto: a motivação para seguir na carreira, aceitando cuidar de outros idosos. Há um reengajamento em um projeto de si mesmo em reconexão com o futuro (TALONE, 2020). A força dessa passagem se dá pela dessingularização do sofrimento e da dor (POLLAK, 1990; BOLTANSKI, 2000; TALONE, 2020), mas no sentido não de dilatá-los como “mais uma história dentre outras”, e sim no de partilhá-los – tensionando uma moralização sobre a morte vivenciada – e de possibilitar a continuidade da vida pessoal e profissional.

Vejamos outro relato:

Cuidadora 7: Logo que eu entrei faleceu vários idosos. Aí, depois foi dando uma acalmadazinha. Agora deu uma acalmada. Mas faleceu acho que uns 5 meu já. Desde o ano passado. Mas faz parte. (...) E a gente tem as capacitações também, né, que prepara a gente pra esses momentos. E já teve até duas sobre finitude e morte, duas capacitações. Ajuda bastante a superar. Eu já tinha esse negócio de morte. Eu tive um irmão que faleceu com ٣٣ anos de AIDS. Igual quando ele tava vivo, ele tava sofrendo. Lá do Rio de Janeiro. Ele tava num hospital lá. Eu só chorei uma vez. Assim, chorar mesmo. Que foi quando ele... Eu fui lá e ele passou mal, teve que pôr oxigênio. Aí, eu chorei muito quando eu cheguei aqui em São Paulo. Mas quando ele morreu, não. Eu achei que uma situação... Certas situações é melhor a pessoa partir.

Pesquisadora: Do que ficar sofrendo?

Cuidadora 7: É.

Uma outra acompanhante comenta sobre as palestras que a equipe promove mensalmente abordando assuntos relacionados ao trabalho de cuidado.

Pesquisadora: E você consegue utilizar no seu dia a dia isso que você aprende?

Cuidadora 8: Ah, sim. Principalmente a perda, né? Porque você conhece uma pessoa e, assim, de repente (...) ela falece,? Então, você tá acostumada a ir visitar toda semana, você já sabe o hábito mais ou menos da pessoa. E,, você do nada, você recebe uma ligação: “Olha, fulana faleceu”, né? Então,, a gente tem que entender que ali foi o momento dela,? Porque no começo a gente chorava muito. Eu mesmo chorava muito com a perda,? Falava: “Nossa, mas, a pessoa assim foi, tão boa que ela era... né e não sei o quê”. E,, você vai entendendo,? Porque uma pessoa de 90 anos, né, ela já cumpriu o tempo dela aqui.

Como pode ser observado, certas reações/emoções são previstas pelas equipes dessa política pública, orientando formas de “como sentir” para as cuidadoras, que modelam suas sensações ou não de acordo com as partilhas possibilitadas no cotidiano de seus trabalhos. A própria qualificação da morte como “justa”, “injusta”, “boa”, “precoce” etc., dialoga com o âmbito afetivo, sua (des)singularização e sua possível ressignificação.

Quéré (2018) indica que educar emoções e afetos é aprender a redirecionar impulsos “não organizados”, canalizando a energia na formação de um objeto, conferindo-lhe forma, organização, bloqueando sua descarga imediata; por exemplo, transformando-se o sofrimento de ter perdido alguém sob seu cuidado ou um sentimento difuso de “falta de propósito” em energia para seguir atendendo outros idosos. Inspirado em John Dewey, o autor afirma que emoções podem ser educadas por serem hábitos formados em um ambiente social. As elaborações pessoais a respeito das experiências profissionais (que vão se multiplicando ao longo do tempo) somam-se aos treinamentos frequentados: assim, as cuidadoras conseguem “reinterpretar” certas situações e modificar a forma como se sentem em relação a elas12. Elas “enviesam” formas de sentir antes “negativas” (por exemplo: incapacitantes, doloridas) em “forças” para prosseguirem a vida – formas “positivas” de se sentir, ou seja, construtivas, estimulantes etc.13

Considerações finais

Buscamos mostrar com a relação com a morte na profissão das cuidadoras inseridas em uma política pública varia de acordo com a “moralização” de um dado falecimento. A partir do trabalho de campo, pensamos a moral a partir dos quadros plurais de referência a que as profissionais relacionam referências sobre o “bem”, suas ações e o falecimento do idoso. As qualificações da morte como “justa”, “injusta” e “natural”, por exemplo, refletem “gramáticas” distintas de conceber o bem e o estabelecimento de normalidades nelas baseadas (WERNECK, 2012b). Por fim, esse processo também dialoga com a forma com tais cuidadoras se sentem em relação aos idosos sob seus cuidados e à morte deles. Uma maior sensação de tristeza ou de apatia, por exemplo, muitas vezes dialoga com a interpretação de que as causas (principais) da morte não foram “naturais” ou de que algo podia ter sido feito. O âmbito afetivo é trabalhado pelo programa – e entre as próprias cuidadoras, compartilhando suas experiências – justamente para possibilitar reinterpretações e compreensões distintas a respeito do falecimento vivenciado, visando a possibilitar a continuidade da vida pessoal e profissional das cuidadoras de idosos.

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Recebido em: 24/06/2021

Aceito em: 17/03/2022


1 Este artigo é resultado de reflexões no âmbito de: 1) pesquisa de pós-doutorado financiada pela Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (processo 2020/05176-3); 2) pesquisas de doutorado financiadas pela Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes) – Código de Financiamento 001; e 3) pesquisa de pós-doutorado financiada pela Fundação Carlos Chagas Filho de Amparo à Pesquisa do Estado do Rio de Janeiro (processo E-26/202.009/2020).

2 Logo, distingue-se de uma sociologia moral cujas reflexões implicam um direcionamento a respeito de como o mundo deveria ser.

3 Para “histórias” da morte e as distintas abordagens da filosofia, da sociologia, da antropologia e da religião a seu respeito, ver Davies (2005). Sobre a morte e as várias formas de lidar com ela, ver Aries (2000).

4 Reproduzimos a transcrição das falas como foram ditas, por vezes as editando pontualmente para dar maior clareza ao/a leitor/a.

5 Como Misse (1999, p. 39) destacou: “[n]ão existe ‘violência’, mas violências, múltiplas, plurais, em diferentes graus de visibilidade, de abstração e de definição de suas alteridades”.

6 Certas situações de contato com a morte podem se tornar “paradigmáticas” para as pessoas que lidam com elas, justamente por a considerarem “injusta”, “absurda”, “violenta” etc. As lembranças de tais situações podem retornar em momentos posteriores e influenciar as sensações presentes (TALONE, 2019; 2020).

7 Talone (2020) explora como tais afetos existem junto às lembranças de pessoas que tiveram alguma forma de contato com a morte, podendo ser algo localizado no corpo de maneira direta (taquicardia, dores nas juntas) ou tomando forma como “atmosferas”: de preocupação, de nervoso, de alegria etc.

8 A dimensão emocional do trabalho de cuidado de idosos, embora não relacionada à questão da morte, também foi explorada em Araujo (2019a).

9 Pois uma pessoa é o conjunto formado por seu corpo, seus poderes psíquicos, suas posses, suas relações, seus afetos e emoções, sua hereditariedade, sua reputação e tudo o que lhe disser respeito (JAMES, 1890b). Sendo preciso, assim, também darmos conta do âmbito afetivo para compreendermos os efeitos das experiências vivenciadas.

10 Uma outra entrada da discussão sobre esse tema, como explorado por Corôa (2016), mostra como as políticas de saúde no Brasil passaram a ser marcadas pela “nova gestão” (BOLTANSKI; CHIAPELLO, 1999), sobretudo a partir do início dos anos 2000, expressando-se, por exemplo, em diretrizes de humanização do cuidado e em diretrizes para “gerir” aspectos socioemocionais do trabalho em saúde. Isso surgiria como expressão de um conjunto de ideais dando novo sentido ao trabalho e ao engajamento no capitalismo.

11 O autor, inclusive, pensa a noção foucaultiana de biopoder nessa chave, para além da gestão da população.

12 Talone (2020) mostra como isso é muitas vezes o objetivo de grupos de apoio assistindo a vítimas de “violência”, buscando tal “transformação” dos afetos/das emoções por rodas de conversas, atividades de engajamento no próprio grupo e atendimentos com psicólogos.

13 Nesse texto, apenas buscamos descrever o “trabalho afetivo” realizado e os mecanismos de ressignificação do âmbito das sensações/emoções visando a tornar a comunidade da vida pessoal e profissional possível. Não nos detemos sobre o caráter problemático das ações de gerenciamento dos afetos, especialmente no trabalho.

DIREITOS HUMANOS E CINISMO LEGAL:

perspectivas e atitudes diante de normas de direitos humanos


HUMAN RIGHTS AND LEGAL CYNICISM:

perspectives and attitudes towards human rights norms

____________________________________

Mariana Possas*1

Resumo

Desde os anos de 1970, os direitos humanos se apresentam no Brasil como alternativa concreta de regulação de comportamentos e discursos violentos e/ou discriminatórios. Ao mesmo tempo em que se consolidam no imaginário político, um movimento de resistência à regulação pelos parâmetros dos direitos humanos se apresenta e vai crescendo durante as décadas subsequentes. Este trabalho procura compreender o movimento de resistência à disseminação desse imaginário a partir do conceito de cinismo legal, observado nas falas de imigrantes brasileiros residindo no Canadá sobre os usos possíveis das normas internacionais de direitos humanos.

Palavras-chave: Direitos humanos. Cinismo legal. Sociologia dos direitos. Convenção de Refugiados.

Abstract

Since the 1970s, human rights have been presented in Brazil as a concrete alternative for regulating violent and/or discriminatory behaviors and speeches. At the same time that they consolidate in the political imagination, a movement of resistance to regulation by the parameters of human rights presents itself and grows during the subsequent decades. This work seeks to understand the resistance movement to the dissemination of this imaginary from the concept of legal cynicism, observed in the speeches of Brazilian immigrants residing in Canada about the possible uses of international human rights norms.

Keywords: Human rights. Legal cynicism. Sociology of rights. Refugee Convention.

Introdução

Como são os usos e representações das normas legais de direitos humanos no Brasil contemporâneo? Com essa questão este artigo pretende contribuir para uma Sociologia das normas, com foco em um determinado uso instrumental das normas legais (leis, decretos, tratados, instruções etc.) de direitos humanos e sobre uma atitude cínica em relação aos benefícios que as normas de direitos humanos podem gerar.

Esse texto se enquadra, portanto, no projeto coletivo de construção de uma Sociologia dos direitos e, mais especificamente, dos direitos humanos (SOMERS; ROBERTS, 2008, SJOBERG, et al., 2001) que cada vez mais se apresenta como uma empreitada moral e intelectualmente necessária para compreender os avanços e, sobretudo, as barreiras de várias ordens à realização


1* Professora associada do Departamento de Sociologia da UFBA, pesquisadora do Laboratório de Estudos sobre e crime e sociedade (LASSOS) da UFBA, doutora em criminologia pela Universidade de Ottawa, Canadá. E-mail: marianapossas@gmail.com

ISSN 1517-5901 (online)

POLÍTICA & TRABALHO

Revista de Ciências Sociais, nº 55, Junho/Dezembro de 2021, p. 93-112

dos direitos humanos como discurso e como prática política, jurídica e moral. Vou tomar o sentido de direitos humanos como uma construção discursiva da realidade, expressa em várias dimensões materiais (REINER, 2006), que aparecem em leis, em discursos, em plataformas políticas, em julgamentos, em decisões científicas, em ações educacionais.

Do ponto de vista empírico, este trabalho é baseado em pesquisa realizada durante o período em que estive na Universidade de Toronto, como pesquisadora visitante1. Meu interesse era investigar as formulações negativas, antidireitos humanos, que se produziam e reproduziam no senso comum brasileiro, em especial as formulações que associam direitos humanos à proteção “indevida” de bandidos, atribuindo uma valoração negativa a uma certa mobilização da “trama discursiva” (PIRES; GARCIA, 2007) dos direitos humanos. Para isso, analisei documentos públicos de várias naturezas, como artigos de jornais, blogs, perfis e manifestações em redes sociais (Twitter e Facebook), todos acessíveis pela internet, nos quais as formulações negativas aparecem explicitamente. Além disso, realizei onze entrevistas semiestruturadas2 com imigrantes brasileiros residentes no Canadá, de diferentes idades, originários de diversas regiões do Brasil e com diferentes experiências de imigração em termos de tempo de residência e status legal3.

Quadro 1 – Perfil dos entrevistados

N.

Status legal (ocupação)

Gênero

Faixa de idade

Cor

Cidade de
origem

Residência no Canada

1

Turista
(estudante de línguas)

Homem

20 anos

Branco

Porto Alegre (RS)

5 anos

2

Estudante (pós-graduação)

Homem

20 anos

Branco

Rio de Janeiro (RJ)

8 meses

3

Imigrante (cabelereira) 

Mulher

60 anos

Branca

Goiânia (GO)

20 anos 

4

Imigrante (jornalista) 

Homem

30 anos

Branco

São Paulo (SP)

7 anos 

5

Imigrante (escritório de advocacia)

Mulher

30 anos

Branca

São Paulo (SP)

+ 20 anos 

6

Refugiada (estudante de línguas)

Mulher Trans

30 anos

Negra

Camaragibe (PE)

2 anos

7

Imigrante (aposentado) 

Homem

70 anos

Branco

Rio de Janeiro (RJ)

10 anos 

8

Imigrante (aposentado) 

Mulher

70 anos

Branca

Porto Alegre (RS)

10 anos

9

Imigrante (empresário)

Mulher

50 anos

Branca

 Governador Valadares (MG)

 ٣٢ anos 

10

 Imigrante (babysitter)

Mulher

60 anos

Branca

Belo Horizonte (MG)

 ١٦ anos

11

Imigrante (designer)

Homem

30 anos

Branco

Recife (PE)

 ١٢ anos 

(Fonte: Autoria própria)

Por que entrevistar imigrantes brasileiros morando no Canadá a respeito de um traço cultural especificamente brasileiro? As entrevistas não estavam no plano original da pesquisa, cujo campo seria feito exclusivamente a partir de documentos obtidos na internet. No entanto, chegando em Toronto me dei conta do tamanho da comunidade brasileira morando na cidade que, ao lado da portuguesa, compõe uma enorme comunidade de luso-falantes4. Além disso, como esperado, encontrei uma comunidade politicamente polarizada, com todas as implicações relacionais que a polarização atual promove. Essa configuração me indicava também opiniões polarizadas sobre direitos humanos, seus sentidos e possibilidades de aplicação. Minha hipótese, portanto, foi que a despeito da condição de imigrantes, eu iria encontrar maneiras de apresentar negativamente os direitos humanos “no Brasil” e “para o Brasil”, de maneira igualmente interessante que em relação aos brasileiros residentes no território brasileiro.

Minha hipótese foi confirmada e a condição de imigrante possibilitou observar uma dimensão específica de cinismo legal (SAMPSON; BARTUSCH, 1998) em relação às normas (internacionais) de direitos humanos. A condição de ilegalidade do imigrante indocumentado, como apareceu claramente nas entrevistas, é ressignificada moralmente e a possibilidade de descrever essa condição de maneira negativa, ou seja, como “coisa de “bandido”, é afastada. E normas legais de direitos humanos, especialmente o Protocolo de Refugiados da ONU (1967) são usadas como estratégia pragmática de “legalização” da imigração.

De outro lado, as mesmas pessoas que utilizaram como estratégia legal o tratado da ONU vão argumentar que os “direitos humanos” no Brasil defendem demais o bandido, sendo em parte responsável pela impunidade no país, e refletindo uma inversão de valores entre o certo e o errado, os bons (cidadãos) e os maus (bandidos). A associação entre direitos humanos e bandidos como uma realidade comunicativa (LUHMANN, 1984) indica a produção e reprodução de uma operação cognitiva particular e negativamente valorada sobre o uso dos direitos humanos na sociedade brasileira contemporânea.

Direitos humanos para bandidos

Há algumas décadas assistimos ao processo de contestação, restrição ou desvalorização dos direitos humanos como imaginário político (LOPEZ, 2018) na América Latina (KRAUSE, 2020) e em outros lugares do mundo ocidental como na Inglaterra (WAGNER, 2014) ou nos Estados Unidos (SOMERS; ROBERTS, 2008; ALSTON, 2017).

Nos países da América Latina, o regime democrático, que sobreveio às ditaduras violentas e conhecidas por praticarem uma série de violações de direitos humanos em nome da estabilidade política, não significou o fim das violações. Ao contrário, significou uma mudança de qualificação das vítimas e dos abusos sofridos. A perseguição a atores políticos cede (ou retoma) o lugar à (da) perseguição de “criminosos” e grupos marginalizados específicos. O crime e a violência urbana crescentes, sobretudo a partir dos anos 1980, alimentam os discursos antidireitos humanos, que atribuem à agenda humanista5 a responsabilidade pelo aumento das taxas de crimes violentos. Tanto na Argentina, como no México, parcelas importantes da população concordam que criminosos não devem ter direitos humanos respeitados, nem serem protegidos por eles (KRAUSE, 2020) 6.

No Brasil, a expressão que representa esse fenômeno é “direitos humanos é direito de (ou para) bandido”. Ela explicita a concepção corrente de que direitos humanos são privilégios de bandidos em detrimento (da segurança) dos cidadãos de bem. Nos anos 1980, na cidade de São Paulo, Caldeira (1991, 2000) identificou esse fenômeno dentro de um contexto do que a autora chamou de “campanha de oposição à defesa de direitos humanos”:

De reivindicação democrática central do processo da chamada abertura política, defendida por amplos setores da sociedade, os direitos humanos foram transformados, no contexto de discussões sobre a criminalidade, em privilégios de “bandidos” a serem combatidos pelos homens de bem. (CALDEIRA, 1991, p. 162).

Caldeira (1991) observou, de um lado, a associação direta de sentidos entre direitos humanos e favorecimento de criminosos e, de outro, a dissociação dos direitos sociais em direitos em geral, como direito à saúde ou habitação, que são defendidos e reconhecidos por todos. A ideia de direitos em geral não é questionada, mas a noção de direitos humanos, sim; especialmente, após o período da democratização, quando passa a se vincular a defesa de presos comuns no lugar dos presos políticos da ditadura.

A defesa de presos comuns desperta manifestações por um tratamento diferencial do direito que supõe, ao contrário da proposta formal de igualdade de direitos, uma desigualdade jurídica (KANT DE LIMA; PIRES, 2014), levando em consideração os diferentes status dos indivíduos em determinados contextos. Esse tratamento diferencial é uma característica cultural brasileira que foi observado em diversas situações empíricas, em diferentes momentos históricos. (DAMATTA, 1979; OLIVEIRA, 2011, 2018; KANT DE LIMA; PIRES, 2014). A mobilização da expressão “você sabe com quem está falando?” (DAMATTA, 1979), ainda que cada vez menos observada na esfera pública (OLIVEIRA, 2018), permanece atual para compreender como se forma e se manifesta a percepção do tratamento desigual.

Associada a essa característica, o Brasil tem um longo histórico de punições violentas legais e ilegais. De fato, a legalidade/ilegalidade é menos o critério do que a intensidade do uso da violência. Uma pesquisa realizada pelo Núcleo de Estudos da Violência, em 2012, mostrou que 39,5% dos entrevistados concordavam com a expressão de que “direitos humanos são para bandidos” (CARDIA et al., 2012). Em 2016, o Fórum Brasileiro de Segurança Pública mostrou, no Anuário daquele ano, que 57 % dos seus entrevistados concordavam com a afirmação de que “bandido bom é bandido morto” (FÓRUM BRASILEIRO DE SEGURANÇA PÚBLICA, 2016).

Existe uma ampla literatura sobre esse tema que já apontou para esse fenômeno classificatório e produtor de distinção entre os “bandidos”, a serem severamente punidos, e os demais cidadãos (“de bem”), a serem protegidos (MISSE, 1999; ADORNO, 2000; SINGER, 2003; FREIRE, 2010; LEANDRO; FIGUEIRA, 2014; EILBAUM; MEDEIROS, 2015; CARDOSO DE OLIVEIRA, 2018; LEMOS, 2019; HIGA; ALVAREZ, 2019). As entrevistas realizadas em Toronto confirmaram a atualização dessa distinção, assim como dos critérios utilizadas para aplicar a categoria: “bandidos” são pessoas pobres, normalmente homens, distribuídos entre “traficantes”, “vagabundos”, “assaltantes”. Em outras palavras, pessoas desprovidas da “substância moral das pessoas dignas” (CARDOSO DE OLIVEIRA, 2018)

Como expressão dessa atitude distintiva, identifiquei nas entrevistas realizadas dois grandes pontos de vista opostos em relação aos direitos humanos. De um lado, uma parte dos entrevistados reverberam, com maior ou menor intensidade, a ideia de que direitos humanos são direitos de bandidos. Ou seja, não só concordam com a expressão como produzem e reproduzem a crítica aos direitos humanos de que seus usos concretos protegeriam demais pessoas que não merecem esse tratamento, como os “bandidos”. De outro lado, uma parte menor dos entrevistados não reverbera a ideia, ou seja, não concorda com a expressão e entende que os direitos humanos podem ser aplicados a todas as pessoas, inclusive aos condenados pela justiça. Utilizei a expressão “reverbera” para indicar as construções discursivas que são reproduzidas em contextos comunicativos diversos relacionados à situação dos direitos humanos no Brasil. Dentre o grupo que reverbera, ou seja, que vê com problemas os usos concretos dos direitos humanos, identifiquei dois níveis de adesão à ideia.

Num primeiro nível, claramente expresso, os direitos humanos são representados negativamente, como algo prejudicial à sociedade na medida em que protege bandidos e vagabundos e inverte os valores da sociedade. “Os direitos humanos sempre, em qualquer situação, no dia seguinte, vai falar que o policial tá errado” (ENT 3)7 Num segundo nível, a crítica (e com ela a resistência) aos direitos humanos aparece reformulada e de maneira mais matizada. O problema não está na proteção de bandidos versus pessoas de bem, mas na proteção de grupos muito específicos ao invés de focar em problemas mais gerais da população. “Ninguém relaciona direitos humanos com o INSS? Onde as pessoas são tratadas como coisas? (...) E não ficar fazendo passeata gay. Gente, isso é outra coisa. Isso são aqueles pedacinhos de determinados grupos” (ENT 7). Neste segundo nível, os “bandidos” desaparecem como o problema e dão lugar às “minorias”, que nas entrevistas foram associadas a grupos como LGBTQIA+, indígenas, pobres, negros entre outros.

Quadro 2 – Adesão à associação entre direitos humanos e bandidos

REVERBERA

 “Direitos humanos para bandidos”

NÃO REVERBERA

“Direitos humanos para bandidos”

“Direitos em excesso para os bandidos

Reformulação: “Direitos escassos para a maioria”

ENT 4

ENT 5

ENT 6

ENT 11

ENT 1

ENT 2

ENT 3

ENT 9

 ENT ١٠

ENT 3

ENT 7

ENT 8

(Fonte: Autoria própria)

De maneira geral, dentre o grupo que reverbera a associação negativa entre direitos humanos e bandidos, os direitos humanos são construídos como uma estratégia ou movimento “antipolícia”, que se posiciona sempre contrário às ações da polícia e condena toda violência praticada contra os “bandidos”. Nessa construção, as ações violentas são vistas como necessárias, seja para conter o “bandido”, seja para se defender das “ações dos bandidos”, nos supostos “tiroteios”. Nesse sentido, os direitos humanos, ao limitarem a violência nesse contexto, são considerados como um obstáculo à promoção da ordem e da segurança.

[Direitos humanos] eu acho que atrapalha mesmo. Principalmente quando é uma polícia honesta, vamos assim dizer. Porque existem muitos que são coagidos. Recente agora, mataram um policial. Então o que acontece? Às vezes a polícia até quer fazer alguma coisa e não pode agir. Exatamente por causa disso. Vou te dar um exemplo que me revoltou muito daqui. Eu tenho um amigo que ele é tenente da... Como que chama em São Paulo? ROTA? (...) Ele é tenente, ainda é. Mas ele quase pirou com isso. Ele é super certo, super correto e eu digo isso porque eu conheci há muitos anos e conhecia família e conhecia tudo dele, né? Então eu posso dizer que era uma pessoa séria. E teve uma denúncia de uns traficantes no Guarujá. E aí teve um confronto da polícia com os traficantes. E ele matou o chefe nesse confronto. Ele matou o chefe do traficante. Você acredita que ele foi preso trinta dias? [Preso] na polícia. Trinta dias. Porque ele matou o bandido. (pausa) Olha, ele ficou tão mal com isso que ele resolveu largar o Brasil e veio pra cá. (ENT 9)

Essas leituras da realidade não são novas no Brasil, como vimos pelas pesquisas realizadas. As duas falas transcritas acima atualizam os sentidos observados por Caldeira (2000), Cardoso de Oliveira (2011, 2018) entre outros, e mostram que essas perspectivas não somente estão em pleno vigor como amplamente espalhadas pelo Brasil. A proteção do bandido que essas falas criticam é justamente a proteção oferecida pela lei, operacionalizada pelo sistema de justiça, por meio dos direitos inerentes ao processo penal e à prisão. São justamente alguns aspectos dessas leis e seus usos empíricos que são interpretados como “guarida pra bandido”.

É… o índice de violência, o stress que a gente vivia [nos anos ١٩٧٠] era bem menor, era bem menor mesmo, né? E as leis eram mais rígidas, né? Que a última constituição, eu não tô falando que direito humano é direito de bandido não, tô falando de constituição. Então tinha uma constituição onde deu muita guarida pra bandido mesmo. Vou citar um exemplo. É perto da minha casa, em Goiânia, que é uma metrópole, que hoje tem três milhões de habitantes, ou mais, não sei, tinha um posto de gasolina que a gente sempre abastecia ali. A família inteira abastecia naquele posto de gasolina. E o vigia da noite era um velhinho de setenta e poucos anos. E um menino de quatorze anos matou esse velhinho pra roubar na madrugada. Pra roubar o posto, matou na madrugada. No mesmo dia, exatamente no mesmo dia, um comerciante a dois, três quilômetros de distância do posto matou um menino de dezesseis anos de idade que estava tentando roubá-lo com mão armada. (...) E já tava esse grande movimento dos direitos humanos. O que que aconteceu? (...) O cara que matou o menor de idade foi preso. Flagrante, porque ele não fugiu. Flagrante. A imprensa o massacrou. Os direitos humanos o massacrou. Ele foi massacrado barbaramente. (...) Ninguém falou que o menor de idade matou ele. Ninguém falou, sabe? Direitos humanos não foi atrás, ninguém falou nada. Mas o que matou o menor que estava querendo roubar... Então, na minha opinião, isso da minha e da minha família inteira discutindo isso (...) O que se subentendia é que o cara devia ter deixado o menor matar ele.  Então eu acho que falar que direitos humanos é direito de bandido é muito pesado são várias vertentes dos direitos humanos, mas existem algumas vertentes dos direitos humanos que está dando sim, muito poder a bandido. Porque nos Estados Unidos esse menor ia preso. (ENT 3)

Além desses dois (proteger bandidos e desproteger as vítimas) observei também outros “equívocos” cometidos pelos direitos humanos em relação aos “bandidos”, no sentido de facilitar ou beneficiar sua vida de maneira descabida. Dentre esses equívocos eu destaco a menção negativa ao “bolsa-preso”.

Como por exemplo..preso não poder trabalhar no Brasil e ainda ter pensão, salário, né? A família ainda tem auxílio prisão. Auxílio... O pessoal tá falando auxílio bandido e é auxílio bandido, cara. É auxílio bandido. Existe e é uma lei, né? Quanto que é o auxílio bandido, [sobrinho]? [sobrinho responde: “mais do que um salário mínimo. Eu não sei o valor exato.” Pra família do bandido. (...) (ENT 3)

 Outro [caso de direitos humanos] que eu acho um absurdo é a família de preso tem o seu salário ali. (...)  Então o que acontece? Por exemplo, “Eu não tenho emprego, entendeu? Eu não tenho emprego, minha família tá morrendo de fome. Ah, eu vou matar alguém pra mim ser preso pra minha família tá protegida. Vai ter o que comer.” Ele tá lá preso, mas quem tá pagando a estadia dele lá é o povo. Quem tá pagando o salário da família dele é a família do cara que ele matou. (...) Então eu acho assim, tem que analisar caso por caso. Olha, essa realmente é um caso de direitos humanos. Vamos trabalhar, vamos batalhar, né? Pra apoiar, pra ajudar. Não, isso aqui não. Esse caso não é o caso. Isso aqui é safadeza mesmo, né? Então vamo meter o coro. (ENT 9)

O “bolsa-preso” mencionado nas falas se trata de um auxílio, legalmente previsto, dirigido à família do preso, desde que ele tenha em algum momento contribuído para o INSS. Para as pessoas entrevistadas, não é correto o Estado pagar para a família do criminoso, enquanto ele mesmo está preso e ainda por cima sem trabalhar. A defesa desse auxílio, como de outros direitos dos presos “bandidos”, é diretamente associada aos direitos humanos, tanto na forma de leis como na forma de movimentos sociais e reivindicações políticas. Para a entrevistada 03, proteger em excesso o bandido é também um problema do Canadá, que também teria seus “direitos humanos demais”. Nesse caso, o excesso foi atribuído à proteção de manifestantes da violência policial na contenção da manifestação, culpabilizando policiais pela violência. Essa foi a única entrevista em que a crítica aos direitos humanos no Brasil se estendeu para o Canadá, aproximando as duas realidades como lenientes em relação a uma certa “desordem”.

Então eu acho que aqui também tem direito humano demais. [No encontro do G-20 em Toronto, durantes as manifestações que houveram na cidade] E a polícia deu umas cassetadas, prendeu alguns… E os direitos humanos caíram cima. Da polícia. Isso durou, assim, capaz tá tendo processo até hoje, não sei. Então mostrou-se que os policiais estavam totalmente errado. Né? Sendo que não estão [errados] porque tem que ter organização. Eu concordo com os Estados Unidos que é o seguinte (...). Eu morei lá(...) Cê tá entendendo? Então a lei lá é essa atira primeiro pergunta depois. O que que isso faz acontecer? As pessoas respeitam mais. As pessoas respeitam muito mais. (ENT 3)

Existe uma característica comum entre algumas entrevistadas, o que de certo modo permitiu a reflexão central proposta por este artigo: as entrevistadas 03, 09 e 10 chegaram ao Canadá como migrantes indocumentados e assim permaneceram por algum tempo. E nenhuma delas pareceu demonstrar qualquer problema moral particular com essa condição. A entrevistada 03 foi presa e deportada justamente por estar ilegalmente no país, mas em sua fala ela claramente distingue o imigrante ilegal, “sem documentos”, ou “indocumentado” de outras ilegalidades, especialmente de crimes. É muito importante distinguir que “imigrante ilegal não é bandido”:

Brasileiro, ele é preconceituoso, né? Às vezes eu vejo nos grupos falando de uma maneira muito pejorativa do imigrante ilegal, sendo que o próprio Canadá não vê o imigrante ilegal com esses olhos tão feios, né? Como se fosse bandido. (...) O Canadá não vê o imigrante ilegal como bandido. Né? É uma… contravenção, não é? e não um crime. (ENT 03)

Nas três entrevistas, apareceu uma distinção também muito marcada entre os que chamaram “hotel de imigração” de uma prisão normal, ou seja, para criminosos. No “hotel de imigração existe todo um respeito” e, portanto, toda uma distinção entre bons e maus.

Eu fui presa no Canadá em dois mil e cinco. Fui deportada. Na época, inclusive, dei muitas entrevistas. Pra jornal, televisão... (...) E voltei dois anos e meio depois como imigrante e tô até hoje aqui. Fui presa porque fui denunciada. Por ser imigrante ilegal. Eu tava esperando o meu divórcio pra me casar com [nome] e meu pai me ligou de manhã falando que meu divórcio tinha saído e à tarde eu fui presa. Mas eu voltei. O Canadá me recebeu muito bem. Até na prisão, né? Fui deportada. Tanto que o pessoal não fala prisão, fala hotel de imigração, né? Existe todo um respeito. (ENT 03)

É tipo um hotel. É, eles não vão pra... Tem a cadeia que é pra crimes, seja pequeno ou grande, é tipo dividido. E tem um hotel que fica na (inaudível) que é totalmente fechado. Você não tem contato. Até as visitas é através de vidro e telefone. (...) É um centro de detenção, mas com respeito. (ENT 9)

Não surpreende que o respeito aos imigrantes é traduzido por elas como um exemplo positivo de “naturalização” dos direitos humanos no Canadá. O respeito, o tratamento e a recepção dos imigrantes são traduzidos como o grande diferencial humanista do Canadá, de respeito ao diferente e aos mais vulneráveis.

O canadense é muito direitos humanos. (risos) Né? Pelo menos os que eu conheço. É claro que existe canadenses e canadenses. É uma coisa natural pra eles. (...) Então um dia eu tava conversando com um velhinho lá que fica e ele disse assim: Ah eu fico tão feliz com os imigrantes aqui.”  Aí eu falei “Ah o senhor gosta? O senhor gosta daqui?” Ele falou “É. E eu fico mais feliz ainda porque assim, eu aprendi com o meu imposto...” olha só, eu aprendi com meu imposto, ele é para facilitar a vida das pessoas que não podem, que não têm acesso a essas coisas. E eu fico feliz porque esse imposto, ele realmente funciona. Eu pago esse imposto e ele funciona. E eu.. pode dar chance pras pessoas que nem você vir pra cá e podem usufruir também do que a gente consegue fazer com isso.” (ENT 10)

O que observei nesse conjunto de falas foi, de um lado, uma atitude de desconfiança e crítica explícita aos direitos humanos, quando se trata de bandidos ou dos moralmente indignos (OLIVEIRA, 2018), em oposição aos imigrantes ilegais que, apesar de estarem em situação ilegal, são “trabalhadores” e “cidadãos de bem” e, portanto, claramente distinguíveis dos bandidos (cidadãos do “mal”). Essa operação moral garante o merecimento da proteção dos direitos humanos, independentemente da condição legal.

Cinismo legal e indiferença moral

Para Simmel (1989), a indiferença moral expressa o processo de embotamento das diferenças, ou seja, o processo de anulação do valor das diferenças tomadas como referência. A figura do “outro”, sempre desconhecido, é alvo de aversão, hostilidade e repulsa recíproca. Esse diagnóstico dos comportamentos típicos das grandes cidades ajuda a compreender uma das dimensões importantes referentes à recepção de certas normas, especificamente as normas legais de direitos humanos.

Podemos pensar as normas de direitos humanos (leis, tratados, decretos, convenções, acordos, etc.) como uma ferramenta tipicamente moderna, impessoal, abstrata e altamente intelectualizada da vida em sociedade. A representação intelectual, racionalizada da vida, ou o “intelectualismo da existência” (SIMMEL, 1989) exige operações cognitivas abstratas e estranhas à experiência cotidiana e facilmente acessível aos sentidos, e que por isso mesmo gera fortes reações. A incapacidade de estabelecer a diferença entre determinadas situações-problema ajuda a compreender a atitude de cinismo legal em relação às normas (nacionais e internacionais) de direitos humanos.

Cinismo legal é um conceito que expressa atitudes diante da lei e de sua aplicação (SAMPSON, 2012; SAMPSON; BARTUSCH, 1998; HAGAN; KAISER; HANSON, 2016; CAMPEAU; LEVI; FOGLESONG, 2020) caracterizadas como desconfiança, suspeita e estranhamento diante da norma legal. Sua origem está no conceito de anomia de Durkheim, ou o estado de ausência de normas, no qual as regras centrais da sociedade, como as regras do direito, não são percebidas como impositivas para determinada população ou subgrupo. O cinismo legal e a anomia se distinguem da tolerância com o desvio ou com o crime, considerando que existem pessoas altamente intolerantes em relação ao crime, mas que vivem em contextos de baixa adesão às normas e sanções legais e sua consequente percepção de justiça:

Os mais expostos à realidade entorpecente da segregação generalizada e da subjugação econômica tornam-se cínicos sobre a natureza humana e os sistemas jurídicos de justiça – mesmo quando condenam pessoalmente atos de desvio e violência que tornam a vida mais precária. (SAMPSON; BARTUSCH, 1998, p. 801, tradução minha).

Na pesquisa realizada em Chicago, Sampson e Bartusch (1998) propuseram medir o cinismo legal, entre outras estratégias, a partir do nível de concordância com cinco afirmações sobre adesão à lei e a certas normas de convivência 8. O elemento comum dessas assertivas é a percepção de que a lei não orienta nem determina as decisões na vida cotidiana dos respondentes (SAMPSON; BARTUSCH, 1998, p. 789, tradução minha). Nas entrevistas e em suas comunicações sobre direitos humanos, pude observar uma atitude curiosa em relação às normas jurídicas e seus usos, em determinados tratados internacionais de direitos humanos. Três dos meus respondentes fizeram uso do Protocolo de Refugiados da ONU, que foi assinada pelo Canadá em 1968. Esse Protocolo garantia a contínua aplicação das regras da Convenção de Refugiados de 1951, que tinha sido elaborada especificamente para as vítimas da Segunda Guerra Mundial9.

O artigo 2° da Convenção relativa ao Estatuto dos Refugiados, define “refugiado” como qualquer pessoa que:

“2 (...) em conseqüência dos acontecimentos ocorridos antes de 1º de janeiro de 1951 e temendo ser perseguida por motivos de raça, religião, nacionalidade, grupo social ou opiniões políticas, se encontra fora do país de sua nacionalidade e que não pode ou, em virtude desse temor, não quer valer-se da proteção desse país, ou que, se não tem nacionalidade e se encontra fora do país no qual tinha sua residência habitual em conseqüência de tais acontecimentos, não pode ou, devido ao referido temor, não quer voltar a ele.” (ONU, 1957, grifo meu).

Os países que ratificaram o Protocolo, como o Canadá, se comprometem a garantir status “legal” para o estrangeiro que entra sem visto no país, alegando alguma das razões mencionadas na lei. O pedido será avaliado pelo governo, que finalmente julgará se o caso se enquadra ou não nos termos legais, concedendo o status legal de “refugiado” ao requerente ou negando o status e exigindo que o estrangeiro deixe o país. Das pessoas que entrevistei, três delas entraram no Canadá, vindo do Brasil, com pedido oficial de refúgio. Apenas um deles foi aceito (Entrevista 6), sendo reconhecida a condição de perseguição e o efetivo risco de vida para o requerente.

Os outros dois pedidos (Entrevistas 9 e 10) não se qualificaram, tendo o governo canadense concluído que não se encaixavam nos casos da lei, em que a pessoa precisa convencer da perseguição, tendo sido forçada a deixar o Brasil. As duas pessoas que tiveram os pedido negados deixaram bem claro que usaram a estratégia do refúgio para conseguir permanecer no Canadá e obter algum tipo de status legal e poderem, portanto, continuar trabalhando e construindo uma vida “honesta”. A construção dos sentidos para o uso da norma de direitos humanos de refugiados, assim como a percepção do próprio sentido dos direitos humanos me sugeriu uma atualização do cinismo legal, especificamente, em relação às normas legais de direitos humanos.

Essas mesmas pessoas mostraram em outros momentos uma atitude bem-marcada de desconfiança em relação às normas de direitos humanos para os “bandidos” (Quadro 1). Nessas entrevistas, as normas de direitos humanos aparecem simultaneamente, como uma estratégia suspeita (aos bandidos) e bem-vinda (para mim) para obter determinados direitos: seja fugir de uma ameaça ou buscar a imigração em outro país.

A entrevistada 9, após a morte da mãe, resolve se mudar para o exterior, a exemplo de muitos conterrâneos seus (de Governador Valadares, MG) que imigram para os Estados Unidos. Mas ela escolhe o Canadá porque naquela ocasião não precisava de visto. Achando que essa seria uma opção mais rápida, pede demissão do trabalho e embarca num avião para o Canadá, partindo do Rio de Janeiro.

Não, na realidade é porque o avião era lotado de gente com o mesmo objetivo. Eu saí da minha cidade, fui pra um hotel no Rio, e lá já tinha um monte de gente que também estava vindo pro Canadá. E aí lá, converso com um, converso com outro, a gente já ficou sabendo que tinha que pagar cem dólares pra um advogado aqui. E que aqui [Canadá] tinham as palavrinhas mágicas “Eu quero refúgio”, eles eram obrigados a te aceitar por causa do tratado de Genebra. Exatamente dos direitos humanos. (...) Eles eram obrigados a abrir um processo pra você a partir do momento que você dissesse “Eu quero refúgio” Eles eram obrigados a te aceitar e iriam analisar o seu caso. Então, de qualquer forma, a gente já tinha ali pelo menos uns dois anos garantidos”. (ENT 9, grifo meu).

 

O pedido de refúgio garantia, então, ao recém-chegado alguns meses de permanência e era aparentemente uma estratégia tão comum que as autoridades canadenses foram obrigadas a mudar a política de entrada no país.

E foi tanta gente chegando que na segunda semana de junho (eu vim no dia trinta e um de maio) eles fecharam as portas e começaram a exigir visto. De tanta gente que chegava todo dia pedindo refúgio. (...) Porque o que acontece? O Brasil não é um país que o povo tá fugindo de guerra ou isso ou aquilo, então, graças a deus, o único problema nosso basicamente é a parte financeira, né? E isso não é um motivo de refúgio. Não é um motivo. Então eu já ouvi casos, eu já ouvi casos de brasileiros que conseguiram se legalizar através do refúgio porque apresentaram um B.O. que eram perseguidos. É… mulheres que tinham marcas no corpo de facadas, e aí tinha um B.O que o marido perseguia, agredia, tentou matar. Entendeu? É. Refúgio. Ou fugitivo político, por exemplo. Esse tipo de caso ainda consegue. Mas é raro. (ENT 9)

A entrevistada 10, originária de Belo Horizonte, vivia no Canadá como imigrante ilegal há muitos anos, trabalhando como babá numa família portuguesa e casada com outra pessoa também na mesma condição ilegal. Por conta de um caso de violência doméstica, o casal foi parar na delegacia local e foram identificados como imigrantes ilegais. Como ela queria muito permanecer no Canadá e não ser deportada, a patroa ofereceu ajuda de advogado, especializado em imigração, para tentar legalizar a situação.

Eu falei [para o advogado] “Eu gostaria muito de ficar porque eu já tenho um trabalho, eu tenho uma casa, eu tenho tudo, né? Eu já estou mais ou menos estabelecida aqui. Já eram três anos que eu estava aqui. Aí eu gostaria muito de ficar” Ele [advogado] falou: “Ó, então vamos ver aqui. Vamos ver se eu tenho alguma coisa que possa…” Aí ele disse assim “Ó, sabe de uma coisa? Eu vou entrar com um processo de a refúgio porque você sofreu violência dentro do território do Canadá” E, com isso (....) você não se encaixa em nenhum dos dois requisitos da lei], mas eu vou colocar que a justificativa é que você foi agredida dentro do Canadá e o Canadá tem obrigação de te proteger.” (ENT 10)

Além da convenção de refugiados, a entrevistada relatou também a mobilização da Lei Maria da Penha, que trata dos casos de violência doméstica no Brasil. Nesse caso, o uso pragmático foi para argumentar de que a lei existe no Brasil, mas não funciona e por isso as mulheres brasileiras estão muito expostas a esse tipo de violência.

E eu tive uma excelente advogada. Uma canadense. Que só mexia com refugiados. E ela fez um trabalho bacana. E como meu processo foram quatro anos, eu troquei de emprego e fui ser nanny numa canadense. Que era advogada. E que fez toda uma pesquisa sobre a lei Maria da Penha no Brasil. Ela levantou casos e casos e casos e provou por A mais B que a Lei Maria da Penha no Brasil não funciona. (ENT 10)

Após quatro anos de processo, foi marcada a audiência com o juiz, que indeferiu o pedido de imigração por achar que não se configurava caso de refúgio. A advogada então apresentou recurso para a Corte Superior, argumentando que ela não poderia voltar ao Brasil porque o ex-marido poderia ir atrás dela e até matá-la. Ou seja, no Brasil não teria proteção contra o companheiro (português) com quem viveu no Canadá e que a essa altura já tinha sido deportado de volta para Portugal.

O terceiro caso serve de contraste aos dois anteriores, tendo em vista a qualidade intrínseca do pedido de refúgio. Diz respeito a uma mulher transsexual, negra, originária do interior de Pernambuco. Ao contrário das demais, ela relatou e demonstrou para o governo do Canadá, no processo de refúgio, que se encontrava numa situação de ameaça concreta e iminente à sua vida. No Brasil, ela trabalhou dentro do sistema prisional de Pernambuco, integrando uma ONG que buscava garantir alguma proteção dos presos, em especial de gays, transexuais e mulheres, que normalmente são vítimas de muitas violências, especialmente sexuais e torturas, nas prisões brasileiras e de Pernambuco.

Sabe o que é a criança com doze anos já dentro do sistema prisional e outra pessoa dizendo “Corta a cabeça. você vai cortar.” Uma criança. E a mulher lá dizendo “amém aleluia amém aleluia”. E as pessoas, quando pegam uma travesti, eles perfuram como se perfuram carne. A gente tá falando de vida. (...) O que nossos povos estão passando lá é real. A gente tá dizendo de pessoas que querem viver, sabe? Enquanto as outras querem matar. E brincando, brincando, rindo da dor. (ENT 6)

Por esse trabalho foi convidada a integrar o mecanismo contra a tortura, da ONU10, com o objetivo de monitorar torturas nas prisões. Em visita à umas das prisões, em nome do mecanismo, uma arma foi apontada para sua cabeça por um agente penitenciário, que a ameaçou justamente pelo fato de “defender bandidos” (os presos). Vários relatos de ameaças aparecem ao longo dessa entrevista.

(...) quando eu fui atacada dentro do sistema prisional, né? Nós fomos numa visita, isso foi em agosto de dois mil e quatorze. Estávamos nós, quatro mulheres. A gente tinha um carro que eles nos levavam para essas visitas, né? Que a gente seguia o protocolo internacional da ONU. Aí, numa das visitas que a gente foi fazer, era um presídio supernovo. Tinha cerca de quinze detentos nesse dia. (...)Aí ele [agente penitenciário] disse “Ah vocês são dos direitos humanos. Direitos humanos só vêm aqui pra fazer baderna. Bagunça. Direitos humanos têm que…” Falou muita coisa. Mas a gente sabia que era um órgão novo, a gente entendia, a gente precisava entrar. Aí disse “Não, calma. A gente também veio entender como é o processo de vocês, quais as reivindicações. (...) E aí quando foi, esse [agente penitenciário] pediu pra todo mundo se juntar “Bora, bora, bora. Se junta, se junta, se junta. Faz foto. Vocês não querem fazer foto lá na frente? Vai fazer desses menino aí, ó. Porque, quando eles sair pra matar agora, tem que matar vocês mesmo dos direitos humanos. Vocês dos direitos humanos, a gente é agente penitenciário, a gente tem que deixar de matar bandido, tem que matar vocês.” (ENT 6)

Após dois anos de espera a entrevistada obteve o refúgio, oficialmente concedido pelo governo canadense. Quando tomamos os três relatos de pedido de refúgio e colocamos em contraste com a posição sobre direitos humanos para “bandidos”, chegamos a um quadro curioso. O funcionamento normal das regras de direitos humanos, (como no caso 6 em que o refúgio foi oficialmente concedido) é referência do mau funcionamento, justamente ao proteger (quem protege) o “bandido”, nesse caso, os detentos do sistema penitenciário de Pernambuco. Esse processo de desconstrução e reconstrução do sentido da norma de direitos humanos de refúgio é mediado pelo cinismo legal, que neutraliza o sentido original da norma e atribui um valor positivo ao seu uso pragmático para fins diversos.

O falso paradoxo e o direito das minorias

A resistência aos usos dos direitos humanos aparece de duas maneiras nas entrevistas (Quadro 2). Em uma primeira forma, é explicitada a ideia de que direitos humanos são usados para proteger inadequadamente os bandidos. A segunda forma reconstrói a crítica ao uso das normas de direitos humanos em termos de um abandono dos bons cidadãos, a maioria, em nome da minoria. Essas duas formas de expressar a crítica não são necessariamente excludentes, considerando que na entrevista 3, por exemplo, aparecem explicitamente as duas percepções.

Dentre as “minorias” que seriam hiperprotegidas apareceram, em primeiro lugar os LGBTQIA+, seguidos dos indígenas, dos pobres e dos negros. Os direitos humanos estariam “trabalhando mal” quando protegem grupos minoritários como esses, como vemos na fala abaixo em relação aos “gays”. O excesso de proteção e visibilidade desse grupo teria estimulado a rivalidade e a disputa entre “homos versus heteros”.

Eu acho que tá sendo mal trabalhada [os direitos humanos].  Porque que os homos podem ter uma parada gay eu não posso ter uma parada hétero? Porque se amanhã eu, decidir chegar lá na prefeitura falar “Olha, eu quero montar um evento igualzinho à parada gay. É a parada hétero, sabe? Eu quero apoio do governo, eu quero toda a mídia, eu quero fazer a parada hétero.” Eu não posso. Eu vou ser super... é capaz de eu ser linchada, né? Porque eu vou ser taxada de homofóbica. Você tá entendendo a disparidade? Que eu acho que às vezes as pessoas não param para pensar. Então acho que o preconceito tá saindo de um lado e tá indo pro outro.  Então eu acho que tão querendo ganhar espaço na marra, destruindo o outro. Você tá entendendo? É como se fosse uma guerra, né? Como a guerra da Síria. Né? Chegaram terroristas, a Al-Qaeda, aquele pessoal todo disseminando a maioria. Você tá entendendo? Acabando com a maioria. (ENT 3)

O problema da proteção da minoria em detrimento da minoria também apareceu na entrevista 7. Para essa entrevistada, a “crise dos direitos humanos” é em parte explicada por existir uma proteção excessiva de alguns poucos, identificados como minorias, em detrimento da maioria de cidadãos. Os LGBTQIA+, por exemplo, seriam objeto de uma atenção especial dos direitos humanos enquanto os “verdadeiros” problemas são aspectos “do dia a dia” da vida, como alimento, saúde, previdência social ou educação. Esses seriam direitos voltados para a maioria, sem discriminar a atenção a nenhum grupo específico.

[os direitos humanos no Brasil] não tem essa ideia de “Vamos melhorar a vida de todos”, entende? Mas, a partir do que? A partir de parâmetros modernos. Não, a gente quer mudar conforme era no passado. (...) Ninguém relaciona direitos humanos com o INSS? Onde as pessoas são tratadas como… coisas, É submetidas ao poder que a pessoa acha que tem porque ela tá do outro lado do balcão? E não ficar fazendo “Não, vamos fazer a passeata gay. Não, vamos fazer a questão de gênero. Vamos fazer não sei que”. Gente, isso é outra coisa. Isso são aqueles pedacinhos de determinados grupos. Eu não entendo, sinceramente, um grupo que se diz minoria e perseguido...(...) podem ser os gays, podem ser os trans, podem ser os negros, podem ser os índios, que aceitem situações e não reclamem de situações de direitos humanos. (ENT 7)

Nessa fala, é estabelecida uma distinção entre direitos de alguns (minoria)/ direitos de todos (maioria). E os direitos humanos, equivocadamente, se concentrariam nos direitos da minoria. Cria-se então um aparente paradoxo em termos de distribuição da proteção, como se ela significasse uma desvalorização do princípio da igualdade, ou seja, como se houvesse pessoas “mais importantes” ou “mais iguais” do que outras. Do ponto de vista das entrevistadas, os direitos humanos, assim como as políticas públicas, devem priorizar o investimento dos aspectos que as pessoas têm em comum, e não precisam de distinção individual. Promover políticas de proteção e distinção de grupos (como indígenas, LGBTQIA+, negros) provendo aspectos não fundamentais da vida – o “orgulho gay” é o mais mencionado – parece para essas pessoas uma distorção da proteção, tirando o foco do fundamental para a vida.

No trecho seguinte, a entrevistada 3 formula concretamente o que significaria proteger a maioria, garantindo o direito ao “básico”.

Eu acho que esse pessoal que tá trabalhando pelos direitos humanos de forma errada – deve ter muita gente que trabalha de forma correta – seria o direito ao básico. Sabe? Quais os primeiros direitos de qualquer ser humano no planeta Terra? Morar, comer, dormir… Você tá entendendo? E ter liberdade até onde chega a liberdade do outro. Então eu acho que não se trabalha muito isso. Você tá entendendo? Existem maneiras de trabalhar. Por exemplo o desperdício de alimentos no mundo hoje é uma coisa absurda. (ENT 3)

Vou emprestar a ideia de racionalizações convenientes (convenient rationalizations) de Cohen (2001) para produzir uma primeira compreensão sobre essa construção narrativa, que restringe a possibilidade de (re)conhecer diferentes níveis de vulnerabilidade. Para Cohen, é possível identificar diferentes estados de negação que as pessoas se mostram a respeito de fatos envolvendo violações de várias ordens. Esses estados são compostos de uma série de elementos, dentre os quais os processos de construção de racionalizações. São narrativas sobre a própria realidade que consideram e justificam racionalmente a impossibilidade de olhar para e reagir a determinados fatos. A resistência à proteção e à promoção dos grupos LGBTQIA+ é provavelmente a reação mais contundente que observei nas entrevistas, especialmente se colocamos em contraste os relatos de violência da entrevista 6, nana qual podemos observar as várias “minorias” das quais ela faz parte (trans, negra, pobre, ex-detenta) e como essas condições são percebidas como diretamente responsáveis pela inviabilidade da sua existência.

Aí eu descobri que meu problema era por ser trans. Ai meu deus, meu problema é porque eu sou trans. Meu problema social. Assim, tipo. Não é porque eu sou negra. Tinha muito negro, né? Quem matava eram os negros. Então o problema é porque é ser trans. (...) era a iminência de morte mesmo todos os dias, né? Então eu saía e não sabia que voltava por diversos motivos. (ENT 6)

Essa segunda maneira de justificar a resistência a certos usos das normas de direitos humanos no Brasil contemporâneo amplia o escopo da primeira construção, que condena especificamente algumas normas que beneficiam presos e outras que limitam a violência policial contra “criminosos”. Na segunda formulação, existe uma construção mais geral e mais abstrata (“minorias” e “maiorias”), que resulta numa pequena teoria da prática (Durkheim) sobre os usos e sentidos dos direitos humanos. Nessa teoria, os direitos humanos representam os direitos “básicos” dos cidadãos relativos aos aspectos comuns (e não diversos) da existência humana. Aqui se constrói uma fronteira entre as situações e/ou problemas sociais que podem ser objeto de proteção de normas legais e exclui da proteção uma série de aspectos contemporaneamente interpretados como violações de direitos humanos.

Conclusão

A experiência de ouvir ideias sobre direitos humanos e seus usos, assim como as compreensões sobre igualdade e preconceito de brasileiros residindo no Canadá, me rendeu a possibilidade de provocar comparações entre realidades sociais muito diferentes (Canadá e Brasil), especificamente quanto ao exercício da igualdade e da possibilidade de pensar e aplicar os direitos humanos. Todas as pessoas entrevistadas relataram, de diferentes maneiras, experimentarem uma realidade social muito diferente no que toca aos direitos humanos e aos direitos em geral. No Brasil, “tudo é diferente”, disseram todos eles. Isso não significa que negaram a existência de situações de injustiça, violência ou preconceito11 no Canadá.

No Brasil, onde “tudo é diferente”, observamos uma certa maneira de compreender e fazer uso das normas legais, dentre as quais as normas de direitos humanos, que desafia as regras de igualdade, especialmente na dimensão da igualdade perante a lei, tal como pensadas nos textos normativo-legais. Como categoria fundante da nossa sociabilidade, apresentamos uma atitude instável em relação ao uso e à aplicação das normais legais, que vários autores já associaram às características estruturantes da sociedade brasileira, como o patrimonialismo e o racismo. A aplicação da norma legal “flutua” a depender do contexto e dos sujeitos concretos e de suas “sensibilidades cívicas” (OLIVEIRA, 2018), e cujo desfecho pode ser desde a aplicação irrestrita da norma até sua não aplicação.

Em contextos específicos, mas nem por isso pouco comuns, o “direito” é rapidamente reinterpretado e ressignificado como “regalia” ou “privilégio” (OLIVEIRA, 2018; LEMOS, 2019) e a possibilidade de reivindicar determinadas ações públicas ou privadas, em nome dos direitos (individuais ou sociais), é moralmente afastada. Melhorar as condições das prisões, e com isso realizar alguns direitos dos presos, é uma reivindicação historicamente interpretada como concessão de privilégio indevido aos criminosos e constitui umas das operações semânticas mais comuns a respeito dos direitos humanos desde pelo menos os anos 1980 (CALDEIRA, 1991; HIGA; ALVAREZ, 2019; EILBAUM; MEDEIROS, 2015; LEMOS 2019). Os casos de pedido de refúgio analisados na pesquisa mostram como o processo de construção de sentidos das normas de direitos humanos pode ser altamente vinculado às experiências pessoais e não, por exemplo, a outros grupos vulneráveis. Para construir os seus caminhos (ilegais) de imigração, duas entrevistadas reivindicaram o direito de refúgio como estratégia pragmática de permanecerem no Canadá sem a documentação requerida (visto). Essas entrevistadas não demonstraram nenhum problema moral ou legal em relação a esse uso individual das normas internacionais de direitos humanos. No entanto, ambas criticam fortemente a proteção excessiva dos direitos humanos a determinados grupos, especialmente os bandidos ou a população LGBTQIA+; justamente o grupo em que se encaixa a entrevistada do terceiro caso, que efetivamente conseguiu o refúgio. Esses casos mostram, entre outras coisas, o grande desafio da universalização dos direitos, que inclui, na proteção abstrata da norma, os “sujeitos moralmente não dignos” (OLIVEIRA, 2018).

Outra consequência da condição flutuante das normas é a desvalorização da distinção legal/ilegal, com a redução de sua capacidade de diferenciar as práticas condenáveis das não condenáveis moralmente. Nas construções narrativas sobre direitos humanos que analisei, as categorias legal/ilegal perdem valor na medida em que a “distorção” está justamente na lei (na Constituição Federal, no Código de Processo Penal, na Lei de Execuções Penais etc.) e em seu cumprimento. Nessas teorias práticas, os direitos humanos se “desvirtuam” ao promover direitos e elevar o “bandido” à categoria de prioridade nos imaginários políticos.

Ao lado dos “bandidos”, aparecem, nas entrevistas e nos documentos, outros grupos/situações que excluem a possibilidade de proteção dos direitos humanos. Os LGBTQIA+ e sua luta identitária, assim como os indígenas e as disputas de terra, assumem um discurso identitário e de resistência à opressão. Essa condição de opressão é explicitamente negada nas entrevistas como um problema social relevante – ou suficientemente geral, ou comum – para orientar ações e intervenções públicas. Temos então aqui construída uma lógica explicitamente excludente ao mesmo tempo que convenientemente racionalizada (SIMMEL, 1989) como uma expressão de igualdade. Os direitos humanos, enquanto imaginário político (LOPEZ, 2018) – com parâmetros radicais de igualdade expressos nas categorias abstratas dos direitos fundamentais –, quando mobilizados no Brasil para beneficiar determinados grupos, geram uma reação (política-moral-emocional) especialmente forte que remonta às nossas concepções identitárias mais profundas como sociedade.

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Recebido em: 20/08/2021

Aceito em: 26/01/2022


1 Título original da pesquisa: Human Rights for Bandidos: Moral Discourses about Human Rights in Contemporary Brazil, realizada durante o ano de 2019.

2 As entrevistas serão identificadas pelo código ENT 1-11.

3Por status legal, estou indicando a qualidade do visto daquela pessoa no Canadá (residente, estudante, refugiado).

4 A população luso-falante em Toronto é da ordem de 200 mil pessoas, sendo o português a quarta língua estrangeira mais falada na cidade, depois do chinês e do italiano. Nessas comunidades, é comum encontrar famílias com vários membros residentes há décadas na cidade, que não falam inglês. A maior parte dessas pessoas são de imigrantes portugueses e os brasileiros compõem uma parcela menor, ainda que crescente, desse universo. (“Portuguese is the mother tongue (first language learned) for 219 275 Portuguese Canadians (2006 census). Almost half of the population of Canada who report Portuguese as their mother tongue live in Toronto (108 180), primarily in city-core areas, a residential pattern evident also in Montréal (29 310)”. Disponível em: https://toronto.consuladoportugal.mne.gov.pt/en/portugal-in-canada

5 Incluo o que estamos identificando como “direitos humanos” na agenda humanista dos anos 1980. Higa e Alvarez (2019) identificam as reações contrárias aos direitos humanos nos embates políticos dos anos 1980, em São Paul, no período do Governo Franco Motoro e sua política de “humanização dos presídios”. Essa política gerou uma enorme reação de grupos políticos contrários, que argumentavam que essas políticas teriam sido as responsáveis principais pelo aumento da criminalidade de São Paulo.

6 Na Argentina, uma famosa personalidade da mídia declara publicamente no jornal La Gaceta em 2009: “Chega da estupidez dos direitos humanos. Quem mata deve morrer.” (citado em Krause, 2020: 255, tradução minha).

7 “Eu digo respeitar a polícia e a sociedade, né? Que no Brasil não respeita, né? Por quê? Porque que o policial sempre vai tá errado. Os direitos humanos sempre, em qualquer situação, no dia seguinte, vai falar que o policial tá errado. Em qualquer situação. Ontem o policial matou um bandido que tava fazendo refém lá. Não sei se foi no Rio ou em São Paulo. Você viu, né? Que eu li a notícia ontem e não li hoje porque os direitos humanos já devem tá criticando o cara, né? (...) Quer dizer, vamo deixar o bandido matar dez, quinze pessoas que estão naquele ônibus, mas não vamo matar o bandido. Quer dizer, a vida de um bandido vale mais do que a vida de um ônibus inteirinho que tá ali dentro? Essa é a lei brasileira, querida. A lei americana não é essa. A vida do cidadão de bem vale mais do que a vida do cidadão que resolveu ser bandido (ENT 3).

8 As cinco afirmações são: “Leis são feitas para serem quebradas”; “É correto fazer qualquer coisa desde que ninguém seja machucado”; “Para ganhar dinheiro, não há maneiras certas ou erradas, apenas maneiras fáceis ou difíceis”; “Brigas entre amigos ou famílias não é da conta de ninguém”; “Atualmente é preciso viver o dia de hoje e deixar o amanhã para depois” (SAMPSON; BARTUSCH, 1998, tradução minha).

9 https://www.acnur.org/portugues/convencao-de-1951/

10 Mecanismo estadual de prevenção e combate à tortura, fruto de protocolo internacional da ONU, do qual o Brasil é signatário. O mecanismo foi desmontado pelo atual governo.

11Em umas das entrevistas, a realidade do preconceito e da discriminação apareceu bem clara. “Eles querem mostrar que o Canadá está aberto a tudo. Que eles não aceitam discriminação. Ok? Mas existe, né? Aí existe mesmo. Mas eles querem dizer que não. (...) .Se um canadense chega numa loja e vai comprar alguma coisa, pelo sotaque o vendedor atende de uma forma. Se você chega ali com seu sotaque, custando a se comunicar e tudo, o tratamento seu é outro.” (ENT 9)

PARA UMA SOCIOLOGIA PRAGMÁTICA DA MORAL DA POLÍTICA:

Crítica, “bem de todos” / “bem comum” e “comparecimento”1

TOWARDS A PRAGMATIC SOCIOLOGY OF MORALITY OF POLITICS:

Critique, “Good of All”/ “Common Good” and “Intervention”

____________________________________

Alexandre Werneck*

Resumo

Este ensaio promove uma reflexão teórica sobre a possibilidade de se fazer uma sociologia pragmática da moral da política – isto é, uma sociologia da política cujo centro seja sua dimensão moral, tratada como objeto e não como fundamento normativo da análise. A proposta é reconhecer no mapeamento da dimensão dos valores em jogo em uma situação política uma forma de dar conta analiticamente de uma fenomenologia incontornável desse objeto e valorizar a ideia de “comparecimento”, isto é, a forma como elementos dessa situação se colocam nela como variáveis determinantes em sua efetivação. O tratamento coloca entre parêntesis tanto o normativismo apriorístico da chamada sociologia crítica, centrada na ideia de que a dominação é o fenômeno central da realidade social e que a tarefa da disciplina é compreender os mecanismos segundo os quais os dominados são levados a agir conforme desejam os dominadores, quanto a manobra retórica da chamada nova “crítica não normativa”, que propõe que a questão da política é uma economia da despolitização dos fenômenos sociais e que a tarefa da análise consiste em “repolitizá-la” – isto é, devolver a ela um caráter não naturalizado. Adotando-se uma postura radicalmente compreensiva, pragmatista e pragmática segundo a qual o objeto da análise é a forma como os atores eles próprios constroem/operam a dimensão moral da política, torna-se a análise dos fenômenos políticos mais complexa, na medida em que se estuda aquilo que efetivamente comparece nas situações “politizadas” para defini-las com tal e para definir e resolver as controvérsias nelas trazidas à baila.

Palavras-chave: Política. Pragmatismo. Comparecimento. Bem de todos/bem comum.

Abstract

This essay promotes a theoretical reflection on the possibility of making a pragmatic sociology of morality of politics – i. e., a sociology of politics whose core is its moral dimension, treated as a subject rather than a normative principle for the analysis. The proposal is to recognize in the mapping of the dimension of values at stake in a political situation a way for analytically accounting for an unavoidable phenomenology of this object and to focus on the idea of ‘intervention’, that is, the way in which elements of this situation are placed in it as determinant variables in its effectuation. The treatment sets aside both the aprioristic normativism of the so-called critical sociology, focused on the idea that domination is the central phenomenon of social reality and that the task of the discipline is to understand the mechanisms by which the dominated are led to act as the dominators wish, and the rhetorical maneuver of the so-called new ‘non-normative critique’, which proposes that the issue in play in politics is an economy of ‘depoliticization’ of social phenomena and that the task of analysis is to ‘repoliticize it’ – that is, give it back to it an unnaturalized character. Adopting a radically interpretive, pragmatist and pragmatic stance according to which the subject of analysis is the way in which the actors themselves build/operate the moral dimension of politics, the analysis of political phenomena becomes more complex, as what is studied is what in ‘politicized’ situations appears to define them as such and to define and resolve the controversies brought up in them.

Keywords: Politics. Pragmatism. Intervention. Good of all/common good.

Estava sozinho em uma mesa quando um senhor se aproximou, sentou-se diante dele e disse depressa:

– O senhor já leu?

– Não li.

– Está sabendo?

– Não sei de nada.

– Não sabe do que se trata?

– Não sei, não me preocupo com isso.

– Mas isso deveria interessá-lo.

– Não sei por que deveria me interessar. Eu fumo um charuto, bebo algumas canecas de cerveja, janto e não leio jornais. Os jornais mentem. Por que vou me aborrecer?

– Então não lhe interessa o assassinato de Sarajevo?

– Nenhum assassinato me interessa, quer aconteça em Praga, em Viena, em Sarajevo ou em Londres. Para isso existem as autoridades, os tribunais e a polícia. Se um dia qualquer em algum lugar alguém é morto, bem feito para ele, porque foi burro e imprudente e permitiu que o matassem.

Estas foram suas últimas palavras naquela conversa. A partir de então, limitou-se a repetir a cada cinco minutos:

– Sou inocente, sou inocente!

Nesse inusitado diálogo do romance épico-satírico “As aventuras do bom solado Švejk”, do tcheco Jaroslav Hašek (2014, p. 27), o protagonista confessa sua completa desinformação e seu enorme desinteresse em relação a um crime. Homicídios são problema do morto, ele parece querer dizer. Essa seria a olhos externos apenas uma posição “egoísta” qualquer, não fosse um detalhe: estamos diante do “assassinato de Sarajevo”, o atentado ao arquiduque Franz Ferdinand que serviria de desculpa para o início do que viria a ser a Primeira Guerra Mundial. Não é um crime insignificante, portanto. Trata-se, antes, de um crime político. E isso se refletirá em toda a história do “inocente” (e simplório) Švejk, que trafegará por centenas de páginas no universo da Grande Guerra e sua realpolitik sem entender muita coisa, mas sempre com opiniões. Uma leitura materialista histórica mais tradicional poderia concluir que esse é um livro sobre a passagem da alienação à consciência. Entretanto, a sanfona entre a cena particular e a grande narrativa da (inacabada) obra-prima de Hašek (publicada em 1921) ali qualificada como “aventura” lança luz sobre um outro ponto, que quero destacar aqui como um importante componente para uma sociologia compreensiva da política: na tensão entre as estruturas em seus grandes movimentos históricos e a pequenez decisional de dois atores, temos ali uma situação, um recorte no espaço e no tempo. Nela, está em pauta justamente se o que está acontecendo ali é ou não político e isso se mostra como algo profundamente moral.

Na cena, dessa forma, o (ainda não) “bom soldado” tem a atenção chamada porque “deveria” se interessar por um homicídio, uma vez que este é do interesse de todos. Afinal, diferentemente de um assassinato comum, o crime mobilizado terá consequências sobre as vidas de milhões. Mas Švejk se recusa a reconhecer esses efeitos tanto do ponto de vista de se incluir nesse “todos” atingível pelo ocorrido – “Nenhum assassinato me interessa (...). Para isso existem as autoridades, os tribunais e a polícia” – quanto de admitir agência sobre o mundo a partir dessa decisão – “Sou inocente”. Disso, decorre um deslocamento raramente levado a sério: politizar uma situação dá trabalho, isto é, os atores não necessariamente tratam como óbvio que o que esteja acontecendo ali seja uma questão política, não necessariamente partilham dessa impressão e dependem incontornavelmente de um conjunto de operações para essa definição ser efetiva (WERNECK, 2012a, 2022), ou seja, para que o que esteja acontecendo ali seja na prática uma questão de política, o que significa ela produzir consequências sobre a realidade objetiva das ações de si e dos outros – em suma, que, nela, se aja politicamente2 3.

Este ensaio propõe uma reflexão teórico-metodológica sobre a possibilidade de se fazer uma sociologia pragmática da moral da política – isto é, uma sociologia da política cujo centro seja sua dimensão moral, tratada como objeto e não como fundamento normativo da análise. A proposta é tomar o mapeamento da dimensão dos valores atuante naquilo que, imbuído de uma abordagem pragmatista/pragmática, chamarei de situação política e nela reconhecer uma forma de dar conta de uma fenomenologia incontornável desse objeto, a de suas disputas e coordenações valorativas. E, na continuidade desse argumento, valorizo aqui a ideia de comparecimento, a forma como elementos dessa situação nela se colocam como actantes (GREIMAS, 1976; LATOUR, 1997), como variáveis determinantes em sua efetivação – como nela comparecem. Trata-se de um trabalho de reflexão teórica, mas alimentado por uma série de pesquisas na área da sociologia pragmática da moral e da crítica empreendida na última década e meia em diversas frentes, sempre com ênfase na análise do diálogo entre a dimensão concreta das ações e a abstrata dos valores morais4.

O argumento se desenvolve da seguinte forma, como tenho mostrado em vários trabalhos, já citados, a discussão tem início com a ideia, proposta por William I. Thomas (1969, p. 42), de definição da situação, “um estágio de exame e deliberação (...) preliminar a qualquer ato comportamental autodeterminado” e que diz o que está acontecendo ali (WERNECK, 2012a). O tratamento é baseado na Filosofia pragmatista, especialmente no olhar de seu fundador, Charles S. Peirce, para o pensamento, segundo o qual, para se entender um objeto é preciso “avaliar que efeitos, que possam ter certos comportamentos práticos, [o] percebemos apresentar (...). O resultado é que nossa concepção desses efeitos constitui o conjunto de nossa concepção do objeto” (PEIRCE, 1992, p. 132). Esse consequencialismo, essa ênfase nos efeitos, permitiria a William e a Dorothy Thomas, sua parceira de pesquisa e esposa, enunciar sua clássica afirmação: “[S]e os homens definem as situações como reais, elas são reais em suas consequências” (THOMAS; THOMAS, 1938, p. 572), isto é, aquilo que permite aos humanos definir situações de alguma forma é a observação de consequências objetivas dessa definição. E como disse em outro texto (WERNECK, 2022, p. 4), sublinhando o caráter anticartesiano do argumento, isso não corresponde a “uma mecânica psicológica e/ou idealista – segundo a qual podemos definir previamente a situação como o que quisermos e ela assim será”. Em vez disso, tem a ver com um imperativo ao mesmo tempo de ação e de sociabilidade: de um lado, a definição não é apenas linguageira, tendo que se haver com a prática, com a realidade objetiva, manifestada ao conformar as ações; de outro, ela não é obra de uma racionalidade individual, e sim de um processo de escrutínio e testagem comunitário – o que se manifestará em todo o pragmatismo, mas também na sociologia dele oriunda a partir da chamada Escola de Chicago (POGREBINSCHI, 2005; WERNECK, 2014): uma situação definida socialmente como de algum tipo é assim porque funciona como tal ao ser testada como tal por aqueles que assim se questionam sobre sua definição; ao mesmo tempo ela tem que funcionar objetivamente (independentemente dos envolvidos) e isso tem que poder ser percebido de maneira partilhada pelos envolvidos. Na chave do que John Dewey (1938) chamou de processo investigativo, então, os atores empreendem movimentos para definir praticamente as situações e fazer andar a realidade. No mesmo texto (WERNECK, 2022), mostrei como isso tudo reorienta a análise situacionista metodológica (CICOUREL, 1964; COLLINS, 1981; JOSEPH, 1984) epistemologicamente: uma que vez que “[o] grau [de efetividade] de uma situação é medido por sua capacidade de produzir efeitos (...), se observamos um efeito, ele é um índice (PEIRCE, 1977b) da definição da situação em que está inserido (e que só pode ser determinada a posteriori)”: todo fenômeno situado passa a ser pensado como consequência de algo e o objetivo da pesquisa se torna justamente compreender seu processo de produção a partir desse algo.

O passo seguinte consiste em levar a sério a ênfase depositada no detalhamento das situações proposto pela chamada sociologia pragmática da crítica (BOLTANSKI; THÉVENOT, 2020). Segundo essa abordagem, chamada pelos autores de economias da grandeza (EG), uma situação é uma circunscrição no espaço e no tempo em que se dá uma distribuição de grandeza, posições agenciais distintas entre determinantes (“grandes”, nos termos do modelo) e determinados (“pequenos”), distribuição essa fundada necessariamente em uma prestação de contas (SCOTT; LYMAN, 2008) em termos de justiça, de modo que se demonstre que a diferença entre grandes e pequenos possa ser tratada/compreendida por ambos os lados como equivalência. Não avançarei muito mais na descrição do modelo5. O importante para meu argumento aqui é que essa situação é lida pelos atores como um setting de ajustamento entre, de um lado, uma configuração pragmática de elementos, notadamente atores sociais ocupando posições de grandeza e, de outro, quadros valorativos abstratos fundamentadores dessa configuração – quadros morais, diria eu – por meio de coisas do mundo, organizadas como dispositivos (isto é, elementos concretos capazes de representar no mundo aqueles valores abstratos)6. E é nesse ponto que mobilizo as EG para tratar de comparecimento: segundo Boltanski e Thévenot (2020, p. 85), o elemento constitutivo das situações é a relação entre uma “multiplicidade de seres que, por vezes humanos, por vezes coisas, não se apresentam sem que ao mesmo tempo sejam qualificados os estados segundo os quais intervêm7. E os “estados segundo os quais eles intervêm”, correspondentes ao nível da grandeza em jogo na situação, são radicalmente situados, isto é, tratados como uma condição experimentada naquela situação discreta (e não como uma disposição incorporada). Intervir, nos termos deles, corresponde a uma operação de qualificação da forma como o ser participa da situação, de como toma parte em sua definição, isto é, como esse ser comparece8 no processo de efetivação (WERNECK, 2012a, 2022). Dissecar uma situação nessa chave consiste, então, em mapeá-la e colocar em balanças, por vezes de precisão, esses vários seres, ponderando suas participações, observando os papéis que desempenham – ou, em termos mais adequados, os actantes que se tornam –, os dispositivos que constroem, aquilo que fazem, o que dizem, o que mobilizam. Tudo isso corresponde a analisar em uma situação o comparecimento das coisas que a definem.

Assim, para dar um exemplo aclimatado a nossa discussão, se alguém se candidata a um cargo eletivo – à Presidência, por exemplo –, está em jogo habitualmente a oferta de si como grande em termos cívicos (isto é, sua capacidade de representar a vontade geral) (BOLTANSKI; THÉVENOT, 2020) diante do universo de pequenos chamados cidadãos que a ele entregariam a agência das decisões do governo – e de uma condição de maior grandeza nesses mesmos termos do que outros candidatos ao mesmo cargo. Isso só pode ser feito por meio de um conjunto de situações em que ele se comprova (BOLTANSKI; THÉVENOT, 2020) como tal por meio da apresentação de coisas do mundo – digamos, elementos de campanha, peças publicitárias, palavras de ordem, narrativas biográficas, demonstrações de serviços prestados, projetos utópicos, alinhamentos ideológicos, discursos carismáticos etc. – que o qualifiquem como melhor candidato. Igualmente, se uma agência governamental sugere que a melhor maneira de resolver um problema social – o enfrentamento de uma epidemia? – é uma campanha nacional de medidas profiláticas e ampla vacinação e outra sugere que é a administração de um medicamento, a disputa de grandeza, isto é, da figura determinante está em torno de que método se provará mais eficiente, o que é feito por meio da apresentação de evidências objetivas dessa eficiência industrial (BOLTANSKI; THÉVENOT, 2020) – relatórios de pesquisa, falas de especialistas, pareceres de agências reguladoras etc. Em ambos os casos, está em operação a explicitação de como pessoas e coisas comparecem para tornar efetiva a situação de comprovação.

Evidentemente, não poderia ser meu objetivo aqui promover uma digressão sobre uma definição fundamental de política em si, algo que poderíamos chamar de uma definição substantivista – o que me faria viajar de Aristóteles a Foucault ou Proudhon, de Maquiavel a Rawls, de Platão a Bobbio, de Santo Agostinho a Dewey, de Marx a Rancière e sabem os colegas da teoria política mais por que caminhos. Há uma disciplina inteira para esse conceito e não tenho qualquer pretensão de esgotar sua multissemia. Basta dizer que as próprias ciência e filosofia políticas reconhecem essa complexidade e nela investem – ver, por exemplo, os textos compilados por Leftwich (2004)9 ou os intricados esforços de figuras como, entre vários outros, Hannah Arendt (2006), Carl Schmitt (2007) ou, mais recentemente, Francis Wolff (2003) e Chantal Mouffe (2005), além de pensadores brasileiros (LESSA, 2012). Nesse diapasão, a política vem sendo pensada como aquilo que concerne à polis/ao Estado (VERNANT, 1972; BOBBIO, 1998) – o que qualificaria também uma sociologia política (WEBER, 2011), que também não é meu objetivo; apresentada como arte pacífica de resolução de conflitos centrada nas decisões coletivas (WEALE, 2004); revelada, mesmo denunciada como mantenedora de um conflito social sub-reptício ou como a mera forma de operacionalizar interesses (CALINICOS, 2004); teorizada como a operacionalização/exercício do poder (FOUCAULT, 1990); descrita como nome de qualquer ação pública/cívica, de qualquer operação prática a serviço de qualquer um desses movimentos (“uma política”) ou ainda de toda a dinâmica eleitoral (WOLFF, 2003) etc.

Pois sem desqualificar nenhuma dessas interpretações, o tratamento pragmatista/pragmático aqui adotado me leva a buscar essa definição nos atores, no sentido de, como vimos, reconhecer em seus movimentos que tipo de situação eles definem como política e como a definem. E, na continuidade desse projeto, coloco entre parêntesis qualquer definição discreta de política em si para me concentrar em uma sociologia pragmatista/pragmática da moral10 das situações definidas pelos atores como políticas (independentemente do que seja política para eles). Para isso, adoto como marco de uma definição heurística a operação moral incontornável de qualquer que seja a forma de política em jogo: sua tradução em termos do bem de todos. Nesse sentido, seja qual o for o objetivo intrínseco da política, essa precisa ser sempre pensada, em uma camada valorativa, como a administração de um bem idealizado como capaz de alcançar uma abstração de totalidade relativa a um universo; e com isso adquirimos, por decorrência lógica, uma definição operativa: uma situação política é aquela em que se dá uma disputa em torno de como se obter/chegar a esse bem11. Esse tratamento é condizente com uma perspectiva produtiva da moral que venho adotando em todo o meu trabalho, já citado, segundo a qual ela seja pensada menos como forma de impedimento de ações e mais como uma incontornável dimensão constitutiva da efetivação das mesmas (WERNECK, 2014)12. Nesse sentido, adotar a moral da política como objeto pressupõe analisar os elementos valorativos implicados no funcionamento efetivo das situações politizadas na prática. Ao mesmo tempo, a ênfase nas situações como unidade analítica permite observar, por meio da dimensão moral apontada, uma dupla articulação contida nessas situações políticas: elas consistem em circunscrições ao mesmo tempo a serem actancialmente definidas pelos atores como tais e a serem depuradas, uma vez que, como vimos, uma situação como essa é marcada pela disputa em torno do que seja o bem de todos. E a ênfase na ideia de comparecimento permite observar sua dinâmica actancial no que diz respeito a essa depuração: analisar a moral da política, ao fim e ao cabo, corresponde a se perguntar como uma situação se politiza por meio desses elementos objetivos e o peso deles nesse processamento e, na continuidade da análise, em estudar como ela “se resolve”, isto é, como ela depura a seleção dos bens amplamente generalizáveis. Isso significa detalhar: os diferentes personagens envolvidos, humanos e não humanos, explícitos e implícitos, tratados como actantes; os quadros valorativos mobilizados por esses diferentes actantes em seus investimentos práticos de ação como formas efetiváveis do bem de todos; os dispositivos construídos por esses personagens a fim de ajustar a pragmática implementada à forma de bem de todos abstratamente mobilizada; os elementos, formais e de conteúdo, da disputa objetiva em jogo na situação, os elementos definidores dos “melhores bens” etc.

A moral da política como experiência de tradução e o problema do “na verdade”

Em meu trabalho de modelização de uma sociologia (pragmatista/pragmática) da moral (WERNECK, 2012a), caracterizei- a como a dimensão dos fenômenos sociais na qual se dá a gestão do bem, isto é, em que os atores definem o sentido para o qual o (que consideram ser o) bem se desloca (ou seja, para quem ele se destina) e, por meio da qual tem lugar a efetivação desses fenômenos. Nesse tratamento, mapeei cinco diferentes regimes de orientação do bem: bem de si, bem do outro, bem comum, bem de todos e “tudo bem”13. Esse último regime se refere a um estado de crença (PEIRCE, 1977a) no qual os atores não problematizam esse direcionamento. Acredito que as outras direções sejam evidentes, salvo pela distinção central em meu argumento aqui: diferentemente do que pode parecer no senso comum bem de todos e bem comum não são sinônimos automáticos. O primeiro corresponde a um bem direcionado a uma entidade abstrata superior concebida como uma representação de totalidade: “todos” me inclui, mas o bem de todos me atinge apenas de forma difusa. Por sua vez, o bem comum, da forma como é modelizado nas EG, diz respeito a partes, a polos discretos que auferem bem em equivalência, tanto um quanto o outro. Essa diferença, como acabo de dizer, será fulcral em meu argumento. Por ora, para um avanço na definição, retornemos heuristicamente ao bom soldado Švejk: o assassinato de Sarajevo é relevante (para seu interpelador) por sua capacidade de tocar a muitos. O exemplo, então, é paradigmático por sua capacidade de sintetizar um corte transversal na dimensão moral de qualquer modelo de definição de política: seja qual for o objeto/objetivo da política adotado – pelos atores e/ou pelo analista – esse objeto/objetivo terá que se haver com uma dimensão em que é preciso efetivar isso que acontece em termos do bem de todos14. Pois como mostram Boltanski e Thévenot (2020), um dos traços marcantes da vida moderna é um imperativo de justificação na ordem de fundamentação de uma tendência ao acordo característica do ambiente de concórdia reinante nessas sociedades15. Esse imperativo expressa uma hegemonia da justiça como valor preferencial de avaliação das ações e insere uma economia da passagem entre bem comum (para eles a forma distributiva de bem característica dessa competência) e bem de todos de forma automática: como esse primeiro imperativo implica um outro, de negociação (THUDEROZ, 2010), os acordos entre partes seriam considerados uma imagem do bem geral – como a forma mais realizada de sua utopia realizável (BOLTANSKI, 1990). Nesse quadro, a vida política é habitualmente pensada a partir da forma cívica da justiça – aquela segundo a qual o justo é definido em referência à representatividade em relação à vontade geral capaz de tornar equivalentes os bens entre os grandes (os que representam) e os pequenos (os representados), garantido que o bem de um lado e do outro sejam comuns (BOLTANSKI; THÉVENOT, 2020). Pois argumento que na situação política esse imperativo se desloca rumo à conversão de um tratamento em termo de partes para um em termo de um ente superior idealizado, “todos” – em formas como “a sociedade”, “o país”, “nós”, “o povo” – que impele os atores a se pronunciarem no sentido de ajustar suas ações a essa exigência. Isso é consistente com toda uma tradição sociológica que evidencia um imperativo de accountability como traço constitutivo da vida social (WRIGHT-MILLS, 1940; SCOTT; LYMAN, 2008).

Como mostrei em outros trabalhos (WERNECK, 2019a; PORTO; WERNECK, 2021), o ponto de partida para o entendimento desse imperativo está na reflexão de Weber (1947) sobre a relação entre valor (Wert) e sentido (Sinn). Para o autor, a compreensão (Verstehen) tem início em uma informação consideravelmente niilista: nada faz sentido a priori, isto é, nada tem permissão automática para ser incluído no mundo (a parcela da existência intermediada pelo pensamento) e ser considerado cabível – em sua visão, os humanos parecem ser movidos por uma vontade de sentido, uma, digamos, semiofilia, por um imperativo para sanar esse niilismo, o que insere o pensador não apenas na tradição neokantiana de Rickert (RINGER, 2004), como ainda em um campo de influência do pragmatismo de Peirce (1992) e James (1907). Isso delega aos humanos o processo de preenchimento das coisas objetivas com um espírito (Geist), matéria abstrata que, ao ocupar os corpos despidos de significado, permite a eles a factibilidade. É como se Weber estivesse propondo uma semiótica social: as coisas, para terem com os homens, precisam fazer sentido, o que não podem aprioristicamente, e precisam, então, se tornar como que significantes e serem preenchidos com significados, cuja substância é metafísica. Ora, esse fenômeno, no autor, é iminentemente social. Embora a operação seja de definição de um “sentido subjetivamente visado”, esse só pode ser operado a partir de uma perspectiva objetiva, a da intersubjetividade: nenhum sentido é cabível se não for resultado de uma interpelação comum. E disso decorre que as formas, ao serem interpeladas, precisam sê-lo vis-à-vis os humanos, motivo pelo qual esta é uma sociologia da ação: as coisas fazem sentido para nós na medida em que fazem algo e seria esse fazer o cerne da vida social – e, disso, é das ações uns dos outros que se ocupam basicamente os atores em suas discussões sobre o sentido.

Ao mesmo tempo, no entanto, essa operação não pode ser pensada como mera semiótica subjetivista nem pode ser reduzida a uma adequação fundamentalista entre objetos (formas) e fundamentos (conteúdos) (PEIRCE, 1977a): a ligação entre um sentido e uma coisa não é apriorística. Ela decorre de uma seleção, uma vez que aquilo que algo ou alguém faz pode não ter a mesma importância para uns que para outros, o que torna o sentido não apenas um preenchimento, mas um preenchimento valorativo, isto é, um designativo capaz de dizer que aquilo ali é congruente no que diz respeito à determinada grandeza (poderá ser feito aquilo que importar). Donde a sociologia compreensiva/interpretativa de Weber ser uma sociologia ancorada nos valores, daquelas grandezas mobilizadas pelos agentes para preencher de sentido as ações diante de si, ingressando em um jogo de troca de interpelações e ofertas de sentido que adiante fará a sociologia weberiana se desdobrar em sociologia das prestações de contas (accounts) (WRIGHT-MILLS, 1940; SCOTT; LYMAN, 2008).

Nesse sentido, uma abordagem compreensiva da política, então, adota como objeto os valores mobilizados pelos atores para dar conta de suas ações em um âmbito politizado e, com isso, estuda como esses mesmos atores promovem a operação de traduzir esses mesmos valores em termos do bem de todos, valor superior universalizado pelos imperativos da politização. Como vimos, esse bem de todos pode ser buscado em diversos bens mobilizados em situação, como, por exemplo, o bem-representatividade ou o bem-eficiência, mas também outros, como o bem-emancipação, o bem-correção-das-desigualdades-econômicas, o bem-correção-das-desigualdades-sociais (de raça, de gênero etc.) e é o complexo processo dessa tradução o desafio do pesquisador: essa sociologia axiológica (HEINICH, 2017) demanda por um lado uma especial atenção à neutralidade analítica (WEBER, 2001; BLACK, 2013; HEINTZ; 2020) – já fundamental para qualquer pesquisador que se prese, mas no caso da sociologia da moral ainda mais determinante (ABEND, 2010)16 17, a fim de evitar moralismos analíticos que eclipsem a compreensão do quadro empiricamente apresentado – e, por outro lado, um monumental esforço de mapeamento de todos os (possivelmente quadros de) valores e elementos envolvidos na situação, o que, por sua vez, exige o cuidado de identificação de grandezas em variáveis planos e em um painel por vezes agigantado de fontes, materiais e registros (discursivos, documentais, actanciais, experienciais, institucionais, entre outros).

Um tratamento como esse coloca entre parênteses (pelo menos por ora e para efeitos analíticos) tanto o normativismo apriorístico da chamada sociologia crítica, centrada na ideia de que a dominação é o fenômeno central da realidade social e que a tarefa da disciplina é compreender os mecanismos segundo os quais os dominados são levados a agir conforme desejam os dominadores – o que implicaria uma definição substantivista de política ela própria – quanto a manobra retórica da chamada nova “crítica não normativa” (TRIANTAFILLOU, 2012; HANSEN, 2016; STARICCO, 2019), que propõe que a questão da política é uma economia da despolitização dos fenômenos sociais e que a tarefa da análise consiste em “repolitizá-la”, isto é, devolver a ela um caráter não naturalizado. Adotando-se uma postura radicalmente compreensiva, pragmatista e pragmática, segundo a qual o objeto da análise é a forma como os atores eles próprios constroem/operam a dimensão moral da política – ou seja, como determinam o que é “bem” e o que é “todos” –, torna-se a análise dos fenômenos políticos mais complexa, na medida em que se estuda aquilo que efetivamente comparece nas situações politizadas para defini-las como tal e para definir e resolver as controvérsias nelas trazidas à baila, restituindo-se a essa complexidade inclusive a dimensão agencial das operações críticas dos atores como objeto, elemento central da passagem de uma sociologia crítica a uma sociologia da crítica (BOLTANSKI, 2016).

Essa complexificação se prova especialmente relevante para escapar a um viés/simplismo que chamarei de o problema do “na verdade”. Trata-se da atitude analítica segundo a qual, sob o argumento de evitar ingenuidades, busca-se olhar para a moral como “na verdade” alguma outra dimensão. Nessa chave, toda atitude moral é lida “na verdade” como, por exemplo, interesse ou ação do poder e consistiria em uma mecânica de “escamoteamento” desse “verdadeiro” fundamento – um substantivismo aparentado àqueles segundo os quais qualquer achado da sociologia “na verdade” corresponde a um achado da Neurociência ou da Física das partículas. Assim, seja qual for o projeto de fundo dos empreendedores de ações moralizadas (ou as intenções ocultas nos corações, mentes, índoles, DNAs, subpartículas, espíritos, ou seja, lá qual for o recôndito explicativo mobilizado), para certas correntes críticas o que está em jogo é uma operação segundo a qual “na verdade” há o bem de si (o interesse) e, em oposição a ele, a moral. E, no caso das situações políticas, esses tratamentos traduziriam essa oposição como uma antinomia entre política e moral: a primeira seria substantivamente o território do bem de si, e a outra, uma dimensão “estética” ou “retórica” com a função de eufemismo do que “na verdade” ocorreria. O tratamento aqui proposto, por outro lado, reconhece a pujança empírica da dimensão moral como fenomenologia ela mesma – em vez de como ferramenta do que quer que seja senão as efetivações de situação elas próprias. Ao evitar o “na verdade”, valoriza-se a moral como objeto e isso permite estudar efetivamente seus elementos próprios, o que se perde completamente quando ela é rebaixada a aparato de outros princípios, tomados à priori18

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Recebido em: 07/08/2021

Aceito em: 23/02/2022


1 Este texto contém análises relativas ao projeto “O Moralismo Ostentatório: Um Estudo do Papel da Crítica Acusatorial nos Mundos Público e Privado”, financiada pelo Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq) por meio de sua bolsa de produtividade (processo 312417/2018-7). Uma primeira versão foi apresentada no I Seminário Internacional Questões de Moral, Moral em Questão: Sociologia e Antropologia do Bem em Tempos Desafiadores, na UFRJ, em julho de 2020. Agradeço aos vários envolvidos no debate em minha mesa e aos avaliadores da Política & Trabalho pelas contribuições para a sofisticação do argumento. Agradeço também à colega Thais Florencio de Aguiar, cientista política, por contribuições ainda na fase de escrita.

* Sociólogo. Professor do Departamento de Sociologia e do Programa de Pós-Graduação em Sociologia e Antropologia (PPGSA) da UFRJ, coordenador do Núcleo de Estudos da Cidadania, Conflito e Violência Urbana (Necvu), da UFRJ, pesquisador de produtividade do CNPq, bolsista Jovem Cientista do Nosso Estado Faperj. Áreas de interesse: Sociologia da moral, sociologia dos conflitos e da violência, teoria sociológica, pragmatismo. E-mail: av.werneck@ifcs.ufrj.br

2 Não que isso importe para o argumento, mas o próprio Hašek mostrou-se atento a essa dificuldade de definição, por meio de um viés seu característico, a ironia – o que pressupõe uma postura de superioridade moral (COLEBROOK, 2004). Militante de esquerda, foi editor de um jornal anarquista e, depois da Guerra, tornou-se comunista de linha soviética. Entre esses dois momentos, fundou uma agremiação política cujo nome parece um manifesto de seu gaiato distanciamento desconstrutivo: Partido do Progresso Moderado Dentro dos Limites da Lei.

3 Nessa galeria de ações possíveis se inclui a recusa de participação justamente porque a situação é percebida como política. É preciso que faça parte dessa sociologia como objeto a recusa a se relacionar com a política.

4 Essa galeria compreende trabalhos sobre manifestações críticas em situações que vão das interações cotidianas (WERNECK, 2009, 2011a, 2011b, 2015a, 2020a) a protestos e discursos políticos (WERNECK, 2004a, 2004b, 2008, 2016a, 2019b, 2020b, 2021a, 2021b; WERNECK; LORETTI, 2018), passando por uma concentração específica na ideia de crítica acusatorial (MISSE; WERNECK, 2012; WERNECK, 2012b, 2015b, 2019b; WERNECK; TALONE, 2019; WERNECK; TEIXEIRA; TALONE, 2020; WERNECK et al. 2021), além de algumas discussões de teoria (WERNECK, 2014, 2016b, 2019a, 2022).

5 Apresento uma síntese do mesmo em Werneck (2012a, p. 77-115). Sua apresentação completa está em Boltanski e Thévenot (2020) e uma síntese dos próprios autores, em Boltanski e Thévenot (1999).

6 Para mais sobre dispositivos, ver Peeters e Charlier (1999) e o dossiê que organizam a partir do texto.

7 Grifo meu.

8 A escolha do substantivo comparecimento implica ainda uma decisão analítica: embora o verbo intervir não passe de imediato todo o peso desse sentido, o substantivo intervenção explicita e sublinha um caráter de agência externa sobre outra agência, ao passo que falar em comparecimento permite deslocar a conversa para a dimensão de ingresso na situação, de qualificação da forma como algo aparece, se manifesta, notadamente atua e atua significativamente, determinantemente para a definição/efetivação (e, veremos, depuração/resolução) da situação.

9 De fato, na apresentação do livro, Leftwich (2004, p. 2) sugere dois grandes modelos para caracterizar as várias e distintas definições de política: a abordagem dimensional – a rigor, ela a chama de “abordagem da arena ou do local”, mas tomo a liberdade aqui de promover seu paralelismo sintático – segundo a qual a política é um espaço em que se dão determinados fenômenos, e a abordagem processual, segundo a qual a política é um processo, algo que acontece, uma forma de fazer ou de se comportar. Essa distinção, conquanto seja já um mergulho em uma discussão que não pretendo fazer, ajuda a iluminar justamente o quanto a dimensão moral atravessa qualquer definição: quer seja pensada como arena quer seja como processo, isso que é a política precisa ser efetivado como tal pelos atores sociais, isto é, validado em termos de sentidos e valores como algo (arena ou processo) que eles reconheçam como capaz de direcionar o bem a alguém – definição que explorarei adiante.

10 Estou plenamente consciente de que Dewey (1938), com toda sua tematização da política e da teoria democrática – ver, sobre isso, por exemplo, Pogrebinschi (2004, 2005) –, discordaria de uma neutralização total dessa interpretação. Mas coloco esse tratamento como investimento à parte em relação ao investimento pragmatista em uma teoria da ação consistente com os comportamentos efetivos dos atores sociais (WERNECK, 2022).

11 Estou consciente também de que essa definição amplia a dimensão de política para o lado de fora do ambiente público/cívico e das consequências dessa ampliação, que permite pensar a politização de situações privadas, familiares, ou, em sentido mais analítico, domésticas (BOLTANSKI; THÉVENOT, 2020).

12 Do ponto de vista dessa abordagem, não se trata de se perguntar que fenômeno social é moral ou não – como em certas interpretações simplistas segundo as quais seriam objetos privilegiados da sociologia da moral “imoralidades” gritantes (como, digamos, o genocídio, o canibalismo nas sociedades complexas, o crime ou comportamentos sexuais) ou ações “bondosas” ou “generosas” (como as ações humanitárias, o care, a doação de órgãos ou a abnegação) – e sim de indagar como funciona a dimensão moral de cada fenômeno social discreto. Claro, todos aqueles objetos são bons para pensar a moral e são recorrentes nessa linhagem sociológica, especialmente porque explicitam situações em que os atores se colocam especialmente a refletir sobre o bem, mas não exclusivamente. São tão bons para pensar a moral uma transação da bolsa de valores ou uma eleição presidencial, as escolhas de objetos de arte ou decisões em um videogame.

13 Esses regimes se compõem em uma matriz com uma outra série, essa de pontos em uma escala da maior equalização (o universal) à maior peculiarização (o singular absoluto), permitindo aos atores avaliar o mais efetivo como uma composição adequada entre um direcionamento do bem (ou uma composição entre dois ou mais) e uma posição dimensional desse outro eixo. Uma discussão mais aprofundada desse modelo ultrapassa os limites deste texto. Para ela, ver Werneck (2012a, p. 267-316), especialmente o esquema na página 308.

14 Mesmo em modelos conflitualistas, como, por exemplo o marxista, o horizonte é também o bem de todos – a abolição das classes pela revolução (e, portanto, pela derrocada da classe dominante) ao fim e ao cabo produziria uma sociedade benéfica para todos – mesmo que essa totalidade seja construída a longo prazo e por um longo processo de adaptação e à custa de violência (que será justificada por esse bem).

15 Isso não significa que não haja (ou que o modelo feche os olhos para o) conflito social e menos ainda que eles estejam dizendo que as ordens sociais modernas são ambientes dominados pela paz e pela generosidade. O ponto é que nas sociedades modernas típicas o conflito social é gerido mais habitualmente de forma negociada, na ordem das prestações de conta mútuas e mais habitualmente sem se chegar ao uso da força (por mais que esses momentos raros sejam profundamente significativos). Ao mesmo tempo, o imperativo de acordo é um traço das sociedades críticas: ele expressa não um altruísmo simplista, mas uma consciência do direito de exigência de bem comum inscrito em cada ator na ordem de sua capacidade crítica (BOLTANSKI; THÉVENOT, 1999).

16 Isso não implica um descompromisso cidadão da parte da pessoa que é o sociólogo. Pelo contrário, a seriedade analítica produzida pela postura compreensiva pode mesmo melhor municiar as atitudes críticas dos atores sejam eles analistas ou não. O que é implicado por essa impressão é uma valiosa múltipla personalidade, em que o pesquisador desempenha seu papel como tal no máximo de sua pujança e o ator crítico o mesmo, sem que eles precisem confundir suas intervenções em termos de análise.

17 Dessa forma, não basta, como propõe Fassin (2008), em seu inusitado artigo sobre “o desconforto da antropologia com a moral”, que o pesquisador com a tarefa de estudar essa dimensão da vida social exponha seus valores como forma de tornar os outros conscientes de suas escolhas. A tarefa analítica vai além disso e implica um esforço de desenviesamento analítico, proporcionado justamente pela adoção do par metodológico mapeamento/análise do comparecimento municiada pela abordagem compreensiva.

18 Isso não quer dizer que, por exemplo, Elias (1990), ao fazer sua sociologia historiográfica sociogenética dos costumes apontando o papel das (auto)interdições comportamentais na dinâmica dos poderes de Estado e da vida social em sentido amplo, ou que Foucault, ao traçar suas várias genealogias de processos moralizadores da cultura ocidental (a prisão, o cuidado de si etc.) como formas de governamentalidade, estejam errados. Pelo contrário, o exemplo deles justamente comprova a indissociabilidade entre a moral e quaisquer outras dimensões da fenomenologia social, uma vez que sublinha a complexa operação de vai e vem entre as duas dimensões, sem necessariamente reduzir uma à outra. Evidentemente, isso também não quer dizer que as pessoas não possam usar – e usem – a dimensão moral da vida estratégica e conscientemente como retórica em favor de seus interesses – o que é um investimento da parte deles a ser levado em conta em qualquer análise, seja do poder seja da moral. O argumento aqui, repito, é que uma dimensão não pode ser reduzida à outra.

ISSN 1517-5901 (online)

POLÍTICA & TRABALHO

Revista de Ciências Sociais, nº 55, Junho/Dezembro de 2021, p. 113-128

Artigos

PATRIMÔNIO DO TRABALHO E A CIDADE:

conexões com as políticas públicas para crianças e jovens

WORK PATRIMONY AND THE CITY:

connections to public policies for parents and young people

____________________________________

Bárbara Birk de Mello*1

Norberto Kuhn Junior**

Margarete Fagundes Nunes***

Resumo

Tem-se como tema do estudo as infâncias e juventudes do município de Novo Hamburgo (RS), focando na questão do patrimônio do trabalho na cidade e políticas públicas para as crianças e jovens. A escolha pelo município deve-se, dentre outros, ao fato de este ser um dos pioneiros na criação dos conselhos municipais para atendimento da criança e do jovem no Rio Grande do Sul, conforme estipulado pelo Estatuto da Criança e do Adolescente, em 1990. A questão central aqui levantada é em que medida o patrimônio do trabalho incidiu na vida das crianças e jovens de Novo Hamburgo na década de 1990? Visando responder à questão, são objetivos desta investigação: 1) compreender como se deu a construção do patrimônio do trabalho em Novo Hamburgo; e 2) compreender o patrimônio das políticas públicas infanto-juvenis apontando repercussões acerca do trabalho de crianças e jovens no município, em especial no setor coureiro-calçadista, por ocasião da implantação do Conselho Tutelar (CT) e do Conselho Municipal dos Direitos da Criança e do Adolescente (CMDCA), na década de 1990. O referencial teórico parte de uma revisão da literatura especializada e é composto por estudos sobre patrimônio, trabalho, políticas públicas para crianças e jovens, família, dentre outras temáticas.

Palavras-chave: Infâncias. Juventudes. Novo Hamburgo. Trabalho.

Abstract

The theme of the study is childhood and young people in the municipality of Novo Hamburgo (RS), focusing on the issue of work patrimony in the city and public policies for children and young people. The choice for the municipality is due, among others, to the fact that it is one of the pioneers in the creation of municipal councils for the care of children and young people in Rio Grande do Sul, as stipulated by the Estatuto da Criança e do Adolescente, in 1990. The central questions raised here is to what extent did the work patrimony affected the lives of children and young people in Novo Hamburgo in the 1990s? In order to answer the question, the objectives of this investigation are: understand how the construction of the work patrimony in Novo Hamburgo took place; and 2) understand the patrimony of public policies for children and young people, pointing out repercussions on the work of children and young people in the municipality, especially in the leather-footwear sector, on the occasion of the implementation of the Conselho Tutelar (CT) and the Conselho Municipal dos Direitos das Crianças e Adolescentes (CMDCA), in the 1990s. The theoretical framework is based on a review of the specialized literature and it´s composed by studies about patrimony, work, public policies for children and young people, family, among other themes.

Keywords: Childhood. Yong people. Novo Hamburgo. Work.


1* Graduada em História pela Universidade Feevale, mestra em Diversidade Cultural e Inclusão Social pela mesma instituição e doutoranda em Políticas Públicas pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul. E-mail: barbarabmello@gmail.com

** Doutor em Ciências da Comunicação pela Unisinos e professor do Programa de Pós-Graduação em Diversidade Cultural e Inclusão Social e do Mestrado Profissional em Indústria Criativa da Universidade Feevale. E-mail: nkjunior@feevale.br

*** Mestra e doutora em Antropologia Social pela Universidade Federal de Santa Catarina. Pesquisadora associada do BIEV/Universidade Federal do Rio Grande do Sul. E-mail: nunes.margarete@gmail.com

ISSN 1517-5901 (online)

POLÍTICA & TRABALHO

Revista de Ciências Sociais, nº 55, Junho/Dezembro de 2021, p. 130-148

Introdução

As discursividades acerca do reconhecimento da criança e do jovem1 como “sujeitos de direitos” ganham força e visibilidade na sociedade brasileira a partir da Constituição de 1988. Desde então, muitas pesquisas procuram abordar as negociações, tensões e conflitos que envolvem debates em torno dos direitos garantidos por lei a esses sujeitos, sendo a principal delas o Estatuto da Criança e do Adolescente.

Nas últimas décadas, o estudo das infâncias e juventudes vem ganhando mais adeptos com base na compreensão desses como agentes da sociedade e sujeitos de direitos. O presente estudo2 insere-se nessa linha e busca abordar a partir do município de Novo Hamburgo (RS), focando na questão do patrimônio do trabalho na cidade e políticas públicas infanto-juvenis.

A questão central aqui levantada é em que medida o patrimônio do trabalho incidiu na vida das crianças e jovens de Novo Hamburgo na década de 1990? Esse patrimônio do trabalho é ligado à edificação do trabalho enquanto valor, por meio do mito do progresso e do desenvolvimento industrial. Optou-se por abordar o trabalho infantil em Novo Hamburgo, majoritariamente na década de 1990, sendo um período de efervescência, em todo o Brasil, das políticas públicas para as infâncias e juventudes, com a promulgação do ECA.

A escolha pelo município de Novo Hamburgo deve-se ao fato de ser um dos pioneiros na criação dos conselhos municipais para atendimento da criança e do adolescente no Rio Grande do Sul, conforme estipulado pelo Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), em 1990. Ademais, a cidade de Novo Hamburgo, ao longo do século XX, foi um importante polo de produção coureiro-calçadista para o mercado nacional e internacional, tendo experimentado seu apogeu nas décadas de 1970\1980.

Visando a responder à questão feita mais acima, são objetivos desta investigação: 1) compreender como se deu a construção do patrimônio do trabalho em Novo Hamburgo; e 2) compreender o patrimônio das políticas públicas infanto-juvenis apontando repercussões acerca do trabalho de crianças e jovens no município, em especial no setor coureiro-calçadista, por ocasião da implantação do Conselho Tutelar (CT) e do Conselho Municipal dos Direitos da Criança e do Adolescente (CMDCA), na década de 1990. A partir desses objetivos, buscar-se-á responder à problematização do estudo.

No intuito de atingir esses objetivos, o referencial teórico parte de uma revisão da literatura especializada e é composto de leituras sobre patrimônio, trabalho, políticas públicas para crianças e jovens, família, dentre outras temáticas. Para a definição de patrimônio, apoiamo-nos nos autores Velho (2006), Arantes (2006), Rocha e Nunes (2009) e Rocha e Eckert (2011).

Assim, este artigo tem a pretensão de contribuir com a reflexão sobre cidade, trabalho e políticas públicas para crianças e jovens a partir da discussão do patrimônio. Tanto a edificação do trabalho como um valor, ícone que alimenta as discursividades em torno do ideário de “progresso e desenvolvimento” no Vale do Sinos, quanto as formulações, implantações e implementações de políticas públicas, que despontam nesse cenário urbano, marcado pelo trabalho operário-industrial, são tratados como patrimônio.

Patrimônio: trabalho e políticas públicas infanto-juvenis

Aqui, iniciamos a discussão a partir do conceito de patrimônio para buscar compreender o patrimônio do trabalho e das políticas públicas infanto-juvenis em Novo Hamburgo. O patrimônio é uma construção social e, por isso, é “[...] necessário considerá-lo no contexto das práticas sociais que o geram e lhe conferem sentido.” (ARANTES, 2006, p. 426).

Para Velho (2006, p. 244), o patrimônio é “[...] a organização social do espaço e dos lugares de memória para a construção e a dinâmica de identidades individuais e sociais.” Já a memória é um recurso político, assim como o patrimônio, e “[...] é acionada pelos sujeitos e os grupos como uma ‘comprovação’ do seu lugar na cidade no desenrolar do tempo.” (ROCHA; NUNES, 2009, p. 3). Logo, o patrimônio sempre irá se nutrir dos elementos da memória.

A concepção de patrimônio é embrenhada por constantes conflitos e tensões envolvendo a sociedade e o poder político, pois a definição de determinado bem material ou imaterial como patrimônio dá maior legitimidade a ele e ao grupo que esse representa (ARANTES, 2006; VELHO, 2006).

Segundo Rocha e Eckert (2011), o patrimônio não é algo estático, ele muda conforme o tempo, o espaço e as trocas sociais entre os agentes. Nessa direção, Woortmann (1994) aponta que assim como o patrimônio, a memória também não é presa ao passado e se formula a partir de uma visão do presente. Logo, patrimônio e memória são noções do presente.

Assim, podemos enunciar o patrimônio como uma construção social que se dá constantemente e é repleta de permanências, mas também mudanças, que influenciam na forma pela qual os sujeitos e grupos se veem e na construção da cidade na qual habitam. Aqui, se transpõe a perspectiva de patrimônio material e a memória ganha papel central, pois ela influi sobre o que é considerado patrimônio e vice-versa.

Neste artigo, buscamos trazer o patrimônio do trabalho em Novo Hamburgo e de outro lado o patrimônio das políticas públicas infanto-juvenis para analisar como o primeiro influenciou no trabalho infantil na década de 1990. Mas o que queremos dizer com patrimônio das políticas públicas? Significa que as políticas públicas passaram e continuam passando por um longo processo de formulação e reformulação que se constitui em patrimônio, elas fazem parte de uma construção social que tem intensa relação com a política e a cidade na qual estão inseridas. Como veremos mais adiante, há um patrimônio internacional das políticas públicas infanto-juvenis, muito ligado à Organização das Nações Unidas (ONU), Fundo das Nações Unidas para a Infância (UNICEF) e Organização Internacional do Trabalho (OIT), que pressiona o patrimônio nacional dessas políticas e que levou, dentre outros pontos, à criação do ECA, que pressiona o patrimônio municipal dessas políticas, culminando na criação dos Conselhos Tutelares e Conselhos Municipais de Direitos da Criança e do Adolescente.

A partir dessa discussão, é interessante problematizar a tensão que se estabelece a partir dos conceitos de microética, mesoética e macroética. Oliveira (2000) considera que:

[...] uma micro-ética, uma meso-ética e uma macro-ética, correspondendo, a primeira, as esferas das relações face a face que se dão no meio familiar, tribal ou comunitário; a segunda, as relações sociais permeadas pela ação dos Estados (de direito) nacionais por meio das instituições e das leis por eles criadas; e a terceira, as ações sociais que por deliberação internacional, por intermédio de seus órgãos de representação - como a ONU, a OIT, a OMS ou a Unesco -, devem ser reguladas por uma ética planetária. (OLIVEIRA, 2000, p. 175).

A macroética, no caso deste estudo, refere-se às determinações colocadas pela ONU, Fundo das Nações Unidas para a Infância (UNICEF) e outras instituições de governança global acerca dos direitos das crianças e jovens, enquanto a mesoética diz respeito às leis do Estado brasileiro, sendo que a principal, no que se refere às infâncias e juventudes, é o ECA. Assim, a macroética influencia na mesoética, que, por sua vez, faz intervir na microética, ou seja, nas relações que se estabelecem no âmbito municipal e no cotidiano das crianças, jovens e suas famílias. Nesse ponto, surgem mais tensões entre o que é estabelecido por lei e as vivências dentro da cidade, como, por exemplo, a questão do trabalho infantil em Novo Hamburgo.

Essas ideias dialogam com Bachelard (1994) e a dialética de duração, uma vez que há um tempo objetivado através das leis e instituições, que é um tempo histórico regulador aos moldes ocidentais, e há o tempo vivido, que é aquele do dia a dia, subjetivado. Entre esses dois pontos, que estão em constante cruzamento, tem-se o tempo da duração, que resulta do processo de contato entre o tempo objetivado e o tempo vivido e que gera continuidades, descontinuidades e, muitas vezes, demonstra os conflitos que se estabelecem.

A seguir, elencamos algumas considerações sobre Novo Hamburgo e a edificação do trabalho, principalmente voltado à indústria, como patrimônio da cidade.

Novo Hamburgo: cidade, história e memória

Adentrando no espaço foco do estudo, o município de Novo Hamburgo, localizado a 43,4 km de Porto Alegre, capital do estado do Rio Grande do Sul, faz parte da região metropolitana do estado. O município possui área de 223 km² e população, conforme estimativas do IBGE de 2019, de 246.748 pessoas (IBGE, 2020). Aqui, a cidade é vista:

[...] enquanto espaço social para os jogos da memória e da produção da diferença, dos sujeitos e dos grupos que nela habitam, e que fazem dela um espaço polissêmico, onde a produção de sentido não se esgota na totalidade territorial que ela engloba, mas se espraia pela relação construída com outros lugares, pelas comunicações transculturais características da vida urbana contemporânea. (NUNES, 2009, p. 21).

Assim, a cidade é um lugar de múltiplas vozes e de silenciamentos (NUNES; ROCHA, 2009), onde se mostram as relações étnico-raciais e um local de conflitos pela legitimação do poder. Em Novo Hamburgo, o discurso oficial é o do descendente de alemão e o silenciamento é o dos “subalternos”, como chama Nunes (2009), que são aqueles não descendentes de alemães, principalmente os negros.

Para compreender o patrimônio do trabalho de Novo Hamburgo, faz-se necessária uma breve incursão na história do município, que se insere no contexto da imigração alemã para o Rio Grande do Sul. Em 1824, chegaram os primeiros imigrantes alemães à região onde hoje é São Leopoldo e criou-se o distrito de Hamburgerberg, que, mais tarde, viria a ser chamado de Novo Hamburgo. Apesar de o discurso oficial colocar a imigração alemã como ponto essencial para a criação de Novo Hamburgo, é preciso ter em foco que, antes da chegada dos imigrantes alemães, já havia, no território, imigrantes espanhóis, portugueses, açorianos e seus descendentes, bem como africanos escravizados e indígenas (NUNES, 2012).

O povoado de Hamburgerberg desenvolveu-se rapidamente e, em 1850, já ligava diferentes núcleos populacionais a São Leopoldo, destacando-se como polo comercial, principalmente, devido à produção de couro e, posteriormente, de calçado, que auxiliou na criação da identidade trabalhadora do novo-hamburguense. Essa indústria, segundo Schemes et al. (2005), cresceu no município, pois os imigrantes tiveram acesso às matérias-primas necessárias, o que facilitou a produção de calçado.

O distrito, que fazia parte de São Leopoldo, emancipou-se em 1927, depois de um processo conflituoso e turbulento que iniciara ainda em 1897, através de envio de memorial ao Conselho Municipal de São Leopoldo, que pedia a desanexação do distrito e criação de um novo município (SCHEMES, 2006). Nesse período, a indústria coureiro-calçadista continuava a crescer e movimentava a maioria da população para o trabalho nesse setor.

Quando Novo Hamburgo tornou-se município, nasceu o jornal O 5 de Abril, importante disseminador da ideia de uma cidade moderna, cuja fundação mítica se construiu em torno do trabalho do imigrante. O excerto do Jornal, do dia 29 de julho de 1927 explicita essa ideia:

Essa leva, de colonos (originários de 1824), que aliada a diversas outras que, paulatinamente, vieram chegando ao nosso Estado e, principalmente a São Leopoldo, constituíram a grande massa que disseminando-se, pouco a pouco, por todo o nosso Estado, formaram povoações, villas, alguma já agora cidades que são, verdadeiras colmeias humanas, onde o trabalho, o progresso, o amor pela coletividade, constituem, por assim dizer, o culto que mais absorve esses espíritos fortes, de que são portadores os descendentes dos primitivos desbravadores de nossas matas (JORNAL O 5 DE ABRIL apud KUHN, 2015, p. 61).

Aqui vê-se a ênfase dada ao imigrante alemão na construção dos municípios da região, incluindo Novo Hamburgo. Outro trecho de reportagem, publicada em 6 de janeiro de 1928, no mesmo jornal, ratifica essa citação: “Diligente, operoso, pacífico, respeitador das nossas leis, obediente aos nossos costumes, o colono germânico se integra na nossa vida, enraizando-se à nossa terra, construindo, produzindo, e sobretudo trabalhando tenazmente e sem cansaços.” (JORNAL O 5 DE ABRIL apud KUHN, 2015, p. 61).

De acordo com Schemes, Maroneze e Kuhn Junior (2013), foi criado, em Novo Hamburgo, um discurso que prega pela modernidade, ordem e trabalho. A cidade seria um espaço de forças individuais ligadas ao projeto coletivo de modernização, através do trabalho de todos. E o Jornal O 5 de Abril afirmava esse discurso, sendo que os responsáveis pelo veículo de comunicação eram empresários da classe industrial.

Vale apontar aqui que não foi somente o imigrante alemão que trabalhou no processo de emancipação e crescimento do município, mas também os demais imigrantes de outros grupos étnico-raciais que se encontravam no local. Nesse sentido, Nunes (2012) coloca que a memória social de Novo Hamburgo está pautada na industrialização, no progresso e no trabalho, tendo a etnicidade alemã como superior às outras etnias, que foram omitidas nessa construção.

A ideia do forte e corajoso trabalhador imigrante, que se constrói tendo como base a chegada dos imigrantes alemães a Novo Hamburgo e se mantém até hoje, mesmo em menor intensidade, faz parte de uma narrativa. Consoante Ricoeur (apud ROCHA; ECKERT, 2011, p. 16), “A narrativa constrói a identidade do personagem, que podemos chamar sua identidade narrativa, construindo a da história relatada. É a identidade da história que faz a identidade do personagem.” Aqui, já podemos ver, aos poucos, o patrimônio do trabalho sendo formado na cidade, mas ainda é importante dar atenção à memória.

Memória, sua relação com o patrimônio e Novo Hamburgo

A questão da memória é fundamental, na medida em que “[...] é um elemento constituinte do sentimento de identidade, tanto individual como coletiva [...]” (POLLACK apud WOORTMANN, 2000, p. 234). Woortmann (2000) apresenta um estudo de como os primeiros imigrantes que chegaram à região de São Leopoldo não mantiveram uma memória da Alemanha, mas buscaram construir uma nova história, deixando, em último plano, o passado, já que ele era, muitas vezes, de fome e privações (memória traumática).

Segundo Woortmann (2000), quando chegaram a São Leopoldo, em 1824, a maioria dos imigrantes não tinha laços sociais fortes entre eles. Tratava-se de um grupo heterogêneo, cujos sujeitos formavam uma “[...] espécie de colcha de retalhos [...]” (WOORTMANN, 2000, p. 210). Logo, não havia uma identidade partilhada e, assim, a memória traumática proporcionou um esquecimento para se construir uma outra identidade no “novo mundo”.

A partir do século XX, conforme Woortmann (2000), ocorreu uma rememoração das raízes alemãs nas regiões de imigração. A autora diferencia a “memória de” e a “memória para”: a primeira é uma memória de algo e a segunda é uma memória para formular determinada visão no presente e futuro. Em Novo Hamburgo, ocorre a formulação de uma “memória para” pela burguesia urbana no decorrer do século XX. Essa afirmou os imigrantes como “heróis trabalhadores civilizatórios”, com o intuito de justificar a posição da burguesia urbana na sociedade e buscar o progresso da indústria a partir do trabalho.

Essa “memória para” foi propulsora da construção de uma memória social sobre a cidade, seus fundadores, seus territórios. Uma memória que se apoia nas instituições, em importantes espaços políticos e sociais da cidade. Essa memória auxiliou a formulação do patrimônio do trabalho na cidade. Nesse sentido, é importante refletir sobre o valor do trabalho, o qual, como coloca Nunes (2012), quando feito por escravizados, era visto como algo sujo e impuro, mas, quando passava para a mão de obra alemã branca, era visto como sinônimo de progresso, dignidade e dádiva.

Logo, o patrimônio do trabalho novo-hamburguense está inscrito em seu território e nas ações dos seus sujeitos, de modo que o trabalho move todos no sentido do tão sonhado progresso. Esse discurso acaba por esconder os problemas de uma cidade que cresceu economicamente, mas não soube criar políticas de inclusão das minorias sociais. A seguir, veremos mais acerca das infâncias, juventudes, famílias e trabalho infantil em Novo Hamburgo na década de 1990.

Discussões sobre infâncias, juventudes, famílias e trabalho infantil

As noções de infância, adolescência, juventude e família estão em constante desenvolvimento e dependem do espaço e tempo em que se situam3. No Brasil, até antes do Estatuto da Criança e do Adolescente (1990), as crianças e jovens brasileiras eram denominadas nas leis a partir da palavra menor, a qual remete à delinquência. Após 1990, as crianças e jovens são considerados sujeitos de direitos pelo menos na lei.

Hoje, por escolha teórica deste estudo não mais utilizamos dos termos crianças e adolescentes, mas sim, crianças e jovens. Assim, trazemos as noções de infâncias e juventudes por entender que as concepções de infância e adolescência são carregadas de uma perspectiva ocidental e padronizadora dos sujeitos que não condiz com a realidade latino-americana, uma realidade que é múltipla, diversificada, constituída de diferentes culturas e tempos-espaços.

No tocante à família, a importância que ela tem para todas as camadas da população brasileira é indiscutível. Para as pessoas de elite, a família é vista como uma linhagem, em que o patrimônio financeiro tem grande peso, já as famílias de classe média adotam a prática de família nuclear e, para os grupos populares, o conceito de família está respaldado nas atividades da casa e na rede de ajuda mútua para sobrevivência (FONSECA, 2005).

Neste artigo, abordamos o trabalho como uma atividade humana que pode ser realizada coletiva ou individualmente, pode ser remunerada ou não, que traz sentido e significado a vida dos sujeitos, possibilita a sociação e que se encontra em constante mudança conforme a sociedade e temporalidade em que se insere (LOPES; ROHM, 2015).

Logo, o trabalho é uma categoria que muda ao longo dos anos, conforme as diferentes sociedades e suas idelogias. Por isso, o trabalho pode ser analisado a partir da perspectiva de ser um patrimônio, sendo possível analisar suas dinâmicas dentro da cidade de Novo Hamburgo.

O Brasil possui uma longa história ligada ao trabalho infantil desde o período da colonização europeia e intensificado no período de maior industrialização do país. No que tange ao trabalho infantil, de acordo com a legislação nacional, ele é aquele exercido por qualquer pessoa abaixo de 16 anos de idade, mas é permitido o trabalho a partir dos 14 anos de idade, desde que na condição de aprendiz. Essa legislação, contudo, ainda é relativamente nova e advinda da Constituição Brasileira de 1988, sendo que, durante boa parte da história industrial de Novo Hamburgo, as crianças puderam trabalhar legalmente a partir de 14 anos, e na informalidade, com menos de 14 anos.

Aqui, entende-se o trabalho tensionado por uma dupla condição: produtor de valor de uso e produtor de valor. No trabalho infantil também existem esses dois lados:

O trabalho enquanto valor de uso, por exemplo, no auxílio de tarefas domésticas é necessário, pois organiza a criança na medida em que o valor do trabalho vai compondo sua formação. O trabalho explorado, por sua vez, retira o seu tempo de estudo e sua energia vital é extirpada com a intensificação do trabalho. (FONSECA; OLIVEIRA, 2017, p. 99).

Tendo esses pontos em mente, voltamos para Novo Hamburgo: a indústria coureiro-calçadista continuava se desenvolvendo ao longo da segunda metade do século XX, mas foi com o golpe civil-militar de 1964, que o calçado teve um salto de produção. De acordo com Schemes et al. (2005, p. 188), “Em 1969, a produção de calçados foi de 23.834.945 pares; já em 1974, por sua vez, a produção foi de 51.634.489.”

Esse aumento na produção impactou diretamente o trabalho infantil, que passou a ser mais acionado, pois a demanda da produção era tão grande que, mesmo com muitos adultos empregados no ramo e com o êxodo rural de diversas famílias para Novo Hamburgo em busca de emprego, havia ainda muita demanda de produção. Schneider (2004) destaca que, desde a década de 1960 até a segunda metade da década de 1990, era grande o número de crianças que trabalhava na produção de calçados, principalmente em ateliês domiciliares, onde, junto da mãe, da avó e dos outros irmãos produziam partes das peças de calçados, que depois voltavam às fábricas para serem concluídas.

Os ateliês de “fundo de quintal” eram uma boa saída para as fábricas, pois não seriam surpreendidas pela fiscalização e não tinham que pagar um salário igual ao dos adultos aos menores. Além disso, as crianças ajudavam a trazer uma renda extra para casa, necessária para muitas famílias empregadas na indústria do calçado (SCHNEIDER, 2004). Porém, além dessas crianças que trabalhavam por necessidade de dinheiro, há registros de que crianças de famílias da elite também atuavam nas fábricas, uma vez que o trabalho, segundo a sociedade novo-hamburguense, moldava e dignificava o sujeito.

No contexto de Novo Hamburgo, da década de 1990, as famílias em que estavam ligadas as crianças ligadas ao trabalho infantil eram, em sua maioria, de camadas trabalhadoras urbanas, para as quais o trabalho era uma forma de moldar e demarcar o lugar da criança dentro da família, uma questão de formar a moral e disciplina dos filhos. Assim, aliado à questão de trazer mais dinheiro para casa, o trabalho infantil não era visto como algo negativo, demarcando a dualidade que sustentava, no período da década de 1990 e que até hoje se mantém, principalmente nas famílias das camadas populares: o trabalho infantil como meio de educar, disciplinar e cuidar das crianças e a exploração do trabalho infantil.

Além da identidade formulada a partir da memória dos novo-hamburguenses de trabalhadores em busca do progresso, desde a década de 1970, muitas famílias do meio rural vieram para Novo Hamburgo devido ao boom do calçado, trazendo consigo o costume do trabalho infantil no campo e na casa para a “cidade grande”.

Percebemos que há uma dicotomia entre o aprendizado do trabalho como transmissão de técnicas e saberes e a exploração do trabalho. Quando a barreira entre os dois é ultrapassada? Discussão que até hoje reverbera na sociedade e que, em Novo Hamburgo, tem forte relação com o patrimônio do trabalho. Além disso, trazemos à discussão uma questão de microética (OLIVEIRA, 2000) da sociedade novo-hamburguense, onde o trabalho era elemento central.

Em Novo Hamburgo, é interessante pontuar que a exploração do trabalho infantil, além de ser proibida por lei no Brasil, estava associada a outro agravante: o contato das crianças com substâncias tóxicas como a cola de sapato, que poderia levar a algum tipo de dependência química. O Jornal NH, importante meio de comunicação da região, relatou, por diversas vezes, essa situação, como, por exemplo, na reportagem intitulada “Na Curadoria, pequenos furtos são os maiores”, de João Manoel de Oliveira, em 20 e 21 de outubro de 1990. De acordo com o texto, o vício em cola de sapateiro era um grande problema, pois, além de ser prejudicial para a saúde dos jovens, era motivo para pequenos furtos, pois os sujeitos precisam de dinheiro para comprar a cola (OLIVEIRA, 1990).

Mas a questão central vinculada ao trabalho infantil foi a dificuldade de parte dessas crianças se manterem na escola, ferindo gravemente os preceitos do ECA (BRASIL, 1990). Mesmo com os problemas levantados pelo trabalho infantil a partir da percepção do Estatuto, a prática se mantinha de forma acentuada, em grande medida, em função do patrimônio do trabalho formado na cidade, onde esse continuava sendo símbolo de progresso e meio dignificador. Mas, da metade da década de 1990 em diante, o trabalho infantil começa a diminuir na cidade. Por quê? Em parte, devido à chamada crise do calçado no município e em parte devido às políticas públicas infanto-juvenis e ao fortalecimento do ECA.

A crise no município e o trabalho infantil

Entre os anos de 1980 e 1991, ocorreu a última grande onda migratória de pessoas em busca de trabalho para Novo Hamburgo, que passou de 136 mil habitantes para 205 mil (HATZENBERGER, 2020). Depois disso “[...] a indústria calçadista da região inicia um processo de falência e desmonte.” (HATZENBERGER, 2020, p. 75).

Em 1990, quando em âmbito nacional foi criado o ECA, em âmbito local, teve início a crise do calçado. No início da década, Fernando Collor de Mello, então presidente do país, iniciou um movimento de abertura do mercado, facilitando a entrada de produtos estrangeiros no Brasil. Nesse momento, o calçado chinês entrou no mercado brasileiro a preços muito mais baixos e vantajosos, levando a complicações no setor novo-hamburguense. Acerca desse período, Angélica Nascimento – presidente do Sindicato dos Trabalhadores do Calçado, na administração 2016 – afirmou, em entrevista a Santos (2015, p. 19), que a “[...] crise de 1994 a 1998 [...] devastou Novo Hamburgo. Na época, o número de trabalhadores diminuiu de 20 mil para 6 mil”.

Ainda antes da crise, vir do interior para Novo Hamburgo era uma ótima possibilidade de ganho monetário: “Por exemplo, uma família com quatro pessoas, maiores de 18 anos, trabalhando no setor coureiro-calçadista, poderia contar com quatro salários mínimos, além da possibilidade de empregar os filhos, com idade entre 12 e 18, que recebiam meio salário mínimo.” (HATZENBERGER, 2020, p. 75). Isso mudou drasticamente com a crise do setor coureiro calçadista que trouxe desemprego, fome, pobreza e criminalidade (HATZENBERGER, 2020).

A crise atingiu, principalmente, os trabalhadores empregados em esteiras e em posições inferiores dentro das empresas. A partir daí, o ethos do trabalhador novo-hamburguense foi abalado e muitas famílias que trabalhavam no calçado ficaram sem emprego.

Logo, ocorreram mudanças nas estruturas das famílias atingidas pela crise: quando a criança parou de trabalhar no calçado, perdeu parte de sua importância para o sistema financeiro daquelas famílias e, consequentemente, parte de seu papel dentro dela. Porém, o trabalho infantil não ocorria só no setor do calçado e outras formas de trabalho se mantiveram na cidade, como venda de alimentos nas esquinas, por exemplo. Carlos Bock, participante do CMDCA de 1998 a 2018, relatou, em entrevista, que, se não fosse a crise do calçado, muitas crianças continuariam empregadas e cheirando cola: “Então também o fator econômico acabou trazendo um alívio, muitas crianças que trabalhavam não tinham mais emprego porque não tinha mais trabalho” (BOCK, 2019 apud MELLO, 2019, p. 76-77).

A partir dessa fala, e de outros conselheiros municipais e conselheira tutelar entrevistados, apontamos para o contexto de declínio da produção coureiro-calçadista como importante ponto para a diminuição do trabalho infantil na cidade, mas isso não significa que ele deixou de existir, inclusive através de outras formas e com a terceirização do trabalho.

Para Pochmann (2014), na década de 1990, a terceirização do trabalho ganhou mais força no Brasil, pois ela possibilitou contratar trabalhadores com remunerações e condições de trabalho inferiores a períodos anteriores. Processos de terceirização já ocorriam antes de 1990 ligados ao trabalho infantil no calçado, sendo eles o trabalho em ateliês e nas próprias casas das crianças e jovens onde esses produziam parte dos calçados e depois os enviavam para as fábricas.

Trazendo alguns dados sobre o trabalho infantil no Brasil, segundo Schwartzman (2001)4, o total de sujeitos no trabalho infantil era de 9,7 milhões em 1992 e em 1998 já baixou para 7,7 milhões, sendo uma queda de 20% em termos absolutos. Ainda, destacou-se que, na década de 1990, o trabalho infantil no país ocorreu com mais frequência nos grupos de idade acima dos 14 anos (SCHWARTZMAN, 2001).

A mesma pesquisa aponta que: “O Brasil apresenta (na década de 1990) um número bastante alto de crianças trabalhando, começando com aproximadamente 25 mil aos 5 anos de idade, e culminando com 1,7 milhão aos 17 anos – metade da população do país nessa idade.” (SCHWARTMAN, 2001, p. 14). Ainda, aponta-se que o trabalho na zona urbana reduzia em 16% a chance de acesso das crianças e jovens à escola (SCHWARTMAN, 2001).

Em Novo Hamburgo, segundo o Ministério da Saúde (2014), em 1991, 3.795 sujeitos (entre 10 e 15 anos de idade) trabalhavam, uma taxa de 16,13%, sendo que a taxa média nacional no mesmo ano era de 13,89%. Já em 2000, o município possuía 2.211 crianças trabalhando, uma porcentagem de 8,64%, enquanto a média nacional foi de 12,70% (MINISTÉRIO DA SAÚDE, 2014). Segundo a mesma fonte de dados, em 1991, o município tinha participação de 0,14% no trabalho infantil nacional, sendo que em 2000 essa porcentagem caiu para 0,8%. Aqui, podemos perceber que ao longo da década de 1990 houve um decréscimo no trabalho infantil tanto a nível nacional quanto municipal, porém esse último chama grande atenção por ser um decréscimo de mais de 50% desde o início da década de 1990 até os anos 2000.

Como citado por Schwartman (2001), a educação das crianças e jovens que trabalhavam ficava comprometida. Em 1989, segundo livro organizado pela Prefeitura de Novo Hamburgo:

Nos parâmetros atuais, é inadmissível “crianças ao final da 5º série irem para a fábrica”, no entanto é informado que 45% delas tinham esse destino. O tema era tratado como um problema, tanto pela questão do trabalho infantil quanto pela descontinuidade da vida escolar, que se interrompia para dar lugar aos jalecos fabris. Porém, era difícil concorrer com a necessidade das famílias obterem um incremento na renda, uma vez que crianças e adolescentes poderiam receber até meio salário mínimo mensal nas fábricas do setor coureiro calçadista. (HATZENBERGER, 2020, p. 73).

Aqui, percebemos o que já vínhamos pontuando sobre a influência da necessidade financeira sobre o trabalho infantil, mas também acrescentamos a questão do patrimônio do trabalho na cidade, o qual aponta para o trabalho como meio dignificador e disciplinador que fazia parte da identidade novo-hamburguense do ser trabalhador, narrativa criada desde a “memória para” dos “heróis civilizatórios” alemães que trabalharam por essa cidade.

Para mudar esse cenário de trabalho infantil do início da década de 1990, as políticas públicas infanto-juvenis contra o trabalho infantil e as ações de órgãos como os CMDCAs e os Conselhos Tutelares em todo o Brasil atuaram diariamente, por isso, adentraremos em seguida na compreensão do patrimônio das políticas públicas.

O patrimônio das políticas públicas e o trabalho infantil em Novo Hamburgo

No início do artigo, trouxemos a concepção de patrimônio e o porquê da importância do patrimônio das políticas públicas, o qual faz parte de uma construção social e política que varia no tempo e no espaço e que possui três esferas principais (internacional a partir de uma visão ocidental, nacional e municipal). Aqui, é importante trazer essa discussão para entendermos o contexto em que a luta pelo fim do trabalho infantil se insere em Novo Hamburgo. Políticas que foram motivo de lutas majoritariamente de pessoas ligadas às instituições de atendimento infanto-juvenil em Novo Hamburgo, as quais participaram do processo de criação do CMDCA e Conselho Tutelar da cidade.

Em âmbito internacional, há uma longa caminhada na construção dos direitos, sendo aqui analisados pontos importantes acerca do trabalho infantil a partir da criação da OIT, em 1919, que trouxe um novo olhar sobre o trabalho. O Brasil é signatário de 82 Convenções da OIT, que ainda se encontram em vigor atualmente (OIT, 2019).

Como exemplo, cita-se a Convenção número 5, de 1934, que trata da idade mínima de admissão nos trabalhos industriais, ratificada pelo Brasil naquele ano. Dentre outras questões levantadas pela Convenção, está que “as crianças maiores de 12 anos poderão ser admitidas ao trabalho se tiverem terminado sua instrução primária.” (OIT, 1934, p. 2). O Brasil consentiu, mas não a cumpria de fato, tanto que, na década de 1990, o trabalho infantil ainda era comum, como se tem o exemplo de Novo Hamburgo, sendo até hoje um desafio mundial e nacional.

Além da OIT, a promulgação da Declaração dos Direitos da Criança e do Adolescente, de 1959, promovida pela Organização das Nações Unidas (ONU), é outro referencial mundial. Esse documento é complementar à Declaração Universal dos Direitos Humanos (1948), sendo sua principal determinação que a criança seja vista como sujeito de direitos e os tenha defendidos por lei. Nesse viés, ocorreu, em 1989, a Convenção sobre os Direitos da Criança que aponta, no artigo 32º, o direito à proteção da criança contra a exploração econômica (ONU, 1989).

Assim, percebe-se uma pressão internacional por maior posicionamento dos países quanto à política de proteção à criança e ao jovem no que tange ao trabalho. No Brasil, o cumprimento da Declaração dos Direitos da Criança veio a ocorrer somente em 1988, com a promulgação da nova Constituição. Já a Convenção sobre os Direitos da Criança foi ratificada pelo Brasil apenas em 24 de setembro de 1990.

Anteriormente à Constituição de 1988, quando passaram a ser reconhecidas como sujeitos de direitos, as crianças e os jovens do país eram tratados com o termo pejorativo de “menores” – uma pequena diferença linguística, mas que é ponto fundamental para as políticas para crianças e jovens.

A chamada Constituição cidadã trouxe direitos sociais e políticos essenciais, que, durante a ditadura, foram negados. A Lei apontou diversos aspectos relevantes, mas, especificamente, crianças e adolescentes são abordados no artigo 227º, onde se coloca o “[...] dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança, ao adolescente e ao jovem, com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação [...]” (BRASIL, 1988, p.99) entre outros direitos elencados.

Esse novo olhar para as infâncias e juventudes brasileiras abriu caminho para a formulação e promulgação do ECA, dois anos depois. O ECA firmou os direitos e deveres das crianças e adolescentes brasileiros, adotou a proteção integral a eles e, dentre outras diversas medidas, promoveu a municipalização do atendimento, através da criação de conselhos em cada cidade (BRASIL, 1990).

Antes de adentrarmos mais no ECA, é importante citar a criação, em 1994, do Fórum Nacional de Prevenção e Erradicação do Trabalho Infantil (FNPETI). O Fórum tornou-se assim um importante espaço para a discussão e compromisso para com a erradicação do trabalho infantil.

Em 1995, a Fundação Abrinq também deu um passo importante a partir da criação do programa Empresa Amiga da Criança, o qual engaja empresas a assumirem compromissos com a garantia dos direitos das crianças e jovens e reconhece locais comprometidos com essa causa. Já em 1996, foi criado o Programa de Erradicação do Trabalho Infantil (Peti), considerado central na luta contra o trabalho infantil no Brasil.

Voltando ao ECA, no que se refere especificamente a Novo Hamburgo, em dezembro de 1990, foi promulgada a Lei Municipal nº 130/90, que criou os dois órgãos para garantia dos direitos das crianças e adolescentes: CMDCA e o Conselho Tutelar. O primeiro começou suas atividades em 1991, e o segundo, em 1992.

O CMDCA é responsável por definir e colocar em prática a política de atendimentos às crianças e aos adolescentes, ou seja, não é um órgão apenas de consulta, mas também deliberativo. Esse conselho é formado por participantes representantes de entidades civis e do poder público municipal, ambos em igual número, promovendo a participação social (VERONESE, 2006).

O processo de criação e os primeiros anos de atuação do CMDCA no município foram conturbados e repletos de tensões, assim como todo o processo de redemocratização e criação do ECA. Segundo entrevista com conselheiro municipal da primeira gestão:

E como é algo novo, houve uma disputa. [...] A escolha dos conselheiros, qual a entidade que ia indicar, como é que ia se dar isso, então essa preparação demandou tempo: tu tinhas que conversar com todo mundo para explicar o que estava acontecendo, o que era o Conselho da Criança e do Adolescente, como a gente gostaria que a coisa acontecesse e foi sendo implementado aos poucos. (SELISTRE, 2019 apud MELLO, 2019, p. 78).

O processo de criação do Conselho Tutelar também envolveu tensões, tanto durante quanto após sua formulação e é permeado de conflitos até hoje. O ECA, em seu artigo 131, define o CT como um “órgão permanente e autônomo, não jurisdicional, encarregado pela sociedade de zelar pelo cumprimento dos direitos da criança e do adolescente, definidos nesta Lei.” (BRASIL, 1990, p. 32).

As atribuições do CT podem ser agrupadas em doze categorias, de acordo com o art. 136 do ECA, dentre as quais, destaca-se:

I - Atendimento a crianças e adolescentes cujos direitos estejam ameaçados ou violados e aplicação das medidas de proteção; II - Atendimento, aconselhamento e aplicação das medidas de responsabilização aos pais ou responsáveis legais; III - promover a execução de suas decisões [...] IV - encaminhar ao Ministério Público notícia de fato que constitua infração administrativa ou penal contra os direitos da criança ou adolescente (BRASIL, 1990, p. 32).

Como informa o art. 95 do ECA (BRASIL, 1990), cabe ao CT, ao Ministério Público e ao Poder Judiciário a fiscalização das instituições e entidades de atendimento a crianças e adolescentes e os programas por elas executados. Esses órgãos devem estabelecer interfaces entre saúde, assistência, educação, justiça e outras áreas que abarcam a infância e a adolescência, mas não são responsáveis por fiscalizar locais públicos ou privados (NASCIMENTO et al., 2009).

Os CTs, devido às suas características e ações, são permeados por intrigas: da família para com as crianças e adolescentes, da família para com os conselheiros e/ou dos conselheiros para com a família e outros conselheiros: “Por vezes, se constitui como uma forma de disciplinar os corpos por condutas tidas como fora das normas, inclusive dos próprios conselheiros [...]” (SCHEINVAR; LEMOS; NASCIMENTO, 2008, p. 2).

Acerca do Conselho Tutelar de Novo Hamburgo, no dia 5 de abril de 1992, ocorreu a eleição para os primeiros cinco conselheiros do órgão. Foi o CMDCA que organizou esse processo de efetivação do CT e, segundo o tesoureiro, Adão, da primeira gestão do CMDCA, não foi um processo fácil, pois havia o desconhecimento acerca de como fazer a eleição e falta de apoio político (MELLO, 2019).

Sobre o processo eleitoral, o Jornal NH publicou, nos dias 4, 5 e 6 de abril de 1992, reportagens fazendo referência à eleição. Foram 1.514 votantes, o que evidencia a falta de engajamento da sociedade, especialmente devido ao CT ser uma novidade, mas, também, por falta de apoio ao órgão. Em entrevista, a primeira presidente desse Conselho, Neidi, aponta:

Era eleição facultativa, então tu imaginas fazer uma primeira eleição facultativa assim, que não é... olha foi o “troço”, foi bem louco. [...] na época foi bem polêmico em algumas coisas: não tinha entrevista, não tinha avaliação psicológica ou psicotécnica dos conselheiros, era mais essas cartas de reconhecimento e ser eleito (FRIEDRICH, 2019 apud MELLO, 2019, p. 89).

Em ambos os processos em âmbito municipal, destacam-se as dificuldades de efetivação desses órgãos, devido, em parte, à grande novidade que traziam à sociedade em todo o território nacional. A redemocratização do país exigia mais abertura à discussão, formulação e proposição de políticas públicas, por meio da criação de conselhos municipais, estaduais e federal, nas mais diferentes áreas da gestão pública. Porém, havia certo receio do poder público, a quem cabiam as decisões relativas a esses órgãos até então, em possibilitar que os conselhos agissem sem sua intervenção. Ademais, parte da sociedade era desfavorável a esses conselhos, por não os conhecer e pensar que interfeririam demasiado na forma como os pais tratavam os filhos e devido ao Conselho Tutelar não permitir o trabalho infantil, tirando parte da renda das famílias.

Essa dicotomia está, em certa medida, associada, de um lado, ao patrimônio do trabalho e, de outro, ao patrimônio das políticas públicas e ainda se faz presente na sociabilidade de Novo Hamburgo atualmente. Naquele período, havia aqueles que acreditavam que o trabalho dignificava e disciplinava e aqueles que defendiam os Conselhos (Tutelar e CMDCA) embasados nas políticas públicas de direitos das infâncias e juventudes, os quais buscavam o fim do trabalho infantil.

Por fim, voltamos a nossa questão central: em que medida o patrimônio do trabalho incidiu na vida das crianças e jovens de Novo Hamburgo na década de 1990? Acreditamos que ele incidiu fortemente, pois, nesse município, o trabalho era central para a própria identificação como pertencente à cidade, que tem um discurso de busca pelo progresso através do trabalho, o qual foi alimentado pela prosperidade da indústria coureiro-calçadista nas décadas de 1970 e 1980, principalmente.

Além disso, as famílias das mais diversas camadas de trabalhadores urbanos deixavam seus filhos trabalharem, pois precisavam trazer mais renda para casa e/ou por entenderem o trabalho como algo honroso e dignificador, que ajuda na formação de pessoas em busca de progresso, rememorando a narrativa construída acerca dos imigrantes alemães do início do século XX.

Porém, como vimos, a partir da crise do setor coureiro-calçadista, na década de 1990, e através das políticas públicas, principalmente do ECA, do CMDCA e do CT, o trabalho infantil passou a diminuir no município, sendo que em 2000 temos uma redução de cerca de 50% em comparação ao início da década de 1990. Relembramos a fala de um dos antigos presidentes do CMDCA que disse que se não fosse a crise na cidade, o trabalho infantil não diminuiria tanto (BOCK, 2019 apud MELLO, 2019). Todavia, devemos considerar que nos anos 1990 e nos anos 2000, houve uma expansão da luta pelos direitos humanos, portanto, das orientações e regulações de uma macroética sobre os Estados nacionais. Ainda que a industrialização do Vale dos Sinos prosseguisse intensamente, é provável que os mecanismos de controle do trabalho infantil fossem revistos.

Considerações finais

Acreditamos que o patrimônio do trabalho de Novo Hamburgo foi instaurado a partir da reformulação da memória acerca dos primeiros colonos alemães, que os dignificou como trabalhadores fortes e corajosos, responsáveis pela construção de uma cidade onde o progresso imperava. Esse ideal novo-hamburguense foi sendo fortalecido pela produção da indústria coureiro-calçadista e, de certa forma, se mantém até hoje, mesmo em menor intensidade, fazendo parte de uma narrativa e de uma “memória para”.

Constatamos dois fatores principais para o grande volume de trabalho infantil em Novo Hamburgo: com o boom do calçado no município, havia muito trabalho e as crianças e jovens davam ajuda financeiramente para as famílias; em segundo lugar, havia o patrimônio do trabalho construído nesse espaço.

Por isso, houve diversos conflitos e tensões entre os defensores do CMDCA, do Conselho Tutelar e do fim do trabalho infantil e os apoiadores do emprego de crianças. De um lado o patrimônio das políticas públicas e, de outro, o patrimônio do trabalho, tensões que até hoje são perceptíveis.

Em 2019, o trabalho infantil no Brasil contava com 1,8 milhões de pessoas entre 5 e 17 anos, sendo uma redução de 16,8% se comparado a 2016 (IBGE, 2020). Já no município de Novo Hamburgo, em 2019, havia 16 sujeitos entre 10 e 14 anos trabalhando e 748 entre 15 e 17 anos com vínculos empregatícios (FEE, 2019).

Por fim, destacamos que a temática aqui trabalhada segue sendo abordada na dissertação, na qual está sendo realizado um estudo teórico e empírico a partir da etnografia da duração e de práticas etnográficas acompanhando conselheiros tutelares de Novo Hamburgo, desde 1992 até os dias de hoje, as quais esperamos que contribuam para discussões mais empíricas acerca do trabalho infantil em Novo Hamburgo, desde os anos 1990 até hoje.

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Recebido em: 10/12/2020

Aceito em: 17/05/2021


1 De acordo com a definição do Estatuto da Criança e do Adolescente: “Art. 2º Considera-se criança, para os efeitos desta Lei, a pessoa até doze anos de idade incompletos, e adolescente aquela entre doze e dezoito anos de idade.” (BRASIL, 1990, p. 1).

2 O presente estudo é resultado das leituras e discussões realizadas durante o componente curricular Tópicos Especiais: práticas de Patrimônio, Cidade e Diversidade Cultural no Mestrado Acadêmico de Diversidade Cultural e Inclusão Social. As discussões aqui realizadas também estão sendo levadas para a dissertação, a qual se utiliza da etnografia da duração.

3 Segundo Ariès (1981), um dos autores mais renomados quando falamos em infância e adolescência no ocidente, foi no final do século XVIII e começo do XIX que a infância foi consolidada como uma fase diferente da vida, em que as crianças precisavam de uma atenção maior da família. Já a concepção da adolescência ocorreu a partir de 1890, quando, nas famílias de elite, os jovens continuaram nas escolas para melhorar sua formação (ARIÈS, 1981).

4 Texto desenvolvido a partir da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílio (PNAD) e que considerou dados dos anos de 1992, 1995 e 1998. Foi considerado trabalho infantil aquele exercido por pessoas entre cinco e dezessete anos.

TRABALHO POR PLATAFORMAS DIGITAIS NA ALEMANHA:

uma análise sobre o mercado de trabalho e a decisão judicial 9 AZR 102/20

da Corte Federal Trabalhista (Bundesarbeitsgericht)

WORK BY DIGITAL PLATFORMS IN GERMANY:

an analysis on labour market and judicial decision 9 AZR 102/20

of the Federal Labour Court (Bundesarbeitsgericht)

____________________________________

Bruna da Penha de Mendonça Coelho*1

Resumo

O objetivo do artigo consiste em analisar os contornos do trabalho em plataformas digitais na Alemanha, com foco em duas dimensões: a compreensão dessa relação de trabalho no contexto das alterações e desigualdades do mercado de trabalho naquele país, bem como sua interpretação no bojo do arcabouço normativo alemão e da decisão 9 AZR 102/20 do Bundesarbeitsgericht. Como métodos de análise, o estudo conjuga pesquisa bibliográfica e empírica. O desenvolvimento do artigo se divide em três itens, que tratam, respectivamente: (i) de uma análise sociológica sobre a inserção e difusão dessa relação de trabalho no mercado de trabalho alemão; (ii) do sistema juslaboral alemão e da decisão do Bundesarbeitsgericht sob análise; (iii) de possíveis precauções teórico-empíricas para futuras pesquisas comparativas sobre o tema entre Alemanha e Brasil.

Palavras-chave: Trabalho por plataformas digitais. Alemanha. Mercado de trabalho. Decisão 9 AZR 102/20 do Bundesarbeitsgericht.

Abstract

The paper aims to analyse the characteristics of the labour relations by digital platforms in Germany, focusing on two dimensions: the understanding of this relation in the context of changes and inequalities of the labour market in that country, as well as its interpretation in German normative framework and in Bundesarbeitsgericht’s 9 AZR 102/20 decision. Regarding the methods of analysis, the study combines bibliographic and empirical research. The development of the article is divided into three items: (i) a sociological analysis on the insertion and diffusion of this labour relation in the German labour market; (ii) the German legal system and the Bundesarbeitsgericht’s decision under analysis; (iii) possible theoretical-empirical precautions for future comparative researches on the topic between Germany and Brazil.

Keywords: Work by digital platforms. Germany. Labour market. Bundesarbeitsgericht’s 9 AZR 102/20 decision.

Considerações iniciais: metodologia e apresentação dos principais aspectos da análise

Em um cenário de esgarçamento das contradições do conflito capital-trabalho em todo o mundo, marcado pelo aprofundamento de uma ampla crise social com a eclosão da pandemia da covid-19, o debate acerca das assim chamadas novas relações de trabalho ganha especial vigor. Dentre essas relações, o trabalho por meio de plataformas digitais se destaca, diante do


1* Pesquisadora visitante da Friedrich-Schiller-Universität Jena, na modalidade de doutorado sanduíche (bolsista DAAD). Doutoranda em Sociologia pelo IESP-UERJ (bolsista CNPq) e em Direito pelo PPGD-UERJ. E-mail: brunapmcoelho@iesp.uerj.br

ISSN 1517-5901 (online)

POLÍTICA & TRABALHO

Revista de Ciências Sociais, nº 55, Junho/Dezembro de 2021, p. 149-166

incremento da demanda por esse tipo de serviço em vista da necessidade de refreamento dos deslocamentos físicos. Ao mesmo tempo, a percepção das desigualdades e das disparidades sociais (entre, de um lado, a degradação das condições laborais e o aumento dos riscos sociais a que estão submetidos os trabalhadores; e de outro, a ampliação do lucro das plataformas) se torna mais aguçada, levando à efervescência de movimentos sociais contestatórios.1

De toda forma, é preciso cautela para compreender os contornos exatos do que, convencionalmente, tem sido tomado como novidade. O discurso de que a pandemia teria sido a causa da atual crise social (crise que é, a um só tempo, política, jurídica, econômica, sanitária, ideológica e ambiental – dentre outras esferas de sociabilidade) não se sustenta diante de uma análise mais detida da realidade social. A pandemia não criou as desigualdades sociais, tampouco criou os descompassos entre normatividade jurídica e materialidade – na verdade, intensificou e levou ao limite as contradições sociais já existentes. Quanto às relações de trabalho, tema específico deste artigo, os índices negativos dos mercados de trabalho não se explicam meramente pelo advento da crise sanitária. Ao contrário, o alastramento das formas precárias de contratação e a deterioração das condições de trabalho, processos fundantes da autovalorização do capital mundo afora, precediam a pandemia.

Nesse contexto, e compreendendo a relevância da dinâmica sociológica e jurídica para a definição dos contornos do conflito capital-trabalho em dada realidade social, o recorte metodológico deste artigo se volta para uma análise da relação de trabalho objeto da decisão 9 AZR 102/20 da Corte Federal Trabalhista na Alemanha (Bundesarbeitsgericht)2. Tal decisão, que data de dezembro de 2020, permite que nos debrucemos sobre o tema das reconfigurações em torno da relação juslaboral – especialmente, no caso em questão, quanto aos chamados crowdworkers3 e a plataforma de microtarefas. O fato de que a plataforma traça especificações, credita experiências, vincula a possibilidade de acesso a remunerações mais altas à aceitação de um conjunto de trabalhos anteriores, bem como determina e controla as condições laborais, levou a Corte a decidir pela existência do vínculo jurídico-laboral.

Essas relações de trabalho se inserem no bojo do que tem sido compreendido como capitalismo de plataforma4, termo polissêmico que, em um sentido mais ampliado no campo trabalhista, sinaliza as (re)configurações da dinâmica laboral a partir da “mediação” de processos informatizados. O uso das aspas denota que, ao invés de se tratar de meros agentes intermediadores, as plataformas digitais controlam e dirigem o trabalho. Para Kalil (2019, p. 8), as relações laborais no capitalismo de plataforma se dividiriam em dois tipos básicos: “o crowdwork e o trabalho sob demanda por meio de aplicativos”. O artigo se detém sobre o primeiro tipo (que não deixa de ser um trabalho sob demanda) – e, mais especificamente, sobre as chamadas plataformas de microtarefas. Tal modelo, como no caso do julgamento sob análise, se caracteriza por um processo de alta padronização, bem como pela realização de elevado número de atividades em pouco tempo e por envolver uma grande quantidade de trabalhadores.

A fim de evitar compreensões mecanicistas sobre arcabouços normativos e realidades sociais diferentes dos nossos, o artigo alia análises de cunho sociológico e jurídico. A finalidade da pesquisa interdisciplinar é, portanto, fornecer subsídios ao delineamento da relação de trabalho envolvida no caso em questão, em suas complexidades e contradições. Isto é, a relação de trabalho objeto da decisão é investigada e detalhada a partir de suas implicações sociojurídicas – sobretudo, pela contextualização de seu papel no mercado de trabalho alemão e pela explicitação do debate em torno do vínculo juslaboral.

O primeiro tópico do desenvolvimento do artigo baseia-se em dados e em produção bibliográfica atinentes, sobretudo, à sociologia do trabalho. Objetiva situar o mercado de trabalho alemão, bem como o contexto social que possibilitou o surgimento e a difusão da relação de trabalho em questão. Nessa parte, em especial, são analisados dados empíricos secundários quantitativos relativos ao mercado de trabalho daquele país, disponibilizados nos estudos referenciados ao longo da escrita. Essa análise auxilia a desnaturalizar a relação social envolvida e a compreendê-la em sua materialidade.

Por sua vez, o segundo item do desenvolvimento se inicia por uma contextualização acerca do sistema juslaboral alemão. Passa, assim, pela caracterização de suas principais formas de regulação das relações de trabalho, bem como pelos contornos da organização dos tribunais trabalhistas na Alemanha. Na sequência, o tópico se propõe a apresentar a decisão 102/20 de forma mais detida, com base no informativo oficial do Bundesarbeitsgericht, no acórdão e nos debates sobre o tema suscitados na literatura especializada, a fim de delinear os aspectos e fundamentos fático-jurídicos centrais da decisão.

O terceiro e último tópico do desenvolvimento, a seu turno, traça possíveis aproximações e tensões entre o contexto alemão e o brasileiro. Essa exposição objetiva contribuir para futuras pesquisas que se proponham a uma análise comparativa, apresentando mediações e precauções teórico-empíricas que auxiliem a evitar replicações automáticas (e potencialmente desajustadas) de dados sociológicos e jurídicos concernentes a realidades sociais diferentes. Por fim, a conclusão do artigo se destina a dialogar com possíveis desafios verificados a partir da análise empreendida.

A justificativa pela escolha de uma decisão estrangeira sobre o tema das relações de trabalho por plataformas digitais diz respeito à constatação de que, ao nos depararmos com outros contextos, nos são fornecidos subsídios para a expansão das bases materiais e conceituais do raciocínio. Frise-se, contudo, que isso não implica qualquer pretensão de transposição automática ou mecânica entre dinâmicas sociais e jurídicas diversas. Além disso, se tomarmos em conta o contexto de aceleração dos fluxos de informação, força de trabalho e capitais entre distintas partes do mundo, chegaremos à conclusão de que não é possível compreender a fundo os contornos do conflito capital-trabalho (bem como sua regulação jurídica) sem voltar o olhar às dinâmicas expansivas da acumulação capitalista em nível supranacional. Sabemos, pelo menos desde o fundamental A acumulação do capital de Rosa Luxemburgo, que esse processo de acumulação demanda um movimento para além das fronteiras nacionais, com sua consequente produção e reprodução de desigualdades geográficas (LUXEMBURGO, 1970).5

A materialidade do trabalho por plataformas digitais na Alemanha

Compreender os contornos da decisão 9 AZR 102/20 do Bundesarbeitsgericht requer que situemos a relação de trabalho sob análise em sua materialidade e historicidade. Nesse sentido, o tópico se propõe a investigar o contexto em que se insere e se difunde o trabalho nas plataformas de microtarefas na Alemanha, com especial atenção aos contornos sociais do mercado de trabalho alemão e sua relação com as condições laborais dos chamados crowdworkers (expressão originária da língua inglesa que designa, no caso em questão, os trabalhadores que prestam serviços à plataforma a partir de um registro ou cadastro prévio).

O termo plataforma de mikrojobs remete ao inglês microjobs, que, em tradução livre, é tomado aqui como plataforma de microtarefas. Essa relação de trabalho se alinha, mundo afora, com os processos de permanente reorganização da dinâmica trabalhista, que ganham força, sobretudo, em períodos de reestruturação produtiva capitalista. Uma realidade que se reproduz em escala internacional, muito embora assuma características específicas a depender da posição que cada país ocupa na cadeia global de produção de valor. Isto é, “embora as plataformas representem um modelo organizacional global, elas estão inscritas em diferentes modelos de capitalismo” (KRZYWDZINSKI; GERBER, 2020, p. 4).

Diante das disputas em torno da categorização jurídica dessa relação de trabalho nos mais variados países (e diante também da diversidade organizativa das plataformas, bem como de suas formas de operacionalização), é perceptível, via de regra, uma dificuldade de publicização, obtenção e catalogação de dados empíricos oficiais acerca do trabalho dos crowdworkers. A Alemanha não é exceção. Para tentar minimizar essa dificuldade (sem eliminá-la, contudo), tomam-se como base, para a análise a ser desenvolvida a seguir, os dados levantados e publicados em dois estudos: (i) o artigo Crowdworking Platforms in Germany: Business Insights from a Study & Implications for Society (MRASS; PETERS; LEIMEISTER, 2020), que foi apresentado no VHB-Jahrestagung 2020, em Frankfurt; (ii) o artigo Varieties of platform work: Platforms and social inequality in Germany and the United States (KRZYWDZINSKI; GERBER, 2020).

No primeiro estudo mencionado acima, os autores, ao apontarem a insuficiência e a pouca representatividade dos dados disponíveis até então, propuseram-se a levantar informações de trinta e duas plataformas que possuíssem sede ou, no mínimo, local físico de operação na Alemanha. Por meio de questionário eletrônico, foram obtidas respostas de vinte e uma delas. Para além desses dados estatísticos, foram também realizadas, entre agosto de 2018 e outubro de 2019, doze entrevistas em profundidade com representantes das plataformas e com trabalhadores que lhes prestam serviços, além de debates com líderes sindicais e sociólogos (MRASS; PETERS; LEIMEISTER, 2020).

Dentre os aspectos negativos ressaltados pelos trabalhadores, chama a atenção a baixa remuneração e o controle remoto exercido por algumas plataformas. Já uma suposta “flexibilidade” tende a ser apontada por eles como um fator positivo, por possibilitar contornar dificuldades de acesso pleno ao mercado de trabalho (MRASS; PETERS; LEIMEISTER, 2020, p. 16 e ss.). Note-se que aquilo que, individualmente, é apresentado como um aspecto favorável, deve ser lido, na verdade, como resultado de um desajuste social na absorção dessa mão de obra de forma estável pelo mercado de trabalho. Por sua vez, os representantes das plataformas tendem a apontar como fatores positivos a redução de custos (já que a força de trabalho é remunerada abaixo da média de um trabalhador contratado como empregado, além do não recolhimento de contribuições previdenciárias), bem como a aceleração do processo de trabalho em virtude das contratações sob demanda (MRASS; PETERS; LEIMEISTER, 2020, p. 17).

Os principais dados obtidos na referida pesquisa foram os seguintes (MRASS; PETERS; LEIMEISTER, 2020, , p. 6 e ss.): (i) em média, as plataformas possuíam 6,86 anos de operação (sendo que 2011 foi o ano em que se observou maior número de formação de empresas); (ii) a média de crowdworkers cadastrados nessas plataformas (funcionários externos), provenientes da Alemanha, era de 93.909 trabalhadores (com alta variabilidade nesse número, a depender da plataforma, indo de 1.000 a 500.000 crowdworkers); (iii) quanto aos funcionários internos às plataformas, elas possuíam, em média, apenas 23,21 pessoas (contadas por contratação em tempo integral); (iv) dentre os serviços mais comuns, estão produção de conteúdo, design, microtarefas (que é o caso em questão na decisão 9 AZR 102/20 do Bundesarbeitsgericht), testes (de usuários e softwares) e atendimento aos clientes; (v) a maiorias das plataformas (quinze delas) opera, juridicamente, como sociedade de responsabilidade limitada; (vi) de 2015 para 2016, dezesseis (das vinte e uma) plataformas relataram crescimento na receita.

Apesar de ser um dado incerto (por não haver um registro geral, e pelo fato de que os trabalhadores podem se cadastrar em várias plataformas ao mesmo tempo), estimou-se que, em janeiro de 2017, haveria uma média de 1.162.059 crowdworkers cadastrados na Alemanha. Desses, uma média estimada de 25,24% seriam ativos (MRASS; PETERS; LEIMEISTER, 2020, p. 10). Para que se caracterize, conceitualmente, uma plataforma de crowdwork, os autores apontam quatro requisitos: o oferecimento de uma chamada aberta a potenciais prestadores de serviço, a seleção das plataformas por parte desses trabalhadores, a existência de uma plataforma digital como intermediária, além da possibilidade formal de que os prestadores decidam realizar certa atividade ou não (MRASS; PETERS; LEIMEISTER, 2020, p. 14). Observam que os principais complicadores desse tipo de trabalho são verificados, socialmente, a longo prazo: comprometimento do futuro pelo não recolhimento de contribuições previdenciárias e dificuldade no controle estatal das informações do trabalho para a cobrança devida de tributos (MRASS; PETERS; LEIMEISTER, 2020, p. 17)

Quanto ao segundo estudo supramencionado (de Krzywdzinski e Gerber), os autores enfocam aspectos relacionados às desigualdades do trabalho em plataformas, com destaque para a carga de trabalho, remuneração e percepção subjetiva por parte dos trabalhadores. Com base em um estudo de caso envolvendo quinze plataformas selecionadas (na Alemanha e nos Estados Unidos), e também em pesquisa remota realizada com os trabalhadores, concluem que há uma relação direta entre as características do mercado de trabalho e do modelo previdenciário, de um lado, e as condições do trabalho em plataforma, de outro. Esses dados empíricos foram fruto do projeto Between digital bohemia and precarity: Work and performance in the crowd, desenvolvido entre 2016 e 2019.

Sobre o perfil dos chamados crowdworkers na Alemanha, Krzywdzinski e Gerber (2020, p. 7) observam que a maioria desses trabalhadores é composta por pessoas do sexo masculino, comparativamente mais jovens que os demais autônomos, e com grau de instrução superior à média da população. Sobre a relação entre a difusão do trabalho em plataformas e as condições institucionais na Alemanha nos últimos anos, os autores apontam que:

[...] as formas precárias de emprego aumentaram na Alemanha, devido à desregulamentação do mercado de trabalho (por exemplo, no que diz respeito às possibilidades de utilização do trabalho temporário), ao declínio na cobertura da negociação coletiva e à terceirização de trabalhadores por parte das empresas. Como resultado, o setor de baixos salários se expandiu e o número de trabalhadores autônomos também aumentou (Grabka/Schröder 2019; OIT 2017) (KRZYWDZINSKI; GERBER, 2020, p. 10).

Um aspecto relevante, extraído dos dados obtidos no projeto, é que as plataformas de microtarefas representavam 88% da amostra, ao passo que as de macrotarefas compunham apenas os outros 12%. Além disso, ao conjugar dados sobre a jornada despendida nessa atividade, sobre a porcentagem que o rendimento dela obtido representava em face da renda total da pessoa, bem como sobre o fato de se estar formalmente empregado ou não em outra atividade, os autores concluíram que, na Alemanha, o trabalho em plataformas de crowdwork tende a ser exercido de forma secundária e complementar a outras ocupações. Tal cenário difere do de outros países, como os Estados Unidos, em que o trabalho nessas plataformas representa a principal ocupação dos trabalhadores que lhes prestam serviços. Sobre a parcela que a renda advinda do trabalho em plataforma ocupa na renda total dos crowdworkers na Alemanha, os dados levantados pela pesquisa demonstraram que, para a grande maioria dos trabalhadores (mais de 70%), essa renda significa até 25% de suas rendas totais.6

Uma das possíveis hipóteses para esse cenário, apresentada no estudo, refere-se ao alastramento dos chamados “minijobs” e dos empregos parciais nos últimos anos naquele país. Tais empregos vêm acompanhados, via de regra, de baixa remuneração mensal, o que faz com que esses trabalhadores necessitem buscar o trabalho via plataformas como mecanismo de complementação da renda. Isso nos leva a perceber que há uma relação direta (e de afetação recíproca) entre os contornos do trabalho nas plataformas e as alterações do mercado de trabalho. Em outras palavras, não é apropriado interpretar o caráter complementar da atividade na renda dos trabalhadores como um indicador positivo, mas sim, como uma sinalização de que o mercado de trabalho não tem conseguido absorver, com um padrão remuneratório adequado, a força de trabalho social.

A propósito, Brady e Biegert (2017, p. 6 e ss.) observam que não se deve fazer uma análise estanque do crescimento da taxa de ocupação na Alemanha a partir do final dos anos 1980, uma vez que não se tratou de processo uniforme (os jovens de 18 a 24 anos, por exemplo, experimentaram queda nessa taxa), nem igualitário. Isso é, as desigualdades de renda e salário, especialmente a partir do final dos anos 1990, aumentaram, bem como se alastraram os empregos precários. Como evidências desse aprofundamento do processo de precarização, os autores apontam o incremento do trabalho com baixa remuneração e dos contratos temporários.

Observam também que, entre 1984 e 2013, período do recorte temporal do estudo, verificou-se um aumento expressivo nos chamados “minijobs”, definidos como “um subconjunto de trabalhos de baixa remuneração que não exigem que o empregador pague tributos de seguridade social ou forneça proteção empregatícia” (BRADY; BIEGERT, 2017, p. 10). Portanto, é nesse cenário, decorrente do processo de desregulamentação7 do mercado de trabalho alemão, que se insere a relação de trabalho objeto da decisão do Bundesarbeitsgericht.

Por fim, é importante fazer referência ao estudo de Markus Grabka e Carsten Schröder, publicado em 2019, a respeito do perfil do mercado de trabalho alemão. Isso nos auxilia a ter uma dimensão mais ampliada dessas desigualdades. A pesquisa aponta que a análise dos dados do SOEP (Painel Socioeconômico) de 2017 dá conta de que existiam, naquele ano, por volta de nove milhões de contratos de trabalho com baixa remuneração no país, o que representava cerca de um quarto de todos os contratos (GRABKA; SCHRÖDER, 2019, p. 118 e ss.). Os autores assinalam que, nos grupos sociais mais propensos a ter um contrato precarizado, estão jovens, mulheres e trabalhadores da Alemanha Oriental. Muito embora a decisão do Bundesarbeitsgericht não tenha enfrentado, diretamente, esses dados e os contornos da desigualdade no mercado de trabalho alemão, detendo-se nos elementos da relação laboral e na sua caracterização jurídica, esse aporte possibilita compreender o contexto social que afeta a (e é afetado pela) decisão.

Contextualização do sistema jurídico-trabalhista alemão e apresentação

da decisão 9 AZR 102/20 da Corte Federal do Trabalho (Bundesarbeitsgericht)

Antes de passar à apresentação da decisão em análise, revela-se adequado traçar uma breve contextualização a respeito do sistema jurídico-trabalhista alemão. Essa contextualização permite-nos compreender, ainda que de forma não exaustiva, os principais traços da regulamentação jurídica das relações de trabalho naquele país – e, consequentemente, o impacto da decisão 9 AZR 102/20 do Bundesarbeitsgericht no ordenamento alemão e na dinâmica laboral. Do contrário, a decisão não pode ser completamente entendida e situada em sua especificidade jurídico-social.

O primeiro ponto a se destacar sobre a sistemática juslaboral alemã se refere à normativa que serviu de fundamentação legal central para a decisão em questão. Trata-se do §611a do BGB (Bürgerliches Gesetzbuch, Código Civil alemão), artigo que foi introduzido no ordenamento jurídico daquele país apenas em abril de 2017.8 Esse artigo disciplina o contrato de trabalho como um contrato específico, que possui características próprias, como a existência de uma determinação externa acerca das instruções a serem seguidas pelo trabalhador, bem como a presença de dependência pessoal.9

Um aspecto importante, e que aparece ao final do §611a, diz respeito ao reconhecimento de que esse contrato de trabalho se perfaz uma vez que estejam presentes as características fáticas mencionadas no texto normativo, ainda que a denominação dada ao instrumento contratual disponha tratar-se de outro tipo de contrato. Em outras palavras, o artigo prevê aquilo que, entre nós, por influência da obra de Américo Plá Rodriguez, é conhecido como princípio da primazia da realidade sobre as formas. A propósito, esse foi um dos argumentos centrais de que a Corte lançou mão para proferir a decisão a seguir exposta.

Uma das disputas centrais quanto à interpretação de uma relação como empregatícia ou como autônoma, portanto, se refere à questão da dependência. Krzywdzinski e Gerber (2020, p. 24) observam que, na Alemanha, o principal critério para que se caracterize o chamado emprego dependente10 diz respeito à existência de uma “obrigação direta de seguir instruções (Weisungsgebundenheit), que habilita o empregador a determinar a jornada e o conteúdo do trabalho”. Ainda, apontam que essa característica tende a ser interpretada de forma relativamente estrita naquele país11.

Como explica Bernd Waas (2019, p. 26 e ss.), a Corte Federal em matéria trabalhista na Alemanha havia traçado, há décadas, um critério conhecido como Typusbegriff, para definir o que poderia ser considerado como relação de emprego. Em tradução livre, trata-se de um método cujos “termos” são compreendidos como “tipos”. A qualificação de empregado, portanto, seria um tipo a ser investigado no caso concreto, sem que pudesse ser traçada, abstrata e previamente, uma espécie de lista exaustiva de requisitos que caracterizariam uma relação como empregatícia.

Ademais, a seção 84(1) do Handelsgesetzbuch, código que trata das relações comerciais na Alemanha, funcionou, tradicionalmente, como uma das balizas para investigar a presença ou ausência de subordinação trabalhista, ao traçar indicativos para definir o grau de liberdade ou não que alguém poderia ter, na relação concreta, para definir seu trabalho, seus horários e outros aspectos da atividade (WAAS, 2019, p. 27). Outra dimensão complementar, construída pela jurisprudência da Corte, diz respeito a um chamado “teste” de “integração” (Eingliederung), para analisar em que medida alguém se inseriria na estrutura da empresa e seria, consequentemente, dirigido por outrem (WAAS, 2019, p. 28).

Nesse sentido, o legislador de 2017, ao introduzir o §611a, “orientou-se fortemente no sentido da jurisprudência existente, não apenas em relação às exigências desenvolvidas pelos tribunais, mas também em relação à relevância do método tipológico [...] e ao princípio da primazia dos fatos” (WAAS, 2019, p. 31). O autor aponta, ainda, que havia sido apresentado outro projeto de lei prévio, que buscava definir, de forma mais incisiva e “corajosa”, os indicadores de uma relação de emprego – mas que foi, rapidamente, rejeitado, em virtude de forças sociais oponentes (WAAS, p. 32). Waas observa, por fim, que a redação do novo §611a tem levantado críticas por parte da literatura do Direito do Trabalho, por ter se limitado a transpor elementos jurisprudenciais para a legislação, perdendo-se a oportunidade de uma regulação mais efetiva da relação de emprego. Para outra parte dessa literatura, não obstante, a menção explícita à determinação externa (ou por terceiros) pode funcionar como elemento importante para interpretar relações de trabalho distintas das clássicas formas de subordinação, como a que se dá por intermédio de plataformas digitais (WAAS, 2019, p. 32-33).

De volta à análise do sistema normativo trabalhista na Alemanha, vale destacar que, além de o §611a se tratar de inovação recente do BGB (inserida, portanto, no código que trata das relações contratuais privadas em geral), o arcabouço juslaboral alemão não conta com uma condensação das normas trabalhistas em um diploma normativo único – tampouco em um diploma que possa ser tido como o principal. Na verdade, cada aspecto das relações de trabalho (jornada, férias, negociações coletivas, elementos essenciais do contrato de trabalho, dentre outros) é regulado por meio de um instrumento normativo específico.

A título de exemplo, a jornada de trabalho é disciplinada pela lei Arbeitszeitgesetz, datada, originalmente, de junho de 1994. Por sua vez, a sistemática de férias é tratada pela lei intitulada Bundesurlaubsgesetz, editada em janeiro de 1963. Ainda, com relação ao término do contrato de trabalho, a Kündigungsschutzgesetz (Lei de proteção à dispensa), de agosto de 1951, dispõe sobre as garantias contra a dispensa considerada socialmente não justificada. Quanto à negociação coletiva, tem-se, como base normativa principal, a Tarifvertragsgesetz, editada em abril de 1949. Já os elementos que devem constar no contrato de trabalho, a seu turno, são disciplinados na Gesetz über den Nachweis der für ein Arbeitsverhältnis geltenden wesentlichen Bedingungen, editada em julho de 1995, que pode ser entendida como a lei que dispõe sobre a prova das condições essenciais a serem aplicadas a uma relação de trabalho.

Em virtude das transformações no mundo do trabalho12, essa legislação, majoritariamente pensada no contexto do pós-segunda guerra, defronta-se com desafios que dizem respeito, sobretudo, à necessidade de dar conta de uma realidade social pautada pela complexificação das formas de alienação da força de trabalho. Nesse sentido, Wolfgang Däubler aponta três desafios ao Direito do Trabalho na Alemanha: (i) os efeitos da globalização, com foco no fato de que os mercados de bens e investimentos tendem a se tornar cada vez mais abertos; (ii) a desigualdade na sociedade em geral e, inclusive, entre os próprios trabalhadores; (iii) o aprofundamento da digitalização do trabalho, que borra os limites entre vida particular e o local de trabalho (DÄUBLER, 2017, p. 37).

Passado esse ponto de contextualização do arcabouço normativo, e antes de adentrar na apresentação da decisão propriamente dita, é importante também especificar, ainda que em linhas gerais, o modo de funcionamento do poder judiciário trabalhista alemão. Para tanto, faz-se referência à lei Arbeitsgerichtsgesetz, de setembro de 1953, que disciplina a organização dos tribunais trabalhistas na Alemanha. Os artigos 14 a 32 da lei se debruçam sobre os Arbeitsgerichte, relativos ao primeiro grau de jurisdição. Por sua vez, os artigos 33 a 39 dessa lei dedicam-se ao segundo grau de jurisdição, composto pelos tribunais intitulados Landesarbeitsgerichte. Na sequência, os artigos 40 a 45 dispõem sobre o Bundesarbeitsgericht, que pode ser traduzido como Tribunal Federal do Trabalho (em comparação simples, guardaria proximidade com o Tribunal Superior do Trabalho brasileiro).

O Bundesarbeitsgericht nos interessa mais de perto, uma vez que a decisão que constitui o objeto de análise da presente pesquisa foi proferida no âmbito desse tribunal. Sediado em Erfurt, o tribunal possui subdivisões chamadas de “Senados” (que, em uma análise comparativa, aproximam-se do que entendemos como turmas). Cada Senat é composto por três magistrados (sendo um deles o presidente), além de dois membros leigos que representam, cada qual, os trabalhadores e os empregadores.13 A essa Corte cabe, sobretudo, a tarefa de conferir unidade e coerência às decisões trabalhistas no país, bem como interpretar os casos que a legislação não regula completamente (BUNDESARBEITSGERICHT, 2020c). O precedente em questão, exposto a seguir, diz respeito a uma decisão do nono Senat.

Explicitados esses pontos, passemos agora à análise da decisão 9 AZR 102/20 do Bundesarbeitsgericht. No comunicado oficial à imprensa nº 43/20 (a seguir referenciado como “Bundesarbeitsgericht, 2020a”), intitulado Arbeitnehmereigenschaft von Crowdworkern“14, são apresentados os principais aspectos da decisão, relativos ao caso e aos fundamentos utilizados pelos magistrados. Ainda, a explanação aqui desenvolvida se baseia também nos argumentos publicizados no acórdão do nono Senat, referenciado, na sequência, pelos dizeres “Bundesarbeitsgericht, 2020b”.

Trata-se de processo que chegou à Corte por meio de um recurso interposto de decisão anterior proferida pelo Tribunal do Trabalho (Landesarbeitsgerichte) de Munique, que não reconheceu o vínculo juslaboral demandado. Na Corte Federal, o trabalhador conseguiu o provimento parcial de seu recurso, com destaque para o reconhecimento do vínculo juslaboral com a chamada plataforma de mikrojobs para a qual prestara serviços (no caso em questão, a plataforma Roamler). Com base no informativo à imprensa e no acórdão, os próximos parágrafos se dedicam, portanto, ao relato do caso.

Ao ajuizar a ação, o trabalhador requereu o reconhecimento da existência de um contrato de trabalho por tempo indeterminado com relação à plataforma. Em junho de 2019, durante o processo, a ré pôs fim ao contrato com o autor cautelarmente, razão pela qual o demandante emendou seu pedido para incluir indenizações trabalhistas e a incidência da proteção contra a dispensa. Antes de o caso chegar ao Bundesarbeitsgericht, as decisões prévias dos outros tribunais haviam sido no sentido de negar por completo o pleito do trabalhador. A seu turno, o nono Senat do Bundesarbeitsgericht conferiu provimento parcial ao recurso do autor. Como já adiantado, os julgadores entenderam que o demandante disponibilizava sua força de trabalho, com pessoalidade, para a plataforma digital de microtarefas. Por meio de uma contratação em termos genéricos (isto é, a partir de sua conta digital cadastrada na plataforma), as atribuições consistiam, sobretudo, em controlar a apresentação de produtos em locais de venda e postos de gasolina, fotografando-os e tirando dúvidas sobre eles.

Uma vez que o trabalhador aceitasse determinada atribuição, por meio da plataforma online, deveria realizá-la em um local e prazo (dentro de duas horas) determinados. A plataforma também especificava a forma como o serviço deveria ser prestado. Uma das principais questões é que, muito embora o trabalhador tenha uma suposta liberdade em aceitar ou não o serviço, é a quantidade de trabalhos finalizados que permite acumular pontos de experiência na plataforma e, com isso, ter a perspectiva de uma remuneração mais elevada por hora de serviço no futuro (BUNDESARBEITSGERICHT, 2020a, 2020b).

A fundamentação jurídica para o reconhecimento do vínculo juslaboral entre o trabalhador e a plataforma digital, por parte da Corte, passou pela compreensão de que os requisitos fáticos da relação de emprego estavam presentes, independentemente das formalidades da contratação. Como base normativa central, foi utilizado o artigo §٦١١a do BGB (Código Civil alemão), segundo o qual um contrato de trabalho se configura quando o serviço é realizado sob as determinações e controle externos do tomador (se o prestador não tiver liberdade para definir seus horários, por exemplo), e com dependência pessoal.15 Estando presentes essas circunstâncias, e a despeito do nome que se tenha atribuído ao instrumento contratual, configura-se um contrato de trabalho. Os magistrados do Bundesarbeitsgericht concluíram que esse era o caso em questão, uma vez que o autor da demanda não podia controlar os horários, locais, forma de realização das tarefas, tampouco seus resultados (BUNDESARBEITSGERICHT, 2020a, 2020b).

O nono Senat pontuou que a forma de operação da plataforma foi planejada para que os trabalhadores (tidos como “usuários” da plataforma) adiram a pacotes com pequenas tarefas, de maneira contínua e com pessoalidade, a fim de que acumulem pontos que os permitam avançar níveis no sistema de classificação algorítmica. Alcançar um nível mais alto nesse sistema é a única forma que os trabalhadores possuem para, futuramente, estarem habilitados a realizar várias tarefas simultaneamente – e, com isso, conseguirem agrupá-las em um mesmo trajeto e aumentar a remuneração por hora. Era esse, precisamente, o caso do autor da demanda, que chegou a realizar quase três mil ordens para a ré em um intervalo de onze meses (cf. BUNDESARBEITSGERICHT, 2020a, 2020b). Isto é, a suposta opção ou liberdade de aceitar ou não as tarefas tem um caráter meramente aparente.

Em resumo, o tribunal considerou que a plataforma determinava as condições de realização do trabalho, incluindo o prazo e o local para ser cumprida a tarefa. Considerou também o aspecto central da relação de dependência pessoal entre trabalhador e plataforma. Além disso, tem-se o fato de que todos os passos da atividade eram indicados e controlados pela ré, cujo sistema de pontuação configuraria mais um fator a minar a autonomia na prestação dos serviços. Não se tratava, portanto, de mera indicação factual sobre a forma de realização da tarefa, como ocorreria em uma relação privada não empregatícia. O Senat ponderou, ainda, que o trabalho era exercido com pessoalidade, já que a conta do trabalhador era intransferível (BUNDESARBEITSGERICHT, 2020b).

O caso é paradigmático porque, uma vez que não há previsão de ações coletivas trabalhistas na Alemanha, esse é o único “processo conhecido publicamente até agora” sobre o tema (KRZYWDZINSKI; GERBER, 2020, p. 24-25). Observam Krzywdzinski e Gerber (2020, p. 26) que o trabalhador demandante recebeu apoio dos sindicatos, mas, em virtude da fragmentação do trabalho em plataformas e da consequente obstaculização da articulação coletiva, bem como da novidade envolvida nessa relação de trabalho, os principais sindicatos alemães – como “ver.di e IG Metall – têm sido comedidos em suas abordagens até agora e estão apostando no diálogo com as plataformas”.

Dentre as principais mobilizações sindicais, no bojo das disputas judiciais e regulatórias em torno do trabalho por plataformas digitais, destaca-se a interlocução entre a IG Metall e o Bundesarbeitsministerium (que pode ser traduzido como Ministério Federal do Trabalho). Além do diálogo com o Ministério a respeito das propostas legislativas de regulamentação do trabalho por plataformas, bem como do estabelecimento de um Código de Condutas junto a nove plataformas, a IG Metall forneceu apoio ao demandante no caso-chave levado ao Bundesarbeitsgericht (IG METALL, 2020). Muito embora a mobilização sindical sobre o trabalho em plataformas viesse ocorrendo, ao menos, desde 2015 (IG METALL, 2020), o contexto da pandemia explicita as desigualdades e as demandas dessa relação de trabalho.

Possíveis precauções para futuras análises comparativas entre Alemanha e Brasil

Ainda que o objetivo específico do artigo não tenha sido proceder a uma análise comparativa entre Alemanha e Brasil, é válido concluí-lo com algumas reflexões sobre o tema, como forma de apontar possíveis caminhos investigativos e precauções metodológicas para futuras pesquisas que discutam essas aproximações. As reflexões aqui propostas levarão em conta os dois eixos observados no artigo: (i) a materialidade dessa relação de trabalho e suas imbricações com as transformações no mercado de trabalho; (ii) o arcabouço jurídico e a disputa judicial a respeito da categorização da relação entre entregadores e plataformas.

Quanto ao primeiro ponto, uma análise que pretenda traçar possíveis aproximações entre o trabalho em plataformas de crowdwork no Brasil e na Alemanha precisa, inevitavelmente, levar em conta a diversidade da formação e das reconfigurações do mercado de trabalho em ambos os países, bem como dos contornos sociais das classes trabalhadoras. Do contrário, corre-se o risco de proceder a uma transposição mecânica dos aspectos meramente externos e aparentes dessa relação de trabalho, sem considerar as especificidades materiais e as contradições que assumem em cada realidade social.

Por exemplo, uma comparação que se proponha a simplesmente apor dados empíricos, sem apreendê-los em sua complexidade histórico-social, poderia concluir pela existência de uma pura dicotomia entre a configuração dessa relação de trabalho em ambos os países. Na verdade, poderia, inclusive, tomar a realidade social alemã segundo uma perspectiva idealizada, como se ela se descolasse do processo de precarização das relações de trabalho. Isto é, os dados alemães que apontam uma maior escolaridade dos crowdworkers, bem como o caráter de complementaridade do trabalho em plataformas na renda total desses trabalhadores, poderiam ser interpretados, inadvertidamente, como reflexo de um mercado de trabalho sem desigualdades.

As desigualdades geográficas e o papel ocupado por cada país na produção e circulação global de valor, por certo, denotam um cenário de superexploração da força de trabalho no contexto do chamado capitalismo dependente (MARINI, 2000). Mas isso não implica concluir que haveria espaços de ausência de disparidades e contradições no dito centro do capitalismo, e por uma razão muito simples: a extração crescente de valor, pela transfiguração da força de trabalho em mercadoria, é o mecanismo básico de acumulação do modo de produção capitalista em qualquer lugar do mundo.

Não se trata, portanto, da existência de uma blindagem quanto ao conflito capital-trabalho na Alemanha, mas, ao contrário, de sua agudização (sobretudo, em virtude da difusão de formas de contratação especialmente precárias, que impelem à busca pelo trabalho nas plataformas como meio de complementação de renda). Nas palavras de Klaus Dörre, que aponta também para um processo de “descoletivização das relações de trabalho” em boa parte da Europa (DÖRRE, 2020, p. XXVII):

Mesmo em sociedades com uma economia próspera, relações laborais inseguras se tornaram “uma forma de organização normal” (Castel: 2011, 136) da vida social. A sociedade de trabalhadores precários em tempo integral da Alemanha não é, aqui, uma exceção. Tanto na renda e no patrimônio quanto na moradia, na saúde, na educação e na distinção social, a Alemanha tornou-se uma das sociedades mais desiguais da Europa e dos países da OCDE (Kaelble, 2017: 176; Alvaredo et alii, 2018: 155-161). (DÖRRE, 2020, p. XXVI).

Passado esse ponto, lancemos o olhar para o segundo eixo de análise proposto, concernente ao arcabouço juslaboral de ambos os países. Uma primeira precaução para possíveis aproximações entre sistemas jurídicos distintos diz respeito, justamente, à compreensão de que o Direito não se restringe a suas formalizações mais imediatamente visíveis. Isto é, não é possível compreender um sistema jurídico em sua complexidade, simplesmente, a partir da leitura de instrumentos normativos e decisões judiciais.

A forma pela qual essas normas e decisões imbricam-se com a vida social, e pela qual constroem seus sentidos a partir dessa imbricação (inclusive, seu sentido jurídico), compreende também o que se entende como Direito. Para além disso, é preciso notar, ademais, que a própria expressão sistema jurídico denota, por si, a necessidade de compreender a dinâmica de interação entre os elementos que compõem esse dito sistema. Isto é, não se trata de uma apreensão estática, ou mesmo de uma simples aposição desses elementos.

A respeito do arcabouço juslaboral, é perceptível que a formação histórico-social da legislação trabalhista alemã tem características diversas da brasileira. O processo de compilação das leis trabalhistas brasileiras, cujo marco central se delineou no Estado Novo varguista, tinha por objetivo disciplinar a força de trabalho, bem como a formação e a consolidação de um padrão de industrialização então incipiente (OLIVEIRA, 2003). Por sua vez, a maior parte da atual legislação trabalhista alemã, extremamente fragmentária, ergueu-se no contexto do pós-Segunda Guerra, como parte da tentativa de reconstrução alemã.

Especificamente quanto à questão dos elementos fático-jurídicos que caracterizam uma relação empregatícia, como visto, apesar de haver certa similitude entre o §611a do BGB e a disposição celetista brasileira, é preciso considerar importantes nuances. A primeira delas é que essa disciplina alemã, recentemente editada, insere-se no diploma normativo que trata das relações contratuais privadas como um todo (isto é, no código civil alemão). É preciso levar em conta, ainda, que a interpretação jurídica acerca desses elementos varia de país para país. Na Alemanha, como observado no item anterior, o requisito da dependência pessoal assume centralidade ao se analisar a (in)existência do vínculo juslaboral em certo caso.

Por fim, é válido traçar também algumas mediações a respeito da organização judiciária e dos contornos do litígio trabalhista em ambos os países.16 Muito embora a estruturação dos tribunais trabalhistas alemães e os procedimentos guardem certo paralelo com os nossos, há importantes distinções. Uma das mais significativas diz respeito à não previsão de ações coletivas trabalhistas na Alemanha – o que, a propósito, contribuiu para tornar o caso em análise (e a decisão do nono Senat) um paradigma no tema, como apontam Krzywdzinski & Gerber (2020, p. 25).

Em resumo, proceder a uma análise comparativa entre realidades sociais e sistemas jurídicos diferentes requer que se observem, antes de tudo, os contornos que uma relação, norma ou decisão assumem ou podem assumir no bojo de certa dinâmica social. Essas precauções relevam, inclusive, para se refletir sobre as possíveis contribuições de uma decisão jurídica estrangeira, ou mesmo dos dados de determinado mercado de trabalho, para o debate a respeito da categorização jurídico-social do trabalho em plataformas no Brasil. Isto é, é preciso refletir sobre o que fundamenta determinada resposta jurídica e sobre suas relações com a materialidade de cada sociedade.

Considerações finais

Sem pretender qualquer tom conclusivo ou exaustivo, essas notas finais se destinam a condensar alguns dos principais desafios observados ao longo da análise. O primeiro deles se refere à compreensão de que não é possível entender o Direito como um fenômeno autoevidente ou alheio aos influxos sociais. Isso fica especialmente perceptível quando se trata do tema das relações de trabalho, uma vez que elas implicam processos sociais materialmente dinâmicos e não subsumidos inteiramente a arcabouços normativos prévios.

Nessa linha, a difusão do trabalho por plataformas digitais mundo afora não deve ser considerada um ponto fora da curva ou um acontecimento qualitativamente inédito no plano histórico-social.17 Na verdade, o que se observa é a complexificação nas formas de alienação da força de trabalho, sem que se altere, com isso, o cerne do funcionamento do modo de produção capitalista. Tampouco se veem superadas, para tentar lidar com essa complexificação, as construções categoriais basilares do Direito do Trabalho. Não à toa, termos como dependência, subordinação, controle, pessoalidade, dentre outros, encontram-se na ordem do dia e em permanente disputa (dentro e fora dos tribunais).

Essa questão nos leva a um segundo desafio: como compreender as decisões judiciais em torno do vínculo juslaboral entre plataformas e trabalhadores sem recair no risco sempre premente do idealismo jurídico? Em outras palavras: como se inserir nesse debate sem buscar reduzi-lo a conclusões de que o reconhecimento do vínculo empregatício sanaria, por si só, todas as desigualdades fundantes dessa relação? Isto é, as possibilidades de regulação jurídica não devem ser concebidas como um dado apriorístico em face das relações sociais, mas, sim, como fruto direto das lutas, conflitos e contradições dessas relações. Só assim é possível compreender as desigualdades materiais e as condições de sua real superação.

Para tentar lidar com esse desafio e escapar de uma possível essencialização da decisão 9 AZR 102/20 do Bundesarbeitsgericht18, o artigo se propôs a uma análise interdisciplinar que objetivou entender a relação de trabalho objeto da decisão em sua concretude social. Nessa linha, observou-se o contexto que possibilitou o alastramento dessa forma de contratação, bem como suas implicações com as reconfigurações do mercado de trabalho alemão. Além disso, é preciso reforçar, uma vez mais, que o próprio Direito também não se resume às categorizações formais, devendo ser apreendido em uma relação de afetação recíproca com as dinâmicas sociais e com a forma de se refletir teoricamente sobre elas.

Por fim, cabe mencionar um terceiro desafio, na linha das precauções aventadas no último item do desenvolvimento do artigo: é necessário ter em mente as especificidades histórico-sociais de cada mercado de trabalho e de cada arcabouço jurídico, ao se intentar proceder a eventuais análises comparativas entre dois países. Isso não significa afirmar que não haja pontos de convergência e possíveis bases sociais similares, mas, ao contrário, apenas sinaliza que só se pode encontrar a similitude quando se tem em mente a materialidade.

Em resumo, é preciso, antes de tudo, lançar o olhar para as desigualdades concretas e para os contornos do conflito capital-trabalho em certa dinâmica social. Só assim é possível investigar a complexidade do processo de alienação da força de trabalho na contemporaneidade, com especial atenção, para os fins aqui traçados, às relações laborais mediadas por plataformas digitais. E isso não leva, de forma alguma, a se pressupor uma espécie de ponto inaugural no fluxo da história. Na verdade, o chamado passado tem muito mais a dizer sobre o presente do que se imagina.

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Recebido em: 14/06/2021

Aceito em: 18/10/2021


1 Por exemplo, as paralisações de entregadores por plataformas digitais, que assumem dimensões internacionais.

2 A propósito, as citações em português de textos estrangeiros, ao longo do artigo, consistem em tradução livre.

3 Em tradução literal do inglês, os crowdworkers podem ser compreendidos como os trabalhadores da multidão.

4 Longe de ser autoevidente, o termo é capaz de suscitar controvérsias teóricas. Em função da complexidade do tema e dos limites metodológicos deste artigo, não terei condições de aprofundar essa discussão aqui.

5 No mesmo sentido, cf. Harvey (2004).

6 Sobre os dados apresentados nesse parágrafo, cf. Krzywdzinski e Gerber (2020, p. 14-18).

7 “[...] o governo alemão instituiu uma série de reformas do mercado de trabalho [...] (para uma visão geral das reformas 1991-2005, ver Ebbinghaus e Eichhorst 2006). Embora as reformas possam ter talvez incentivado o aumento do emprego, também contribuíram para o aumento da desigualdade e de empregos precários.” (BRADY; BIEGERT, 2017, p. 25).

8 O artigo foi incluído pela lei que altera disposições da Lei do Trabalho Temporário (Arbeitnehmerüberlassungsgesetzes) e de outras leis, datada de fevereiro de 2017, e em vigor desde abril daquele ano.

9 Em resumo (e em tradução livre do alemão), o §611a do BGB dispõe que um contrato de trabalho se configura quando o empregado está obrigado a prestar serviços a outrem de forma vinculada (com instruções relacionadas ao conteúdo, local, horário e forma de desempenho da tarefa), bem como com determinações externas e mediante dependência pessoal. Para ser considerado essencialmente livre, o trabalhador deve possuir autonomia para estipular seus horários e a organização de sua atividade. Por fim, dispõe o artigo que a configuração ou não de um contrato de trabalho deve ser analisada de acordo com as circunstâncias, sem que se fique preso à designação mencionada formalmente no contrato.

10 Sobre a questão da dependência no trabalho em plataformas digitais, ver Cutolo & Kenney (2019).

11 A propósito, sobre o §611a do BGB e sua interpretação, consultar também Müller-Glöge, Preis & Schmidt (2020).

12 Que se visualizam, sobretudo, na difusão de formas precárias de contratação, somadas e interligadas ao alastramento da prestação de serviços por intermédio de plataformas digitais.

13 A presença dos membros leigos no Poder Judiciário alemão é historicamente marcante não só nos tribunais trabalhistas, mas também em outras áreas (como a criminal). Nas palavras de um magistrado, em relatório do 10º Encontro de Juízes dos Tribunais Trabalhistas Europeus: “O envolvimento de juízes leigos nas três instâncias desempenha um papel decisivo para o respeito e a confiança que a jurisdição dos tribunais trabalhistas ganhou entre empregadores e empregados desde sua existência. [...] A presença de juízes leigos torna a jurisdição trabalhista mais compreensível e mais ‘familiar’ aos trabalhadores. Em geral, penso que também é um fator democrático. É um ponto de controle para o público do que a jurisdição trabalhista faz.” (OIT, 2002, p. 5).

14 “Status de empregado dos ‘crowdworkers’”, em tradução livre do alemão.

15 Cf. Kurt (2020).

16 Quanto à estruturação e competência da Justiça do Trabalho no Brasil, é válido apontar que a Emenda Constitucional nº 45, de dezembro de 2004, ampliou, significativamente, as matérias que competem a essa justiça especializada. Dentre as matérias abrangidas pela competência da Justiça do Trabalho desde então, encontram-se também as relações de trabalho em sentido amplo (isto é, não só as relações de emprego).

17 Sobre os efeitos da tecnologia nas condições de trabalho, cf. OIT, 2017.

18 Isto é, não se trata de compreender a decisão judicial segundo uma perspectiva idealizada, como se o texto dessa decisão se descolasse da materialidade da realidade social e de suas disputas.

ENTRE COACHES E COLABORADORES:

o sujeito do desempenho

BETWEEN COACHES AND COLLABORATORS:

the performance subject

____________________________________

Simã Catarina de Lima Pinto*1

Resumo

As práticas corporativas na sociedade contemporânea ultrapassam os limites da esfera do trabalho e alcançam as demais instâncias da vida dos indivíduos. Com isso, trabalhadores passam a ser denominados de colaboradores no intuito de que a negatividade e os limites presentes na disciplina à qual eles se submetem no trabalho sejam neutralizados. Para além do âmbito corporativo, ocorre também a proliferação de coaches cujos serviços oferecidos nos meios digitais se direcionam ao alcance de maior desempenho nas demais instâncias da vida para além do trabalho. Por conseguinte, a partir da literatura que trata de questões que se relacionam com esse cenário contemporâneo neoliberal, propõe-se neste ensaio uma reflexão crítica que permita compreender que os atuais colaboradores e coaches, além de refletirem o homem da empresa e da produção em Foucault, expressam o que Byung-Chul Han chamou de sujeito do desempenho.

Palavras-chave: Colaboradores. Coaches. Positividade. Desempenho.

Abstract

Corporate practices in contemporary society go beyond the limits of the sphere of work and reach the other instances of individuals’ lives. With this, workers come to be called employees in order that the negativity and the limits present in the discipline to which they submit at work are neutralized. In addition to the corporate scope, there is also a proliferation of coaches whose services offered in digital media are aimed at achieving greater performance in other areas of life besides work. Therefore, based on the literature dealing with issues that relate to this contemporary neoliberal scenario, a critical reflection is proposed that allows to understand that the current employees and coaches, in addition to reflecting the man of the company and the production in Foucault, express what Byung-Chul Han called a performance subject.

Keywords: Collaborators. Coaches. Positivity. Performance.

Introdução

O filósofo Byung-Chul Han descreveu a sociedade do desempenho como aquela que não é mais marcadamente disciplinar como retratada em Vigiar e Punir de Michel Foucault, mas, para além disso, uma sociedade na qual seus indivíduos não mais se sujeitam à negatividade, à proibição e à constante limitação do não. Ao invés da contenção presente na negatividade, para Han (2015), a sociedade do desempenho se constitui com base na positividade e na afirmação que o poder ilimitado promete. É nesse contexto que se constitui um sujeito cuja estrutura existencial é pautada numa positividade excessiva que determina a “superprodução”, o “superdesempenho”.


1* Doutoranda e mestra pelo Programa de Pós-Graduação em Sociologia e Direito da Universidade Federal Fluminense. Mestranda em Filosofia pela Universidade Federal Fluminense. Pós-graduada em Filosofia Contemporânea e em Direito Público. E-mail: simacatarina@id.uff.br

ISSN 1517-5901 (online)

POLÍTICA & TRABALHO

Revista de Ciências Sociais, nº 55, Junho/Dezembro de 2021, p. 167-183

Com base nisso, este texto busca refletir criticamente acerca da confluência do sujeito do desempenho de Han com o “homem da empresa” em Foucault, cuja vida é organizada em termos de investimento, pois em ambos o paradigma não seria mais alicerçado apenas no consumo, mas na concorrência, associada a uma ilimitada liberdade de escolha. O diálogo entre ambos os autores permite apresentar uma reflexão crítica sobre o sujeito do desempenho na sociedade contemporânea, de modo que esse é ora aquele que se vê como um colaborador e não mais como um empregado, ora aquele que consome os serviços oferecidos por coaches que proliferam nos meios digitais, ambos aqui compreendidos como sujeitos produzidos pela sociedade do desempenho.

No que diz respeito aos colaboradores, a reflexão parte da substituição do termo trabalhador ou empregado por colaborador que remete à ideia de uma ausência de subordinação do empregado em relação ao seu empregador, no intuito de que ele se torne mais produtivo sem que se sinta compelido a isso, o que ocorre num contexto de intensa precarização e flexibilização das relações de trabalho. Nesse cenário, para Ricardo Antunes (2011, 2015), novas formas de exploração são impostas como mais um mecanismo disciplinador do trabalho por meio da constituição de um universo discursivo do capital. A partir disso, apresenta-se a discussão teórica com base na qual o poder circula, uma vez que, embora Antunes aponte com precisão um conjunto de termos, expressões e práticas corporativas atualmente adotadas nos meios corporativos, a perspectiva adotada neste ensaio é a de que, em vez de existir um ponto de origem do poder, existem práticas de poder que o fazem circular nesses meios.

Em relação aos coaches, trata-se de um termo da área corporativa que se refere a “um profissional qualificado a ajudar uma pessoa a ampliar suas competências, levando-o de um posicionamento a outro” (COSTA, 2015, p. 68) cuja atuação, conforme se verá, é pautada na alta performance e no alcance de resultados. A reflexão proposta se dá com base na proliferação desses profissionais1 nas plataformas digitais a partir dos quais se pode verificar uma homogeneidade do discurso utilizado, baseado em jargões que se valem da supervalorização da alta performance, do desempenho, do aumento da produtividade, do sucesso financeiro, do desenvolvimento pessoal e de resultados. Todos esses jargões do mundo corporativo se conjugam com a busca da liberdade pessoal e se relacionam, consequentemente, à concorrência e ao lucro, estabelecendo parâmetros dentro dos quais a vida dos indivíduos deve ser organizada.

É importante observar que o objetivo deste trabalho é propor uma reflexão não acerca da eficácia ou aplicabilidade dos discursos ou mesmo da atividade em si dos coaches e profissionais afins que oferecem esses serviços; o objetivo é, antes de tudo, chamar a atenção para a homogeneidade e massificação presentes no universo corporativo no que tange aos colaboradores e aos coaches os quais ilustram o sujeito do desempenho, caracterizado pela ausência de pensamento crítico acerca do trabalho e de si mesmo numa sociedade cada vez mais marcada por um pensamento corporativo. Ou, como colocou Casara (2020), a um pensamento simplificado que se reflete no empobrecimento da linguagem que abre caminho a afirmações, convicções e certezas delirantes.

Diante desse cenário, é importante observar que se trata menos de se presumir a anulação da subjetividade pela racionalidade neoliberal, dando a impressão de se evitar espaços para o contraditório, do que expor o contexto arbitrário e contingencial que atravessa o momento presente. Em Foucault (1994, p. 182), “tantas coisas podem ser mudadas, frágeis como são ligadas a mais contingências do que necessidades, a mais arbitrariedades do que evidências, mais a contingências históricas complexas mas passageiras do que a constantes antropológicas inevitáveis...”

De trabalhadores a colaboradores

Desde meados dos anos 1970, o capitalismo parece ter sofrido uma mutação, que foi transformando e se renovando a fim de “favorecer a financeirização das empresas, o nascimento do capital imaterial” (DUNKER, 2020, p. 181). A proteção social, bem como a narrativização do sofrimento foram substituídas pela “administração do sofrimento, em dose correta e de forma adequada” (DUNKER, 2020, p. 181). Do mesmo modo, a negatividade foi substituída pela positividade (HAN, 2015). Essas transformações circunscrevem um momento caracterizado “por uma homogeneização do discurso do homem em torno da figura da empresa. Essa nova figura do sujeito opera uma unificação sem precedentes das formas plurais da subjetividade” (DARDOT; LAVAL, 2016, p. 321). Um dos reflexos disso pode ser observado pela alteração de termos comumente utilizados em ambientes corporativos, bem como de determinadas práticas nesses ambientes no intuito de modificar a percepção dos indivíduos acerca de seu trabalho e da maneira como eles o desempenham.

Trata-se de termos que demarcam uma sociedade cujo trabalho era compreendido como uma das formas de controle disciplinar, mas que hodiernamente é compreendido de um modo positivo, cujo mecanismo de poder não proíbe – já que não possui a característica de um controle direto sobre os trabalhadores na forma de uma subordinação –, mas, diferente disso, é permissivo, incitando comportamentos que maximizam a produção. Um mecanismo sofisticado de exercício do poder organizacional cujo pressuposto é afastar a ideia de um controle produtivo, o que se dá por meio de uma permissividade que insere o trabalho no cotidiano de uma maneira que o valor da produtividade e da competitividade seja pulverizado no corpo social e, consequentemente, em outros aspectos da vida dos indivíduos. Isso pode ser ilustrado no uso e aplicação da expressão “flexibilidade” ou “flexibilização” que, conforme colocam Antunes e Praun (2015, p. 412), “se expressa na diminuição drástica das fronteiras entre atividade laboral e espaço da vida privada, no desmonte da legislação trabalhista, nas diferentes formas de contratação da força de trabalho e em sua expressão negada, o desemprego estrutural”. Ocorre, por conseguinte, a ruptura dos “limites e as regulamentações de quase tudo: onde se trabalha, quanto se trabalha, com quem, como etc., hoje em dia muito da responsabilidade recai sobre o trabalhador” (ZAPATA, 2017, apud FANJUL, 2017, n. p.).

Embora para Antunes o gerenciamento por metas opere pelo engajamento “voluntário” dos trabalhadores com vistas ao aumento da produtividade e se configure como “mais um mecanismo disciplinador do trabalho” (ANTUNES; PRAUN, 2015, p. 418), que parte de uma “flexibilidade liofilizada, aparentemente mais ‘participativa’” (ANTUNES, 2011, p. 416), a produtividade de que aqui se trata, embora contenha algumas chaves de compreensão semelhantes às utilizadas por Antunes, é compreendida de modo diverso. Isto é, trata-se de uma produtividade que é instituída por meio de mecanismos de poder que funcionam de modo mais sofisticado e, portanto, mais sutil, pulverizados no corpo social e não apenas concentrados em um único ponto a partir do qual o poder produtivo se irradia disciplinarmente.

A despeito de o paradigma teórico relativo ao exercício do poder utilizado por Antunes não coincidir integralmente com o que é utilizado neste artigo, porquanto em Antunes há uma centralidade do poder que se impõe apenas de fora para dentro, de modo a oprimir e disciplinar o trabalhador sem que haja a participação direta desse no processo de exercício de poder, o que resulta numa divergência das bases teóricas, a análise que ele faz das novas práticas no meio corporativo é pertinente a esta proposta, na medida em que o uso de termos como “empregado” ou “funcionário”, que antes remetiam a uma ideia de disciplina e subordinação, recebem um novo termo que permite falsear sua carga significativa: o termo “colaborador”. Como observou Antunes em dois momentos que assinalam práticas que definem a alteração de termos, bem como de um modus operandi corporativo:

as práticas de imposição de “metas” como medição cotidiana da produção, as definições de “competências” a serem realizadas pelos “colaboradores”, tornaram-se o ideário e a pragmática empresarial da empresa flexível vigente no mundo financeiro (ANTUNES, 2015, p. 10).

As “responsabilizações” e as “individualizações”, os “parceiros” ou “consultores”, os “envolvimentos” dos novos “colaboradores”, as “metas” e “competências” que povoam o universo discursivo do capital são, portanto, traços fenomênicos, encobridores de uma acentuada informalização e precarização do trabalho financeiro (ANTUNES, 2011, p. 416).

Esses termos pressupõem não a negatividade do controle disciplinar ou “um mecanismo disciplinador do trabalho”, como colocou o autor, mas, diferentemente disso, assume-se aqui que são termos que favorecem a ideia de uma positividade, uma vontade deliberada propensa a assumir competências que permitem que se atinjam níveis de produtividade, sucesso financeiro e profissional. Isso é flagrantemente verificado na literatura organizacional que propõe, desde o final dos anos 1980, como em Evered e Selman (1989), uma mudança de paradigma de uma gestão de controle para uma gestão de capacitação como paradigma de novas técnicas de gerenciamento, as quais passaram a buscar maior desempenho por meio da substituição da ideia de “tentar controlar os outros” por outra de “capacitar os outros” (control versus empowering), a fim de aumentar o desempenho organizacional (EVERED; SELMAN, 1989, p. 8-9).

Com isso, a antiga ideia de subordinação e dependência em relação à empresa dá lugar ao “homem da empresa e da produção” (FOUCAULT, 2008, p. 201), que, no atual contexto, não mais acredita ser mero empregado, mas passa a ser colaborador. Neste sentido, isso fundamenta as “grandes proclamações a respeito da importância do ‘fator humano’ que pululam na literatura da neogestão” (DARDOT; LAVAL, 2016, p. 322), as quais devem ser lidas, de acordo com Dardot e Laval (2016), sob um tipo de poder a partir do qual o homem não se reduz a um objeto passivo; o novo trabalhador, isto é, o colaborador, passa a ser visto como aquele que participa e se engaja plena e completamente nas atividades da empresa que lhe emprega. Essa nova perspectiva de poder vai ao encontro da “vontade de realização pessoal” desse ser desejante, cujo projeto ele quer levar a cabo motivadamente. Ele mesmo é o próprio “substituto dos dispositivos de direção das condutas” (DARDOT; LAVAL, 2016, p. 322).

Do caráter negativo da disciplina exercida sobre o empregado passa-se a uma positividade colaborativa e, acima de tudo, produtiva. Laval (2020) observa que enquanto as disciplinas limitavam a liberdade, o poder biopolítico maximiza os processos vitais da população, de modo que se desloca o olhar “das técnicas de produção às tecnologias da circulação” (LAVAL, 2020, p. 57). Conforme apontou Zapata (2017, apud FANJUL, 2017, n. p.), “o que se pretende é criar uma cultura corporativa forte em que os elementos emocionais e íntimos, como os apelos à paixão, são cada vez mais importantes”. Busca-se agora produzir “um ser cuja subjetividade deve estar inteiramente envolvida na atividade que se exige que ele cumpra. Para isso, deve-se reconhecer nele a parte irredutível do desejo que o constitui” (DARDOT; LAVAL, 2016, p. 322), o que se dá por meio de um mecanismo de controle de tipo positivo, que produz um poder que, embora fabricado externamente ao sujeito, produz efeitos em sua subjetividade, como se ocorresse de dentro para fora.

Isso pode explicar, por exemplo, o que levou um grupo de seis funcionários de uma rede de franquias, espontaneamente, e sem qualquer imposição ou solicitação, a tatuarem em seus próprios corpos o número da meta de novas unidades da empresa que seriam abertas no país, ideia essa que, de acordo com um dos empregados da empresa, teria partido dos próprios funcionários, que não quiseram desistir da decisão (MARCHESAN, 2020). Essa situação ilustra a técnica de dominação por meio da qual, com menos desgaste, o sujeito de obediência internaliza as instâncias de domínio que lhes são exteriores e as transforma em parte componente de si, de modo que ele não chega a perceber que se trata de uma violência naturalizada que ele impõe a si mesmo, a ponto de tomar certa decisão sem que para isso a ideia lhe tenha sido sequer sugerida ou apresentada pelas instâncias externas de poder (HAN, 2017c). Isto é, o colaborador “deve trabalhar para sua própria eficácia, para a intensificação de seu esforço, como se essa conduta viesse dele próprio, como se essa lhe fosse comandada de dentro por uma ordem imperiosa de seu próprio desejo, à qual ele não pode resistir”, o que permite a supressão de qualquer sentimento de alienação ao obedecer a um desejo que ele acredita ser seu, sem quaisquer interferências (DARDOT; LAVAL, 2016, p.322).

De acordo com as próprias pesquisas na área organizacional, há uma legitimação desses novos e sutis mecanismos de controle, de modo que “aprendizado e desenvolvimento” devem ser promovidos a fim de que as organizações sejam beneficiadas com “equipes de alta performance, o que produz melhores resultados de forma mais eficiente, além de ter pessoas alinhadas com os objetivos organizacionais” (COSTA, 2015, p. 74). Isso reflete a alteração que ocorre nas relações de trabalho e que converge para o que Han (2015) colocou como uma substituição do paradigma da disciplina pelo paradigma do desempenho que é um esquema positivo do poder,

pois a partir de um determinado nível de produtividade, a negatividade da proibição tem um efeito de bloqueio, impedindo um maior crescimento. A positividade do poder é bem mais eficiente que a negatividade do dever. Assim o inconsciente social do dever troca de registro para o registro do poder. O sujeito de desempenho é mais rápido e mais produtivo que o sujeito da obediência. O poder, porém, não cancela o dever. O sujeito de desempenho continua disciplinado. Ele tem atrás de si o estágio disciplinar. O poder eleva o nível de produtividade que é intencionado através da técnica disciplinar, o imperativo do dever. Mas em relação à elevação da produtividade não há qualquer ruptura; há apenas continuidade (HAN, 2015, p. 25).

Embora Han (2015) aponte para a substituição da sociedade disciplinar de Foucault pela sociedade do desempenho, é possível perceber em seu texto a afirmação da relevância da sociedade disciplinar para a sociedade do desempenho, já que essa última seria a continuidade daquela. Han refuta algumas características do conceito de biopolítica de Foucault. Entretanto, pode-se observar que há uma aproximação da analítica do poder deste com a sociedade do desempenho daquele, na medida em que, já no contexto do desempenho (positividade) e não mais da disciplina (negatividade), pode-se dizer que as propostas de ambos os autores se assemelham, como se pode verificar em Foucault:

se o poder só tivesse a função de reprimir, se agisse apenas por meio da censura, da exclusão, do impedimento, do recalcamento, à maneira de um grande super-ego, se apenas se exercesse de um modo negativo, ele seria muito frágil. Se ele é forte, é porque produz efeitos positivos a nível do desejo − como se começa a conhecer − e também a nível do saber. O poder, longe de impedir o saber, o produz.” (FOUCAULT, 1979, p. 148).

A aproximação de ambos os autores se dá porque o funcionamento de um poder positivo em Foucault ocorre num nível muito mais elementar do que um poder proibitivo; é um poder que está presente no quotidiano e que se torna, por vezes, imperceptível. É nesse sentido que ocorre a atualização de termos sinônimos no meio corporativo, os quais, na prática, referem-se à mesma situação. A substituição de termos como “trabalhador”, “empregado” ou “funcionário” para “colaborador”, cujo significado pode evocar uma compreensão distinta dos termos originais que é difundida no meio corporativo, é capilarizada e irradiada no corpo social. A substituição dos termos, entretanto, embora possa alterar o significado e, portanto, sua compreensão, não promove a alteração equivalente do significado na prática, na medida em que o “colaborador” permanece sendo o “trabalhador”. O que muda é sua percepção em relação à própria “autonomia” e “liberdade” no trabalho que, para o empregado, passa a se pautar numa ideia de independência e ausência de submissão, porquanto ele incorpora valores corporativos neoliberais: “No lugar de proibição, mandamento ou lei, entram projeto, iniciativa e motivação. A sociedade disciplinar ainda está dominada pelo não. Sua negatividade gera loucos e delinquentes. A sociedade do desempenho, ao contrário, produz depressivos e fracassados” (HAN, 2015, p. 24-25).

A sociedade do desempenho de Han é pautada no excesso de positividade na qual “o explorador é ao mesmo tempo o explorado. Agressor e vítima não podem mais ser distinguidos. Essa autorreferencialidade gera uma liberdade paradoxal que, em virtude das estruturas coercitivas que lhe são inerentes, se transforma em violência” (HAN, 2015, p. 30). De acordo com Franco et al (2020), há uma subjetividade ilusoriamente inflada que, quando esvaziada, provoca, inevitavelmente, sentimentos associados ao fracasso, tais como frustração, angústia e autoculpabilização. Pode-se dizer que esses sentimentos são diametralmente opostos à positividade imposta pela sociedade do desempenho que é avessa ao fracasso e à tristeza, razão pela qual o sujeito do desempenho é um potencial homem depressivo, “é aquele animal laborans que explora a si mesmo e, quiçá deliberadamente, sem qualquer coação estranha. É agressor e vítima ao mesmo tempo” (HAN, 2015, p. 28). Ele é sempre um potencial depressivo quanto mais se entrega à positividade, já que “a lamúria do indivíduo depressivo de que nada é possível só se torna possível numa sociedade que crê que nada é impossível” (HAN, 2015, p. 29) porque vive numa “sociedade permissiva e pacificada” na qual a “positivação do mundo faz surgir novas formas de violência” (HAN, 2015, p. 19).

Na sociedade do desempenho há um direcionamento discursivo e subjetivo à produtividade que “habita, naturalmente, o inconsciente social, o desejo de maximizar a produção” (HAN, 2015, p. 15), na qual “acredita-se que tudo que se é deve-se a si mesmo por uma espécie de auto-engendramento” (MATOS, 2008, p. 462) e a partir da qual se acredita que “aqueles que fracassarem em prosperar sob tais condições sociais não podem culpar ninguém nem coisa alguma além de si mesmos” (HAMANN, 2012, p. 101).

Enquanto esse sujeito se atém às fórmulas corporativistas no intuito de se beneficiar e se fazer parte da engrenagem, porquanto ele se afaste da sensação de ser controlado e se sinta “livre da instância externa de domínio que o obriga a trabalhar ou que poderia explorá-lo” (HAN, 2015, p. 29), o sujeito do desempenho é um potencial depressivo, uma vez que “o depressivo é o inválido dessa guerra internalizada. A depressão é o adoecimento de uma sociedade que sofre sob o excesso de positividade” (HAN, 2015, p. 29), pautada a partir de uma lógica de reconhecimento que enreda o sujeito narcisista do desempenho e o direciona ainda mais ao seu ego, em que ele se afunda numa depressão do sucesso (HAN, 2017a). A sociedade do desempenho é uma sociedade positiva que não “admite qualquer sentimento negativo. Deste modo, esquecemos como se lida com o sofrimento e a dor, esquecemos como dar-lhes forma” (HAN, 2017b, p. 18). Consequentemente, há um empobrecimento do sujeito que decorre, pode-se dizer, do empobrecimento da linguagem, na medida em que “a lógica das mercadorias esconde o negativo e o complexo enquanto apresenta discursos que mostram as coisas existentes como pura positividade e simplicidade” (CASARA, 2020, p. 90).

Zapata (2017, apud FANJUL, 2017, n.p.) aponta a existência de uma “concepção fantasiosa do eu empreendedor, da iniciativa pessoal do herói que tudo pode com a autogestão e que, no limite, é o único responsável pelos êxitos ou pelos fracassos” que sobrecarrega o trabalhador, “a quem se pede que ultrapasse seus limites e ao mesmo tempo saiba impô-los a si mesmo”, do mesmo modo que seu salário que, conforme coloca Chauí (2019), passa a ser visto não mais como salário, mas como renda individual. Para Han (2017c), o trabalho do sujeito do desempenho pós-moderno não é voltado ao dever, pois sua máxima não é conformada na obediência, na lei ou no cumprimento de um dever, mas na liberdade, no prazer e na inclinação. Ele não ouve a ninguém, exceto a si mesmo, porque ele acredita que deve ser um autoempreendedor.

Coaches como gurus da contemporaneidade

A forma-empresa ultrapassa o meio corporativo e alcança todo o corpo social, abrangendo todas as dimensões da vida. O “homem da empresa e da produção” (FOUCAULT, 2008, p. 201) pretende investir em cada área de sua vida, que se divide em compartimentos, bem-organizada como um valor hábil à concorrência. O atual modelo de sociedade permite que o indivíduo se sinta como parte de um suposto protagonismo no funcionamento da engrenagem, “uma sociedade empresarial” na qual o sujeito se reconhece antes como empresário de si mesmo do que como um sujeito consumidor. “O homo oeconomicus que se quer reconstituir não é o homem da troca, não é o homem consumidor, é o homem da empresa e da produção” (FOUCAULT, 2008, p. 201), de modo que o modelo econômico, o modelo da oferta e da procura e o modelo investimento-custo-lucro se transformem num “modelo das relações sociais, um modelo da existência, uma forma de relação do indivíduo consigo mesmo, com o tempo, com seu círculo, com o futuro, com o grupo, com a família” (FOUCAULT, 2008, p. 332).

Dardot e Laval (2016) apontam que o sujeito produzido pela racionalidade neoliberal deve conduzir a si mesmo como uma entidade de competição cujo intuito deve ser a maximização de seus resultados, o que inclui a exposição a riscos e a responsabilidade pelo seu próprio fracasso. Por isso, “‘Empresa’ é também o nome que se deve dar ao governo de si na era neoliberal. O que quer dizer que esse ‘governo de si empresarial’ é diferente e muito mais do que a ‘cultura de empresa’” (DARDOT; LAVAL, 2016, p. 323).

Com isso, produz-se um sujeito cuja sociabilidade é concorrencial, pautada em jogos de interesses que direcionam suas condutas em suas diversas relações. Para Dardot e Laval (2016, p. 324), isso promove uma “reação em cadeia” e o resultado será a produção de “sujeitos empreendedores” que vão reproduzir, ampliar e reforçar as relações de competição “segundo a lógica do processo autorrealizador, que eles se adaptem subjetivamente às condições cada vez mais duras que eles mesmos produziram.” Nesse cenário, a busca por constante aperfeiçoamento e melhores resultados ultrapassa a esfera profissional e chega aos demais âmbitos da vida, de modo que não se trata apenas de consumir mais e melhor a fim de que esses sujeitos se distanciem socialmente dos “consumidores falhos” a que Bauman (2005) se referiu, mas, para além disso, que se diferenciem dos demais em termos de competição, de desempenho, do alcance de melhores metas e padrões de vida.

Observe-se que “as análises de Foucault revelam a tensão existente entre dois regimes de poder que devem coexistir na sociedade capitalista: o regime de controle heterônomo dos indivíduos produtivos e o regime de liberdade de trocas, que supõe uma autonomia individual” (LAVAL, 2020, p. 57). É nessa autonomia individual que tanto a “cultura da empresa”, que produz os colaboradores, quanto o “governo de si empresarial”, que produz o empresário de si mesmo, se pautam, na medida em que o primeiro se dá no campo estritamente organizacional e o segundo nos demais âmbitos da vida do sujeito. Ou, dito de outro modo, é na passagem do controle disciplinar dos indivíduos produtivos e no limiar da governamentalidade biopolítica que esse novo sujeito se constitui.

Neste aspecto, as características do empresário de si mesmo coincidem com o “discurso de promessas de sucesso pleno, realização de sonhos e garantia de bem-aventurança profissional, através da canalização de potenciais internos de cada indivíduo” (SALLES et al. 2019, p. 3243), dos coaches. Por conseguinte, a “proliferação e massificação do positivo” (HAN, 2017b, p. 25) é refletida no incontável número de coaches, youtubers, workshops em diferentes áreas e com diferentes tipos de conhecimento, voltados ao alcance de metas, propósitos de vida, à busca por alta performance e pela máxima produtividade que constituem o testemunho de “uma verdadeira ‘explosão do aconselhamento’, com tantos especialistas à nossa volta alardeando seus produtos e oferecendo seus serviços: conselhos sobre como garantir que a escolha está certa, que se evitou a opção errada” (BAUMAN, 2011, p. 119).

O imperativo da ausência de limites para que os indivíduos alcancem incessantemente metas profissionais e pessoais reflete uma forma de exercício e circulação de poder distinta da sociedade disciplinar em Foucault, na medida em que neste tipo de regime há um “controle heterônomo dos indivíduos produtivos” cuja organização da produção é feita em “instituições austeras e fechadas” (LAVAL, 2020, p. 57). Diferente disto, a “sociedade de academias de fitness, prédios de escritórios, bancos, aeroportos, shopping centers e laboratórios de genética” (HAN, 2015. p. 23) ilustra o sofisticado “mecanismo da circulação dos homens e dos bens no espaço aberto da sociedade concebida como um mercado no qual o comércio humano, qualquer que seja sua natureza, deve ser deixado o mais livre possível.” (LAVAL, 2020, p. 57).

Nesse aspecto, Han (2015) faz uma observação que não corresponde à analítica do poder em Foucault. Isto é, Han (2015) se utiliza da sociedade disciplinar em Foucault para dizer que sua analítica do poder não poderia descrever as modificações da sociedade disciplinar para a sociedade do desempenho, sendo essa última um termo cunhado pelo próprio Han. Sua afirmação, no entanto, desconsidera o deslocamento que Foucault faz da sociedade disciplinar para a sociedade regulamentada por um governamento. É de se considerar que a tecnologia biopolítica de Foucault é trabalhada num contexto no qual ainda não havia a variedade de instituições com maior capacidade de produção de liberdade que se tem hodiernamente, as quais se chocam com as instituições que limitavam a liberdade na sociedade disciplinar. Há essa cisão na obra de Foucault, na qual ocorre um deslocamento de um poder disciplinar a um poder regulador.

A produção da liberdade pode ser traduzida pela oferta de coaches nos meios virtuais, sempre disponível e em grande variedade de opções, já que “a sociedade positiva evita todo e qualquer tipo de negatividade, pois esta paralisa a comunicação” (HAN, 2017b, p. 24). A homogeneidade do discurso desses profissionais revela a “era do empobrecimento da linguagem” (CASARA, 2020, p. 90) que é também a do empobrecimento do sujeito, na qual “tudo se apresenta como simples para evitar conflitos, dúvidas e perspectivas de transformação” (CASARA, 2020, p. 90-91).

Todo o aparato de opções oferecido nos meios digitais é resumido “à sua habilidade, astúcia e determinação” (BAUMAN, 2011, p. 119). Os termos utilizados por coaches ao oferecerem seus serviços traduzem “o empobrecimento da linguagem que reforça a dimensão domínio submissão e leva à identificação com figuras de poder (‘o poder sou eu’)” (CASARA, 2020, p. 91). “É sua ação ou inação que faz toda a diferença entre sucesso e fracasso, prazer e felicidade” (BAUMAN, ٢٠١١, p. ١١٩), o que faz com que cada indivíduo acredite que possa escolher um modelo para formatar sua própria vida à maneira como ele entende ser a mais adequada e para isso ele acredita que basta escolher e seguir o protocolo a fim de se chegar ao objetivo: “a escolha está por toda parte, basta fazê-la e seguir o que se escolheu. Se o que você deseja se esquiva, deve haver alguma coisa errada com você, e só com você. Olhe à sua volta: outras pessoas estão fazendo suas escolhas e obtendo o que desejam, por que não você?” (BAUMAN, 2011, p. 118).

Para o “empresário de si mesmo” não há espaço nem desculpa para o ócio, a não ser um ócio que seja produtivo, um ócio que possibilite uma ideia para um novo projeto ou que permita ocupar permanentemente o tempo do sujeito a fim de que ele se torne o sucesso de seu próprio projeto; seu sucesso é seu próprio crescimento pessoal. No entanto, sua pretensa autonomia se dá no campo da governamentalidade que “combina técnicas de dominação e técnicas de si em termos de sujeitos livres” (CANDIOTTO, 2010, n. p.). Liberdade e coação estão presentes também em Han, já que a autoexploração na busca pelo desempenho “caminha de mãos dadas com o sentimento de liberdade” (HAN, 2015, p. 30). De acordo com Han, há uma passagem do sujeito ao projeto que pressupõe o sentimento de liberdade e o afastamento da sensação de estar submetido.

Em vez do sujeito, cujo destino é invariavelmente a submissão a algo, ocorre a constituição de um projeto que se distancia da coerção e cuja sujeição e subjetivação ocorrem num nível mais sofisticado em termos de eficiência. Com isso, o sujeito submisso não se vê como tal, mas se percebe como um projeto livre que se esboça e se reinventa incessantemente; é a paradoxal passagem do sujeito ao projeto que acredita não estar mais submetido, mas que, deliberadamente, sujeita-se a formas de subjetivação que lhe usurpam a própria autonomia, já que ao se julgar livre, o sujeito do desempenho é na verdade um servo absoluto que explora a si mesmo sem a necessidade de um senhor que o faça (HAN, 2018).

Neste mesmo sentido, “como empreendedor de si mesmo, o sujeito do desempenho é livre, na medida em que não está submisso a outras pessoas que lhe dão ordens e o exploram; mas realmente livre ele não é, pois ele explora a si mesmo e quiçá por decisão pessoal” (HAN, 2017a, p. 21). Dardot e Laval (2016), ao se referirem a Foucault, apontam a identificação dos indivíduos como microempresários, como unidades independentes, ou pequenas empresas, permitindo a instauração e manutenção de uma ordem concorrencial que é naturalizada no corpo social.

De um sujeito, que poderia ser compreendido como um sujeito voltado precipuamente para o consumo, tem-se um sujeito do desempenho que aqui se assume também como o sujeito empresário de si mesmo, pois vive num modo concorrencial e organiza a vida nos moldes de uma empresa. Esse último não extingue o sujeito voltado para o consumo, mas se sobrepõe a ele, de modo que o ultrapassa ao mesmo tempo em que o abrange. Considerando-se que o sujeito do consumo em Bauman (2008), por exemplo, é aquele que é transformado em mercadoria, de modo que a subjetividade desse sujeitos e concentra num esforço sem fim para que ela própria se torne e permaneça uma mercadoria vendável; o sujeito da concorrência supera o sujeito do consumo porquanto seu funcionamento é pautado num excesso de positividade a partir da qual ele acredita em sua plena capacidade, o que se dá numa espécie de distorção do que seria sua emancipação, fundada num poder positivo típico da contemporaneidade.

Assim, se o sujeito moderno se caracterizava pela consciência de si como pressuposto para sua emancipação, o sujeito contemporâneo do desempenho não deixa de querer emancipar-se, porque acredita ser “senhor e soberano de si mesmo” (HAN, 2015, p. 29). Entretanto, ele é atravessado por técnicas de poder que funcionam de um modo sofisticadamente positivo e complexo, baseadas numa governamentalidade cuja gestão se dá “em profundidade, minuciosamente, no detalhe” (FOUCAULT, 1979, p. 291). O poder em Foucault, tendo como direcionamento a governamentalidade, vai ocorrer “como um conjunto de ações, em função do qual os indivíduos tentam limitar as ações de outrem ou a previsibilidade de que as mesmas ocorram a partir de suas próprias ações” (CANDIOTTO, 2010, n. p.). Como observa Laval (2020), tem-se em Foucault, um neoliberalismo que não é apenas uma questão de “extensão da mercadorização” ou da “globalização capitalista”, mas de políticas de um gênero novo, uma norma geral que visa a “remodelar o Estado e transformar as subjetividades” (LAVAL, 2020, p. 28).

O sujeito do desempenho acredita que precisa transformar sua vida numa empresa bem-sucedida. Nesse sentido, Dardot e Laval (2016, p. 27) observam que há uma “racionalização da existência” que ocorre por meio da exigência da “competitividade” que expressa a expansão “da racionalidade de mercado a toda a existência por meio da generalização da forma-empresa” (DARDOT; LAVAL, 2016, p. 27) que passa a se garantir desde a idade escolar. Por essa razão, a educação foi repensada como um processo que se dá “ao longo de toda a vida”, cuja relação pedagógica é dilatada e flexibilizada a fim de atender às necessidades organizacionais e tecnológicas das empresas, o que também ocasionou alterações no sistema escolar que foi forçado a mudar valores culturais que até então lhe eram intrínsecos e passou a funcionar conforme a lógica do valor econômico (LAVAL, 2004).

A título de exemplo, essas alterações no sistema escolar podem ser encontradas no programa Inova Educação, criado pela Secretaria da Educação do Estado de São Paulo, que é “vendido aos estudantes como um ensino médio self-service onde, à primeira vista, cada um pode escolher aquilo que mais lhe apetece” (GOULAURT; CÁSSIO, 2021, n. p.). No referido programa2, há propostas que fazem referência direta ao vocabulário corporativo, tais como “projeto de vida”, “gestão do próprio tempo”, “organização pessoal” e “empreendedorismo”.

Como se pode perceber, a aplicação de valores organizacionais em todo o corpo social de forma capilarizada e microfísica alcança todos os âmbitos da vida e afeta inevitavelmente as subjetividades. Não se trata apenas, como colocado na primeira parte deste texto, de uma substituição de termos e práticas apenas no âmbito corporativo, mas, de forma mais aprofundada a isso, desde a escola, houve “mudanças insensíveis dos comportamentos e dos valores às quais a introdução das lógicas concorrenciais” impeliu (LAVAL, 2004, p. 301). A formação dos estudantes os condiciona à razão neoliberal e os leva a se perceberem como empresários de si, cuja preocupação exclusiva é em seus interesses individuais (CASARA, 2020). Isso fez com que surgisse um sujeito que pensa cada âmbito de sua vida como um investimento, o qual se amolda à personalidade neoliberal do empresário de si mesmo que segue um modelo de gerenciamento da própria vida em termos de capital humano:

sabe-se perfeitamente que o número de horas que uma mãe de família passa ao lado do filho, quando ele ainda está no berço, vai ser importantíssimo para a constituição de uma competência-máquina, ou se vocês quiserem para a constituição de um capital humano, e que a criança será muito mais adaptável se, efetivamente, seus pais ou sua mãe lhe consagraram tantas horas do que se lhe consagraram muito menos horas. Ou seja, o simples tempo de criação, o simples tempo de afeto consagrado pelos pais a seus filhos, deve poder ser analisado em termos de investimento capaz de constituir um capital humano (FOUCAULT, 2008, p. 315).

De um modo mais amplo e que contempla diversas esferas da administração da vida, é conveniente mencionar Benevides (2017), ao tratar da lógica que rege os comportamentos dos sujeitos na gestão de suas próprias vidas a partir de Foucault, segundo o qual, as micro decisões da vida cotidiana, como decidir a cidade onde morar, a escola dos filhos, o restaurante onde vai jantar, bem como o tipo de atitude que se tem entre amigos e nas relações afetivas, em reuniões de negócios ou familiares passam a fazer parte de uma espécie de cartilha de “decisões” que

muitas vezes têm mais a ver com a incorporação de um jeito de ser, com a assunção de certo estilo e com a formação de um habitus até o ponto de obtenção de certo automatismo –, tudo isso poderia ser perspectivado desde um ponto de vista que faça aparecer essa grade de análise economista (BENEVIDES, 2017, p. 2)

Como se observa, “tudo é mercado. Educação é investimento. Saúde é segurança. Relações interpessoais são networking. Imagem é marketing pessoal. Cultura é entretenimento. Pessoa é o empreendedor de si mesmo” (DUNKER, 2016, n. p.). Nesse cenário, não é o trabalho ou o consumo que é tomado como centro ou núcleo irradiador, a partir do qual o poder é entranhado no corpo social, mas a ideia de competitividade que funciona por meio da constituição de sujeitos que se veem como unidades empresariais independentes, que acreditam ser donos de si, donos dos próprios desejos e aptos a dirigirem o próprio destino, sem que qualquer interferência externa seja capaz de alterar o empreendimento que é sua própria vida.

Trata-se de um paradigma que é absorvido pelos profissionais que se denominam coaches, os quais incorporam eficazmente essa gramática do indivíduo como senhor de si, e se assemelham, portanto, ao homo oeconomicus que “é aquele que obedece ao seu interesse, é aquele cujo interesse é tal que, espontaneamente, vai convergir com o interesse dos outros” (FOUCAULT, 2008, p. 369). Não é de se estranhar que o profissional habilitado a ser um coach transmite o discurso que reforça a crença na singular identidade empreendedora a partir da qual, como coloca Benevides (2017, p. 5), há um “perpétuo trabalho de construção de si”, com uma identidade singular e sua íntima vontade, características essas que se desdobram no “empresário de si”, no sujeito que vai determinar o curso de seu próprio destino e que, em razão disso, não está mais num “trabalho”, mas, diferente disso, está num “empreendimento”, cuja vinculação é “mais extensa ao processo produtivo e aos signos que orientam a vida subjetiva em função de uma dada racionalidade econômica” (BENEVIDES, 2017, p. 5).

Esse ciclo implica um aparente paradoxo, na medida em que ao mesmo tempo em que o indivíduo se crê senhor de seu próprio destino, ele perde a capacidade de fazer escolhas, de concluir, conduzido “ao aceleramento sem direção e sem sentido” (HAN, 2021, p. 28). Nesse aspecto, conforme observa Han (2021, p. 28), “quem é depressivo não é capaz de uma conclusão. Sem conclusão, porém, tudo se dissipa”. É aqui que o mesmo sujeito que empreende sua vida a perde na ausência de sentido: “não por acaso, a indecisividade, a incapacidade para a es-colha [Ent-Schluss] é sintomática da depressão.” (HAN, 2021, p. 28). Com a perda da capacidade de concluir e encerrar, perde-se também a capacidade de se deter, de se demorar, as quais são pressupostos da capacidade de pensar (HAN, 2021).

Dito isso, as atividades e atitudes tornam-se um mero aparato de operacionalização da vida:

Daí a fadiga, o cansaço, o esgotamento: a necessidade constante de se descobrir ou inventar-se; de saber quem você é e o que poderá ser; de agregar signos, valores, gestos e jeitos à sua pessoa; de transformar a própria vida em um conjunto de metas, objetivos, caminhos, possibilidades e múltiplas direções. Em uma suma, o que está em jogo é a sobreposição da gestão da vida ao próprio viver; a fusão entre o trabalho de viver e o ato viver; a identificação, por fim, entre trabalhar, trabalhar-se e ser (BENEVIDES, 2017, p. 5).

Com isso, o sujeito do desempenho é uma consequência do espírito empreendedor que rege a contemporaneidade, de modo que em sua vida privada, na convivência familiar e afetiva, ele se encontra ligado e submetido às diretrizes concorrenciais de seu ambiente de trabalho ou de sua atividade profissional, mas sem que isso o incomode, pois elas se associam à ideia de autonomia e liberdade de ação que são permissivamente esperadas dos colaboradores ou dos coaches, já que “o apelo à motivação, à iniciativa e ao projeto é muito mais efetivo para a exploração do que o chicote ou as ordens” (HAN, 2017a, p. 21). É a mesma lógica que ocorre em ambientes corporativos, como, por exemplo, o citado caso dos trabalhadores que tatuaram em seus próprios corpos o número da meta de novas unidades da empresa que seriam abertas no país. No ambiente privado, o sujeito do desempenho se mantém voluntariamente “preso” à forma-empresa, seja ele um empregado (colaborador) ou um microempresário, e acredita que a aplicação dos métodos e práticas ensinados pelos especialistas nas áreas que ele escolhe promover em sua vida pode torná-la mais produtiva e bem-sucedida.

Considerações finais

As práticas e discursos do mundo corporativo andam de par com a precarização e flexibilização do trabalho. Isso faz com que trabalhadores passem a ser denominados de colaboradores. Há, nesse sentido, a intenção velada de fazer com que o trabalho seja compreendido a partir de um viés positivo, permissivo, que é contrário ao que o termo “trabalhador” significa, pois esse pressupõe a subordinação e o controle disciplinar explícitos. Por conseguinte, o trabalho contemporâneo é forjado na alteração de sentidos e na maneira como o empregado se percebe e age. A mudança da denominação de empregado para colaborador o leva a crer que ele não é mais subordinado e o direciona a agir como se fizesse parte da estrutura organizacional da empresa na qual trabalha. Isso permite que os trabalhadores assumam para si a responsabilidade de seu próprio desempenho sem que se sintam diretamente controlados.

Para além do âmbito do trabalho, o paradigma do desempenho e da produtividade alcança as demais instâncias da vida dos indivíduos, tornando-as setorizadas, como se fizessem parte de uma empresa que precisam gerir com a máxima eficiência. A educação dos filhos, o tempo que se passa com eles, a escolha do lugar onde serão as férias, os almoços com a família e as relações com os amigos, bem como com a vida de um casal, todos os aspectos da vida particular passam a ser pautados na forma-empresa e o indivíduo acredita que com essa formatação, que muitas vezes é orientada por especialistas que prometem crescimento pessoal, as coisas devem funcionar com eficiência, uma vez que houve “investimento” nelas. Investe-se nos filhos, na casa, nas viagens; as reuniões com os amigos passam a ser direcionadas à manutenção de networks e afins. A vida passa a ser toda programada como uma empresa.

Com isso, o sujeito do desempenho de Han encontra-se personificado tanto na figura dos colaboradores quanto entre os indivíduos que consomem os serviços oferecidos pelos inúmeros coaches, os quais se qualificam como especialistas nas mais diversas áreas, prometendo alta performance aos indivíduos que se dispõem a seguir os passos ou as regras prescritas por meio de um vocabulário homogeneizado, baseado em jargões e técnicas de convencimento muitas vezes próprias do marketing digital. Deste modo, enquanto os colaboradores se relacionam mais diretamente à cultura da empresa, os coaches se relacionam ao “governo de si empresarial”, a uma governamentalidade que é própria de um sujeito cuja vida é gerenciada nos moldes de uma empresa.

Nesse cenário, a existência do sujeito do desempenho é esvaziada pela convicção que ele tem de si mesmo, pela incessante busca de produtividade e sucesso pessoal, pelo saturamento do eu. O sujeito do desempenho é moldado e se deixa moldar pelo excesso de positividade, que vem acompanhado de diretrizes e comandos que se espraiam no corpo social e atravessam o sujeito, tornando-o não senhor de si, tal como ele pensa ser, mas, ao contrário, transformando-o em senhor dos desmandos do mercado concorrencial sob a roupagem da liberdade ilimitada, em busca do alcance das metas por meio do direcionamento de sua vida com base numa razão concorrencial.

Com isso, é possível refletir sobre as formas contemporâneas de circulação do poder econômico no corpo social, que vai desde o âmbito organizacional e das relações de trabalho até as demais instâncias da vida, dificultando ou mesmo anulando o pensamento crítico acerca do trabalho numa sociedade cada vez mais marcada por um pensamento corporativo que alcança e atravessa as subjetividades, usurpando a criatividade, a originalidade e a autenticidade dos sujeitos.

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Recebido em: 19/12/2020

Aceito em: 18/08/2021


1 A International Coach Federation (ICF) divulgou, em 2017, a existência de 50 mil profissionais de coaching no mundo, sendo que no Brasil o crescimento desses profissionais no mercado foi de mais de 300%. (DUTRA, 2018).

FEMINISMO MARXISTA E PSICOLOGIA:

o trabalho reprodutivo na formação da subjetividade das mulheres

MARXIST FEMINISM AND PSYCHOLOGY:

the reproductive work in shaping women’s subjectivity

____________________________________

Maísa Martins Lopes Araújo Brito*1

Gilson Gomes Coelho**

Resumo

Esse estudo se caracteriza como uma revisão integrativa de literatura e teve como objetivo discutir o conceito de trabalho reprodutivo trabalhado no feminismo marxista e como a naturalização desse trabalho afeta a vida concreta e subjetiva das mulheres e, por isso, precisa ser considerado nas análises e intervenções nos campos de atuação psicológica, entendendo os diferentes modos que essa exploração se apresenta perpassada pelas categorias raça e classe. O levantamento de dados ocorreu nos meses fevereiro e março de 2021, nas bases de dados Scielo e Google Acadêmico. Foram selecionados 15 estudos, dos quais foram extraídos os eixos temáticos: naturalização do trabalho reprodutivo e consequências na vida concreta e subjetiva das mulheres. Constatou-se que o tema não possui muitas discussões na literatura, principalmente na área da Psicologia, sendo as disponíveis relativamente recentes. Concluiu-se, pelo encontrado, que o trabalho reprodutivo, remunerado ou não remunerado, traz consequências para as mulheres que não podem ser desconsideradas e o profissional da Psicologia, fundamentado no código de ética da profissão, precisa pensar formas de intervenção que entendam a raiz desse sofrimento e possam auxiliar na tomada de consciência e formação de autonomia.

Palavras-chave: Trabalho reprodutivo. Trabalho doméstico. Subjetividade. Feminismo marxista.

Abstract

This study is characterized as an integrative literature review, aimed to discuss the concept of reproductive work worked in Marxist feminism and how the naturalization of this work affects the concrete and subjective life of women and, therefore, needs to be considered in the analyzes and interventions in the fields of psychological action, understanding the different ways that this exploration is pervaded by the categories race and class. The data collection took place in February and March 2021, in the Scielo and Google Scholar databases. Fifteen studies were selected, from which the thematic axes were extracted: naturalization of reproductive work and consequences in the concrete and subjective life of women. It was found that the topic does not have many discussions in the literature, mainly in the area of Psychology, and those available are relatively recent. It was concluded, from what was found, that reproductive work, paid or unpaid, has consequences for women that cannot be disregarded and the professional of Psychology, based on the code of ethics of the profession, needs to think about forms of intervention that understand the root suffering and can assist in raising awareness and forming autonomy.

Keywords: Reproductive Work. Housework. Subjectivity. Marxist Feminism.


1* Psicóloga (CRP 23/002061) graduada pela Faculdade Católica Dom Orione. Coordenadora do núcleo da Associação Brasileira de Psicologia Social (ABRAPSO) em Araguaína, Tocantins. Interesse nos temas: Psicologia Histórico-Cultural, Feminismo Marxista, Trabalho Reprodutivo, Psicologia e Políticas Públicas, Psicologia Política e Psicologia Social. E-mail: maisamartinsbrito@gmail.com

** Doutorando em Psicologia pela Faculdade de Ciências e Letras da Universidade Estadual Paulista (Unesp), Campus de Assis. Mestre e graduado em Psicologia. Professor do curso de graduação em Psicologia da Faculdade Católica Dom Orione (FACDO). E-mail: gilsonpsico@gmail.com

ISSN 1517-5901 (online)

POLÍTICA & TRABALHO

Revista de Ciências Sociais, nº 55, Junho/Dezembro de 2021, p. 184-200

Introdução

Os debates sobre trabalho doméstico e de cuidados aparecem de maneiras diferentes nas análises feministas ao longo da história. Entre as décadas de 1960 e 1980, esses destacam o caráter não capitalista ou improdutivo do trabalho doméstico e separam a produção de mercadorias da reprodução social, pois acreditava-se que o trabalho doméstico não tinha relação direta com o capital – a pesquisadora brasileira Saffioti foi uma importante referência nesse momento. De 1980 a 1990, essa separação é superada e se inauguram os debates mais recentes, onde são demonstrados os nexos capitalistas dos trabalhos domésticos e de cuidados (GRECCO, 2018).

Entre esses, a Teoria da Reprodução Social, desenvolvida por feministas marxistas ao longo das últimas décadas, se destaca ao afirmar que a força de trabalho – chave do sistema capitalista – é produzida e reproduzida na família. Sua ideia central é de que “o capitalismo é um sistema unitário que pode integrar com êxito, ainda que desigualmente, a esfera da reprodução e a esfera da produção. Mudanças em uma esfera, então, reverberam na outra” (BHATTACHARYA, ٢٠١٩, p. ١٠٤). A partir disso, se começa a considerar a reprodução como o campo que engloba todas as atividades e relações por meio das quais a vida e o trabalho são reproduzidos: o trabalho doméstico não remunerado ou mal remunerado, os cuidados de saúde, a educação, entre outros.

Esse conceito nasce dos apontamentos de Marx (2011) sobre a reprodução da força de trabalho. Para ele, a nossa capacidade de trabalhar não nos é dada, mas se consome todos os dias e precisa ser reproduzida constantemente, tornando-se uma atividade essencial para o capital. Porém, essa reprodução é vista por ele como consumo e se realiza no circuito de mercadorias, sendo o assalariado reprodutor de si mesmo a partir do poder de compra. Assim, apesar de apresentar o termo, Marx não reconhece que a reprodução da força de trabalho envolve o trabalho não remunerado das mulheres. Na verdade, para Federici, (2020a) as discussões de gênero e trabalho doméstico ocupam um lugar marginal em todo O Capital.

Mesmo assim, a busca na produção marxiana da raiz da opressão das mulheres foi revolucionária tanto para a teoria marxista, quanto para a feminista, pois forneceu as ferramentas necessárias para conceituar a formação da família e o quão profundo o antagonismo de classe é nas raízes do capitalismo. O método materialista-histórico e as análises sobre a acumulação capitalista e a criação de valor foram ferramentas poderosas para repensar as relações de sexo, raça, classe e as formas específicas de exploração das mulheres no sistema capitalista. Mas, para isso, também é preciso apontar seus equívocos e omissões. Não é possível ignorar o trabalho marxiano enquanto o modo de produção dominante for o capitalismo, mas é necessário ir além dele (FEDERICI, 2020a).

A partir do potencial de transformação da teoria marxista e sua tradição viva e expansiva, feministas marxistas posteriores argumentam que a força de trabalho se dá em três processos interconectados: 1) regeneração do trabalhador para que o mesmo volte ao trabalho através de atividades como comer, dormir, ter um ambiente limpo, cuidados psíquicos, entre outros; 2) manutenção e regeneração de não trabalhadores – crianças, idosos, deficientes e desempregados; 3) reprodução de novos trabalhadores – através da gravidez. Essas atividades formam a base do sistema capitalista, no entanto, são feitas sem cobrança (BHATTACHARYA, 2019).

Argumentar que esses processos são e estão conectados é entender que o capitalismo integra as esferas de produção e reprodução. Essa dinâmica não é desconhecida pelo sistema, pelo contrário, esse entende que as principais funções de reprodução da classe trabalhadora estão fora do local de trabalho, por isso ataca a produção social – corta os serviços públicos e a assistência social, delega o cuidado para famílias individuais etc. – visando a ganhar a batalha no âmbito da produção. Essa nova perspectiva reposiciona a figura da dona de casa e da trabalhadora doméstica em um novo lugar, um protagonismo até então inexistente (FEDERICI, 2019).

Assumir essa nova perspectiva implica repensar toda a sociedade capitalista desde o seu nascimento. A acumulação primitiva, termo marxiano para nomear o período da reestruturação social e econômica que a classe dominante europeia assumiu para responder à crise de acumulação e estabelecer as bases do sistema capitalista mundial, ganha novos contornos. Federici (2017) defende que, além da expropriação de terras do campesinato europeu, a escravização e mineração na América e África reconhecidos por Marx, a formação e acumulação do proletariado mundial passou também pela transformação do corpo em máquina de trabalho, além da utilização da mulher para reproduzir a força de trabalho, exigindo a destruição do poder delas através da caça às bruxas.

Além disso, é importante lembrar que o gênero se reproduz nas relações de trabalho também através de outros fatores, como raça e classe, sendo os constrangimentos materiais e ideológicos impostos às mulheres variáveis de acordo com esses (BIROLI, 2018). Isso faz com que hoje, no Brasil, apesar de algumas mulheres conseguirem dedicar algum tempo a outros tipos de trabalho, isso se faz à custa de empregadas domésticas assalariadas, mas extremamente precarizadas e em sua maioria (66%) mulheres negras (IPEA, 2014).

Apesar de esse não ser o foco das produções sobre o tema, é possível identificar alguns marcadores importantes para pensar o impacto desse caráter natural do trabalho reprodutivo nas subjetividades das mulheres:

Parece-nos, no entanto, que se este trabalho, em vez de se basear no amor e nos cuidados, tivesse proporcionado uma remuneração econômica às nossas mães, elas teriam provavelmente sido menos amargas e menos dependentes, teriam sido menos chantageadas e teriam chantageado menos os filhos, que foram constantemente censurados pelo sacrifício que tinham de fazer (FEDERICI, 2020b, p. 17, grifo nosso)

Nesse e em outros textos, características que são comumente atribuídas às mulheres aparecem como consequências da organização do trabalho de forma implícita, como a culpa e o ódio de si mesmas, que podem ser evitados quando se conhece a história por trás desse suposto amor e cuidado (FEDERICI, 2020b); ou de forma explícita, quando as neuroses, suicídios e a dessexualização são apontadas como doenças ocupacionais da dona de casa (FEDERICI, 2019).

Esses trechos ganham fundamental importância para a psicologia quando se entende, a partir da leitura de Martin-Baró (2017, p. 251), que “o problema da saúde mental deve ser situado no contexto histórico em que cada indivíduo elabora e efetiva sua existência na rede de relações sociais”, ou seja, deve ser compreendido enquanto um movimento de fora para dentro, como a materialização da trama histórica em indivíduos e grupos. Para isso, o autor afirma ser necessário voltar o olhar científico dos psicólogos para a realidade concreta. Diante do exposto acima, é possível identificar que o trabalho reprodutivo, ao fazer parte do sistema capitalista, organiza a vida de homens e mulheres que estão nele inseridos e deve ser considerado nas análises que buscam entender ou explicar os fenômenos que a perpassam.

A realidade da atuação profissional de psicologia nas políticas de saúde mental leva a necessidade de se apropriar de outros marcos teóricos que potencializem o alcance da mesma no entendimento da vida concreta. Nesse sentido, Almeida, Bellenzani e Schühli (2020) apresentam conceitos da Psicologia Histórico-Cultural1 e da Teoria da Determinação Social do Processo saúde-doença2 como um caminho possível para essa compreensão. Esses mostram que, para compreender a pessoa que sofre, é preciso considerá-la como totalidade e que, apesar de suas particularidades e história de vida singular, ela está localizada em um determinado contexto, vivendo relações de opressão e exploração a partir de determinados vínculos. É nessa apropriação das relações sociais que se constitui sua individualidade e, consequentemente, seus processos de adoecimento.

Para esse debate, não basta apenas considerar que o social tem algum tipo de influência abstrata na subjetividade, é preciso que a historicidade esteja no centro dos processos biopsíquicos humanos (LAURELL, 1989). Ou seja, a doença que se expressa em âmbito individual é determinada socialmente pelas condições de vida, inserção no processo de trabalho, etc. Não se trata, então, de negar os aspectos biológicos, esses existem e são base, mas são subordinados pelo desenvolvimento histórico e social das coletividades (ALMEIDA; BELLENZANI; SCHÜHLI, 2020).

Partindo desse referencial teórico, fica explícito que, para a compreensão da subjetividade das mulheres, é preciso aprofundar o entendimento sobre como essa é formada desde as especificidades que a atual fase de desenvolvimento do sistema capitalista impõe. O profissional de psicologia, em todos os seus possíveis campos de atuação, entrará em contato com mulheres atravessadas pelo trabalho reprodutivo, sua naturalização e exploração. Entender como esse se estabelece historicamente e os impactos disso nos processos de saúde-doença deve ser central para uma atuação fundamentada no código de ética da profissão, que tem como um de seus princípios fundamentais a atuação com responsabilidade social, “analisando crítica e historicamente a realidade política, econômica, social e cultural” (CFP, 2005, p. 07).

Assim, o presente artigo, reconhecendo a importância desse resgate teórico, pretende identificar na literatura recente (2000-2020) artigos que abordem o trabalho reprodutivo como fator de sofrimento psíquico das mulheres, buscando organizar e sistematizar o encontrado para facilitar os estudos de quem se interessa pelo tema e também elucidar a necessidade de se considerar o trabalho reprodutivo para pensar o sofrimento psíquico das mulheres nos campos de atuação psicológica.

Metodologia

Buscando atingir os objetivos acima delimitados, utilizou-se a revisão integrativa, pois essa permite buscar, avaliar criticamente e sintetizar as evidências disponíveis sobre determinado tema, possibilitando conhecer o atual estado do conhecimento sobre esse, além de identificar lacunas que podem direcionar o desenvolvimento de pesquisas no futuro (MENDES; SILVEIRA; GALVÃO, 2008).

Nesse sentido, a pesquisa se delineou a partir das etapas a seguir: definição dos descritores e critérios de inclusão e exclusão, seleção dos estudos para compor a amostra, análise dos estudos, interpretação dos resultados e apresentação desses através da discussão. A busca dos estudos foi feita de forma on-line, entre os meses de fevereiro e março de 2021, nas bases de dados Scielo e Google Acadêmico. Para isso, foram utilizados os descritores trabalho reprodutivo e trabalho doméstico.

Os estudos foram selecionados através dos critérios de inclusão: estudos que trouxeram dados e embasamentos teóricos que poderiam contribuir com as discussões do estudo, ter sido publicado entre 2000 e 2020, estar em língua portuguesa, ser um artigo científico. Foram excluídos trabalhos que não abordavam questões aproximadas com a temática e objetivos em questão. Após isso, foi realizada leitura e avaliação da qualidade metodológica dos escritos e, logo após, feita a seleção final.

Resultados e discussões

Utilizando o processo acima citado, obteve-se como resultado quinze artigos científicos com reflexões próximas à temática deste trabalho. Os artigos foram publicados em diferentes periódicos das Ciências Sociais e Humanas, entre os anos de 2005 e 2020, mostrando que o interesse acerca do trabalho reprodutivo e suas consequências subjetivas é algo recente nas produções acadêmicas. A tabela abaixo apresenta o material utilizado para a construção deste estudo, composta pelos nomes dos autores, ano de publicação e título. Posteriormente, a discussão será apresentada a partir dos eixos temáticos: naturalização do trabalho reprodutivo e consequências na vida concreta e subjetiva. Esses foram divididos visando a uma melhor compreensão, mas se apresentam de forma imbricada no movimento da vida cotidiana.

Tabela 1: Tabela referente aos estudos analisados

Autores

Ano

Título

ARAÚJO, T. M.; PINHO, P. S.; ALMEIDA, M. M. G.

2005

Prevalência de transtornos mentais comuns em mulheres e sua relação com as características sociodemográficas e o trabalho doméstico.

DIOGO, M. F.; MAHEIRIE, K.

2008

Alguns sentidos atribuídos ao trabalho doméstico
por serventes de limpeza.

MELO, H. P.; CASTILHO, M.

2009

Trabalho reprodutivo no Brasil: quem faz?

ÁVILA, M.

2010

O tempo do trabalho produtivo
e reprodutivo na vida cotidiana.

MADALOZZO, R.; MARTINS, S. R.; SHIRATORI, L.

2010

Participação no mercado de trabalho e no trabalho
doméstico: homens e mulheres têm condições iguais?

NICO, M.; RODRIGUES, E.

2011

Organização do trabalho doméstico
em casais do mesmo sexo.

CARPENEDO, M.; NARDI, H. C.

2013

Mulheres Brasileiras na divisão internacional do trabalho reprodutivo: construindo subjetividade(s).

ENGEL, C.; PEREIRA, B. C. J.

2015

A organização social do trabalho doméstico e de cuidado: considerações sobre gênero e raça.

ARAÚJO, C.; VEIGA, A.

2015

Domesticidade, trabalho e satisfação pessoal:
horas no trabalho doméstico e bem-estar
no Estado do Rio de Janeiro

BERTOLDO, J.

2018

Migração com rosto feminino: múltiplas vulnerabilidades, trabalho doméstico
e desafios de políticas e direitos.

MEYER et al.

2019

Trabalho doméstico e empreendedorismo: a intensificação laboral das donas de casa.

OLIVEIRA, A. L.

2020

A espacialidade aberta e relacional do lar: a arte de conciliar maternidade, trabalho doméstico
e remoto na pandemia de Covid-19.

FEDERICI, S.

2020

Na luta para mudar o mundo: mulheres,
reprodução e resistência na América Latina.

CALDEIRA, A. R.; BISPO, N. M.

2020

As contradições sociais evidenciadas pelo novo coronavírus e a vida das mulheres
no contexto da pandemia.

Fonte: Elaborada pelos autores

Naturalização do trabalho reprodutivo

A diferença em relação ao trabalho doméstico reside no fato de que ele não só tem sido imposto às mulheres como também foi transformado em um atributo natural da psique e da personalidade femininas, uma necessidade interna, uma aspiração, supostamente vinda das profundezas da nossa natureza feminina. O trabalho doméstico foi transformado em um atributo natural em vez de ser reconhecido como trabalho, porque foi destinado a não ser remunerado. O capital tinha que nos convencer de que o trabalho doméstico é uma atividade natural, inevitável e que nos traz plenitude, para que aceitássemos trabalhar sem uma remuneração. Por sua vez, a condição não remunerada do trabalho doméstico tem sido a arma mais poderosa no fortalecimento do senso comum de que o trabalho doméstico não é trabalho, impedindo assim que as mulheres lutem contra ele, exceto na querela privada do quarto-cozinha, que toda sociedade concorda em ridicularizar, reduzindo ainda mais o protagonismo da luta. Nós somos vistas como mal-amadas, não como trabalhadoras em luta (FEDERICI, 2019, p. 42).

Antes de discutir as consequências do trabalho reprodutivo, é preciso uma regressão histórica que possibilite entender como esse se tornou, no senso comum, uma atribuição específica das mulheres. Caldeira e Bispo (2020), ao construírem um referencial teórico marxista, voltam para Engels (2012) para explicar como surgiu a família monogâmica e, com ela, o sistema patriarcal. O desenvolvimento do domínio técnico da humanidade sobre a natureza instaurou a lógica do trabalho excedente e alienado, estabelecendo assim a exploração que culminou nas divisões sociais e sexuais hierarquizadas. A riqueza acumulada do homem, agora propriedade privada, não podia desaparecer com sua morte, era preciso que tivesse filhos para herdá-la. A mulher passou a, além de cuidar desses filhos, ficar em casa como forma de assegurar a fidelidade e paternidade, criando as formas de união que conhecemos hoje. Esse processo não aconteceu de um dia para o outro, foi preciso a elaboração de uma ideologia e cultura que foram transmitidas ao longo dos séculos.

Assim, a sociedade patriarcal investiu, através de suas instituições, em tornar natural o pensamento de que, se as mulheres podem gestar e parir, também podem cuidar e dar conta do resto que diz respeito a essas vidas, inclusive seu ambiente de desenvolvimento. Dessa forma, o cuidado doméstico privado é imposto pela divisão sexual do trabalho às mulheres e, de maneira especial, às mulheres negras. O “instinto feminino” de cuidar, naturalizado ao longo dos anos, foi apropriado e utilizado de forma violenta no período da escravidão, instituindo a função social de cuidar – de seus patrões, de sua própria família, dos outros escravizados e de toda a sociedade – para a mulher negra. Dessa forma, fica visível que o modo de produção capitalista, em conjunto com o patriarcado e o racismo estrutural, alimenta, ao longo da história, o aparato ideológico que pauta esses processos de naturalização (CALDEIRA; BISPO, 2020).

Em conformidade, Engel e Pereira (2020) observam em seu artigo que a raça, enquanto categoria social, se apresenta como eixo sistematizador da organização social do trabalho doméstico no Brasil. Para as autoras, gênero e raça fazem parte da mesma lógica que mantém a divisão sexual do trabalho e suas hierarquias. Isso se explica através do processo histórico de formação da nação brasileira, que criou divisões de poder e trabalho entre mulheres e, como consequência, diferentes identidades femininas. As mulheres brancas, apesar de exercerem seu papel de reprodução ao gerar filhos, tinham o direito ao ócio assegurado pelo trabalho doméstico exercido pelas mulheres escravizadas. Essa divisão vinculou, de forma simbólica, a categoria “mulheres negras” às tarefas cotidianas de cuidado e manutenção do lar, o que perdura até hoje, visto que essas ainda são responsáveis pela maior parte do trabalho doméstico (mal) remunerado e também no setor de serviços sociais – que abarca os serviços de cuidado de forma mais ampla.

As autoras também chamam atenção para o fato de que, apesar de a categoria analítica gênero ser citada em quase todos os trabalhos na área de reprodução social e raça aparecer nos escritos sobre trabalho doméstico remunerado, uma reflexão que conecte uma realidade à outra é menos comum. A simples oposição de gênero invisibiliza o fato de que alguns aspectos da experiência cotidiana do trabalho reprodutivo são minimizados para mulheres brancas e de classe média e alta. As diferentes inserções sociais de mulheres formam diferentes desigualdades concretas e, dessa forma, diferentes produções simbólicas sobre relações de subserviência.

Outro fator problemático encontrado sobre os estudos domésticos é a heteronormatividade. É comum que se considerem apenas casais formados por um homem e uma mulher, e as consequências dessa união para a maior parcela de trabalho acumulado pelas mulheres. Porém, assim como as mulheres variam em raça e classe, também variam em sexualidade – e isso irá afetar a forma como o trabalho doméstico aparece na sua vida. Nico e Rodrigues (2011) argumentam que estudar casais do mesmo sexo é relevante, pois, por serem do mesmo sexo, esses têm a necessidade de conceber estratégias de distribuição do trabalho doméstico baseadas em outros critérios que não as normas sociais relativas ao sexo do parceiro.

Os resultados da pesquisa realizada por eles com dez casais do mesmo sexo (dez homens e dez mulheres) mostram que casais do mesmo sexo estão mais motivados para construir representações positivas das suas relações, construindo a divisão das tarefas baseada nos interesses, competências e horários dos parceiros. Apesar disso, a socialização baseada na naturalização dessas tarefas aparece, mesmo que de forma menor, ao serem encontradas diferenças entre casais de mulheres e casais de homens. Nas mulheres, foi encontrada uma tendência a inflacionar as diferenças de participação, além da especialização em determinadas tarefas, enquanto os homens tendem a delegar tarefas menos prazerosas (NICO; RODRIGUES, 2011). Dessa forma, é possível identificar que, mesmo em pessoas que contestam a norma, a naturalização transmitida de forma direta e indireta ao longo da vida pelos dispositivos e instituições do capitalismo e patriarcado ainda organizam a divisão do trabalho reprodutivo.

Essa naturalização é feita, muitas vezes, através da perpetuação geracional das “obrigações femininas. Diogo e Maheirie (2008) identificam em sua pesquisa, com mulheres que prestam serviços de limpeza e conservação, que, da mesma forma que essas mulheres foram introduzidas nos ditos modos de ser femininos por suas mães, elas os ensinaram para suas filhas através de comportamentos práticos e ideológicos. Dessa forma, a família aparece como lugar de perpetuação da inferioridade da mulher na sociedade e a ideologia da maternidade e da domesticidade se mantém forjando pensamentos, sentimentos e deveres que se constituem como modos de ser.

Quando questionadas sobre os sentidos do trabalho, foram encontrados sentimentos de subestimação, desvalorização, isolamento e invisibilidade, mas esses foram confrontados com o sentimento de heroísmo que vence essas dificuldades. É nesse sentimento de heroísmo que “reside a herança cultural e familiar de naturalização das funções femininas e de submissão ao masculino” (DIOGO; MAHEIRIE, 2008, p. 266), é oferecido como moeda de troca e dignificação em contraste com tudo que é por elas sacrificado durante a vida em prol da família. Ao lado dele, aparecem valores como dedicação e doação que mobilizam o serviço doméstico e a produção de sentido desse. Todavia, também são identificados, em duas das entrevistadas, sentimentos de prazer e dignidade, mostrando que a naturalização também pode gerar, por vezes, identificação e satisfação, visto que as emoções são constituídas dialeticamente, através do movimento e da contradição.

Consequências na vida concreta e na subjetiva das mulheres

Ao contrário do que acreditam teorias baseadas no determinismo biológico, as condições de vida de homens e mulheres são fruto de construções sociais que têm como base o trabalho. O trabalho, por sua vez, é dividido entre os sexos. A chamada divisão sexual do trabalho aparece nitidamente quando se vê que a maioria dos homens exercem o trabalho dito produtivo, enquanto as mulheres dividem seu tempo entre produção de mercadorias e o trabalho reprodutivo em casa. Desde 2001, a Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (PNAD) do IBGE introduziu no corpo do seu questionário perguntas acerca do trabalho reprodutivo, possibilitando, entre outras coisas, que se mensurasse o valor do trabalho realizado no interior dos domicílios do Brasil que fica de fora dos cálculos do PIB (MELO; CASTILHO, 2009).

Analisando os dados do PNAD de 2005, Melo e Castilho (2009) encontraram alguns números para se refletir sobre essa divisão desigual de tarefas. Apesar de corresponder a 52% da população em idade ativa, 47% dessas mulheres estão fora do mercado de trabalho – sendo esse contingente populacional formado majoritariamente por donas de casa e mulheres dedicadas ao trabalho reprodutivo. Das mulheres que saem de casa para trabalhar, 91% declaram que ainda realizam trabalhos domésticos, enquanto apenas 51% dos homens afirmaram o mesmo. Além disso, a média de horas declaradas por essas mulheres é de 20,8 horas semanais, enquanto a dos homens é 9,1% – essa diferença aumenta conforme o nível de escolaridade dessas mulheres diminui.

Essas diferenças são reproduzidas para todas as posições na ocupação – os homens brasileiros realizaram em média 11,1 horas semanas se são inativos, 12,7 horas para os desempregados e 9,1 para os ocupados, enquanto mulheres inativas declararam 28,5 horas, desempregadas 28,6 e ocupadas 20,8. Importante frisar que mulheres ocupadas têm uma queda na realização do trabalho reprodutivo bem mais significativa que os homens quando empregadas, mostrando que eles dedicam pouco tempo tanto empregados quanto desempregados (MELO; CASTILHO, 2009).

Seguindo essa mesma linha e utilizando os dados dos PNAD entre 2001 e 2005, Madalozzo, Martins e Shiratori (2010, p. 560) mostram que essa dupla e pesada jornada de trabalho apontada pelos números contribui para a desvantagem feminina em sua possível produtividade ao longo do tempo:

Enquanto as mulheres cumprem uma jornada dupla e/ou intensiva de trabalho doméstico, os homens podem concentrar sua atenção e dedicação de esforço primordialmente para o mercado de trabalho. Dadas essas condições iniciais, não é espantoso verificar que a diferença salarial entre homens e mulheres se mantenha positiva e que, para percentuais de remuneração e de qualificação maiores, ela seja ainda mais persistente.

A divisão sexual do trabalho, estando intimamente ligada com o sistema capitalista, está também ligada com a forma como o tempo se organiza e se expressa na vida cotidiana, que apresenta tensões, regras e dinâmicas impostas por esse. O trabalho produtivo, majoritariamente realizado por homens, segue um tempo linear e objetivo, de lógica diacrônica, enquanto o trabalho reprodutivo, naturalizado como feminino, mantém uma lógica sincrônica que é difícil precisar sem perceber a vida cotidiana de forma subjetiva e descontínua.

A apropriação do tempo para as mulheres se configura de forma diferente porque, na atualidade, elas trabalham nas duas esferas, tendo seu tempo apropriado de forma contraditória. Além disso, as mulheres não têm o tempo livre enquanto direito de se reconstituir física e mentalmente, pois o trabalho reprodutivo preenche todos esses espaços que deveriam ser de descanso. Uma das consequências de se considerar apenas as relações de produção como determinantes da vida social é que apenas uma subjetividade prevalece ao abordar o que é vivido na vida cotidiana – a masculina. As experiências das mulheres aparecem apenas como questões periféricas nas análises, tanto no que tange ao trabalho reprodutivo quanto à formação de suas subjetividades (ÁVILA, 2010).

Pensando nessa invisibilidade do trabalho doméstico como categoria para se pensar a saúde mental feminina, Araújo, Pinho e Almeida (2005) realizaram uma pesquisa com 2055 mulheres maiores de 15 anos em Feira de Santana (BA), buscando entender a prevalência dos Transtornos Mentais Comuns (TMC)3 em mulheres e que fatores estão associados a sua ocorrência. A prevalência de TMC foi muito elevada (39,4%), tendo predominância o humor depressivo/ansioso. Nesse grupo, a maioria afirmou sentir-se nervosa, tensa ou preocupada (69,5%) seguida de assustar-se com facilidade (56,7%). Nos sintomas somáticos, destacam-se as dores de cabeça frequentes (47,5%) e sensações desagradáveis no estômago (32,6%). No decréscimo de energia vital, cansar-se com facilidade obteve 42,7%. Perder interesse pelas coisas (20,3) e sentir-se inútil (11,4%) no grupo dos pensamentos depressivos.

A presença de TMC foi mais elevada entre mulheres que tinham baixo nível de escolaridade, não moravam com companheiros, eram negras ou pardas, tinham rendimento de até um salário mínimo, tinham filhos e eram chefes de família, além disso, mulheres que não tinham tempo para atividades de lazer apresentaram maior prevalência de TMC (49,9). Os resultados encontrados sugerem que o trabalho doméstico está relacionado a questões de saúde mental:

A ausência de reconhecimento pelo trabalho realizado emerge como consequência dessa invisibilidade e, não raro, aparece como produtor de intenso sofrimento psíquico. O sofrimento associado ao trabalho doméstico decorre de tensões geradas pelas suas características de monotonia, repetitividade, desvalorização e pelas demandas dos papéis sociais aos quais a mulher deve atender. A vivência cotidiana dessas tensões, acumuladas ao longo do tempo, pode, como apontam vários estudos, cristalizar diferentes formas de adoecimento psíquico. (ARAÚJO; PINHO; ALMEIDA, 2005, p. 338).

Essa sugestão se confirma nos dados levantados por Araújo e Veiga (2015) a partir do Censo de 2010 no estado do Rio de Janeiro. Os homens tendem a reportar menos tensão e a apresentar percentuais mais elevados de satisfação com o trabalho e a vida em família (21,9%), enquanto mulheres apresentam 15,8%. Ao serem perguntados sobre felicidade, 29,9% das mulheres se disseram extremamente felizes ou muito felizes, ao passo que entre os homens esse percentual foi de 40,1%. Nesse sentido, as pesquisadoras chegaram à conclusão de que o índice de satisfação sofre impacto negativo do aumento do número de horas dedicadas às atividades no âmbito doméstico, o que confronta a percepção naturalizada de que o lar é o lugar de felicidade feminina.

Essa situação pode ser agravada, dentro de um contexto de intensificação da exploração e da precariedade do trabalho no neoliberalismo, pela alternativa de inserção laboral oferecida pelo empreendedorismo – que começou a aumentar a partir de 2008. A prática empreendedora foi incorporada no imaginário social brasileiro reproduzindo a mesma lógica do mercado – da insegurança, competitividade, incerteza e do desemprego. Mulheres donas de casa que optam por essa alternativa têm sua vida econômica positivamente atingida, mas a vida familiar sofre efeitos negativos, o que aumenta o nível de estresse e sofrimento psíquico:

Entendendo que o trabalho é uma atividade humana à qual podemos atribuir destacada relevância na constituição da subjetividade, sendo a maneira pela qual o sujeito afirma sua existência no mundo, essa mulher se vê na necessidade de se repensar subjetivamente, já que o trabalho e suas transformações implicam em mudanças no dia-a-dia e nas trajetórias de vida. Essa dona-de-casa empreendedora não encontra, na realidade, esfera na qual se identifique subjetivamente, já que ela estaria permeando o campo reprodutivo e o produtivo de forma intensa simultaneamente. Disso também deriva a preocupação com a saúde física e mental dessas mulheres, como consequência de adoecimento e sofrimento psíquico advindo dessa conturbada relação subjetiva com o trabalho, que merece maior atenção em futuras produções (MEYER et al., 2019, p. 52)

Como outra alternativa dentro desse mesmo contexto, para algumas, surge a oportunidade de retornar aos estudos, fazer uma universidade. Ávila e Portes (2012) realizaram uma pesquisa microssociológica com 15 mulheres de camadas populares que frequentam cursos noturnos de uma universidade pública. Durante a investigação, encontraram uma tríplice jornada, pois não deixaram de trabalhar fora, nem de ter a maior quantidade de responsabilidade no trabalho reprodutivo. Porém, para essas, a jornada tripla não é recente, já que toda a trajetória escolar, em especial o ensino médio, foi marcada pela conciliação de funções de donas de casa, trabalho e estudo. Essa conciliação fez com que seis das entrevistadas abandonassem os estudos para se inserir de forma precoce no mercado de trabalho como empregadas domésticas.

Ser uma realidade na vida há tanto tempo não garante que essa rotina não seja desgastante, pelo contrário, a tarefa de conciliar esses três segmentos de trabalho aparece nos relatos das entrevistadas como fonte de estresse, ansiedade e pressão constante, tornando-as emocionalmente vulneráveis. Não sobra nenhum tempo para atividades de lazer, pois o tempo que deveria ser livre é utilizado para dar conta das ocupações do trabalho reprodutivo ou escolar. Quando são perguntadas pela ajuda dos companheiros, três dizem não receber nenhum tipo de ajuda e apenas duas alegam que o marido ajuda em tudo. Algo que predomina nesses depoimentos é o fato de que o marido só ajuda de forma esporádica e com uma série de restrições que piora a carga de trabalho, pois vem acompanhada do desgaste emocional e o constrangimento de ter que solicitar ajuda. (ÁVILA; PORTES, 2012).

Todos esses sentimentos negativos apareceram como motivo de sofrimento e estresse emocional que, segundo as entrevistadas, é pior que o esgotamento físico. O sentimento de culpa esteve presente na maioria das falas – seja relacionado a não participar da forma que queria na família, ou muitas vezes de, por causa das inúmeras atribuições, não conseguirem se dedicar aos estudos da forma desejada. Todavia, aparece como conclusão das autoras que, apesar de se perceberem como vítimas de uma situação, essas mulheres se impõem também como sujeitos que têm consciência de suas limitações e desafios, mas se negam a abdicar do que querem fazer pelas dificuldades. Sentem-se divididas, mas se negam a escolher (ÁVILA; PORTES, 2012).

Continuando a abordagem sobre o impacto dos fenômenos da atualidade que são causados pela fase do capitalismo em que a sociedade se encontra, é necessário pincelar sobre o movimento migratório causado pela crise global dos cuidados e a consequente divisão internacional do trabalho reprodutivo. As mulheres dos países considerados desenvolvidos são incorporadas em massa no trabalho produtivo e as mulheres de países subdesenvolvidos ou em desenvolvimento surgem para suprir essa falta. Isso acontece mais nos países europeus, por causa da deterioração do Estado de bem-estar social, envelhecimento da população, feminilização da força de trabalho e as novas demandas produtivas desses.

Buscando investigar as subjetividades criadas a partir do envolvimento nesse processo, Carpenedo e Nardi (2013) analisaram experiências de mulheres brasileiras trabalhando no setor reprodutivo em Paris. A revisão da literatura feminista feita no texto explica que essas ocupações de domésticas e babás imigrantes se associam aos processos de subjetivação caracterizados tanto pelas normas de gênero quanto por hierarquias raciais e nacionais, conduzindo a subjetividades marcadas pelo paradigma da servidão, opressão, normalização e dominação.

Apesar de as experiências de subordinação e exploração serem uma constante, também foi observado pelas autoras que essas mulheres também são capazes de se autorreinventar através de estratégias de resistência, podendo reverter em alguma medida as suas condições de subjetivação através da solidariedade e da união entre mulheres, como expressada na fala de uma das entrevistadas: “Aqui a gente tem que se ajudar uma a outra, a gente tem que criar o nosso pequeno Brasil em Paris, para que todo mundo fique bem” (CARPENEDO; NARDI, 2013, p. 107).

Nas contradições impostas pela organização capitalista da vida, ao mesmo tempo em que brasileiras se inserem em fluxos migratórios, mulheres de outros países também migram para o Brasil para poderem trabalhar e sustentar seus filhos, inserindo-se no mercado da assistência como cuidadoras, domésticas e babás – formando as cadeias globais de cuidado. Bertoldo (2018) identifica múltiplas vulnerabilidades na realidade dessas migrantes domésticas no Brasil, sendo elas a dupla presença ou dupla ausência que a migração gera nos parentes de origem e/ou destino; o afastamento da família e dos filhos – que gera preconceito por negarem em certa medida a condição natural de mãe –; a situação ilegal que produz clandestinidade, negando a possibilidade de existirem como sujeitos políticos na sociedade, aprofundando mais o isolamento, a dificuldade de acessar políticas públicas e o abuso nas relações de trabalho; a segregação laboral e as discriminações étnico-raciais aprofundadas por questões de gênero e raça.

Observou-se, dessa forma, que as condições de trabalho refletem a organização social e econômica da sociedade, bem como influenciam a vida concreta e subjetiva dessas mulheres, em todos os seus âmbitos. A exposição às condições de exploração e dominação na sociedade capitalista e patriarcal tornam mais intensas as contradições no modo de vida das mulheres. No atual momento do modo de produção, além das consequências elencadas acima, o contexto da crise sanitária do novo coronavírus evidencia ainda mais a sobrecarga de trabalho, o abuso e a violência no âmbito doméstico (CALDEIRA; BISPO, 2020).

Pensando nisso, Oliveira (2020) propõe uma reflexão sobre a espacialidade e densidade das relações domésticas de quem pôde ficar em casa no contexto de pandemia e as consequências disso para a saúde mental das crianças e mães. O cotidiano do confinamento exigido pelo isolamento social traz para as crianças diversos problemas, como estresse pela mudança brusca de rotina, a restrição de movimento no espaço da casa, falta de convívio com outras crianças, entre outros – para as mulheres, responsáveis pelo cuidado, a preocupação com o bem-estar e saúde dos filhos se torna mais um agravante em todo o contexto de trabalho explorado. Além disso, mulheres também estão na base dos serviços considerados essenciais, em especial mulheres negras de baixa renda.

Para a autora, propor uma reflexão sobre o cotidiano das mães na pandemia significa questionar a construção de uma norma familiar naturalizada, além de tensionar teorias dominantes do seu campo de estudos, a Geografia, que “tendem a colocar como menos importantes as subjetividades e os conflitos no espaço doméstico que está diretamente relacionado às condições de saúde mental (sofrimento, angústia, ansiedade) e bem-estar de mulheres e crianças” (OLIVEIRA, 2020, p. 159). Aponta que, apesar da necessidade de se desnaturalizar a ideia de que as mulheres são as principais cuidadoras, também é preciso lembrar que essas ainda são as principais envolvidas nesse cuidado, e é preciso encontrar caminhos para que lidem com todo o sofrimento, angústia e morte em tempos de pandemia.

Uma ideia de que caminhos que devem ser tomados aparece ao observar a história de resistência das mulheres em luta por terra, território e bem comum na América Latina. Ao terem consciência de que as crises da agenda neoliberal afetam suas comunidades e a elas mesmas diretamente, essas mulheres criam formas autônomas de reprodução social através da teia comunitária, desafiando as forças destrutivas do capitalismo. Elas constroem, assim, novas formas de existir na contramão da lógica mercadológica, canalizando o poder das relações afetivas que caracterizam a esfera doméstica para produzir solidariedade social, “transformando o trabalho cotidiano, social e reprodutivo em ação coletiva que converte os bairros em comunidades de resistência à exploração capitalista” (FEDERICI, 2020c, p. 3). Essas estratégias de luta e sobrevivência criam sentimentos de solidariedade e identidade comunitária, armas poderosas para combater não só o sofrimento psíquico causado pelo trabalho reprodutivo, mas o sistema que o estrutura.

Considerações finais

A revisão de literatura permitiu compreender a problemática do trabalho reprodutivo enquanto algo produzido e reproduzido ideologicamente, sendo passado como um atributo natural. A partir disso, pôde-se traçar algumas das consequências dele na organização do tempo, da vida cotidiana e da formação de processos de saúde-doença. A exploração desse trabalho está ligada a sentimentos de culpa, estresse e desmotivação, chegando a casos de desenvolvimento de Transtornos Mentais Comuns e outros. Porém, apesar de existirem esses dados e dos avanços da discussão nos escritos e organizações de feministas marxistas, o debate ainda está engatinhando nas ciências psicológicas.

Aqui, cabe afirmar que não se pretende reduzir o trabalho reprodutivo a subjetivismos, como se fosse unicamente um problema de saúde mental. Ao contrário, é necessário se entender as consequências objetivas, a feminilização da pobreza, os problemas imigratórios, a precarização do trabalho de empreendedora, para então pensar que isso também tem consequências subjetivas – e que entender as duas de forma dialética e complementar é de extrema importância para compreender o ser social enquanto totalidade.

Com o encontrado, também se evidenciou a necessidade de investigar de forma mais elaborada como esses processos se articulam. Entende-se a limitação do presente estudo, pois não consegue fazer sozinho uma discussão de tamanha densidade, enquanto uma revisão de literatura, mas também sua importância, pois pode despertar interesses, em ambos os campos de pesquisa – feminismo marxista e psicologia – de investigar as intersecções entre os mesmos. É sugerido que, a partir deste, se façam novas pesquisas que atualizem os dados trabalhados aqui, como por exemplo os dados da prevalência de TMC em mulheres que, apesar de importantes, são de 2005 e podem ter se modificado com todas as mudanças da última década. Além disso, uma pesquisa específica sobre trabalho reprodutivo e saúde mental na pandemia traria dados ainda mais concretos para análise.

Essas novas pesquisas e análises construídas a partir daqui serão de grande valia para que se possa pensar formas de intervenção que, na contramão de uma Psicologia que tenta mascarar os problemas sociais, possa entendê-los e buscar formas de atuação para superá-los. Essas, além disso, precisam estar alicerçadas no bojo da tomada de consciência, sendo mediadoras do processo de entendimento da raiz do sofrimento e do fortalecimento da autonomia das mulheres sobre suas vidas, fazendo cumprir os princípios do código de ética da profissão.

Referências

ALMEIDA, Melissa; BELLENZANI, Renata; SCHUHLI, Vitor. A Dialética Singular-Particular-Universal do Sofrimento Psíquico: Articulações entre a Psicologia Histórico-Cultural e a Teria da Determinação Social do Processo Saúde-Doença. In: TULESKI, Silvana; FRANCO, Adriana; CALVE, Tiago (org.). Materialismo Histórico-Dialético e Psicologia Histórico-Cultural: Expressão da Luta de Classes no Interior do Capitalismo. Paranavaí: EduFatecie, 2020. p. 227-270.

ARAÚJO, Clara; VEIGA, Alinne. Domesticidade, trabalho e satisfação pessoal: horas no trabalho doméstico e bem-estar no Estado do Rio de Janeiro. Revista Brasileira de Ciência Política, Brasília, v. 18, p. 179-209, 2015.

ARAÚJO, Tânia; PINHO, Paloma; ALMEIDA, Maura. Prevalência de transtornos mentais comuns em mulheres e sua relação com as características sociodemográficas e o trabalho doméstico. Revista Brasileira de Saúde Materno Infantil, Recife, v. 5, n. 3, p. 337-348, 2005.

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Recebido em: 01/04/2021

Aceito em: 18/08/2021


1 Aqui definida como as produções de Vigotski, Leontiev, Luria e seus continuadores que aplicaram o método materialista histórico-dialético para criar a busca do ser humano concreto (ALMEIDA; BELLENZANI; SCHÜHLI, 2020).

2 Advinda da medicina social latino-americana, a teoria, mais especificamente o que foi formulado por Laurell e Breilh, aborda o processo saúde-doença em seu caráter biológico e social, mostrando a relação do adoecimento e dos modos de vida (ALMEIDA; BELLENZANI; SCHÜHLI, 2020).

3 Termo criado por Goldberg e Huxley (1992) para caracterizar situações de sofrimento mental com sintomas como fadiga, insônia, esquecimento, irritabilidade, dificuldade de concentração, queixas somáticas.

FICAR MAL NA FOTOGRAFIA:

Representação estereotipada do delegado de informação médica
em filmes e séries de televisão

BLURRED PICTURE:

Stereotyped representation of the pharmaceutical sales representative
in movies and TV shows

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Manuel Soares*

Resumo

Neste artigo, pretende-se discutir a oposição entre profissões e ocupações, dedicando particular atenção às situações intermédias que não cumprem na sua plenitude os requisitos de profissões, mas também não se enquadram no campo das ocupações, e os seus possíveis impactos na perceção pública da imagem desses profissionais. Recorre-se ao Delegado de Informação Médica1, enquanto atividade que trabalha em estreita ligação com uma das mais respeitáveis e prestigiantes profissões, a médica, e procura perceber-se qual é a sua imagem pública. Para tal, observa-se a representação que é feita desses profissionais em filmes e séries de televisão. A análise permite concluir que a imagem construída nessas obras assenta em estereótipos que traçam um retrato pouco abonatório do profissional em questão.

Palavras-chave: Delegado de informação médica. Sociologia das profissões. Hierarquia das profissões. Imagem profissional.

Abstract

This article aims to discuss the opposition between professions and occupations, paying particular attention to intermediate situations that do not fully meet the requirements of professions, but also do not fit into the field of occupations, and their possible impacts on the public perception of the image of these professionals. The activity of Pharmaceutical Sales Representative, as an activity that deals closely with doctors, one of the most respectable and prestigious professions, is analyzed and it is intended to perceive what is the public image of this professionals. To do so, one observes the representation that is made of these professionals in films and TV shows. The analysis leads to the conclusion that the image constructed in these works is based on stereotypes that give a poor portrait of the professional in question.

Keywords: Pharmaceutical Sales Representative. Sociology of professions. Hierarchy of professions. Professional reputation.

Introdução

No conhecido romance Os Maias do escritor português Eça de Queirós, uma crítica mordaz à sociedade portuguesa do século XIX, o narrador discorre num dos seus capítulos iniciais sobre a opção de Carlos da Maia, o protagonista, em escolher cursar medicina em vez de direito, uma vez que se antevê que estrague a vida “receitando emplastros, e sujando as mãos no jorro das sangrias” (QUEIRÓS, 1997, p. 146).

Este pequeno episódio nos dias de hoje poderia ser visto com certa estupefação, pois, na hierarquia das profissões, um médico estará, pelo menos, a par em termos de prestígio com as profissões saídas do campo do Direito, quando não mesmo acima. Significa isso que o lugar que certas atividades assumem na hierarquia das profissões vem sofrendo alterações. Ainda assim, parece não ser colocado em causa aquilo que, no Brasil, é conhecido como “profissões imperiais” (VARGAS, 2010), ou seja, a Medicina, o Direito e as engenharias, que continuam a ser das áreas profissionais mais cobiçadas e socialmente reconhecidas. Essas profissões são, aliás, identificadas como sendo as que, no contexto de uma abordagem funcionalista, cumprem os critérios determinados como os elementos essenciais para se poder falar em profissão, nomeadamente o facto de lidarem com operações intelectuais de certa complexidade, serem ensinadas e desenvolvidas no contexto de um ensino formalizado, assumirem uma finalidade socialmente útil, organizarem-se em associações e terem um caráter altruísta (SANTOS, 2011, p. 13). Do ponto de vista da teoria funcional da estratificação, contribui para o seu prestígio o lugar que a profissão ocupa na estrutura social (PARSONS, 1939). Nesse sentido, a Medicina e o Direito têm funcionado como tipo-ideal para a definição de profissão, especialmente a Medicina, embora a utilização dessas atividades como modelo para comparação com outras igualmente sujeitas à certificação técnica e formação superior seja difícil de fazer, pois as condições de trabalho divergem muito umas em relação às outras (LARSON, 2014).

No contexto dessa hierarquização das profissões, importa discutir o papel que cada ator social reserva para si no âmbito da atividade que desempenha. Se, como afirma Claude Dubar (2012), o processo de socialização é uma construção de um código simbólico, é também ele que “permitirá obter uma representação do mundo para cada indivíduo e da identidade que cada indivíduo quer assumir nesse mundo por si representado” (SANTOS, 2011, p. 47). Nesse sentido, o delegado de informação médica exerce a sua atividade no seio de uma área profissional específica – a saúde – embora sem dela fazer parte, pois não cumpre os requisitos que lhe permitem ser reconhecido como um seu semelhante por parte do grupo dos seus profissionais. Ainda assim, tem como função transmitir informação e conhecimento que permitam melhorar os serviços prestados pelos médicos à população, contribuindo, dessa forma, também para o bem comum. Importa, portanto, perceber onde posicionar essa atividade. Estando a informação médica abrangida por alguns dos requisitos que caracterizam uma profissão (requer conhecimento e formação específicos, tem regulamentos próprios para o seu exercício, confere prestígio social decorrente das condições económicas de que usufrui), faltam-lhe, por outro lado, alguns elementos que constituem as marcas distintivas das chamadas profissões imperiais (organização profissional, que assegura os regulamentos e fechamento social; o poder que tem sobre os outros; o reconhecimento social, a vertente altruísta).

Os filmes e séries de televisão, embora obras de ficção, procuram reproduzir a realidade, representando situações do dia a dia. Dessa forma, abundam os casos em que essas obras de ficção funcionam como elogio a determinadas profissões, contribuindo para melhorar a autoestima dos seus profissionais, que assim veem reconhecida a sua atividade publicamente, como atestam as inúmeras séries e filmes sobre médicos, advogados, enfermeiros, professores, etc. Da mesma forma, elas podem igualmente funcionar como forma de desvalorizar o papel de certos profissionais e contribuir para reforçar a imagem estereotipada de certas atividades.

Sociologia das Profissões

A Sociologia das profissões tem assistido a transformações que conduziram a dois eixos principais de análise: a delimitação dos grupos profissionais, por um lado, e a coesão e unidade interna das profissões, por outro (BARBOSA, 1993, p. 3), tendo os seus quadros teórico-metodológicos conhecido uma constante atualização (GONÇALVES, 2007, p. 178). Maria de Lurdes Rodrigues identifica três correntes de estudos da Sociologia das profissões: a funcionalista, a interacionista e a neoweberiana (RODRIGUES, 2012).

A palavra trabalho está impregnada, historicamente, de uma carga negativa que a remete para uma obrigação (de ganhar a vida), uma subordinação (a um empregador), e a sofrimento (físico, mental), pelo que as atividades que possibilitam uma identificação positiva com o trabalho são aquelas que são escolhidas, autónomas e abertas para carreiras, conferindo sentido à existência individual e não se limitando a serem objetos de troca económica, mas possuindo também uma dimensão simbólica de reconhecimento social (DUBAR, 2012, p. 353–354). Neste sentido, as profissões, na perspetiva funcionalista, permitem reunir o conjunto de requisitos que as possam fazer integrar o leque das atividades que mantêm com o trabalho uma relação de conotação positiva, motivando a procura pelos bons empregos que se traduzem em ofícios (DUBAR, 2012), dando cumprimento à tradição histórica de as profissões ocuparem uma posição importante na sociedade (PARSONS, 1939). De um ponto de vista funcionalista, profissão é, portanto, “uma comunidade relativamente homogénea onde os membros partilham identidades, valores, definição de papéis e de interesses (SANTOS, 2011, p. 15).

Desde os anos 1930 que a sociologia das profissões, nos países de língua inglesa, tem estudado as profissões em oposição às ocupações, conferindo às primeiras um conjunto de características que as diferenciam das segundas (SCHMITZ, 2014). Essa perspetiva, que traça uma separação entre ambas (GONÇALVES, 2007), vai buscar inspiração no pensamento weberiano que associa ao profissional as “noções de competência, integridade, conduta ética, qualificação, hierarquia, poder, prestígio, renda, posição social, privilégios” (SCHMITZ, 2014, p. 14). Nesse sentido, em termos funcionalistas, à profissão é conferido um conjunto de conhecimentos científicos e técnicos complexos adquiridos através de formação universitária (GONÇALVES, 2007), podendo ela ser definida, desse ponto de vista, com base no conjunto de conhecimentos e competências do indivíduo e no consequente cariz estrutural traduzido no estatuto económico e no reconhecimento social que alcança (SANTOS, 2011). Através do conhecimento científico e técnico e o ideal de serviço à comunidade, as profissões são legitimadas socialmente e constituem-se como elementos imprescindíveis que garantem o funcionamento da sociedade (GONÇALVES, 2007).

Uma das características distintivas das profissões é o facto de elas tenderem a autorregular-se através da criação de associações que cuidam de assegurar a regulamentação de acesso à profissão (BARBOSA, 1993; SANTOS, 2011), contribuindo, dessa forma, para um fechamento social que garante a exclusividade da profissão, perpetuando o seu reconhecimento e prestígio social (FREIDSON, 2013; GONÇALVES, 2007; SCHMITZ, 2014; VARGAS, 2010). No Brasil, essas instituições são os Conselhos, que regulamentam e fiscalizam o exercício profissional, ao passo que em Portugal são as Ordens Profissionais que desempenham esse papel.

A divisão do trabalho assente num caráter mais técnico ou económico confere a certos grupos profissionais maior importância social, por isso se afirma que elas são o princípio hierarquizador dos grupos sociais (BARBOSA, 1993). O poder da profissão irá conferir a esses profissionais uma posição de poder, que se manifesta através da autoridade sobre quem recorre aos seus serviços, tornando-se ela uma das marcas distintivas e que confere poder à profissão. O médico dá “ordens” ao paciente, que sabe que a única penalização que poderá ter ao não cumpri-las é prejudicar a sua saúde, da mesma forma que o cliente assume como úteis os conselhos do advogado, pois esses profissionais possuem uma competência técnica que outros não têm e a sua autoridade sobrepõe-se inclusivamente àqueles que têm estatuto social superior ao dele (PARSONS, 1939).

Mas o funcionalismo não terá o monopólio no que concerne ao estudo das profissões. Do ponto de vista interacionista, a abordagem faz-se a partir de uma dupla perspetiva – biografia e interação –, levando a que “todas as atividades laborais devam ser analisadas na sua complexidade e nas relações dinâmicas que estabelecem entre si como sistemas autónomos”, transformando a pergunta o que é uma profissão? em para quê uma profissão?, segundo a formulação do interacionista Hughes (SANTOS, 2011, p. 23).

As obras dos interacionistas tomam como objeto as ações e interações dos indivíduos e grupos e como eles constituem os seus mundos sociais enquanto participantes e como constroem as suas carreiras. Aqueles que eram os princípios basilares das profissões – o altruísmo, o serviço e as normas éticas – passam, nessa perspetiva, a serem vistos como aspetos normais do dia a dia com os quais os profissionais têm de lidar, daí os trabalhos desses autores retratarem os médicos como desenvolvendo cinismo em vez de altruísmo ou como ostentadores de poder em vez de servidores do bem comum (MACDONALD, 1995).

Os sociólogos interacionistas mudaram o foco funcionalista que reservava a qualidade profissional para uma minoria de trabalhadores organizados em profissões salvaguardadas por uma legislação que protegia o seu exercício para uma outra abordagem em que a outras ocupações também era permitido obter o estatuto de profissões (DUBAR, 2012). Para os interacionistas, portanto, a problemática sociológica nuclear da Sociologia das profissões assenta na “análise das práticas dos membros de um grupo ocupacional para serem reconhecidos e legitimados socialmente como detentores monopolistas de uma área de actividade profissional, o que lhes confere um elevado prestígio e estatuto social”, pelo que o poder para controlar e monopolizar determinada atividade profissional passa a desempenhar um papel fundamental nos jogos de interação desses atores (GONÇALVES, 2007, p. 180). Daí falar-se na rutura entre a visão funcionalista, que reserva o profissionalismo para certas atividades, e a interacionista (e também das correntes críticas neomarxistas e neoweberianas), que atribui aos contextos socioculturais e políticos as características das atividades consideradas ou não profissionais (DUBAR, 2012). Ainda segundo Dubar, a comparação entre um médico e um auxiliar de ação médica coloca o primeiro numa posição dominante e prestigiosa e o segundo numa posição subalterna e menos prestigiada (DUBAR, 2012), e isso conduz à ideia do conflito social e laboral, que se assume como uma das marcas dessa abordagem interacionista, chamando “a atenção para as condições sociais que permitem que determinada profissão reivindique e mantenha tanto a sua posição como a sua competência particular” (DUBAR, 2012, p. 359).

Por isso se reconhece pertinente perceber o papel que caberá, nesta linha de abordagem, àquelas atividades que parecem situar-se entre as profissões e as ocupações, como é o caso do DIM. Ele estará também numa posição subalterna em relação ao médico, mas certamente a sua atividade não será tomada como ocupação. O DIM socorre-se na sua atividade diária de um conjunto de elementos que fazem com que, embora não detendo as competências técnicas e os conhecimentos que o incluam na profissão médica, domine algumas das ferramentas que constituem o referencial comum desse campo profissional, especialmente no que diz respeito à linguagem específica que só no campo médico faz sentido (SANTOS, 2011). Por essa razão, talvez a atividade de DIM possa ser incluída naquilo que se convenciona chamar as semiprofissões (LARSON, 2014).

A forma como a atividade profissional é percebida por quem a executa e por aqueles com quem esse ator interage é importante para o lugar em que essa atividade é colocada no jogo das profissões. A imagem da profissão perante o público assume, portanto, um papel importante, pois “quando uma pessoa está satisfeita com o valor da sua profissão, aumenta a possibilidade de sucesso profissional, pois exala confiança de que a sua profissão é valorizada pelos seus pares e pela sociedade”(FERREIRA; MOURA; SOUKI, 2014, p. 344). A identificação no trabalho constitui um processo importante para que se possa dar a apropriação do modelo identitário do trabalho, e para que tal aconteça, é necessário que se verifique uma condição afetiva, de similitude e de poder, que facilite essa identificação (SANTOS, 2011). Daí assumirem importância determinadas formas de identificação do profissional, podendo essas marcas ter efeitos positivos ou negativos em termos da imagem construída, uma vez que a imagem estereotipada da profissão por parte do público pode ter impacto na forma como os profissionais são tratados e como o status da profissão é percebido (FERREIRA; MOURA; SOUKI, 2014). A forma de vestir dos DIM, por exemplo, constitui uma marca distintiva que se afigura como um dos estereótipos que é concebido como um atributo coletivo que permite reconhecer determinado sujeito como pertencendo àquele grupo (SANTOS, 2011), podendo funcionar como fator de identificação positiva (quando lhe confere uma imagem de profissão limpa, de estatuto) ou negativa (fazendo com que seja facilmente identificado por parte dos pacientes, que podem ter uma ideia não muito abonatória daquela atividade, com base nas notícias de corrupção ou atos menos éticos).

Delegado de Informação Médica: profissão, ocupação ou nenhuma delas?

Muito da análise da Sociologia das profissões inspira-se nos trabalhos de Weber, sendo o tipo ideal de profissão apresentada por Freidson – e que se traduz no “saber abstrato e monopólio em área especializada de conhecimento; a autonomia profissional, para fazer diagnósticos; o controle do mercado, por meio do credenciamento e diploma do ensino superior” – um exemplo dessa inspiração, tal como a ideia de “profissão pessoal”, materializada no Direito e na Medicina, advogada por Larson (SCHMITZ, 2014, p. 8). O poder e a autoridade decorrentes do exercício de determinada atividade são elementos fulcrais para essa distinção entre as profissões e as ocupações, e lança desafios interessantes para essa análise, especialmente quando se é confrontado com um conjunto de atividades profissionais que tendem a incorporar muitas das características das profissões ao mesmo tempo em que não enquadram outras.

O DIM assume, neste particular, um papel ímpar pelas suas especificidades. Em Portugal, as atribuições desse profissional prendem-se com a promoção e divulgação de uma carteira de produtos farmacêuticos junto a diferentes profissionais de saúde (médicos, farmacêuticos, enfermeiros, médicos dentistas, etc.), podendo igualmente ministrar algumas ações de formação sobre determinados fármacos para esses mesmos profissionais, fazer venda direta de produtos às farmácias ou acompanhar cirurgiões em bloco operatório para auxiliar na utilização de instrumentos cirúrgicos específicos ou coadjuvar os médicos na utilização de determinado equipamento médico para a qual possui formação especializada. Sendo marcadamente uma atividade ligada ao marketing e às vendas, o exercício da função de DIM exige o domínio de um conjunto de técnicas e conhecimentos que difere das outras vendas, uma vez que essa é uma atividade comercial na qual entre o vendedor ou promotor do produto (o DIM) e o comprador final (paciente) existe um intermediário (o médico), que é quem prescreve o medicamento e recorre à sua autoridade para que o doente adquira aquele fármaco e não outro similar, porque esse poder é inato ao próprio exercício daquele ato (SHAUGHNESSY; SLAWSON; BENNETT, 1994). É importante recordar que a ideia do conhecimento especializado do perito – que se torna a base do poder, conferido pelo diploma universitário, que serve como forma de os seus portadores alcançarem um conjunto de pretensões em termos económicos e sociais (poder, prestígio, remuneração, etc.) – encontra também inspiração na teoria weberiana (WEBER, 1982, p. 272–279). Da mesma forma, é também em Weber que se encontra a distinção entre a situação de classe, que se traduz no acesso aos bens por via do trabalho, e a situação de status, o prestígio que determinado grupo consegue alcançar perante os outros grupos (WEBER, 1982, p. 218). Neste sentido, as situações de classe e status podem ocorrer tanto coincidindo numa mesma profissão como ocorrendo em separado (atividades que granjeiam status, mas não o acesso aos bens, e outras que permitem o acesso à classe por via do poder aquisitivo, mas que não lhe conferem status).

O caso dos DIM, que aqui se propõe estudar, parece configurar um exemplo de uma atividade que recompensa bem os seus funcionários em termos financeiros (GRANJA, 2005), mas que se reveste de toda uma estigmatização que a impede de, concomitantemente à situação de classe, associar a situação de status, pela imagem negativa de que esse profissional específico parece padecer perante a sociedade. Trata-se de uma atividade profissional que se destaca das similares pela sua maior especialização, lidando com algumas das profissões mais respeitadas e prestigiadas (médicos, na maior parte dos casos, mas também farmacêuticos, enfermeiros e outros profissionais que prestam cuidados de saúde), tendo entre um dos seus propósitos transmitir conhecimento e informação relevante para o exercício médico, informando sobre as propriedades e modos de funcionamento de fármacos, explicando as vantagens para os pacientes e atualizando o saber médico. Neste sentido, a atividade de DIM permite obter recompensas materiais acima da média, pelo que será expectável que o DIM granjeie uma simpatia e aceitação públicas que se traduza em prestígio e respeitabilidade, a par daquilo que sucede com os seus clientes médicos.

A informação médica apresenta-se como um dos parceiros fundamentais para a atualização científica de médicos e outros profissionais de saúde, sendo entendida como um dos principais veículos de transmissão de informação sobre fármacos, publicações científicas e companhias farmacêuticas (LIEB; BRANDTÖNIES, 2010; MELO; BRAGA, 2003; SPURLING; MANSFIELD, 2007). Contudo, diversos estudos alertam para a influência que as visitas dos DIM parecem exercer nos hábitos de prescrição (ADRIANE; AHARI, 2007; GRANJA, 2005; MELO; BRAGA, 2003). Essa postura crítica, normalmente adotada por médicos, encontra paralelo na própria imagem que se vai construindo dos grandes laboratórios farmacêuticos mundiais, que são apresentados como perseguindo apenas o lucro, sendo inclusivamente apelidados de inventores de doenças (BLECH, 2006), pelo que as visitas dos DIM, nas quais a indústria farmacêutica parece investir somas consideráveis (CHRESSANTHIS et al. 2012; FICKWEILER; FICKWEILER; URBACH, 2017; GRANJA, 2005), são tidas como estando associadas a aumentos nos custos de prescrição por via da influência que conseguem exercer sobre os clínicos (MELO; BRAGA, 2003)

O DIM tem como principais características a sua boa apresentação, sentido de observação, prestabilidade e facilidade de relacionamento (ADRIANE; AHARI, 2007). Durante a sua visita médica, o DIM socorre-se dessas características para começar por “quebrar o gelo”, valorizando o status do médico, passando depois à apresentação dos seus argumentos para a prescrição do produto e terminando com o reforço da relação positiva que pretende estabelecer um compromisso de prescrição com o médico (MELO; BRAGA, 2003, p. 506). Vários estudos revelam que a influência que os DIM exercem nos hábitos de prescrição dos médicos é uma realidade, e isso desde as fases iniciais da formação médica, ainda enquanto alunos (CARMODY; MANSFIELD, 2010). Essa influência é, por norma, associada ao facto de ser frequente o DIM munir-se de brindes (canetas, blocos, etc.) e ofertas de material médico ou de publicações (livros, revistas científicas, etc.) ou ainda convites para eventos médicos e refeições de trabalho, que funcionam como forma de atrair a atenção do médico e investir no marketing relacional, sem que o clínico assuma que essas ofertas influenciam os seus hábitos de prescrição, mas concordando que isso poderá funcionar com outros colegas (ADRIANE; AHARI, 2007; FICKWEILER; FICKWEILER; URBACH, 2017; GRANJA, 2005; LIEB; BRANDTÖNIES, 2010; MELO; BRAGA, 2003; SPURLING; MANSFIELD, 2007; STEINMAN; SHLIPAK; MCPHEE, 2001). Desta forma, a eficácia do DIM junto dos seus clientes parece ser percebida por parte dos médicos como se devendo a fatores externos (ofertas, brindes) e menos às suas qualidades e argumentos enquanto profissional de vendas, quase parecendo querer limitar o seu papel a mero entregador de brindes. A validade da informação que o DIM transmite, aliás, é assumida por parte considerável dos médicos como sendo enviesada e como destacando apenas os aspetos positivos, ocultando as características mais negativas dos produtos (ADRIANE; AHARI, 2007; CHRESSANTHIS et al. 2012; MELO; BRAGA, 2003). Casos há também em que a qualidade da informação prestada pelo DIM é colocada em causa não apenas pelo já aludido enviesamento dos dados, mas também por alguns clínicos duvidarem que a formação académica do DIM lhe confira aptidão para “compreender toda a complexidade fisiopatológica, clínica, estatística e epidemiológica que preside a uma opção terapêutica” (GRANJA, 2005, p. 65). Ora, essa postura é uma forma de exercício de poder de um profissional sobre outro, ao fazer uso da sua autoridade enquanto especialista certificado sobre a capacidade ou não que o DIM tem em desempenhar a sua atividade de informar o médico com conhecimento daquilo que está a transmitir, muito embora seja frequente encontrar como requisitos de admissão para a atividade de DIM a exigência de que tenha formação académica nas áreas das ciências da saúde ou outra adequada ao cargo, situação similar à que se verifica em outros países, como no caso do Brasil, onde a formação académica plena é um requisito obrigatório para o ingresso na profissão, dando-se preferência a candidatos das áreas da administração, humanas e farmácia (SILVA; JÚNIOR, 2016).

O retrato do DIM, obtido a partir da consulta de alguns estudos feitos com médicos, indica-nos alguém que domina as técnicas de comunicação, sabe ser empático e bastante relacional e que está dotado, por parte do laboratório que o emprega, de um conjunto de ferramentas que lhe permite despertar o interesse do médico para o seu contacto, mas que se encontra numa posição de certa subordinação perante o seu cliente, o médico, que é quem tem a autoridade e verdadeiro conhecimento sobre o assunto, limitando-se, em muitos casos, a ser apresentado como simples entregador de brindes, mas que é hábil em manipular a conversa de forma a conseguir transformar o seu interlocutor num cliente prescritor dos seus produtos. Não se consegue detetar nos estudos consultados qualquer enaltecimento das capacidades profissionais do DIM, e mesmo nos casos em que ele tem sucesso no seu trabalho ele é mais justificado com as estratégias de persuasão delineadas pelos laboratórios (cuja legitimidade e ética é muitas vezes colocada em questão) do que pela sua capacidade e formação profissionais.

Poder-se-á afirmar que o retrato que resulta dessa súmula de informações relativamente ao DIM não é o mais abonatório. De forma algo simplista, dir-se-á que o DIM, de acordo com essa visão, é tido como alguém que domina bem a comunicação, sabe ser persuasivo e relacional, seleciona a informação que mais lhe convém e esquece a que lhe é mais desfavorável, e socorre-se de alguns recursos, como as ofertas e brindes, para conquistar a prescrição, acabando por ser apresentado como um dos principais responsáveis pelo aumento das despesas decorrentes com os gastos com medicamentos quer por parte dos Estados, quer por parte dos pacientes. Em segundo plano, parece ficar a pertinência que a sua ação pode ter enquanto difusor de informação relevante para a atualização científica dos médicos.

Desta forma, embora exigindo um conjunto de requisitos específicos ao nível académico e pessoal, e se beneficiando de um conjunto de condições que lhe permite uma boa situação de classe, a atividade de DIM parece ser remetida para uma posição indeterminada no que concerne à classificação que lhe possa ser atribuída, pois não se enquadra no conceito tradicional de profissão nem no de ocupação, parecendo também faltar-lhe o estatuto daquelas que, por alguns, podem ser consideradas as semiprofissões, como é o caso dos professores e dos enfermeiros, por exemplo. Em comparação com a profissão médica (que, recorde-se, tem como características ser ensinada e desenvolvida no contexto de um ensino formalizado, ter uma finalidade socialmente útil, organizar-se em associações e ter um caráter altruísta), a atividade do DIM requer, por norma, formação de nível superior, mas que não é exclusivista ou específica; a sua eventual finalidade socialmente útil não se constitui como um dos aspetos mais destacados; é organizada de forma subalterna (no Brasil, os propagandistas de laboratório têm sindicato independente) pois quem dita as regras da profissão são as entidades de quem o DIM depende (médicos, empregadores, etc.)2; e o caráter altruísta também não parece ser uma das suas principais características.

Método e Resultados

Com base no retrato pouco abonatório do profissional da informação médica que parece ser traçado pela classe médica com que esse profissional lida diariamente, propõe-se verificar até que ponto ele é mantido ou modificado na representação desses profissionais em séries de televisão e filmes. Optou-se por escolher apenas obras de ficção que tivessem um ou mais DIM como protagonistas principais e em que a atividade profissional assumisse um papel relevante para a trama. Todas as séries e filmes que, embora contendo um ou mais DIM, não conferissem à personagem ou à atividade o destaque principal não foram considerados para esta análise, pelo facto de a informação médica servir apenas como adereço à trama e não como elemento central.

Para fazer um levantamento das obras a analisar, consultou-se o site do Internet Movie Database (IMDb), o maior banco de dados sobre filmes e séries de televisão. No motor de busca do site, fez-se uma pesquisa por filmes que integrassem na sua sinopse as expressões pharmaceutical sales representative ou delegado de informação médica. Relativamente à busca em português, não foram devolvidos quaisquer resultados, mas no que respeita aos termos em inglês foram apurados perto de 17.000, uma vez que o motor de busca incluía qualquer filme ou série que tivesse na sua sinopse uma daquelas palavras. Numa segunda busca, mais fina, limitou-se a pesquisa apenas à expressão pharmaceutical sales, tendo sido obtidos 8100 resultados. Procedeu-se então à análise das sinopses e verificou-se que a partir do resultado número trinta elas já não correspondiam a histórias com DIM, mas sim a enredos onde surgiam qualquer um dos dois termos da expressão pharmaceutical sales. Para identificar se isso era uma constante ou se se tratava de uma coincidência, fez-se a pesquisa aos mais de 8000 resultados sobrantes por amostragem, optando-se por consultar o resumo do enredo a cada cinquenta números. Caso fosse encontrado uma sinopse integrando a expressão pharmaceutical sales ter-se-ia concluído que a concentração nos primeiros trinta resultados tinha sido uma coincidência, e que poderia haver mais filmes ou séries elegíveis para este estudo nos outros resultados. Tal não sucedeu, pelo que se assumiu como viável a ideia de que apenas os trinta primeiros continham obras que interessavam para o trabalho.

As trinta sinopses foram analisadas e onze foram eliminadas por não se enquadrarem no âmbito deste estudo (embora contendo as palavras sales ou pharmaceutical, não se referiam a DIM, mas sim a farmacêuticos ou vendedores). Dos dezenove resultados restantes, treze pertencem a obras que estão anunciadas, mas que ainda não foram realizadas, ou de episódios e de séries onde surge um DIM, mas sem assumir qualquer protagonismo, além da simples referência à sua atividade profissional. O conjunto das obras que reuniu os critérios definidos para serem analisadas cifrou-se, por fim, em sete, sendo duas de séries e cinco de filmes (dois deles curtas-metragens). Desse conjunto, não foi possível visualizar dois dos filmes (um deles curta-metragem) e uma das séries, pelo que a análise para este estudo incidiu sobre três filmes e uma série (por coincidência as quatro obras em que o papel do DIM assume maior relevância e que exploram as várias facetas da atividade e do profissional em causa).

Para esta análise, procurou fazer-se o levantamento das principais características com que eram representados os DIM nos filmes e na série. Interessava perceber se existia coincidência com as características obtidas nos estudos com médicos, e que, recorde-se, se traduziam na apresentação cuidada; capacidade de comunicação, argumentação e persuasão do DIM para convencer o médico a prescrever; capacidade de estabelecer relacionamento; recurso a ofertas e brindes para facilitar o contacto; ocultação de informação ou informação enviesada. Cada uma das obras foi analisada e retiveram-se alguns aspetos que permitissem traçar o retrato do DIM, tendo elas depois sido sistematizadas na tabela 1.

Tabela 1- Sistematização de estereótipos encontrados nas obras analisadas

Filme/série

Estereótipos

 

Apresentação

Salário

Comunicador

Observador

Relacional

Mentiroso

Enviesa informação

Falta de ética

Pharmalarm

Sim

 ----

Sim

Sim

Sim

Sim

Sim

Sim

Side Effects

Sim

Sim

Sim

----

Sim

----

----

----

Love and other drugs

Sim

Sim

Sim

Sim

Sim

Sim

Sim

Sim

Rx

Sim

Sim

Sim

Sim

Sim

Sim

Sim

Sim

Fonte: elaboração própria

Começando pelo curta-metragem Pharmalarm3, de 2017, esse pequeno filme, realizado por Caitlin English, nos Estados Unidos, pretende retratar uma visita de uma DIM. Logo na primeira cena do filme, são destacadas as características relativas à sua boa apresentação – uma jovem bem vestida e muito bonita – e dá-se destaque à forma como ela utiliza a sua sensualidade para chamar a atenção do médico, conferindo alguma comicidade à cena a forma como o clínico não consegue disfarçar a sua atração pela jovem. O decurso da visita segue o roteiro referido nos artigos consultados que explicam a forma como acontecem as vistas dos DIM aos médicos: quebrar o gelo (a DIM elogia a família do médico, que vê numa fotografia em cima da secretária), apresentar os produtos e conseguir o compromisso ou a venda.

Percebe-se, durante a apresentação do portfólio dos produtos, que a DIM domina muito bem as técnicas de comunicação, contorna sem hesitação toda e qualquer objeção e observação que o clínico faz aos produtos, e enviesa, oculta ou deturpa a informação que transmite ao médico. Durante o filme, o realizador volta mais uma vez a explorar a sensualidade da DIM, que utiliza os seus atributos físicos para conseguir prender a atenção do médico. Na parte final da visita, o médico afirma que não pretende adquirir qualquer um dos produtos apresentados, mas a delegada implora que a ajude, pois aquela é a última oportunidade que tem para continuar a trabalhar como DIM, destacando-se aqui a estratégia de apelar à compaixão do médico para ajudar a preservar o emprego, estratégia que também foi referida nos estudos consultados como sendo uma das utilizadas pelos delegados na sua atividade diária (MELO; BRAGA, 2003; SHAUGHNESSY; SLAWSON; BENNETT, 1994). Por último, vê-se a DIM a manipular as quantidades encomendadas pelo médico e o filme termina com ela a recusar um convite para um encontro que o médico lhe endereça.

Desse primeiro filme, constata-se que praticamente todos os estereótipos identificados relativamente aos DIM são aqui reproduzidos, e mais um que não se encontrou na literatura: o de recorrer à sedução como estratégia para conseguir captar a atenção do médico, o que não concorre para traçar um retrato muito abonatório desse profissional.

O segundo filme, intitulado Side Effects, de 2005, é uma comédia romântica realizada nos Estados Unidos por Kathleen Slattery-Moschkau, que procura representar a revolta de uma DIM contra toda a lógica da indústria farmacêutica. O filme é apresentado como sendo baseado numa história real. A protagonista é uma DIM que constata estar a desempenhar uma função baseada em falsidade e manipulação de informação, algo com que decide romper, passando a providenciar aos médicos somente a informação real, contrariando a estratégia da empresa, não apenas dos benefícios dos produtos, mas também dos seus aspetos menos favoráveis e dos possíveis efeitos secundários indesejados. O filme ressalta a imagem negativa e a desvalorização que a própria personagem faz dos profissionais da informação médica, apresentando-os como não possuindo formação adequada para a função (a personagem faz questão de informar os espetadores que, como habilitações para o cargo, tem uma formação em Ciência Política, como se pode observar numa das cenas do trailer do filme4), como colocando a sua ambição pessoal em primeiro lugar, mesmo que para tal tenham de assumir posturas pouco éticas, e como pertencendo a uma indústria que não se importa em colocar conscientemente pessoas em risco, ocultando a informação de efeitos nocivos que sabe que os fármacos podem infligir aos doentes.

No filme, a personagem informa que as características essenciais para se conseguir ser um DIM são a boa apresentação, empatia/facilidade de relacionamento e comunicação, mais uma vez em linha com o que os estudos consultados também indicaram. Interessa ainda destacar desse filme as cenas que retratam momentos da atividade profissional da personagem, nas quais se consegue observar a forma subalterna como a DIM é tratada pelo pessoal clínico, percebendo-se que o verdadeiro interesse do médico não se relaciona com a informação que possa obter com a visita, mas sim com as ofertas de materiais, participação em congressos ou refeições às quais terá acesso.

O último filme analisado intitula-se Love and other drugs, de 2010. Foi, mais uma vez, realizado nos EUA, desta feita por Edward Zwick, e é uma história sobre um DIM ambicioso e com muito sucesso profissional que se envolve com outra personagem, que vive uma doença rara, para a qual não existe cura. Um dos aspetos mais curiosos desse filme é o facto de reproduzir os vários estereótipos da atividade do DIM ao mesmo tempo, destacando a importância que a indústria farmacêutica tem na investigação de novas drogas para curar e tratar doenças raras, como a que é apresentada na história.

Relativamente ao DIM, ele é apresentado como sendo um vendedor de uma loja de eletrodomésticos que decide enveredar pela informação médica, pois quer ganhar muito dinheiro (altruísmo e o bem comum perdem para o interesse particular). Da parte da família, a decisão é mal recebida, pois o pai, médico, assume uma postura distante para com a informação médica, desvalorizando ou mesmo diminuindo a razão de existir de tal atividade. O DIM é, mais uma vez, aqui apresentado como alguém muito comunicativo e que habilmente contorna os obstáculos que encontra para conseguir contactar os seus clientes (médicos) e convencê-los a prescreverem os seus produtos. Para tal, recorre, de forma ardilosa, a um conjunto de estratégias para conseguir tomar a dianteira em relação aos seus concorrentes. Seduz as enfermeiras e assistentes dos médicos para conseguir falar com eles, mesmo nos casos em que esses se recusam a atendê-lo, e rouba as amostras dos concorrentes, substituindo-as por outras de produtos seus. Destacam-se ainda as cenas que se passam num bar habitualmente frequentado por médicos e pelos DIM que ali vão com a intenção de tentar estreitar relações de amizade com médicos, investindo no marketing relacional. Além do protagonista do filme ser apresentado como alguém que utiliza a sedução como ferramenta para conseguir os seus objetivos, uma outra personagem, representando uma DIM, surge nesse bar como sendo uma caçadora de médicos, que os procura conquistar como forma de conseguir obter prestígio e dinheiro, mais uma vez fazendo da sedução um dos recursos utilizados pelos DIM na sua atividade.

Por último, faz-se a análise da série de televisão norte-americana intitulada Rx, de 2007, realizada por Frank Pinnock. No IMDb, a série é apresentada como um acompanhamento da vida pessoal e profissional insana de cinco DIM5.

As cenas que supostamente representam o dia a dia de um DIM traçam o mais negativo retrato desse profissional. Os títulos de alguns episódios são, por si só, ilustrativos do que se afirma, como no caso do episódio 4 (Business and Pleasure), do 5 (Are you a hunter?), do 6 (No ilegal drugs), e do 7 (Build rapport), por exemplo. Logo no primeiro episódio da série, uma nova DIM, que acabou de ingressar na empresa, falha num teste de produto que realizou e é alertada pelo formador para o facto de ter de estudar mais, caso contrário não poderá trabalhar naquela companhia. A DIM resolve a situação perguntando ao formador se não existe outra forma de tratar o problema, ao mesmo tempo em que desaperta os botões da camisa. A insinuação que o sexo é uma ferramenta de trabalho para os DIM volta aqui a ser utilizada. No episódio 4 (Business and Pleasure), esse assunto dá inclusivamente mote à história, mostrando como um dos DIM da história faz negócio com uma médica, mantendo com ela relações sexuais no consultório.

Outros estereótipos relativos aos DIM são também abordados na série, nomeadamente o recurso às ofertas para conseguirem captar a atenção dos médicos e a manipulação da informação para aumentar as vendas – como no caso do episódio 3 (Keep doing it), em que a direção de vendas do laboratório farmacêutico informa os colaboradores que o principal medicamento teve um estudo desfavorável que coloca questões importantes em relação à sua segurança, instruindo-os para venderem o mais que puderem antes de o estudo ser divulgado. À exceção de uma das protagonistas, que é apresentada como profissional competente, pontual e responsável, sem deixar, no entanto, de destacar a sua faceta consumista, decorrente do dinheiro que a sua atividade lhe permite ter, todas as restantes personagens são estereotipadas, sendo representadas como manipuladoras, más profissionais e recorrendo a comportamentos eticamente reprováveis. Um dos DIM, por exemplo, nunca surge na série a trabalhar, mas sim em casa ou no restaurante a almoçar com amigos, refeição que paga com o cartão corporativo e cuja fatura depois apresenta à empresa como sendo uma despesa de representação com médicos.

A partir da análise da representação que é feita do profissional da informação médica nessas quatro obras de ficção, pode concluir-se que todos os estereótipos encontrados nos estudos feitos relativamente à relação e influência dos DIM sobre os médicos e seus hábitos de prescrição se encontram nelas reproduzidos. Acresce que, da observação desses filmes e dessa série, um outro estereótipo surge, apresentando os profissionais da informação médica, quer femininos quer masculinos, como utilizando a sedução e abordagem sexual como forma de conseguir conquistar a prescrição dos seus clientes, o que confere uma carga ainda mais negativa à imagem profissional dessa atividade.

Considerações finais

A Sociologia das profissões, embora sofrendo diferentes abordagens teóricas ao longo do tempo, mantém hodiernamente algumas atividades no topo da hierarquia das profissões, com especial destaque para o caso da Medicina. No entanto, profissões existem que, embora trabalhando em estreita ligação com a atividade médica, parecem não conseguir ter a mesma imagem pública de respeitabilidade e prestígio, como é o caso de enfermeiros, técnicos de saúde e farmacêuticos, por exemplo, embora, ainda assim, ocupem uma posição respeitável na hierarquia profissional. Existem depois casos de atividades profissionais, como a de delegado de informação médica, que poderiam, pelas suas especificidades, ser inseridas numa situação de profissão, mas cujo reconhecimento público não parece ir nesse sentido.

Este trabalho teve como propósito verificar qual a imagem que a atividade do DIM tem perante a sociedade. Através da consulta de diversos estudos feitos com médicos foi possível apurar que existe alguma desconfiança relativamente à validade e pertinência da atividade prestada por esses profissionais. O retrato que resulta dessa análise é, pois, de uma atividade não muito reconhecida e em que são destacadas características mais negativas do que positivas da atividade e do profissional em questão.

Assumindo que filmes e séries de televisão procuram fazer retratos da realidade, propôs-se fazer um levantamento da forma como o DIM é representado nessas obras. Os resultados da análise permitem perceber que todos os estereótipos apontados nos estudos com médicos se encontram reproduzidos nas obras de ficção. Mas os filmes e séries apresentam outro aspeto que não apareceu refletido em qualquer dos estudos com médicos que é o recurso à sedução como ferramenta de trabalho tanto da parte das delegadas como dos delegados. Esta questão contribui, em grande medida, para traçar uma imagem ainda mais negativa deste profissional, e que pode contribuir para a sua estigmatização.

Num momento em que os DIM, por via da pandemia associada à Covid-19, foram dos primeiros profissionais a serem afetados no exercício da sua atividade, uma vez que, naturalmente, deixaram de poder aceder às unidades de saúde para contactar os seus clientes, o sector depara-se, neste momento, com desafios referentes ao retorno ao trabalho num período ainda afetado pela pandemia. Nesse sentido, transmitir uma imagem positiva dessa atividade e desses profissionais torna-se essencial para que possa ser reconhecida a sua importância e validade. O retrato desse profissional, que filmes e séries de televisão comunicam ao público, parece estar revestido da atualidade desse trabalho, uma vez que, mais do que saber se a informação médica é profissão, ocupação ou outra coisa qualquer, importa a esses profissionais conseguirem refazer a sua imagem pública e mostrar que não são aquilo que é transmitido, caso contrário problemas de legitimidade profissional respeitante a essa atividade e a esses profissionais poderão ser colocados.

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Filmes

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PHARMALARM por Caitlin English, 2017. 1 vídeo (5 min). Disponível em: https://vimeo.com/194199759. Acesso em: 28 jan. 2022.

RX keep doing it por Frank Pinnock, 2007. 1 vídeo (5.34 minutos). Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=WcHesMh0uo&list=PLC8103543CB0E9712&index=3&ab_channel=STRIKEdotTV. Acesso em: 28 jan. 2022.

RX business and pleasure por Frank Pinnock, 2007. 1 vídeo (6.23 minutos). Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=5WUgBA5Lnhc&list=PLC8103543CB0E9712&index=4&ab_channel=STRIKEdotTV. Acesso em: 28 jan. 2022.

RX are you a hunter? por Frank Pinnock. 1 vídeo (7.17 minutos). Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=hGVIkIXTOSU&list=PLC8103543CB0E9712&index=5. Acesso em: 28 jan. 2022.

RX no illegal drugs por Frank Pinnock. 1 vídeo (4.50 minutos). Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=ikLEvAKRqmw&list=PLC8103543CB0E9712&index=6&ab_channel=STRIKEdotTV. Acesso em: 28 jan. 2022.

RX build rapport por Frank Pinnock. 1 vídeo (4.52 minutos). Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=CTphD2v4i1A&list=PLC8103543CB0E9712&index=7&ab_channel=STRIKEdotTV. Acesso em: 28 jan. 2022.

SIDE effects. Warner DVD, 2011. 1 disco DVD (ca. 90 min).

Recebido em: 21/07/2020

Aceito em: 06/07/2021


1* Bolseiro de doutoramento de Sociologia na Faculdade de Economia/Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra, Portugal, com bolsa da FCT- Fundação para a Ciência e Desenvolvimento (2021.06792.BD/Manuel Soares). E-mail: manuelpsoares@ces.uc.pt

No Brasil, o delegado de informação médica é conhecido como propagandista de laboratório. Para este artigo, contudo, adota-se a nomenclatura utilizada em Portugal e que, doravante, será representada pela sigla DIM.

2 A título de exemplo, refira-se que em Portugal apenas em 2021, e decorrente dos graves impactos da pandemia da Covid-19, que praticamente impediram os DIM de poderem trabalhar nas instituições de saúde, se gerou um movimento de DIM de caráter sindical, a Appimédia, que procura servir como plataforma de entendimento entre esses profissionais e as estruturas organizativas das instituições de saúde. Até aqui, o DIM não possuía uma associação sindical própria, integrando o Sindicato dos Trabalhadores da Química, Farmacêutica, Petróleo e Gás (Sinquifa).

3 Este filme pode ser visto em https://vimeo.com/194199759. Acesso em: 20 jul. 2020.

4 A cena pode ser vista em https://www.imdb.com/video/vi1149436185?playlistId=tt0438427&ref_=tt_ov_vi (00:35 até 00:38). Acesso em: 01 jul. 2021.

5 Informação obtida em https://www.imdb.com/title/tt0857337/?ref_=fn_al_tt_2. Acesso em: 20 jul. 2020.

ISSN 1517-5901 (online)

POLÍTICA & TRABALHO

Revista de Ciências Sociais, nº 55, Junho/Dezembro de 2021, p. 201-217

A PROPOSTA EDUCACIONAL DO BRIGADEIRO EDUARDO GOMES

COMO CANDIDATO À PRESIDÊNCIA DA REPÚBLICA

PELA UDN, EM 1945

THE EDUCATIONAL PROPOSAL OF BRIGADIER EDUARDO GOMES

AS CANDIDATE FOR THE PRESIDENCY OF THE REPUBLIC

BY THE UDN, IN 1945

____________________________________

Lucas Mateus Vieira de Godoy Stringuetti*1

Resumo

Este artigo tem como objetivo analisar como o brigadeiro Eduardo Gomes (1896-1981) tratou a temática da educação no Brasil, por meio de seus discursos sobre o assunto, pronunciados no município de Salvador, em 1945, ano em que foi candidato à Presidência da República pelo partido da União Democrática Nacional (UDN). O contexto histórico de 1945 é muito importante, uma vez que tivemos novamente eleições políticas no Brasil, depois de quinze anos de governo Vargas. Utilizamos como fonte para nossa análise a obra Campanha de Libertação de autoria do próprio Eduardo Gomes, publicada em 1946, que contém os discursos políticos do candidato nas eleições de 1945. A análise dos discursos de Eduardo Gomes sobre a educação nos ajuda a entender o momento político, social e econômico que o país vivia naquele ano, além de trazer reflexões sobre as ideias revolucionárias para a temática em questão defendidas por ele.

Palavras-chave: Eduardo Gomes. Discursos. Educação. Eleições de 1945.

Abstract

This article aims to analyze how Brigadier Eduardo Gomes (1896-1981) dealt with the theme of education in Brazil, through his speeches on the subject, delivered in the municipality of Salvador, in 1945, the year in which he was the candidate to the Presidency of the Republic by the party of the National Democratic Union (UDN). The historical context of 1945 is very important, since we once again had political elections in Brazil, after fifteen years under the Vargas government. We used as source for our analysis, the work Campaign for Liberation, authored by Eduardo Gomes himself, published in 1946, in which they contain the candidate’s political speeches in the 1945 elections. The analysis of Eduardo Gomes’ speeches on education, helps us to understand the political, social and economic moment that the country lived in that year, besides bringing reflections on the revolutionary ideas for the theme in question defended by the Brigadier.

Keywords: Eduardo Gomes. Speeches. Education. Elections of 1945.


1* Graduado em História (2014) e Letras (2019) pela Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho (Unesp), campus de Assis. Graduando em Pedagogia e Educação Profissional e Tecnológica (EPT) pelo Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia de São Paulo (IFSP), campus de Boituva. Mestre (2018) em História e Sociedade pela Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho e doutorando em História e Sociedade pela mesma instituição. Bolsista da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes). E-mail: lucas.stringuetti@hotmail.com

ISSN 1517-5901 (online)

POLÍTICA & TRABALHO

Revista de Ciências Sociais, nº 55, Junho/Dezembro de 2021, p. 218-234

Introdução1

Eduardo Gomes (1896-1981) foi um importante personagem político-militar do século XX. Nascido em Petrópolis, no Rio de Janeiro, participou de grandes acontecimentos que marcaram a história do país. Foi um dos líderes da chamada Revolta dos 18 do Forte de Copacabana, ocorrida no Rio de Janeiro, em 1922. Posteriormente, participou da Revolta Paulista de 1924, em São Paulo; da Revolução de 1930 e de 1932, lutando ao lado do governo; lutou contra a Revolta Comunista de 1935; concorreu nas eleições de 19452 e 1950 à Presidência da República pelo partido da União Democrática Nacional (UDN), além de ter sido Ministro da Aeronáutica por duas vezes: nos governos de Café Filho (1954-1955) e Carlos Luz (1955), e Castelo Branco (1965-1967). Tornou-se, por sua reputação na Aeronáutica, no ano de 1984, Patrono da Força Aérea Brasileira.

Por ter ocupado posições de destaque, participado de movimentos revolucionários e políticos marcantes para o país, fizemos aqui uma análise dos discursos de Eduardo Gomes sobre a educação, proferidos na cidade de Salvador, em 1945, enquanto candidato à Presidência da República pela UDN, num momento de grande agitação nacional pela volta da democracia, depois de quinze anos de Vargas no poder.

Utilizamos como fonte para nossas análises a obra Campanha de Libertação, de autoria do próprio Eduardo Gomes, publicada em 1946, a qual contém os discursos do candidato nas eleições para à Presidência da República, pela UDN, em 1945. A análise dos discursos de Eduardo Gomes, com a temática da educação, em 1945, nos possibilita compreender o momento político, social, econômico e, principalmente, educacional que o Brasil vivia naquele momento histórico, além de trazer reflexões sobre as ideias revolucionárias para o tema em questão, que Eduardo Gomes defendia e que, inclusive, se associavam em diversos momentos com a proposta defendida pelos idealizadores do Manifesto dos Pioneiros da Educação Nova, escrito em 1932.

As propostas de governo, bem como as soluções apresentadas por Eduardo Gomes, nos mostram que a educação era considerada fundamental pelo candidato, que defendia um modelo educacional mais igualitário, desde a educação primária até o ensino superior. Além disso, observamos as críticas feitas por Eduardo Gomes ao governo Vargas, especificamente as medidas adotadas durante o período em que ficou no poder.

Como aporte metodológico para a análise dos discursos em questão, seguiremos as ideias de Albuquerque Júnior (2017), que afirma que, ao utilizarmos um discurso ou pronunciamento como fonte para nossa pesquisa, não devemos atentar apenas ao que se diz sobre o passado, mas devemos prestar atenção no modo como esse discurso foi produzido, em qual momento histórico, por quem e em que contexto político, econômico e social ele foi realizado.

Segundo Albuquerque Júnior (2017, p. 235)

[...] somente ao pronunciar ou escrever esses discursos e pronunciamentos, ou seja, somente ao expressar suas ideias, pensamentos, emoções, desejos, afetos, posições políticas, éticas, estéticas, morais ou religiosas, é que o emissor vai adquirindo uma dada identidade de sujeito, vai emergindo como uma figura que costumamos chamar de Eu.

Para analisarmos os discursos de Eduardo Gomes seguiremos a noção de análise externa e interna da fonte em questão. Dessa forma, a análise externa de um determinado discurso ou pronunciamento incide em nos perguntarmos sobre as relações que o discurso apresenta diante do tempo em que foi escrito ou pronunciado, o espaço, a sociedade, a cultura, as relações políticas e econômicas do período (ALBUQUERQUE JÚNIOR, 2017). Assim,

[...] o pesquisador precisa saber com precisão a data e a localização espacial, a inequívoca atribuição de autoria e inquirir sobre o momento histórico e em que circunstâncias o pronunciamento ou o discurso veio à luz a pretexto de que, em que situação e com quais objetivos ele foi emitido. (ALBUQUERQUE JÚNIOR, 2017, p. 236).

Já a análise interna seria o fato de o historiador atentar para o texto do discurso e suas regras de constituição e de produção, regras gramaticais e, se possível, comparar com os discursos e pronunciamentos do mesmo momento histórico para averiguarmos as normas “[...] de produção de conceitos, as regras de produção de enunciados, os temas e as estratégias que presidem a elaboração dos discursos em um dado momento” (ALBUQUERQUE, 2017, p. 238). Ao mesmo tempo, como nossa fonte é um livro relativo ao período em que os discursos foram proferidos, devemos prestar atenção ao suporte do discurso, pois ele pode conter também informações preciosas para sua análise. Assim devemos nos perguntar, será que alguém ajudou a organizar ou escrever os discursos em questão? A obra foi financiada por alguém ou por algum órgão? Por que os discursos de Eduardo Gomes foram publicados em livro, uma vez que o candidato não ganhou a eleição de 1945? Todas essas questões são pertinentes para a análise da fonte em si.

É importante também, segundo Albuquerque Júnior (٢٠١٧, p. 242): “Prestar atenção no modo como o autor escreve ou diz também a si mesmo, como vai construindo imagens de si e imagens dos outros, do seu espaço, de seu tempo, do tema que está sendo tratado”.

Ao tratar sobre fontes documentais, Bacellar (2019) também nos deixa importante lição ao afirmar que devemos sempre contextualizar o documento que se coleta e atentar-se também ao significado das palavras e impressões da fonte, o que é lição primordial ao historiador.

As eleições de 1945 e a fonte em questão

É importante destacarmos algumas questões iniciais que fazem parte da análise da fonte, como o contexto histórico de 1945. Assim, como já ressaltado, naquele ano as eleições para presidente da República foram muito importantes, pois esperava-se a vitória de um candidato que daria novos rumos ao país, depois de quinze anos de Vargas no poder. Era encarado como um processo de redemocratização.

A UDN, inicialmente, configurava-se como um partido representado por diversos grupos políticos com ideologias diferentes, tanto do socialismo de esquerda, quanto de concepções políticas de direita. Desta forma, o partido reunia nomes como:

Arthur Bernardes, Júlio Prestes, Borges de Medeiros, Prado Kelly, Otávio Mangabeira, Oswaldo Aranha, Adhemar de Barros, Graciliano Ramos, Evaristo de Morais Filho, Isidoro Dias Lopes, a família Caiado, entre tantos outros, tinham o apoio da Esquerda Democrática e de comunistas dissidentes da linha oficial do PCB – todos, no entanto, com os mesmos anseios políticos: além do fim do Estado Novo e da luta pela democratização do país, nutriam um combate sem tréguas a Vargas. (FERREIRA, ٢020, p. 17-18).

Nesse momento histórico, Eduardo Gomes era visto como a personificação da democracia, foi construída uma imagem que vinculava o Brigadeiro aos valores democráticos. Sua escolha como candidato à Presidência da República pela UDN foi pensada, pois precisava-se de um candidato com chances de ganhar a eleição. Entre alguns critérios para sua escolha, estão o seu passado heroico, com participações em movimentos revolucionários e políticos de lutas em favor do país. Além disso, tinha a confiança da Força Aérea Brasileira, das Forças Armadas Americanas que se encontravam no Brasil e do próprio Estados Unidos3, principalmente por ter comandado no início dos anos 1940, as I e II Zonas Aéreas (ZA), sediadas em Belém e Recife. Cabe destacar que a construção das bases aéreas contou com apoio dos recursos norte-americanos4. Concomitantemente, alguns dias antes de deixar o comando da I ZA, em janeiro de 1942, Eduardo Gomes acabou sendo nomeado chefe da Diretoria de Rotas Aéreas, que tinha acabado de ser criada, acumulando essa chefia com o comando da II ZA. Com a simpatia que possuía da Aeronáutica e das Forças Armadas americanas, poderia assumir a Presidência da República, caso ganhasse, sem qualquer perigo de sofrer uma tentativa de golpe, uma vez que Vargas já havia feito isso. Outros fatores que pesaram na escolha de Eduardo Gomes para ser o candidato à Presidência da República pela UDN foram: ser católico e, inclusive, ter combatido os comunistas em 1935, no episódio conhecido como Revolta Comunista. Esses dois motivos credenciavam o Brigadeiro a não compactuar com os comunistas caso ocorresse uma outra tentativa de golpe por partes deles. Além disso, Eduardo Gomes era anticomunista e a UDN mostrou-se ao longo do tempo como um partido de ideias liberais, autoritárias, progressistas e conservadoras5. Reunindo todos esses elementos, o Brigadeiro seria o candidato ideal da UDN.

Eduardo Gomes também tinha grande apoio de jornais e rádios do país, mas acreditamos que não obteve a vitória devido a alguns episódios que consideramos relevantes, como: Dutra foi apoiado de última hora por Vargas; os discursos de Eduardo Gomes tinham muitos termos jurídicos difíceis, o que não facilitava o seu diálogo com os mais humildes; ele não era tão simpático quanto Vargas, este tinha o apoio da classe trabalhadora, o contrário de Eduardo Gomes; além disso, faltava-lhe experiência política. O episódio dos marmiteiros6 também contribuiu muito para a sua derrota.

Os candidatos à Presidência da República em 1945 foram Eurico Gaspar Dutra, que saiu vitorioso, conquistando 3.251.507 votos e era do Partido Social Democrático (PSD), que tinha o apoio do PTB; Eduardo Gomes, da União Democrática Nacional (UDN), que obteve 2.039.341 votos; Yedo Fiuza pelo Partido Comunista do Brasil (PCB), com 569.818 votos e Mário Rolim Teles pelo Partido Agrário Nacional (PAN), com 10.001 votos (CHACON, 1998).

Em relação à fonte, em forma de livro, que contém, dentre tantos temas discursados por Eduardo Gomes nas eleições de 1945, seu pronunciamento sobre a educação, percebemos que a obra foi publicada acima de tudo para preservar e manter viva a memória do candidato. O livro foi publicado pela Livraria Martins Editora, que foi uma editora de São Paulo, fundada em 1937, tendo encerrado suas atividades em 1974. Logo na primeira orelha da obra, a editora valoriza o passado heroico de Eduardo Gomes, dando destaque a sua participação no episódio conhecido como a Revolta dos 18 do Forte de Copacabana, em 1922. Na segunda orelha da obra, observamos que mesmo derrotado nas eleições de 1945, Eduardo Gomes é descrito pela editora como um homem que lutou pela restituição da crença nos princípios do direito, da justiça e da liberdade, acreditando sempre no desenvolvimento do sistema político e econômico do Brasil. Além disso, a editora acreditava naquele momento que o livro trazia a público uma verdadeira coletânea de estudos dos mais importantes problemas do país, escritos por alguém que deixou exemplos e conselhos, os quais perdurariam através de anos, sendo motivo de orgulho para uma nação.

Apesar do caráter laudatório da obra, realizado pela editora e seus financiadores, o livro é importante pois contém os discursos de Eduardo Gomes, enquanto candidato à Presidência da República em 1945, possuindo assuntos que retratam os principais problemas políticos da época; um deles, a educação nacional, sendo de fundamental interesse para o historiador. Além disso, de acordo com Drumond (2011)7, José Eduardo do Prado Kelly, que foi um advogado, jurista, poeta, magistrado brasileiro e jornalista, foi o redator dos discursos de Eduardo Gomes nas eleições. Nesse sentido, cabe refletirmos: será que os discursos de Eduardo Gomes sobre a temática da educação, no ano de 1945, contêm também elementos de ordem jurídica? Ao mesmo tempo, como Eduardo Gomes constrói a sua imagem, a de outros indivíduos de sua época, como retrata o seu tempo e o tema que está sendo discutido?

O discurso de Eduardo Gomes sobre a educação brasileira: críticas e soluções

Discursando no município de Salvador, em 25 de agosto de 1945, sobre a temática da educação no Brasil, Eduardo Gomes criticou a grande taxa de analfabetismo no país, que privava os homens de terem acesso ao conhecimento, tornando-os massas de indivíduos alheios aos assuntos gerais. O candidato se preocupava com a população mais carente, que não conseguia compreender os debates esclarecedores.

Somos uma nação de 45 milhões de habitantes. Dêstes, quase dois terços são analfabetos. Sabeis o que significa êste enunciado? E’ a diminuição das prerrogativas e das possibilidades do homem, privado de enriquecer a sua inteligência com os tesouros da cultura. E’ a sua insignificância como fator de produção, a refletir-se na minguada capacidade econômica do país. E’ a crise permanente na vida política de uma democracia, na qual as grandes massas se alheiam dos assuntos gerais, por não lhe poderem acompanhar os debates esclarecedores. (GOMES, 1946, p. 63).

Abordando a questão do ensino, Eduardo Gomes discorreu sobre sua importância, quando teve início o movimento renovador para a educação na década de 1920, tendo se estendido até 1937.

Naquele período, o pensamento educacional se afirmou uma das mais robustas manifestações da inteligência brasileira, não só no seu potencial idealístico, mas também na sua aguda visão realizadora. Líderes autênticos, ensaístas lúcidos, administradores corajosos marcaram as nossas possibilidades no difícil setor. Divulgou-se uma promissora bibliografia de temas pedagógicos. Tudo revelava o advento de nova era para a educação nacional, fundada no pronunciamento livre e na estimulante cooperação dos especialistas. (GOMES, 1946, p. 63).

Nesse sentido, o candidato defendia a importância do escolanovismo, que tem origem no movimento em prol de uma educação nova nos anos de 1920, com a reforma de Sampaio Dória em 1920, a Semana de Arte Moderna em 1922 e, também, a criação da Associação Brasileira de Educação, em 1924. Por meio dessa associação, através de conferências e debates, os educadores discutiam, criticavam e apresentavam medidas para os problemas educacionais do país (FGV CPDOC, 2020).

No entanto, com o lançamento do Manifesto dos Pioneiros da Educação Nova, em 1932, houve pela primeira vez um plano de ação para se pensar nas mudanças profundas da estrutura do ensino brasileiro, que, se por um lado, obteve incompreensões e hostilidades, por outro, foram inúmeras as aprovações provenientes de quase todos os estados e bem significativo o seu acolhimento, tanto pelos meios educacionais como pela imprensa (AZEVEDO, 1957).

O Manifesto foi escrito por Fernando de Azevedo e assinado por 26 intelectuais que, além de serem estudiosos da educação, estavam realmente preocupados com o assunto. Fernando de Azevedo foi um educador, professor, crítico, ensaísta e sociólogo brasileiro. Entre os signatários estava Anísio Spinola Teixeira, que obteve, em 1929, o título de mestre em educação no Teacher’s College da Universidade de Colúmbia, em Nova York, além de ter assumido a cadeira de filosofia e história da educação na Escola Normal de Salvador. No ano de 1946, foi nomeado Conselheiro Geral da Unesco e entre tantos feitos participou dos intensos debates no fim dos anos 1950 para a implantação da Lei de Diretrizes e Bases. Também estavam entre os assinantes do Manifesto, Manuel Berström Lourenço Filho, que foi educador e pedagogista brasileiro e, Cecília Meireles, famosa poetisa, professora, jornalista e pintora, além de outros intelectuais.

Como observamos, Eduardo Gomes, em seu discurso no município de Salvador como candidato à Presidência da República em 1945, defendeu a importância do escolanovismo – que ganhou impulso na década de 1930, com a divulgação do Manifesto – para se pensar uma reforma educacional. Ao mesmo tempo, um fato importante foi o apoio de Anísio Teixeira à candidatura do Brigadeiro em 1945, que defendeu o plano de governo de Eduardo Gomes para a área da educação.

Em uma entrevista concedida por Teixeira à Carlos Lacerda, na Bahia, no jornal Diário Carioca, o educador comentou sobre o plano de governo de Eduardo Gomes:

O seu programa não sómente encerra a essencia das reivindicações de há muito pregadas e exigidas pelos líderes da educação, como forra-as do prestígio necessário para serem levadas a cabo, sem as prevenções e as suspeitas das grandes correntes conservadoras que, de um modo ou de outro, têm contribuído, entre nós, para fazer da educação pública uma triste melancólica farsa. (TEIXEIRA, 1945, p. 3).

Para Teixeira, Eduardo Gomes acentuava em sua campanha os reais problemas educacionais e destacava que a educação seria o problema básico de seu governo (TEIXEIRA, 1945).

Teixeira também afirmou que Eduardo Gomes propunha uma educação mais democrática e enxergava que a educação e a democracia eram termos correspondentes. Nesse sentido, o educador não só apoiava o plano de governo do Brigadeiro, voltado para a educação, mas também a volta da democracia.

Os princípios gerais que dominam o estudo do brigadeiro Eduardo Gomes revelam que o candidato democrático compreende o problema com essa latitude e esse alcance. Não estamos à frente das antigas soluções simplistas, mas de alguem, cujas convicções democráticas são sinceras e honestas e que percebe que educação e democracia são termos correlatos, podendo-se admitir que o gráu de democracia em qualquer comunidade se medirá pelo gráu de educação que houver atingido. (TEIXEIRA, 1945, p. 3).

Retomando o pronunciamento de Eduardo Gomes, em 1945, na cidade de Salvador, o candidato teceu duras críticas à educação na carta de 1937, afirmando seus objetivos fascistas, comentando que foi suprimido o princípio da liberdade de cátedra. Destacou também a questão da obrigação dos poderes públicos de oferecerem escolas àqueles que não podiam pagar pelo ensino num estabelecimento particular e o dever de ocorrer na escola a contribuição econômica dos mais favorecidos em favor dos necessitados, o que gerava mais desigualdades sociais, enfatizando ainda mais a divisão entre ricos e pobres. Realmente, a Constituição de 1937 estabelecia isso, fato que nos mostra o conhecimento da lei apresentado pelo Brigadeiro em seus discursos ou, como já indicamos acima, da contribuição de Prado Kelly aos seus discursos, pois, além de ajudar a redigir seus textos, era um advogado e tinha grande conhecimento das leis.

Com relação à obrigação dos poderes públicos de oferecem escolas àqueles que não podiam pagar, a Constituição de 1937 afirma o seguinte:

Art 129 – A infância e à juventude, a que faltarem os recursos necessários à educação em instituições particulares, é dever da Nação, dos Estados e dos Municípios assegurar, pela fundação de instituições públicas de ensino em todos os seus graus, a possibilidade de receber uma educação adequada às suas faculdades, aptidões e tendências vocacionais. (BRASIL, 1937, n.p.).

No que diz respeito à afirmação de Gomes (1946), em que os mais favorecidos deveriam contribuir economicamente com os mais necessitados, pensando no ensino primário obrigatório e gratuito no governo Vargas, a Constituição de 1937 afirma:

Art 130 – O ensino primário é obrigatório e gratuito. A gratuidade, porém, não exclui o dever de solidariedade dos menos para com os mais necessitados; assim, por ocasião da matrícula, será exigida aos que não alegarem, ou notoriamente não puderem alegar escassez de recursos, uma contribuição módica e mensal para a caixa escolar. (BRASIL, 1937, n.p.).

Eduardo Gomes (1946) ainda criticou a crescente interferência do Estado e a implantação, pelo governo varguista, do fascismo no ensino, em que os órgãos passaram a servir unicamente aos fins partidários e unipessoais da ditadura. O candidato também abordou a ausência de liberdade de crítica, em que apenas a opinião das autoridades do governo Vargas era valorizada. Ao mesmo tempo, o candidato fez dura crítica à difusão da imagem de Vargas nas escolas, a fim de glorificá-lo.

O fascismo educacional caracterizou-se nas seguintes realidades incontestáveis: a) ausência de liberdade de crítica, substituindo, apenas, a opinião das autoridades, a lisonja ao Poder, mesmo a custo da mentira e do artifício, a rotina, as atitudes subservientes, a negação da integridade moral; b) o nacionalismo político, não identificado com o patriotismo nobre e construtivo, e sim com o irrestrito apoio aos governantes, com a intangibilidade majestática do guia da Nação, com o impedimento de qualquer apreciação que não fosse panegírica; irmanado ao nazismo na sublimação da fôrça e no apêlo aos recursos da violência; confundido com o personalismo, na proliferação, pelas escolas, dos retratos do Ditador, nas preleções sôbre a sua “providencialidade”, nas biografias encomiásticas, em todos os estilos, nas manifestações de crianças coagidas, nas paredes de adolescentes, na utilização leviana dos escolares para a aparente glorificação de um homem; [...]. (GOMES, 1946, p. 65).

No que diz respeito a questão do analfabetismo no Brasil, Eduardo Gomes (1946) também argumentou que no período de 1937 a 1942, o país teve um aparente crescimento do sistema educacional, porém expôs dados criticando a incompetência administrativa do Estado para resolver o problema do analfabetismo, visto que a melhora foi mínima.

É importante salientar a influência da Revolução Industrial no processo de expansão de ensino. Assim, desde a segunda metade do século XIX, os países desenvolvidos vinham se preocupando com a implantação da escola pública, universal e gratuita, e o Estado adquiriu papel central na área da educação. As mudanças que ocorreram nas relações de produção e o aumento cada vez mais constante da população em centros urbanos fizeram com que fosse essencial acabar com o analfabetismo, dando um mínimo de qualificação para o trabalho a um maior número de pessoas possível (ROMANELLI, 2010).

Contudo, no Brasil, o regime republicano instalado e a forma como as elites se conduziram no poder, não modificando a estrutura socioeconômica, contribuíram para que não houvesse pressão de demanda social da educação, não tendo ao mesmo tempo interesse pela educação pública, universal e gratuita.

Do mesmo modo, com a Revolução de 1930, em que houve a destruição do controle do poder pelas velhas oligarquias e a implantação do capitalismo industrial no Brasil, a educação teve certa melhora através da expansão do ensino, porém a expansão da demanda escolar só se desenvolveu nas áreas onde se intensificaram as relações de produção capitalista, não atingido todo o território nacional de forma igual. Neste contexto, duas questões com relação ao analfabetismo são importantes ressaltar: a primeira diz respeito ao início de nossa revolução industrial e educacional, que foi feita com um atraso de mais de 100 anos, em comparação com os países mais desenvolvidos, e a segunda questão é o fato de a expansão do ensino, iniciada com a Revolução de 1930, não ter atingido todo o território nacional de forma igualitária (ROMANELLI, 2010). Isso contribuiu com a grande taxa do analfabetismo, bem como a incompetência administrativa do poder público para resolver o problema.

Concomitantemente, examinando-se as estatísticas, verificamos que no ano de 1940 o percentual de analfabetos de 15 anos ou mais no Brasil era de 56,2%, com relação ao total da população, o que correspondia na época 41.236.315 pessoas analfabetas. Mesmo com uma pequena redução da taxa de analfabetismo, em relação ao ano de 1900, que era 65,3%, caindo em 1940 em torno de 9,1%, percebe-se que houve pouca melhora nesse setor, após se passarem 40 anos. Aliás, no ano de 1940, havia no Brasil mais da metade da população com 15 anos ou mais que era analfabeta (ROMANELLI, 2010).

Para Eduardo Gomes (1946), o governo Vargas tratou com indiferença a questão da formação de professores. Ao mesmo tempo, faltavam professores e em vários estados existiam escolas superlotadas. Além disso, o candidato argumentou que um grande número de jovens, em torno de três milhões, estavam fora da escola esperando para ter acesso ao estudo. Com relação ao ensino normal, que rumava, segundo o candidato, até 1937, para o nível universitário “[...] sofreu um retrocesso: baixou ao grau de ensino secundário. Não melhorou em qualidade nem em número. Em vários Estados, e até na capital, escasseiam mestres para as escolas superlotadas” (GOMES, 1946, p. 69).

Eduardo Gomes (1946) também criticou as três reformas do ensino, isto é, a do ensino secundário, a do ensino técnico e a do ensino comercial, realizadas no governo Vargas. Vejamos:

A educação da adolescência não encontrou na Ditadura a compreensão da sua verdadeira finalidade. Em vez de proporcionar a todos, naquele período de vida, uma educação apropriada, com os conhecimentos e técnicas essenciais a qualquer indivíduo, como complemento de sua educação geral de primeiro grau – realizou o Govêrno três reformas – a do ensino secundário, a do ensino técnico, e a do ensino comercial, para dividir a juventude em ricos, em operários e em comerciários – orientação reacionária e antidemocrática pois o ideal em educação é o livre acesso dos valores, sem barreiras nem distinções, no legítimo reconhecimento das possibilidades humanas. (GOMES, 1946, p. 69).

Em seu discurso, Eduardo Gomes (1946) realizou duras críticas ao sistema educacional brasileiro, principalmente nas três reformas de ensino, que para ele foram estabelecidas com a finalidade de dividir a juventude entre ricos, operários e comerciários. Para o candidato isso era reacionário e antidemocrático, pois o ideal em educação é o livre acesso aos valores, sem barreiras, preconceitos e distinções. Nesse sentido, o Brigadeiro defendeu uma ampla reforma no sistema educacional do país. Nisto se difere de Vargas, principalmente porque estava empenhado no processo de redemocratização no Brasil.

Ao analisarmos a reforma do ensino secundário que Eduardo Gomes (1946) criticou, vemos que ela foi proposta pela primeira vez, através do Decreto 19.890, de 18 de abril de 1931, sendo consolidada pelo Decreto 21.241, de 4 de abril de 1932 (ROMANELLI, 2010). Essa reforma foi idealizada pelo ministro da Educação e Saúde da época, Francisco Luís da Silva Campos, recebendo, por isso, o nome de Reforma Francisco Campos.

Segundo Romanelli (2010, p. 136-137):

[...] a Reforma Francisco Campos teve o mérito de dar organicidade ao ensino secundário, estabelecendo definitivamente o currículo seriado, a frequência obrigatória, dois ciclos, um fundamental e outro complementar, e a exigência de habilitação neles para o ingresso no ensino superior. Além disso, equiparou todos os colégios secundários oficiais ao Colégio Pedro II, mediante a inspeção federal, e deu a mesma oportunidade às escolas particulares que se organizassem, segundo o decreto, e se submetessem à mesma inspeção.

Com a reforma, o curso secundário dividiu-se em ensino fundamental de 5 anos e em ensino complementar de 2 anos. O primeiro tornou-se obrigatório para entrar em qualquer escola superior e o segundo em determinadas escolas; além disso, no ensino complementar foi estabelecida uma subdivisão, compreendendo um certo grau de especialização, caso fosse um curso preparatório para a entrada nas faculdades de Direito, Ciências Médicas e Engenharia (ROMANELLI, 2010).

A estrutura do curso secundário ficou organizada com muitas disciplinas. O ciclo fundamental, por exemplo, era composto das disciplinas de português, francês, inglês, latim, alemão, história, geografia, matemática, ciências físicas e naturais, física, química, história natural, desenho e música. Já o ensino complementar, para candidatos à Faculdade de Direito, era composto de latim, literatura, história, noções de economia e estatística, biologia geral, psicologia e lógica, geografia, higiene, sociologia e história da filosofia. Para os candidatos às faculdades de Medicina, Odontologia e Farmácia, as disciplinas do ciclo complementar eram: alemão e inglês, matemática, física, química, história natural, psicologia, lógica e sociologia. Aos candidatos aos cursos de Engenharia e Arquitetura, as seguintes disciplinas eram necessárias: matemática, física, química, história natural, geofísica e cosmografia, psicologia e lógica, sociologia e desenho (ROMANELLI, ٢٠١٠).

O caráter elitista do ensino secundário era visível e nem todos poderiam estudar, pois a exigência era enorme, com muita burocracia, disciplinas fatigantes, materiais escolares diversificados e outros materiais cada vez mais caros.

Eduardo Gomes (1946) chamou a atenção com lucidez para o problema educacional do ensino secundário, uma vez que tínhamos uma sociedade em que a maioria da população vivia na zona rural e era analfabeta, assim como a população que morava na zona urbana não tinha todos os meios necessários para ingressar no ensino secundário e nem sequer no primário. Deste modo, podíamos imaginar para qual grupo social teria sido elaborado um currículo tão vasto (ROMANELLI, 2010).

De acordo com Dallabrida (2009) a reestruturação feita por Francisco Campos, no ensino secundário, rompeu com o regime de cursos preparatórios e de exames parcelados. Vinculada ao contexto da Revolução de 1930, o objetivo do Ministro da Educação foi reformular o ensino secundário para adequá-lo ao processo de modernização nacional que estava ocorrendo. Além disso, a reforma “[...] enfatizou a educação integral e a cultura disciplinar, que concorriam para a produção de um habitus burguês nos alunos de ensino secundário” (DALLABRIDA, 2009, p. 190, grifo do autor).

Beisiegel (1984) nos informa que a legislação em vigor nas décadas de 1940 e 1950 manteve a antiga organização dualista do ensino, em que, de um lado, havia a educação para o povo e, do outro, para as elites. O primeiro tinha a educação iniciada na escola primária, continuando depois nas escolas profissionais de nível médio; as elites começavam com a educação primária e continuavam posteriormente na escola secundária, unicamente organizada com o interesse de encaminhar seus estudantes para o ensino superior e formar indivíduos em profissões privilegiadas.

Eduardo Gomes (1946) também criticou o ensino universitário, principalmente, fazia defesa da liberdade de cátedra e da democratização do ensino superior, uma vez que só as elites tinham acesso a esse ensino. Além disso, para ele, só os povos sem formação poderiam suportar um governo ditatorial como o de Vargas.

[...] as faculdades, de que dispomos, estão isoladas, em prédios distantes entre si e impróprios, só irmanadas pela obra benfazeja da coesão, que os universitários teimam em conseguir por seu denodado esfôrço. A reitoria burocratizou-se, sem reivindicar, sequer, a autonomia, sem defender a liberdade de cátedra, sem lograr uma sede condigna. A Faculdade de Filosofia mal se acomoda em dois prédios de empréstimo, separados, com uma congregação quase tôda de professôres interinos, só agora se falando de concursos, após oito anos de existência. [...]. Cuidemos, em seguida, de realizar o voto da Constituinte de 1823, estimulando a formação de outras universidades, sobretudo no Norte. (GOMES, 1946, p. 71-72).

Observamos acima que o Brigadeiro se preocupou com a criação de mais universidades, para que a população mais carente tivesse acesso ao ensino superior. De acordo com ele,

Em 1932, havia 21.526 alunos de cursos superiores; em 42 baixou a cifra a 18.036, com uma redução, portanto, de 16 por cento. À mentalidade dominante consistia um perigo a formação de elites culturais. Em tudo isso devia haver, como houve, uma intenção política – a da sonegação da democracia. Só os povos incultos, sem instrução, sem ideais, sem vontade, sem os primores da razão e do sentimento, são capazes de suportar o despotismo. (GOMES, 1946, p. 72).

Em relação à liberdade de cátedra pronunciada por Eduardo Gomes (1946), que a reitoria não havia defendido, ela só veio a ocorrer 43 anos depois, na constituição de 1988, presente no artigo 206.

Art. 206. O ensino será ministrado com base nos seguintes princípios:

I – igualdade de condições para o acesso e permanência na escola;

II – liberdade de aprender, ensinar, pesquisar e divulgar o pensamento, a arte e o saber;

III – pluralismo de idéias e de concepções pedagógicas, e coexistência de instituições públicas e privadas de ensino [...]. (BRASIL, 1988, n.p.).

Percebe-se que Eduardo Gomes (1946), ao defender a liberdade de cátedra, já previa a importância de um ensino superior mais democrático, em que o professor tivesse a liberdade de ensinar, pesquisar e divulgar seu pensamento, respeitando do mesmo modo as diferentes ideias dos alunos. Assim, a universidade seria uma instituição que formaria cidadãos críticos, por meio de um ambiente de ensino democrático em que se preservasse o pluralismo das ideias e de concepções pedagógicas.

Algumas soluções também foram apresentadas por Eduardo Gomes a fim de melhorar a educação do país. Para o candidato, o problema educacional requeria urgente revisão. O candidato era favorável aos Estados Unidos como modelo de ensino. Citou, inclusive, alguns teóricos americanos para se pensar o problema educacional do Brasil, como Lyman Lloyd Bryson e Edward Lee Thorndike. O primeiro, foi um educador americano, consultor de mídia e muito conhecido por seu trabalho em programas de rádio e televisão educacionais para a Columbia Broadcasting System (CBS). Já Thorndike ficou muito conhecido por sua teoria de tentativa de erro na aprendizagem, os avanços na teoria da aprendizagem, o behaviorismo e a psicologia educacional. Thorndike é também muitas vezes referido como o fundador da psicologia educacional moderna, sendo conhecido pela teoria que chamou de lei do efeito, surgida através de sua pesquisa sobre como os gatos aprendem a escapar de caixas de quebra-cabeça.8

Eduardo Gomes também afirmou:

[...] Os pais, em verdade, são os primeiros e diretos líderes e educadores, pela influência que exercem sôbre as gerações novas, órbita familiar. [...]. Sendo responsável pela educação no mundo moderno, cuja complexidade lhe plasmou atribuições de caráter construtivo, em prol do progresso dos povos – o Estado faz das escolas órgãos por excelência da sociedade, e não instrumentos de seu domínio. Emanações das vastas comunidades humanas, as escolas completam, suplementando e apurando, a ação educativa da família, e coordenam, como órgãos específicos que são, as fontes de difusão cultural e os demais estímulos educativos, que o meio proporciona por tão diversas formas. (GOMES, 1946, p. 72-74).

Para Eduardo Gomes (1946), a família é essencial para a educação dos filhos, inclusive tendo o apoio do Estado. Assim, a educação inicia-se em casa e termina na escola, sempre com um lugar complementando o outro com seus deveres educacionais. Mais uma vez vemos uma relação entre o que Eduardo Gomes propunha, com relação ao Estado, família e educação, com o Manifesto de 1932, uma vez que os signatários do documento também defendiam tal ideal.9

O Brigadeiro também pensava em democratizar o ensino, para que todos tivessem acesso à educação de qualidade, deixando de lado o ensino dualista, penoso e exaustivo, com inúmeras disciplinas e provas, como estabelecido na reforma da educação secundária, por exemplo (GOMES, 1946).

Eduardo Gomes (1946) argumentou que a educação é um direito de qualquer indivíduo e para que isso fosse assegurado defendia:

a) ampliação efetiva da rêde de escolas, com a revisão e o aumento do sistema predial e com a criação de outros institutos de formação e aperfeiçoamento de magistério; b) a gratuidade e a obrigatoriedade progressivas, segundo um desenvolvimento possível, e não utópico, mas em ritmo intensivo. (GOMES, 1946, p. 75).

O plano educacional que o Brigadeiro pretendia estabelecer, caso ganhasse, inegavelmente, visava a garantir aos brasileiros uma educação mais democrática e igualitária possível. Isso fica patente quando o candidato defende a facilidade de acesso às escolas secundárias e às universidades, o que não havia na época, visto que o ingresso a esses ensinos era em sua maioria para as elites. A ideia de um ensino mais democrático defendido por Eduardo Gomes, dando mais oportunidades a todos, é visível também nas seguintes propostas defendidas pelo candidato:

[...] a) a revisão de fins e de meios do sistema educacional em geral, adaptando-o às contingências da vida moderna e ao espírito do mundo democrático; b) variedade e flexibilidade de cursos, permitindo equivalências e transferências; c) adequação da escola urbana e da escola rural às necessidades de cada meio; d) intensificação dos cursos para adultos. (GOMES, 1946, p. 75).

Do mesmo modo, a posição liberal de Eduardo Gomes aparece ao defender que todas as escolas considerem ao mesmo tempo a questão do trabalho. Para tanto, Eduardo Gomes recomendou as seguintes medidas:

[...] a) trabalhos manuais e artes industriais, em desenvolvimento contínuo até às técnicas que todo homem deve saber; b) o estudo das ciências sociais, levando em conta a realidade econômica e as possibilidades de trabalho de cada região; c) a preparação e a especialização profissionais, na educação secundária e na superior. (GOMES, 1946, p. 75).

Outro pensamento que Eduardo Gomes (1946) tinha era que a sociedade moderna necessitava das elites, resultantes da seleção geral de valores e não de condições econômicas ou diferenças sociais dos indivíduos, cabendo às instituições de ensino cuidar de suas formações e aperfeiçoamentos. Assim, o candidato defendia a facilidade de acesso às escolas secundárias e às universidades, bem como estímulos aos alunos superdotados. É importante ressaltarmos ainda que Eduardo Gomes estabelecia como um dos princípios fundamentais para a reforma educacional que visava a fazer, caso ganhasse a eleição, a aplicação da educação pela ação coordenada da União, dos estados, dos municípios e da iniciativa privada.

Considerações finais

Não sabemos ao certo se, caso ganhasse a eleição, Eduardo Gomes estabeleceria todas as reformas na educação brasileira que propunha. No entanto, a análise dos seus discursos sobre a temática da educação no Brasil, pronunciados em Salvador, em 1945, permite-nos realizar várias reflexões. Primeiramente, traz à tona um período importante da história brasileira, que foram as eleições de 1945, em que o país vivenciava um processo de redemocratização. Havia, assim, um grande interesse em reformular os diversos setores e mecanismos que movem a sociedade. Ao mesmo tempo, os discursos de Eduardo Gomes sobre a educação brasileira nos mostram como o ensino era retratado naquele momento, sobretudo, pelo governo Vargas.

As ideias de Eduardo Gomes sobre a educação também iluminam e servem como modelo ao momento crítico que vivemos atualmente no país, em que temos um governo sem rumo e uma desvalorização crescente da educação brasileira.

Percebemos, também, que Eduardo Gomes fez duras críticas ao governo Vargas, criticando a educação na carta de 1937, afirmando seus objetivos fascistas, argumentando que os professores viviam em situações precárias, com falta de concursos e a ideia de que as escolas exaltavam a figura de Vargas. Aliás, havia a queima de livros e a censura nas escolas.

Apesar de em alguns momentos Eduardo Gomes reconhecer as medidas favoráveis que Vargas realizou, como na questão do analfabetismo – em que, no período de 1937 a 1942, o país teve um crescimento do sistema educacional – o candidato argumentava que o Estado foi incompetente naquele período, pois não conseguiu resolver o problema do analfabetismo com maior eficácia, visto que a melhora foi mínima.

Neste sentido, o que consideramos relevante é a defesa da democracia em oposição ao governo Vargas. Nessa comparação, Eduardo Gomes (١٩٤٦) afirmava a existência de pessoas que defendiam a democracia e as que a deixavam de lado, referindo-se à ditadura de Vargas, que implantou um governo autoritário. Aqui fica clara uma das marcas centrais da UDN, o antigetulismo. É claro, que não podemos esquecer que Eduardo Gomes participou do tenentismo, um movimento que ao mesmo tempo em que defendia reformas necessárias para o Brasil, tinha um viés autoritário. Do mesmo modo, o Brigadeiro não pode ser considerado um democrata, pois em muitos momentos de sua vida apoiou diversos golpes, inclusive o de 1964. Contudo, a pauta da educação sempre esteve presente ao longo de sua vida, auxiliando, em muitas vezes, enquanto pertencente a aeronáutica, sobretudo, durante o Correio Aéreo Militar, muitas pessoas humildes que precisavam de instrução, levando livros e materiais escolares para indivíduos que moravam em regiões carentes do país.

Outro fator importante nos discursos do Brigadeiro é a defesa dos Estados Unidos como modelo de ensino, entretanto, consideramos fundamentais duas questões que os discursos proferidos por Eduardo Gomes trazem à tona. Primeiro, a compreensão que ele tinha das dificuldades que o setor educacional apresentava em seu tempo, realizando assim a defesa de uma educação mais democrática. Segundo, a associação que fazia de modo positivo, para uma reforma na educação brasileira, com as ideias do Manifesto dos Pioneiro da Educação Nova, de 1932. Um dos momentos mais marcantes neste sentido foi o apoio que Anísio Teixeira, um dos líderes do Manifesto, concedeu a Eduardo Gomes, ao acreditar em seu programa de governo e destacar suas ideias para a educação nas eleições de 1945.

Referências

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STRINGUETTI, Lucas Mateus Vieira de Godoy. O pensamento político do brigadeiro Eduardo Gomes (1922-1950). Curitiba: Appris, 2020.

Recebido em: 21/07/2020

Aceito em: 17/03/2021


1 O presente artigo é baseado em parte da dissertação de mestrado denominada “O Brigadeiro Eduardo Gomes: uma análise dos seus discursos políticos (1922-1950)”, defendida em 2018, na Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho (Unesp), campus de Assis, que contou com o auxílio do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e tecnológico (CNPq). A dissertação acabou virando o livro denominado O pensamento político do brigadeiro Eduardo Gomes (1922-1950). No entanto, traremos novas ideias para se pensar o tema trabalhado.

2 É importante ressaltar que Eduardo Gomes foi promovido a brigadeiro em 1941, com a criação do Ministério da Aeronáutica, ficando mais conhecido como Brigadeiro, principalmente após sua participação como candidato à Presidência da República pela UDN, em 1945.

3 Para saber mais da boa relação de Eduardo Gomes com os Estados Unidos conferir em Stringuetti (2020).

4 Os americanos, após insistência e com a concordância do governo brasileiro, resolveram investir na construção e no equipamento das bases aéreas do Norte e Nordeste do Brasil, no início da década de 1940, devido à Segunda Guerra Mundial e, principalmente, com a ocupação do Norte da África pelas forças do Eixo. O objetivo do investimento nessas bases aéreas era aparelhar uma rota aérea da África – rota de Dacar – com o intuito de levar recursos para as forças aliadas (DIAS, c2009).

5 Conferir em: Benevides (c2009).

6 Faltando poucos dias para os brasileiros irem às urnas para votar, Hugo Borghi, que foi um empresário, líder queremista e dono de rádios, trabalhando na campanha de Dutra, ouviu os discursos de Eduardo Gomes pela rádio, realizado no Teatro Municipal e se atentou para uma afirmação feita pelo candidato dizendo que não necessitava do voto da malta de desocupados que andava por aí. Eduardo Gomes se referia ao conjunto de trabalhadores que havia participado dos comícios queremistas, porque entendia que esses trabalhadores haviam recebido dinheiro do Ministério do Trabalho para comparecer às manifestações pela continuidade de Vargas no poder. Assim, Borghi foi ao dicionário e pesquisou o termo malta, encontrando vários significados, escolhendo o que se referia aos operários que percorrem as linhas ferroviárias levando suas marmitas. Borghi, distorcendo as informações, colocou na imprensa que Eduardo Gomes não necessitava do voto dos marmiteiros, ou seja, dos trabalhadores (FERREIRA, 2020).

7 A obra de Drumond (2011) sobre Eduardo Gomes também é laudatória, pois o autor procura engradecer o Brigadeiro, uma vez que Drumond pertenceu a mesma instituição que Eduardo Gomes, isto é, a Aeronáutica. No entanto, a obra traz algumas informações importantes para compreendermos o personagem estudado, por isso, a citamos neste artigo.

8 Pela lei do efeito, respostas que são seguidas por um resultado satisfatório acabam se tornando melhores associadas ficando firmemente ligadas à situação, sendo mais prováveis de ocorrer de novo, quando a situação se repete. Já se as respostas são seguidas por resultados negativos ou desconforto, tornam-se mais fracamente associadas, com menos chances de ocorrer novamente no futuro, em uma situação repetida (AZEVEDO, 2016).

9 Conferir em: O manifesto... (2006).

Resenha

A ESPERANÇA ENQUANTO CATALISADORA DA AÇÃO POLÍTICA

HOPE AS A CATALYST FOR POLITICAL ACTION

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Felipe Rocha de Carvalho*1

Resumo

Esta resenha tem por objetivo discutir os principais temas abordados por Rosana Pinheiro-Machado em sua última obra, “Amanhã vai ser maior”, bem como contextualizá-la em relação a outros trabalhos contemporâneos. Tendo sido escrito no ápice da ascensão do governo de extrema direita no Brasil, o texto analisa fenômenos sociais e políticos ocorridos na sociedade brasileira entre 2013 e 2018 – como as Jornadas de Junho, os “rolezinhos” e a paralisação dos caminhoneiros – por meio de uma visão abrangente e aprofundada, que busca desmistificar a ideia de movimentos sociais enquanto entidades unidimensionais de pensamento e ação. Nesse sentido, o livro, dividido em três partes principais, consiste em uma importante contribuição para a compreensão da conjuntura atual no Brasil, além de proporcionar reflexões necessárias para a reorganização e mobilização política do campo progressista. Ao mesclar elementos de sua pesquisa de campo com análises de acontecimentos mais recentes, a autora realiza um diálogo necessário entre as diferentes áreas das Ciências Sociais, utilizando o conceito de “esperança” enquanto uma força catalisadora da ação política

Palavras-chave: Bolsonarismo. Extrema direita. Movimentos sociais. Esperança.

Abstract

This review has as its goal to discuss the main themes brought by Rosana Pinheiro-Machado in her latest work, titled “Amanhã vai ser maior”, as well as to contextualize it in relation to other contemporary works. Written during the apex of the far right government rise in Brazil, the text analyzes social and political phenomena that took place in Brazilian society between 2013 and 2018 – such as the Jornadas de Junho, the rolezinhos and the truck drivers’ strike – through an in-depth vision that seeks to demystify the idea that social movements are unidimensional entities of thought and action. In that sense, the book, which is divided into three main parts, is an important contribution towards the understanding of the current scenario in Brazil, besides providing necessary reflections for the reorganization and mobilization of the progressive political sector. By mixing elements of her field work with analyses of more recent events, the author accomplishes a well-needed dialogue among different areas of the social sciences, as well as uses the concept of “hope” as a catalyst force for political action.

Keywords: Bolsonarismo. Far right. Social movements. Hope.

PINHEIRO-MACHADO, Rosana. Amanhã vai ser maior: o que aconteceu com o Brasil e possíveis rotas de fuga para a crise atual. São Paulo: Planeta do Brasil, 2019.

Em “Amanhã vai ser maior”, uma obra composta por ensaios inéditos e versões atualizadas de textos escritos entre 2013 e 2018, Rosana Pinheiro-Machado analisa os acontecimentos políticos no Brasil desde as “Jornadas de Junho de 2013”, provendo uma visão crítica e não maniqueísta acerca dos desdobramentos de manifestações políticas e atos de ação coletiva que emergiram na última década. Repleto de relatos pessoais, oriundos de um extenso trabalho de pesquisa nas periferias de Porto Alegre e São Paulo, o livro é dividido em três atos – além de um prelúdio e uma conclusão, que recebe o título de réquiem –, que culminam na defesa da ideia de esperança enquanto alternativa de ação política.

Doutora em Antropologia Social pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), Pinheiro-Machado dedicou grande parte de seus trabalhos a temas como desenvolvimento internacional, pirataria, informalidade e consumo, especialmente no Brasil e na China. Entretanto, em “Amanhã vai ser maior”, a antropóloga se insere em um debate mais amplo das Ciências Sociais, especialmente ao utilizar o conceito de esperança para analisar a conjuntura política brasileira. Abordagens semelhantes podem ser encontradas, por exemplo, no livro de Ernst Bloch, “O princípio esperança” (2005), em que o autor rejeita a noção de utopia enquanto fantasia, mas defende que ela é, na realidade, necessária para a reestruturação da sociedade. De modo semelhante, em “Restoring hope” (1999), Cornel West contesta a equiparação da esperança ao otimismo, visto que a primeira seria baseada em uma visão compartilhada e organizada acerca do futuro.

Em consonância com o argumento de Castells (2017) sobre movimentos oriundos de insatisfação social, a autora retrata as revoltas antissistêmicas como fenômenos com um fim em si mesmos, o que vai de encontro à percepção de que a falta de uma pauta ou demanda específica dificultaria sua compreensão. No caso brasileiro, são elencados três momentos principais: a “Revolta dos 20 Centavos”, a “Revolta do Rolê” e a “Revolta da Caçamba”. Especialmente no primeiro exemplo, quando grande parte dos manifestantes havia sido beneficiada pelo processo de inclusão pelo consumo ocorrido durante os governos do Partido dos Trabalhadores (PT), é observada nos resultados uma simultaneidade de coesão e cisão da ordem social e política.

É importante destacar a rejeição da interpretação das “Jornadas de Junho de 2013” como razão direta do golpe sofrido pela presidenta Dilma Rousseff em 2016, bem como da escalada da extrema direita no país. Ao invés disso, as Jornadas são vistas como um processo construído ao longo de várias semanas, o qual possuiu semelhanças com outros movimentos surgidos no início do século XX e que também eram caracterizados por demandas como a redução das tarifas do transporte público. Dessa maneira, “[...] todos os grandes temas presentes em Junho de 2013 eram, sobretudo, lutas contra pautas que hoje são legitimadas pela extrema-direita que está no poder” (PINHEIRO-MACHADO, 2019, p. 38). Entretanto, o caráter apartidário das manifestações foi capitalizado por parcelas da elite nacional, principalmente no que diz respeito à moralização do combate à corrupção.

De modo semelhante, os “rolezinhos”, ocorridos entre 2013 e 2014, também geravam incerteza sobre a presença ou não de uma motivação política. Quanto a isso, a autora chama a atenção para o fato de o movimento poder assumir, ao mesmo tempo, uma forma de contestação política – observada na reivindicação do direito de ocupação dos espaços, por exemplo – e de desejo por um consumo capitalista. Nesse sentido, o fenômeno pode ser enquadrado no conceito de “revoltas ambíguas”, isto é, movimentos surgidos após a flexibilização e desagregação das relações trabalhistas pelo neoliberalismo e caracterizados pela alteração da esfera de politização dos indivíduos do trabalho para um ambiente descentralizado, como o das redes sociais. Justamente em virtude de tais características, a classificação do “rolezinho” enquanto de esquerda ou de direita se torna inviável, uma vez que se tratava de uma expressão de insatisfação sem uma forma completamente definida.

O mesmo argumento é empregado na análise da “Revolta da Caçamba”, paralisação dos caminhoneiros que aconteceu em maio de 2018. Declarações dadas por motoristas entrevistados demonstraram que não havia um alinhamento claro a um lado ou outro do espectro político, mas um descontentamento generalizado em relação às elites no poder. Embora o ponto de partida do movimento tenha sido o aumento do preço do combustível, a paralisação também era reflexo da diminuição da qualidade de vida gerada pela redução do poder de compra desses trabalhadores. Pedidos de intervenção militar, observados em alguns contextos, não são vistos como um anseio pela volta da ditadura, mas sim como uma solução temporária para a falta de confiança nos políticos que estavam no poder.

Ainda nesta seção, Pinheiro-Machado antecipou uma possível paralisação de motoristas e entregadores de aplicativos, a qual viria a ocorrer no dia 01 de julho de 2020. Embora o chamado “Breque dos Apps” tenha contado com a participação de grupos organizados à esquerda, como o Movimento de Entregadores Antifascistas (MEAF), a mobilização se deu largamente por parte de trabalhadores sem associação a sindicatos, os quais se organizaram por meio das redes sociais (PINHEIRO-MACHADO, 2020). Mesmo que o caráter individualista da “uberização” tenda a aproximar esses entregadores dos ideais de direita, setores progressistas não deveriam deixar de disputar tais espaços de natureza plural e não homogênea dos trabalhadores precarizados.

No primeiro ato do livro, intitulado “O avanço da direita”, a autora busca identificar a lógica do pensamento fascista brasileiro, o qual possuiria características como a defesa da violência policial, um expressivo movimento religioso e uma elite que defende o liberalismo no intuito de proteger seus próprios privilégios. Nesse contexto, ao passo que outros movimentos de extrema direita buscam a exaltação da pátria por meio de um nacionalismo exacerbado, o caso brasileiro tem como maior exemplo e inspiração o atual governo estadunidense. Além disso, a elite intelectual liberal e progressista também se torna alvo de perseguição, sob a classificação genérica de “comunista”.

Aliada à essa discussão, há a ideia de que está em andamento uma disputa maior – e a nível global – pela construção de novos discursos, baseados em uma nova interpretação da sociedade contemporânea. Geralmente, o discurso da extrema direita vem acompanhado de uma agenda econômica que culpa fenômenos como a globalização e as novas ondas migratórias pelas crises enfrentadas por governos nesse âmbito. Para o campo progressista, a guerra pelos espaços e fontes de conhecimentos deveria servir como alerta para a reorganização de pautas e o início de ações que não estejam baseadas apenas na reação ao revisionismo histórico e científico.

O segundo ato, “O recuo da esquerda”, inicia com a problematização do modelo de políticas públicas adotado pelos governos do PT. Na análise de Pinheiro-Machado, ainda que a importância dos avanços sociais seja inegável, a permanência de um regime macroeconômico essencialmente neoliberal acarretou a redução da provisão de bens públicos. Isso, por sua vez, deixaria clara a relação entre a inclusão pelo consumo e o enfraquecimento democrático, o que não invalida o impacto gerado na autopercepção de indivíduos de baixa renda após a possibilidade de acesso a produtos antes inacessíveis. No mesmo contexto, era gerado um incômodo nas elites econômicas tradicionais, as quais viam como iminente o rompimento das relações servis ainda presentes na sociedade brasileira.

Em um tom incisivo, o texto defende que, embora a virada conservadora no Brasil seja fruto de uma articulação entre elites políticas e econômicas iniciada ainda em 2014, os moldes nos quais se deu a inclusão pelo consumo por parte dos governos do PT não alteraram a estrutura da desigualdade social no país. A falta de uma comunicação mais direta com moradores das periferias e de propostas concretas para a solução de seus problemas cotidianos acabou por afastar ainda mais tais cidadãos de um setor político progressista que esperava uma espécie de fidelidade partidária. Pautas como segurança pública e corrupção, que muitas vezes não ocupam o centro das discussões da esquerda, se tornaram cada vez mais importantes para o brasileiro médio, gerando uma desconfiança geral em relação aos políticos como um todo.

Chamar o trabalhador pobre que votou em Bolsonaro de fascista e coxinha não ajuda em nada nessa batalha ideológica que estamos perdendo feio. Agindo assim, apenas afastamos essas pessoas de nós e as jogamos ainda mais para a direita, que, por sua vez, as recebe de braços abertos, sem nenhum pré-requisito (PINHEIRO-MACHADO, 2019, p. 128).

A antropóloga inicia o terceiro e último ato do livro, batizado de “Bolsonarismo”, com uma breve retomada acerca da construção da imagem de Bolsonaro como uma figura política infame. Nos moldes de figuras estadunidenses, como Donald Trump e Jesse Ventura, houve uma capitalização política por meio da conexão com uma parcela da população que rejeitava as elites intelectuais. Mesmo que não concordassem por completo com as declarações polêmicas feitas por Bolsonaro em suas aparições em programas de televisão, essas pessoas viam no deputado alguém com comportamento semelhante ao de algum familiar ou amigo próximo. Após 2013, a divulgação de vídeos curtos e memes possibilitou – de forma majoritariamente orgânica – a consolidação de sua imagem enquanto “herói antiesquerda” sob a alcunha de “Bolsomito”.

Ademais, é realizada uma distinção essencial entre o sentimento fascista em escalada no Brasil e aquele típico do Hemisfério Norte: no caso brasileiro, o inimigo não é externo, mas sim personificado na figura do “vagabundo”. Presente há muito tempo no imaginário nacional, tal inimigo é o antagonista dos princípios e valores morais cristãos, além de desfrutar de privilégios e benefícios que não são oriundos de seu esforço e dedicação. De forma semelhante ao que argumenta Ricoeur (2017), a classificação de vagabundo é imputada apenas ao outro, sem que haja jamais uma identificação entre nós e eles. Para o bolsonarismo, o conceito se materializa em grupos como ativistas, povos indígenas e LGBTQI+s, cuja vida não teria o mesmo valor do que aquela dos “cidadãos de bem”.

Cabe ressaltar, ainda, a diferenciação entre os eleitores de Bolsonaro nas eleições de 2018. Inicialmente, há dois extremos identificáveis: uma elite econômica que optou conscientemente pelo projeto autoritário como uma forma de garantir seus privilégios já existentes; e pessoas de baixa renda e baixo capital educacional que, apesar de terem o voto influenciado pela igreja ou por familiares, possuem uma descrença generalizada na classe política. Segundo a autora, é entre os dois extremos, onde está grande parte da população brasileira, que se encontram dois grupos chamados de A e B. No grupo A, estão trabalhadores precarizados, frustrados com sua situação econômica e com a degradação do sistema político. No grupo B, estariam os eleitores fanáticos, que culpam esquerdistas, feministas e LGBTQI+s por tudo que há de errado no país.

Para Pinheiro-Machado, um dos maiores desafios consiste em impedir que o espaço existente entre A e B diminua, o que tende a acontecer à medida em que aumenta a radicalização do cenário político. O projeto fascista tende a mobilizar a subjetividade de uma parcela da população, já frustrada, em direção ao projeto autoritário. Ao mesmo tempo que cada vez mais pessoas se sentem autorizadas a expressar – sem medo de responsabilização – pensamentos violentos, o campo progressista não pode perder de vista aquelas pessoas que ainda pertencem ao grupo A. Fora do terreno agressivo das redes sociais, onde raras vezes há espaço para diálogos produtivos, se torna cada vez mais necessária a política do olho no olho com indivíduos que, no fim das contas, sofrem diariamente as consequências de um sistema neoliberal predatório.

No “Réquiem da desesperança”, são analisados com otimismo alguns movimentos que surgiram ou ganharam força no mesmo período em que ocorreu a ascensão da extrema direita ao poder. Dentre esses, é destacada a “primavera feminista”, representada tanto em lideranças femininas nas ocupações secundaristas de 2016 quanto no movimento #EleNão, cuja mobilização teve repercussões para além das eleições presidenciais de 2018. Essa nova onda do feminismo possui uma origem mais orgânica do que as anteriores e, até certo ponto, a escalada reacionária também pode ser enxergada como uma reação a esse fenômeno. No caso do #EleNão, a organização, que começou como uma resposta às declarações machistas e misóginas de Bolsonaro, acabou englobando temas mais amplos, como a defesa da democracia e dos direitos humanos.

Ao concluir o livro, a autora enfatiza a proposta da obra em transformar a sensação de fracasso presente no campo progressista em mobilização e, assim, “fazer da esperança uma opção política” (PINHEIRO-MACHADO, 2019, p. 184). Embora inevitável, o sentimento de derrota se faz necessário para que haja uma reflexão profunda sobre os desdobramentos políticos dos últimos anos, no intuito de compreender suas raízes e elaborar alternativas possíveis. A ideia de “utopia concreta” é trazida no sentido de organizar a esperança em ações que vão além das grandes marchas, mas que também encontram espaço na resistência diária de povos indígenas, quilombolas e movimentos camponeses, por exemplo. A ação deve partir não de um pressuposto individualista, mas de um pensamento que preze pelo coletivo.

O grande número de fenômenos políticos e sociais discutidos no livro, bem como os inúmeros relatos de pesquisa de campo, tornam difícil a missão de condensar a riqueza das análises feitas por Pinheiro-Machado em sua última obra. Ainda que resgate debates sobre movimentos anteriores, como as “Jornadas de Junho” e as ocupações secundaristas, é notável o esforço de pesquisa e reflexão acerca dos acontecimentos dos últimos dois anos no Brasil, os quais foram realizados quase em tempo real. Além disso, os argumentos trazidos no texto conversam frequentemente com trabalhos contemporâneos citados ao longo da obra. A importância de “Amanhã vai ser maior” reside justamente em sua proposição inicial: fomentar a mobilização e a busca de alternativas políticas no campo progressista, no intuito de encontrar respostas que ainda não estão dadas. Em vez de delinear o caminho exato a ser seguido, Rosana Pinheiro-Machado estimula os leitores a utilizar a sensação de impotência como catalisadora tanto da resistência quanto da ação.

A forma como a obra foi desenvolvida escapa de uma análise unidimensional sobre os acontecimentos dos últimos anos na sociedade brasileira e, ao fazê-lo, também encoraja a realização de novas pesquisas acerca de fenômenos como a precarização do trabalho e a disputa de memória relacionada às conquistas sociais dos governos de esquerda. Tanto em sua metodologia quanto em suas abordagens teóricas, a autora promove um diálogo necessário – e raramente encontrado – entre as três áreas das Ciências Sociais, o que possibilita uma compreensão mais abrangente sobre os temas trazidos durante o texto.

Referências

BLOCH, Ernst. O princípio esperança – Volume 1. Rio de Janeiro: Contraponto, 2005.

CASTELLS, Manuel. Redes de indignação e esperança: movimentos sociais na era da internet. Rio de Janeiro: Zahar, 2017.

PINHEIRO-MACHADO, Rosana. Amanhã vai ser maior: o que aconteceu com o Brasil e possíveis rotas de fuga para a crise atual. São Paulo: Planeta do Brasil, 2019.

PINHEIRO-MACHADO, Rosana. Os entregadores antifascistas querem apps solidários à causa. Por que é importante ouvi-los. The Intercept Brasil, 23 jun. 2020. Disponível em: <https://theintercept.com/2020/06/23/entregadores-antifascistas-protestos/>. Acesso em: 09 ago. 2020.

RICOEUR, Paul. A ideologia e a utopia. São Paulo: Autêntica, 2017.

WEST, Cornel. Restoring Hope: conversations on the future of Black America. Boston: Beacon Press, 1999.

Recebido em: 20/08/2020

Aceito em: 24/09/2020


1* Doutorando em Ciências Sociais pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS). E-mail: feliperochacarvalho@gmail.com

ISSN 1517-5901 (online)

POLÍTICA & TRABALHO

Revista de Ciências Sociais, nº 55, Junho/Dezembro de 2021, p. 236-241