Revista de Ciências Sociais - Política & Trabalho
Programa de Pós-Graduação em Sociologia
Centro de Ciências Humanas, Letras e Artes
Universidade Federal da Paraíba
Publicação semestral do PPGS/UFPB
56 - Janeiro/Junho de 2022
ISSN 1517-5901 (online)
CONSELHO EDITORIAL
César Barreira (Brasil), Christian Azais (França), Cynthia Lins Hamlin (Brasil), Edgard Afonso Malagodi (Brasil), Emília Araújo (Portugal), Howard Caygill (Reino Unido), Frédéric Vandenberghe (Brasil), Jacob Carlos Lima (Brasil), Joanildo A. Burity (Brasil), José Arlindo Soares (Brasil), Julie Antoinette Cavignac (Brasil), Lee Jonathan Pegler (Holanda), Marie-France Garcia-Parpet (França), Paulo Henrique Martins (Brasil), Regina Novais (Brasil), Rubens Pinto Lyra (Brasil), Sandra J. Stoll (Brasil), Theophilos Rifiotis (Brasil), Vera da Silva Telles (Brasil), Zhou Zhiwei (China).
EDITORIA
Maurício Rombaldi, UFPB, Brasil
Miqueli Michetti, UFPB, Brasil
COMITÊ EDITORIAL
Miqueli Michetti, UFPB, Brasil
Mauricio Rombaldi, UFPB, Brasil
Sérgio Botton Barcellos (coordenador do PPGS) UFPB, Brasil
Patrícia Alves Ramiro (vice-coordenadora do PPGS) UFPB, Brasil
Editora-assistente
Ana Carolina Costa Porto (Bolsista Fapesq-PB)
Assistente editorial
Iolivalda Lima Estrêla (Doutoranda PPGS/UFPB)
REVISORA
Ana Carolina Costa Porto (Bolsista Fapesq-PB)
DESIGN GRÁFICO
Projeto gráfico da capa: Sérgio Estrêla Júnior
Fotografia: Rodrigo Nunes
Diagramação: Brunos Gomes
A apresentação de colaborações e os pedidos de permuta e/ou compra devem ser encaminhados ao PPGS/UFPB:
Universidade Federal da Paraíba – Programa de Pós-Graduação em Sociologia
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POLÍTICA & TRABALHO
Revista de Ciências Sociais
Publicação do Programa de Pós-Graduação em Sociologia
da Universidade Federal da Paraíba
(Campus I - João Pessoa)
Número 56
Janeiro/Junho de 2022
ISSN 1517-5901 (online)
Programa de Pós-Graduação em Sociologia - UFPB
indexação
Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)
Biblioteca Central - Campus I - Universidade Federal da Paraíba
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Diretora: Mônica Nóbrega
Vice-Diretor: Rodrigo Freire
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM SOCIOLOGIA
Coordenador: Sérgio Botton Barcellos
Vice-coordenadora: Patrícia Alves Ramiro
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R449 Revista Política e Trabalho / Programa de Pós-Graduação em
Sociologia – Vol. 1, n. 56 (jan./jun. 2022). João Pessoa, 2022.
246p.
1517-5901 (online)-1. Ciências Sociais. 2. Política. 3. Trabalho.
UFPB/BC CDU: 32
UNIVERSIDADE FEDERAL DA PARAÍBA
Reitor: Valdiney Gouveia
Vice-Reitora: Liana Filgueira
Pró-Reitor de Pós-Graduação e Pesquisa: Fernando Guilherme Perazzo Costa
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SUMÁRIO
Editorial
DOSSIÊ
TRABALHO, POLÍTICA E TERRITÓRIOS:
reconfigurações sociais na crise do neoliberalismo
APRESENTAÇÃO | Cristhiane Falchetti, Ruy Braga
REESPACIALIZAÇÃO INDUSTRIAL E SEUS EFEITOS SOBRE O EMPREGO E O SINDICALISMO METALÚRGICO NO ESTADO DE SÃO PAULO | Iram Jácome Rodrigues, Jacob Carlos Lima, Jonas Tomazi Bicev, Thamires da Silva
CLASSE TRABALHADORA NA “CAPITAL DO AGRONEGÓCIO”: MUNDO DO TRABALHO E ESPAÇO URBANO EM SORRISO (MT) | Luiz Felipe de Farias
O SUBÚRBIO FERROVIÁRIO DE SALVADOR ENTRE DESPOSSESSÃO E ATRAVESSABILIDADES: (des)encontros entre mundos de vida e produção de infraestruturas | Thais Rosa Troncon, Gloria Cecília Figueiredo, Atailon Matos da Silva
AS PRESTAÇÕES DE CONTA DE UM PEQUENO NEGÓCIO | Marcella Araujo
UN JEFE EN EL TELÉFONO: el trabajo en tiempos de virtualidades | Osvaldo Battistini
OS SENTIDOS DO UBERISMO: Trabalho plataformizado, informalidade e formas de resistência na cidade de São Paulo | Ruy Braga, Douglas Silva
ARTIGOS
SUBJETIVIDADE EMPREENDEDORA ENTRE FOTÓGRAFOS E PRODUTORES DE VÍDEO BRASILEIROS IMPACTADOS PELA COVID-19: uma abordagem exploratória | Cristina T. Marins, Victoria Perfeito, Heitor M. Guimarães, Gabriela V. G. Serafim
POR UM FIO: o trabalho precário do setor têxtil em imagens | Aline Gama de Almeida
A DESIGUALDADE SALARIAL NA PERSPECTIVA DOS DIREITOS HUMANOS: a questão do gênero em pauta | Ianne Paulo Macedo, Ana Hilda Lima do Vale
AGENTES COMUNITÁRIOS DE SAÚDE E O CUIDADO SITUADO DO USUÁRIO DE CRACK EM SALVADOR (BA) | Fátima Regina Gomes Tavares, Talita Nunes Costa
“ENQUANTO CONTINUAREM MISTURANDO RACISMO COM POLÍCIA, NUNCA VAI DAR CERTO”: Uma discussão sobre branquitude no contexto brasileiro | Mari Fagundes, Paula Henning
UM LEGADO DE SANÇÕES E CONFRONTAÇÃO: as relações entre Cuba e EUA durante a administração Trump | Marcos Antonio da Silva
RESENHA
AS LÓGICAS SOCIAIS DO GOSTO | Luana Lopes, Camila Bourguignon de Lima
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CONTENTS
Editorial
DOSSIER
WORK, POLITICS AND TERRITORIES:
social reconfigurations in the crises of neoliberalism
PRESENTATION | Cristhiane Falchetti, Ruy Braga
INDUSTRIAL RE-SPATIALIZATION AND ITS EFFECTS ON EMPLOYMENT AND METALWORKERS TRADE UNIONISM IN THE STATE OF SÃO PAULO | Iram Jácome Rodrigues, Jacob Carlos Lima, Jonas Tomazi Bicev, Thamires da Silva
WORKING CLASS IN THE “AGRIBUSINESS CAPITAL”: Labor and urban space in Sorriso -MT | Luiz Felipe de Farias
THE SUBÚRBIO FERROVIÁRIO OF SALVADOR BETWEEN DISPOSSESSIONS AND TRAVERSABILITIES: (dis)encounters between life worlds and infrastructure production | Thais Rosa Troncon, Gloria Cecília Figueiredo, Atailon Matos da Silva
THE ACCOUNTABILITY OF A SMALL BUSINESS | Marcella Araujo
A BOSS ON THE PHONE: Work in times of virtualities | Osvaldo Battistini
THE MEANINGS OF UBERISM: Work Platforms, Informality and Forms of Resistance in the City of São Paulo | Ruy Braga, Douglas Silva
ARTICLES
ENTREPRENEURIAL SUBJECTIVITY AMONG BRAZILIAN PHOTOGRAPHERS AND VIDEOMAKERS IN THE COVID-19 PANDEMIC: an exploratory approach | Cristina T. Marins, Victoria Perfeito, Heitor M. Guimarães, Gabriela V. G. Serafim
BY A THREAD: the textile sector precarious work in images | Aline Gama de Almeida
WAGE INEQUALITY FROM A HUMAN RIGHTS PERSPECTIVE: the matter of gender in issue | Ianne Paulo Macedo, Ana Hilda Lima do Vale
COMMUNITY HEALTH AGENTS AND THE SITUATED CARING FOR THE MALE CRACK USER IN SALVADOR, BAHIA, BRAZIL | Fátima Regina Gomes Tavares, Talita Nunes Costa
“AS LONG AS THEY CONTINUE TO MIX RACISM WITH THE POLICE, IT WILL NEVER WORK”: A discussion on whiteness in the Brazilian context | Mari Fagundes, Paula Henning
A LEGACY OF SANCTIONS AND CONFRONTATION: relations between Cuba and the USA during the Trump administration | Marcos Antonio da Silva
REVIEW
THE SOCIAL LOGIC OF TASTE | Luana Lopes, Camila Bourguignon de Lima
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171
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240
EDITORIAL
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Maurício Rombaldi1*
Miqueli Michetti*
É com muita satisfação que a Revista Política & Trabalho, em seu número 56, apresenta o dossiê “Trabalho, política e territórios: reconfigurações sociais na crise do neoliberalismo”, com o objetivo de promover o debate sobre como a globalização e um contexto marcado por crises que se sobrepõem têm afetado tanto a configuração de forças sociais quanto o entendimento sobre as dinâmicas dos conflitos. Organizado e apresentado por Cristhiane Falchetti e Ruy Braga, o referido dossiê é composto por seis artigos inéditos, dentre os quais destacam-se pesquisas que visam a articular análises estruturais às especificidades de objetos de estudo já tradicionais à sociologia – tal o caso do setor metalúrgico – e a temas que despontam em meio aos arranjos capitalistas contemporâneos – a exemplo do agronegócio, da reconfiguração de territórios urbanos, dos pequenos negócios e das plataformas digitais. Lidos em conjunto, esses estudos contribuem para demonstrar as reconfigurações sociais que decorrem da resiliência da propagação neoliberal.
No presente número da P&T, seis artigos de fluxo contínuo e uma resenha somam-se ao dossiê. No artigo “Subjetividade empreendedora entre fotógrafos e produtores de vídeo brasileiros impactados pela covid-19: uma abordagem exploratória”, Cristina T. Marins, Victoria Perfeito, Heitor M. Guimarães, Gabriela V. G. Serafim abordam os efeitos da pandemia da covid-19 sobre trabalhadores do setor de eventos. Mediante o uso de etnografias desenvolvidas antes e durante a pandemia, identificam uma subjetividade neoliberal vinculada a ritos sociais e a atividades como as de coaches, desempenhadas por meio de plataformas digitais, no esforço individual para superação de dificuldades.
Na continuidade, o estudo “Por um fio: o trabalho precário do setor têxtil em imagens”, de Aline Gama de Almeida, examina a representação do trabalhador têxtil a partir de documentários – produzidos ao longo de quarenta anos – a respeito de diversas localidades do interior do Nordeste, tais como as cidades pernambucanas de Toritama e Santa Cruz do Capibaribe. Para tanto, são analisados filmes que abordam as dinâmicas da produção têxtil em suas diferentes etapas – desde as mais iniciais até a de comercialização dos produtos em grandes feiras –, de modo a retratar histórias de vida marcadas pela precariedade que pauta a dinâmica das relações sociais no semiárido brasileiro.
Na sequência, a pesquisa “A desigualdade salarial na perspectiva dos direitos humanos: a questão do gênero em pauta”, elaborada por Ianne Paulo Macedo e Ana Hilda Lima do Vale, contribui com os estudos sobre as relações de gênero no mundo do trabalho, ao tratar da disparidade salarial e da segregação ocupacional enquanto fenômenos que, apesar dos avanços constitucionais experimentados no país, compõem a história da sociedade brasileira.
Já em “Agentes comunitários de saúde e o cuidado situado do usuário de crack em Salvador (BA)”, as autoras Fátima Regina Gomes Tavares e Talita Nunes Costa refletem sobre as práticas de cuidado de Agentes Comunitários de Saúde a homens adultos que consomem crack e que não vivem em situação de rua na capital baiana. Valendo-se de uma abordagem etnográfica, a investigação evidencia que tais práticas oferecem um “cuidado situado”, caracterizado por ser diferente e complementar ao paradigma da Redução de Danos, o qual, por sua vez, apresenta limitações em termos de políticas públicas voltadas à saúde.
No artigo “Enquanto continuarem misturando racismo com polícia, nunca vai dar certo: uma discussão sobre branquitude no contexto brasileiro”, Mari Fagundes e Paula Henning tratam das relações raciais na atualidade e, a partir de conceitos como branquitude, racismo estrutural e necropolítica, analisam dois casos com repercussão midiática no país. Entre as reflexões, as autoras questionam práticas adotadas no campo da segurança pública, sobretudo quando marcadores como raça, geração e gênero se entrecruzam.
Em estudo voltado ao campo das políticas e relações internacionais, intitulado “Um legado de sanções e confrontação: as relações entre Cuba e EUA durante a administração Trump”, Marcos Antônio da Silva avalia a dinâmica das relações bilaterais estabelecidas entre Cuba e EUA durante a administração do ex-presidente Donald Trump, considerando a mudança da política de aproximação promovida pelo seu antecessor, Barack Obama. Em sua análise, o autor destaca aspectos da administração Trump vinculados à lógica do conflito e da confrontação, que procuraram afetar a economia cubana, tal qual o aprofundamento do embargo econômico.
Por fim, o número da revista finaliza com a resenha do livro “As lógicas sociais do gosto”, organizado por Carolina Pulici e Dmitri C. Fernandes e publicado em 2019 pela editora Unifesp. Conforme observam as resenhistas Luana Lopes e Camila Bourguignon de Lima, a obra, composta por uma coletânea de estudos de pesquisadores brasileiros e estrangeiros, formula uma crítica a concepções que veem o gosto sob o ângulo do julgamento estético exclusivamente individual. Segundo as referidas autoras, os textos da coletânea, que seguem uma perspectiva bourdieusiana, constituem uma referência ao debate sobre a relação entre o espaço das posições sociais e o dos estilos de vida, contribuindo, assim, para o estabelecimento de um campo de pesquisas sociológicas voltado à história social do gosto.
Boa leitura!
1* Editores da Revista Política e Trabalho / Professores da Universidade Federal da Paraíba.
ISSN 1517-5901 (online)
POLÍTICA & TRABALHO
Revista de Ciências Sociais, nº 56, Janeiro/Junho de 2022, p. 9-10
Dossiê
Trabalho, política e territórios:
reconfigurações sociais na crise do neoliberalismo
TRABALHO, POLÍTICA E TERRITÓRIOS:
reconfigurações sociais na crise do neoliberalismo
WORK, POLITICS AND TERRITORIES:
social reconfigurations in the crises of neoliberalism
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Cristhiane Falchetti (USP)
Ruy Braga (USP)
A atual crise vivida pelas classes trabalhadoras no contexto de emergência sanitária trouxe para o centro das indagações sociológicas a relação conflitiva entre as exigências econômicas da acumulação capitalista e as necessidades não econômicas da reprodução social. Mediante o aprofundamento do neoliberalismo, cada vez mais, ganham relevo as atividades dedicadas à manutenção e renovação da força de trabalho, para onde avançam os processos de mercantilização, instaurando aí diversos conflitos. Em muitos países, vemos formas insurgentes de resistência lideradas por setores de trabalhadores antes invisibilizados, tais como enfermeiros, entregadores de aplicativos e trabalhadores da construção civil, por exemplo. Estaríamos diante da emergência de novas estratégias de mobilização associadas à pandemia ou o aumento do desemprego e do subemprego irá erodir esses esforços organizativos?
A marcha da globalização neoliberal, atrelada ao desenlace das tradicionais formas de solidariedade e organização fordista, produziu um cenário de incertezas políticas e indefinição acerca das forças sociais, afetando também nossa compreensão analítica sobre a dinâmica da luta de classes. Afinal, ao mesmo tempo que ela se intensifica, temos dificuldade em definir seus sujeitos. Mesmo diante das últimas crises, que contestam os pressupostos teóricos do neoliberalismo e criam condições para mobilização política contrária às suas políticas, o resultado tem sido a reafirmação do neoliberalismo (KLEIN, 2008), em variados contextos socio-históricos e em bases cada vez mais amplas.
A resiliência do neoliberalismo em meio à atual crise sociorreprodutiva tem ativado o debate em torno de sua capacidade de adaptação em diferentes contextos sociais. Tal discussão busca problematizar o modo como o neoliberalismo foi entendido até então, especialmente pela abordagem da economia política, e tem promovido importantes contribuições, sobretudo no campo marxista mais heterodoxo. Nesse debate, para além de uma leitura economicista do fenômeno, já é bastante consensual que o neoliberalismo não se reduz à liberalização econômica, ainda que possa representar um “projeto político-ideológico da classe dominante” que estabelece o primado da mercantilização do trabalho, da natureza, do dinheiro e do conhecimento (HARVEY, 2008; BURAWOY, 2021).
O neoliberalismo não se limita ao campo econômico ou político, tão pouco se restringe à redução da regulação estatal, ainda que tenha modificado seu papel e implique um novo sistema de regulação social (WACQUANT, 2012). Porém, a interação com modos de regulação histórica e geograficamente precedentes tem resultado em hibridizações (BRENNER; PECK; THEODORE, 2012). Entendido como um sistema normativo que orienta práticas e condutas, o neoliberalismo constitui uma forma de “governamentalidade” (FOUCAULT, 2008). Daí ele ser considerado a racionalidade política que governa a atual sociedade capitalista (DARDOT; LAVAL, 2016). Na realidade, o neoliberalismo abarca todas essas dimensões em uma totalidade estruturada pela capacidade do próprio capitalismo de expandir-se e reconfigurar-se a partir de suas crises imanentes. Daí vermos sentido em falar em uma “era neoliberal”, assemelhada às eras liberal e estatal dos séculos XIX e XX (GERBAUDO, 2021).
Essas redefinições colocam em discussão os modos como o neoliberalismo se difunde e interage com dinâmicas sociais específicas, bem como a maneira como seus desdobramentos sociorreprodutivos e formas de resistência tendem a assumir o primeiro plano da cena política contemporânea. Com o objetivo de contribuir com esse debate, o presente dossiê discute as reconfigurações sociais decorrentes da globalização neoliberal a partir da centralidade dos processos de produção e reprodução social em territórios situados.
A problematização da relação entre trabalho, política e territórios se insere num contexto multidimensional de crise, também identificada como “crise sociorreprodutiva” (FRASER; JAEGGI, 2020). Entendemos ser esse um tipo de situação histórica produzida pelo modelo de desenvolvimento capitalista que, ao aprofundar a dinâmica neoliberal da acumulação por espoliação, desestabiliza as condições necessárias à reprodução social da mercadoria responsável pela própria acumulação, isto é, a força de trabalho. Os principais efeitos dessa crise emergem de forma mais explícita no âmbito familiar e ameaçando a economia de subsistência, ou seja, as condições sociais de manutenção e renovação das comunidades e trabalhadores em seus territórios e espacialidades.
A pandemia de covid-19 acrescentou novas camadas de complexidade à crise. Seu sentido aparente consiste no medo generalizado do perigo da morte que já não conhece fronteiras nacionais (SANTOS, 2021). No entanto, o que a pandemia expressou está muito além disso, expondo os efeitos da relação destrutiva do sistema sociometabólico do capital com o meio ambiente (MÉSZÁROS, 2002). Fruto dessa mesma relação, os inúmeros desastres ambientais dos últimos anos, como os ocorridos no Brasil, correspondem às políticas de morte no neoliberalismo e à essência irracional de um regime de acumulação por espoliação baseado na mercantilização do trabalho, da natureza, do dinheiro e do conhecimento.
Outro aspecto apontado com frequência nas análises é o impacto territorialmente desigual da crise sociorreprodutiva, tanto em escala global quanto local, o que se tornou evidente com a pandemia, que afetou principalmente os grandes centros urbanos e foi mais letal nas áreas periféricas, onde se concentram as populações negras e de menor renda. Da qualidade das habitações e comunidades onde vivem os trabalhadores pobres às estratégias corriqueiras usadas pelas famílias trabalhadoras a fim de assegurar algum trabalho remunerado, multiplicam-se os exemplos de como as desigualdades sociais criadas pela divisão do trabalho, em especial, as desigualdades de gênero e raciais, se espacializam.
No mundo todo, a precariedade das condições de vida e de trabalho dos trabalhadores pobres, em especial os informais e imigrantes, tem revelado o problema mais geral daquilo que podemos chamar de fronteiras de classe da pandemia, separando trabalhadores protegidos de desprotegidos, brancos de negros, nativos de indocumentados (FRASER; JAEGGI, 2020). É possível verificar uma enorme desigualdade entre, por um lado, os profissionais protegidos que conseguem trabalhar em home office e, por outro, os trabalhadores precários impelidos à exposição aos riscos da infecção por dependerem do transporte público e trabalharem lado a lado com seus colegas. Assim, os danos sanitários e econômicos da pandemia conjugam-se às históricas desigualdades sociais e de acesso aos serviços públicos e aos direitos sociais.
Embora a crise tenha, de início, se apresentado de forma menos aguda na América Latina, ela se potencializou com a crise política que desestabilizou governos de centro-esquerda, colocando em xeque a sobrevivência da democracia liberal na região. Ao mesmo tempo, intensificam-se as reformas neoliberais, constituindo um circuito da crise, que começa no âmbito da produção, mediante a queda da taxa de lucro, se transfere às classes trabalhadoras na forma do desemprego, do subemprego permanente, do aumento da informalidade, do ataque aos direitos trabalhistas e aos serviços públicos, e termina “compensando” as perdas do capital em detrimento das condições de vida das classes trabalhadoras, muitas vezes, fazendo da pobreza uma oportunidade de negócio.
Tendo em vista esse enquadramento mais amplo e considerando a importância de compreender os desenvolvimentos atuais da crise neoliberal em territórios social e politicamente situados, os artigos reunidos neste dossiê trazem pesquisas que, de diferentes perspectivas, exploram esses desdobramentos, nos auxiliando na identificação dos modos de difusão e interação do neoliberalismo com o mundo social, especialmente ligado ao trabalho e aos territórios.
No artigo Reespacialização industrial e seus efeitos sobre o emprego e o sindicalismo metalúrgico no estado de São Paulo, Iram Jácome Rodrigues, Jacob Carlos Lima, Jonas Tomazi Bicev e Thamires da Silva discutem os impactos da reespacialização da indústria metalúrgica de São Paulo sobre a organização sindical. A análise acompanha a dinâmica da indústria em duas escalas: de um lado, a reconfiguração das cadeias globais de produção e, de outro, a redistribuição espacial do setor automobilístico no estado de São Paulo em seis regiões. Os autores destacam a perda de importância do Brasil na indústria automobilística na crise econômica recente e a contínua transferência de unidades produtivas do tradicional polo do ABC paulista para outras regiões do estado. Nesse quadro, analisam o perfil dos trabalhadores das fábricas e a flexibilização das relações de trabalho, discutindo as estratégias da gestão e a crise aguda dos sindicatos em meio ao novo cenário da indústria.
Ao apontar a reespacialização industrial como uma variável relevante para a análise da organização do trabalho, os autores fazem contribuições significativas para uma discussão clássica da sociologia do trabalho. A abordagem espacial ajuda a perceber conexões entre os processos de fragmentação e descentralização industrial nos países asiáticos, o ciclo de crescimento e expansão do consumo nos países latino-americanos, a concorrência entre os governos locais, por meio da política fiscal, e os efeitos da flexibilização das relações de trabalho. Com isso, também evidenciam como novas tendências tecnológicas aceleram a dinâmica espacial das cadeias produtivas, enquanto reforçam a velha divisão internacional do trabalho, legando aos chamados países do Norte Global a tecnologia de ponta, e aos do Sul Global, a produção de produtos primários ou de menor valor agregado.
Nesse contexto de reconfiguração produtiva em diferentes escalas, o artigo Classe trabalhadora na “capital do agronegócio”: mundo do trabalho e espaço urbano em Sorriso (MT), de Luiz Felipe de Farias, explora os contornos do espaço urbano desenhado pelo agronegócio. O autor analisa a relação entre o trabalho e a produção do espaço urbano em um dos municípios de maior produção de soja no Brasil, discutindo o complexo de relações sociais e as tensões entre um espaço integrado em escala global e segregado em escala local.
A reconstituição do processo socioespacial do município revela um urbano recente e ainda pouco analisado. Trata-se de um território hoje dominado pelo poder do agronegócio, que avança sobre todo o centro-oeste e norte do país, destruindo biomas e modos de vida e homogeneizando o espaço. Fundadas sobre nossa desigual base fundiária e já no contexto de neoliberalização, essas “cidades novas” derivam de dinâmicas sociais e econômicas distintas daquelas que constituíram a urbanização ao longo do século XX. Foram impulsionadas pelas atividades ligadas à exploração do solo e do meio ambiente, do garimpo à produção de carnes e soja em grande escala. O urbano que brota nesse espaço reproduz o velho padrão de segregação socioespacial operacionalizado pelo capital imobiliário e, muitas vezes, intensificado pelos programas habitacionais. De outro lado, acrescentam-se novas camadas de complexidade social ao envolver fluxos migratórios de diversas regiões ocupando postos de trabalho em condições variadas.
Ao retratar a experiência dos trabalhadores mobilizados pela agroindústria, Farias aponta tensões que permeiam a relação com o trabalho e a cidade, como a “desterritorialização” dos vínculos sociais, a crise de identidade, os conflitos entre aspectos culturais e racionalidade neoliberal, as disputas e hierarquias entre migrantes do sul e do norte, e a precariedade das relações de trabalho. Com isso, evidencia as contradições entre a demandas da reprodução social dos trabalhadores migrantes e as exigências da reprodução ampliada do capital, a qual se manifesta, principalmente, na questão da moradia. A cidade do agronegócio é inabitável para o trabalhador, que, por sua vez, vive no fluxo entre seu território de origem e o trabalho precário.
Na outra ponta desses processos de deslocamentos e “desterritorialização”, o artigo O Subúrbio Ferroviário de Salvador entre despossessão e atravessabilidades: (des)encontros entre mundos de vida e produção de infraestruturas, de Thais Rosa Troncon, Gloria Cecília Figueiredo e Atailon Matos da Silva, aborda o conflito envolvendo as transformações urbanas e diversas territorialidades constituídas pelo Subúrbio Ferroviário, em Salvador (BA). A análise dos processos decorrentes de um projeto de substituição dos trens na região mostra como infraestruturas urbanas incidem sobre um território historicamente definido como local de moradia dos trabalhadores assalariados e informais, e podem funcionar como dispositivos de gestão diferencial de populações e territórios racializados.
Colocando-se nas fronteiras entre o registro do conflito em ato e a intervenção intelectual, os autores fazem uma etnografia da vida cotidiana dos moradores e suas relações com o lugar, descrevendo os modos de vida que caracterizam aqueles territórios e sua desestruturação com o avanço das formas de extração de valor e da violência estatal e corporativa dirigida às populações que vivem lá. Ao mesmo tempo que a substituição do trem pelo monotrilho conecta circuitos globais do capital e intensifica a dinâmica da cidade, ela desarticula redes de relações constituídas pelos usos da infraestrutura ferroviária e que atualizam a ancestralidade indígena e afrodescendente, ampliando a extração de renda. Assim, os circuitos ligados aos mundos da pesca e ao trabalho informal e os usos do espaço pelas moradias e pelas práticas sacras do candomblé e de religiões de matriz africana são ameaçados.
Os autores fazem contribuições relevantes ao entender o território na sua conjugação com o social, e não como projeção dele, observando dinâmicas socioespaciais e inserindo-se nelas. Dessa perspectiva, os territórios revelam a simultaneidade dos processos e das temporalidades, dando visibilidade às confluências entre colonialidades, racionalidades e novas dinâmicas globais do capital, numa contínua integração subjugada de sujeitos racializados e da colonização das terras e dos modos de vida. A espacialização dos conflitos também torna visível os atravessamentos sociais que criam brechas e desafiam as fixações e limites do espaço-tempo ordenado, ao resgatar heranças culturais e construir uma narrativa própria. Com isso, os autores avançam no debate sobre os estudos urbanos, problematizando a generalização do paradigma paulistano nas interpretações acerca das cidades brasileiras, que historicamente invisibilizou a questão étnico-racial e os atravessamentos de gênero, bem como definiu as periferias por suas ausências.
Considerando esses entrecruzamentos histórico-espaciais que constituem a realidade latino-americana, o artigo de Marcella Araujo, As prestações de conta de um pequeno negócio, interroga conceitos e categorias do trabalho pautadas por um paradigma do trabalho formal pouco condizente com nossa experiência social. No intento de compreender o significado e implicações do empresariamento operacionalizado na figura do MEI para a organização do trabalho, a autora propõe uma abordagem etnográfica sobre as prestações de contas de um pequeno negócio que atua na manutenção da cidade, no Rio de Janeiro (RJ). A pesquisa mostra como associações de moradores tornam-se agentes que intermedeiam contratos e contatos profissionais, e como trabalhadores da construção civil tornam-se empresários de si e subcontratados por grandes empreiteiras.
Beneficiando-se dos conhecimentos de mundo dos atores que vivem as situações e relações em toda a sua dinamicidade, a análise explora o universo de relações sociais que se colocam entre as pessoas jurídicas e as pessoas físicas nas relações econômicas, evidenciando práticas e valores que viabilizam os processos produtivos e o mercado de trabalho nas obras urbanas. A etnografia da prestação de contas é sobre como contratos e planilhas camuflam as medidas de tempo de trabalho, como as grandes empresas transferiram custos e riscos do capital para os trabalhadores ao torná-los empresários de si e concorrentes uns contra os outros, como a concorrência entre subcontratados impulsiona a exploração da força física, posto que o maquinário e as tecnologias de produção precisariam ser contratados e passam a representar um custo a mais. Diante da lógica racionalizada do capital, a sobrevivência do trabalhador empresário depende de seu saber tácito, de cada experiência e conhecimento adquirido, além de muito “jogo de cintura”. Conhecimento esse tributário da experiência social, e que é mobilizado pelo capital e posto a serviço dele.
Entretanto, se a flexibilização dos vínculos trabalhistas exige formas mais sofisticadas de controle do trabalho, supõe-se também que as práticas e interações escapem aos enquadramentos formais e institucionais. É em meio a relações de confiança, generosidade, ajudas e favores, que se processam as atividades econômicas. Hierarquias, diferenças salariais e poder são atravessadas por valores e códigos próprios de sociabilidade. É aqui que a relação entre patrão e empregado é borrada pelos vínculos de solidariedade entre realidades mais afins, quando a exploração das subcontratadas pelas “empresas grandes” é percebida, e a concorrência entre as subcontratadas pode ser substituída por estratégias de cooperação e apoio mútuo. A imersão no campo da prática social econômica mostra que ser “dono do negócio” não é o mesmo que “ser dono do capital”. Enquanto esse implica ser patrão, aquele está mais para evitar o patrão. Na distância entre esses dois casos residem contradições e conflitos entre capital e trabalho, os quais indicam as possibilidades e limites da organização coletiva.
A aposta metodológica de Marcella Araujo se mostra promissora, porque entra na instância imediata da vida concreta e traz para a análise elementos de ordem econômica, moral e política, mostrando como se dão os agenciamentos econômicos contemporâneos. Ao focar na atividade de produção material da cidade, a análise mostra como a chamada informalidade aparece sob a roupagem do empreendedorismo.
Dentro da especificidade e heterogeneidade que compõem a realidade do trabalho na América Latina, o artigo de Osvaldo Battistini, Un jefe en el teléfono: el trabajo en tiempos de virtualidades, trata do trabalho em plataformas virtuais, por meio de uma pesquisa com trabalhadores de três aplicativos de entrega em Buenos Aires, Argentina. Além do consenso acerca da precariedade das relações de trabalho nessas plataformas, o autor contextualiza a constituição dessas formas de trabalho na Argentina apontando condições que as viabilizaram e as características dos trabalhadores a elas vinculados. Ele destaca como as novas tecnologias se articulam a antigas práticas econômicas, próprias de economias periféricas, para atender a demandas criadas pela intensificação do ritmo da produção, conformando toda a organização da vida cotidiana das famílias. Por trás disso tudo, um patrão “invisível”.
A gestão neoliberal do trabalho agenciou milhões de trabalhadores espalhados por todo o mundo e fez disso um valor, deixando todo o resto por conta do próprio trabalhador, que se engaja na plataforma, assume os custos e riscos da atividade e faz sua jornada de trabalho. No entanto, o autor observa que, por ser uma saída de emergência para esses trabalhadores, esse trabalho também não representa uma perspectiva profissional. Nesse sentido, a questão da precariedade não se encerraria na formalização e regularização, mas envolveria a ampliação das alternativas de emprego. Isso nos remete aos velhos dilemas do desenvolvimento capitalista na América Latina.
Para muitos estudiosos do tema, a chamada “uberização” implica a generalização do trabalho precário típico das economias periféricas, bem como a apropriação das estratégias de sobrevivência pelo chamado empreendedorismo. Contudo, embora as novas informalidades se assemelhem às formas anteriores – tradicionalmente associadas à marginalidade e à periferia do sistema capitalista –, elas diferem em muitos aspectos, demonstrando como as metamorfoses da informalidade constituem um traço incontornável da reprodução da sociedade capitalista (ROSALDO, 2021).
Considerando a recente visibilidade da chamada uberização, no artigo The Meanings of Uberism: Work Platforms, Informality and Forms of Resistance in the City of São Paulo, Ruy Braga e Douglas Silva exploram as relações entre as plataformas, a nova informalidade dominada por elas e as formas de resistência. Ao discutir as condições globais do trabalho precário, os autores destacam a relação conflituosa entre a acumulação capitalista e a reprodução social, a qual ganha particular relevância no atual contexto de crise sanitária. Mas longe de ser pontual, esse conflito resulta da substituição do padrão de solidariedade fordista pelo neoliberalismo, desencadeando um conflito normativo, que desafia também as identidades e representações sociais.
A pesquisa etnográfica com grupo focal investiga as representações e expectativas dos jovens trabalhadores negros e periféricos na cidade de São Paulo, apontando a relevância das questões raciais e geracionais na experiência coletiva desses trabalhadores, e os desencontros entre o trabalho de plataforma e as expectativas profissionais dos jovens. Movidos principalmente pelo desejo de independência financeira e acesso a bens de consumo, muitas vezes, visando ao investimento na própria atividade de entrega, esses jovens encontram identificação entre si nas referências periféricas compartilhadas. Tanto a expansão do consumo quanto a afirmação de uma identidade negra e periférica correspondem a mudanças recentes no Brasil.
De modo geral, os denominados trabalhadores por demanda são jovens expulsos do mercado de trabalho pelo desemprego ou vindos de experiências de subemprego e de trabalho terceirizado. Curiosamente, a percepção desses trabalhadores em relação ao trabalho de entrega considera a flexibilidade dos horários como vantagem, o que envolve certa recusa à rotina do trabalho repetitivo – que está no imaginário do trabalhador –, mas também a falsa ideia de liberdade e controle do próprio tempo, pela qual opera a racionalidade neoliberal. Já a principal desvantagem mencionada por eles é o medo da violência urbana.
Os dois últimos artigos trazem elementos importantes para pensar sobre os tempos e espaços do trabalho de plataforma. Apesar das transações serem em espaços virtuais, os serviços de entregas se realizam em espaços concretos, estabelecendo uma conexão entre as plataformas e a cidade. Ao mesmo tempo que a circulação dos entregadores pela cidade é apresentada pelas plataformas como “passeio”, e não como trabalho, os destacados uniformes e equipamentos (adquiridos pelos próprios entregadores) exibem cores e logos das empresas dos aplicativos como outdoors, revelando um grande contingente de trabalhadores dispersos pela cidade, conectados pelo aplicativo, e submetidos a novas modalidades de informalidade.
Mais do que um suporte para a circulação das mercadorias, as cidades são parte constitutiva da economia de plataforma, que depende de suas infraestruturas e vias, da concentração e fluxo populacional, e das dinâmicas cotidianas próprias das grandes cidades; a regulação das plataformas, no entanto, está fora da jurisdição local e nacional. O serviço de entrega existe no fluxo da cidade, enquanto movimento permanente de circulação das mercadorias, incluindo o próprio trabalho, em grande medida composto por jovens e imigrantes. O aplicativo controla esse fluxo dificultando as pausas e encontros entre os entregadores. Apesar disso, eles acabam definindo locais de parada e criando referências territoriais, onde as interações que ocorrem entre os entregadores aproximam experiências comuns e se estendem também para as redes sociais, viabilizando a comunicação permanente sobre situações diárias e também mobilizações coletivas. Esses espaços são também o locus das pesquisas de campo sobre o tema, e suas características territoriais podem constituir parte relevante da análise, já que representam a fusão do local de trabalho com a cidade.
Como visto em todos os artigos, as espacialidades urbanas aparecem como fator relevante para compreender as novas dinâmicas do trabalho e as reconfigurações do neoliberalismo em suas variações contemporâneas. Certamente, o foco em diversas territorialidades é uma abordagem promissora para pensar o processo de neoliberalização e também as resistências a ele.
Boa leitura!
Referências
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FRASER, Nancy; JAEGGI, Rahel. Capitalismo em debate: uma conversa na teoria. São Paulo: Boitempo, 2020.
GERBAUDO, Paolo. The Great Recoil: Politics after Populism and Pandemic. Nova Iorque: Verso, 2021.
HARVEY, David. O neoliberalismo: história e implicações. São Paulo: Loyola, 2008.
KLEIN, Naomi. A doutrina do choque: a ascensão do capitalismo de desastre. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2008
MÉSZÁROS, István. Para além do capital. São Paulo: Boitempo, 2002.
ROSALDO, Manuel. Problematizing the “informal sector”: 50 years of critique, clarification, qualification, and more critique. Sociology Compass, v. 15, n. 9, p. 1-14, set. 2021.
SANTOS, Boaventura de Sousa. O futuro começa agora: da pandemia à utopia. São Paulo: Boitempo, 2021.
WACQUANT, Loïc. Três etapas para uma antropologia histórica do neoliberalismo realmente existente. Cad. CRH, Salvador, v. 25, n. 66, p. 505-518, dez. 2012.
ISSN 1517-5901 (online)
POLÍTICA & TRABALHO
Revista de Ciências Sociais, nº 56, Janeiro/Junho de 2022, p. 12-20
REESPACIALIZAÇÃO INDUSTRIAL E SEUS EFEITOS SOBRE
O EMPREGO E O SINDICALISMO METALÚRGICO
NO ESTADO DE SÃO PAULO
INDUSTRIAL RE-SPATIALIZATION AND ITS EFFECTS
ON EMPLOYMENT AND METALWORKERS TRADE UNIONISM
IN THE STATE OF SÃO PAULO
____________________________________
Iram Rodrigues1*
Jacob Lima**
Jonas Bicev***
Thamires Silva****
Resumo
O artigo analisa o processo de reespacialização da indústria automotiva no estado de São Paulo como parte das estratégias globais das montadoras, discutindo os impactos dessa dinâmica na ação do sindicalismo e, ao trazer dados sobre o perfil da força de trabalho, renda e emprego em seis regiões paulistas, quais sejam, ABC, Campinas, Sorocaba, Piracicaba, Vale do Paraíba e São Carlos, discute a nova configuração do trabalho metalúrgico nesta terceira década do século XXI. A pesquisa foi realizada com base no levantamento de dados do Relatório Anual de Informações Sociais (RAIS), em sua modalidade Migra Vínculos, do período 2003-2018, do Ministério da Economia, complementados com percepções de lideranças sindicais obtidas por meio de entrevistas realizadas nos anos de 2020 e 2021. Dessa forma, foi possível constituir um panorama da indústria automobilística no estado de São Paulo que abrange características relacionadas ao fenômeno da reespacialização e seus desdobramentos sobre as relações produtivas e de trabalho no período recente.
Palavras-chave: Metalúrgicos. Sindicalismo. Indústria automotiva. Reespacialização.
Abstract
The article analyzes the process of re-spatialization of the automotive industry in the state of São Paulo as part of the automakers global strategies. It points out the impacts of this dynamic on the action of trade unionism and discusses the new configuration of metallurgical work in this third decade of the 21st century. It is done by providing data on the profile of the workforce, income and employment in six São Paulo regions, namely, ABC, Campinas, Sorocaba, Piracicaba, Vale do Paraíba and São Carlos. The research was carried out based on data collected from the Annual Social Information Report (RAIS), in its Migra Vínculos modality, from the 2003-2018 period, from the Ministry of Economy, complemented with perceptions of union leaders obtained through interviews carried out in the years 2020-2021. In this way, it was possible to build an overview of the automobile industry in the state of São Paulo that includes characteristics related to the phenomenon of re-spatialization and its consequences on productive and work relations in the recent period.
Keywords: Metalworkers. Trade unionism. Automotive industry. Re-spatialization.
1* Iram Jácome Rodrigues, professor do Departamento de Sociologia e do Programa de Pós-Graduação em Sociologia da Universidade de São Paulo. E-mail: iramjrodrigues@gmail.com
** Jacob Carlos Lima, professor titular do Departamento de Sociologia da Universidade Federal de São Carlos. E-mail: calimajb@gmail.com
*** Jonas Tomazi Bicev, pesquisador, doutor pelo Programa de Pós-Graduação em Sociologia da Universidade de São Paulo. E-mail: jonas.bicev@yahoo.com.br
**** Thamires Cristina da Silva, pesquisadora, doutoranda pelo Programa de Pós-Graduação em Sociologia da Universidade de São Paulo. E-mail: thamirescristina@usp.br
ISSN 1517-5901 (online)
POLÍTICA & TRABALHO
Revista de Ciências Sociais, nº 56, Janeiro/Junho de 2022, p. 21-41
Introdução
A reespacialização da indústria automobilística no Estado de São Paulo contribuiu para a maior fragmentação da categoria dos trabalhadores metalúrgicos, com implicações na atividade e representação sindical. As distintas filiações dos sindicatos a centrais sindicais, além de uma concentração espacialmente menor de trabalhadores, dificultam movimentos reivindicativos de maior amplitude. Mesmo considerando que a fragmentação territorial nem sempre coincide com fragmentação política e que os sindicalistas sempre observam as negociações coletivas uns dos outros, ainda mais quando atuam em um mesmo setor, no caso do sindicalismo metalúrgico do setor automotivo, a reespacialização resultou em menor articulação política o que tem dificultado acordos e negociações coletivas unificadas.
Existem culturas de negociação distintas entre as principais montadoras, e até mesmo entre as unidades industriais de uma mesma montadora, instaladas em diferentes localidades (isso se reflete nas diferenças das médias salariais, valores de PLR, jornadas de trabalho). Algumas entidades são mais tolerantes com os acordos de banco de horas (caso do sindicato dos metalúrgicos do ABC), outras são fortemente contrárias ou mais críticas (sindicato dos metalúrgicos de São José dos Campos). O ritmo do processo produtivo e as condições de trabalho dos metalúrgicos da Mercedes-Benz em Iracemápolis eram inferiores às condições de trabalho conquistadas pelos trabalhadores da Mercedes-Benz de São Bernardo do Campo (MARTINS; PRADO, 2020). Uma fábrica como o Consórcio Modular da VW em Resende dificilmente seria construída no ABC sem enfrentar a resistência do sindicato, apenas para citar alguns exemplos. Ações unificadas entre os sindicatos filiados às diferentes centrais sindicais podem ocorrer, como ocorreu agora durante as negociações da interrupção e retorno das atividades durante a pandemia. O mais comum, entretanto, é que ocorram negociações e acordos por unidade industrial, que se reflete no crescimento dos acordos coletivos.
Buscamos discutir o progressivo esvaziamento da região do ABC paulista que, embora ainda concentrando o maior número de empregos e a maior produção de veículos no país, sofre por seu caráter de brownfield, com a existência de trabalho organizado, atividade sindical dinâmica, dificuldades de expansão física e custos crescentes decorrentes da urbanização e valorização dos terrenos. Novas regiões, representadas pelos polos produtivos de Campinas, Sorocaba, Piracicaba e São Carlos-Itirapina1, são representativas do processo de interiorização dessa indústria em busca de greenfields que representariam menores custos empresariais. Campinas e Sorocaba, por exemplo, desde 2017, se destacam na participação da composição do valor da transformação da indústria (VTI) automobilística do estado (participação de 39,9% da RA de Campinas e de 9,3% de Sorocaba.
A partir da leitura dos dados do Relatório Anual de Informações Sociais (RAIS), do período 2003-2018, e de percepções captadas em entrevistas com lideranças sindicais, realizadas nos anos de 2020-20212, analisam-se os efeitos das transformações globais sobre o nível de emprego, a importância do deslocamento espacial, e o alcance das ações sindicais para negociar a chegada de novos investimentos e, ao mesmo tempo, conter o ritmo do desemprego, considerando estratégias competitivas baseadas no rebaixamento dos salários, suspensão dos contratos e retirada de benefícios.
Utilizamos dados da RAIS Migra Vínculos, do Ministério da Economia, para ilustrar características da indústria automobilística no estado de São Paulo que nos levam à discussão sobre antigas e novas plantas industriais nesse território; diferenças e similitudes dos vários polos produtivos e o perfil do trabalhador metalúrgico (idade, renda, sexo, escolaridade, tempo de trabalho na empresa, tipos de vínculos dos empregados, horas contratadas nas montadoras, entre outros aspectos).
A reespacialização do setor automotivo em São Paulo
Os trabalhadores metalúrgicos vinculados à indústria automobilística se constituíram a partir da década de 19503, representando uma moderna classe operária e sendo importantes atores políticos que, com suas mobilizações, impulsionaram as lutas pela redemocratização do país no final dos anos 1970. As transformações no trabalho, na economia e na sociedade desde o último quartil do século XX, progressivamente alteraram esse quadro, e não apenas no Brasil. A despeito do país ter vivido um processo que se situava na contramão dos países industrializados no período do final dos anos 1970 e início da década seguinte, com o inaudito movimento grevista, passados quarenta anos desse movimento ocorreu um arrefecimento da ação trabalhista, e os sindicatos estão enfrentando, no período mais recente, uma crise sem precedentes.
Alguns fatores contribuíram para isso. Um deles foi justamente a desconcentração industrial e sua reespacialização4. Embora os conceitos de território e espaço se confundam, o espaço social incorpora as relações sociais e de dominação ao território, ressignificando-o. Essa ressignificação do espaço, que podemos chamar também de reespacialização, pressupõe a intervenção de diversos atores sociais públicos e privados, no geral, atendendo às necessidades da mobilidade do capital e do trabalho (LIMA, 2020). A indústria automobilística é um dentre outros setores do quadro de reespacialização industrial. Outros exemplos são as áreas de vestuário, serviços, assim como as empresas de TI-Call Centers e produção de software.
A partir da década de 1990, políticas de incentivos fiscais atraíram diversas montadoras que vieram se somar às aqui já instaladas. Embora várias unidades tenham se localizado em outros estados da federação, a maioria se concentrou no interior do estado de São Paulo5. Opção essa que apresentava várias vantagens, como a proximidade dos grandes centros consumidores, incentivos fiscais, existência de mão de obra qualificada e também como forma de escapar dos custos econômicos e políticos da região do ABC, palco de lutas operárias das décadas anteriores. Essa região, outrora o polo dinâmico da indústria brasileira, na atualidade sofre com o processo de desindustrialização, com uma economia cada vez mais terciária.
Um outro fator vincula-se às mudanças tecnológicas: as indústrias instaladas tanto nos anos 1990 como nas décadas seguintes se caracterizaram pelo uso decrescente da força de trabalho, reduzindo o número de empregos sem, contudo, se destacarem em termos de inovação em comparação com suas matrizes no exterior. Para os trabalhadores, com essa interiorização das plantas industriais em novos territórios, abriu-se possibilidades de conseguir um trabalho no setor automotivo; em geral, um emprego “cobiçado” no setor metalúrgico, mas, por outro lado, representou redução salarial e a utilização cada vez maior de trabalhadores mais jovens, por vezes sem experiência de trabalho industrial, e sem tradição de atividade sindical. A fragmentação sindical representada pelo local das novas fábricas e sua dispersão geográfica diminuiu o ímpeto mobilizador desses sindicatos. Ao mesmo tempo, as mudanças geracionais, as novas tecnologias amparadas no trabalho digital e a terceirização tornaram-se um dilema no que se refere à construção de uma identidade coletiva entre esses trabalhadores. Mesmo assim, esses trabalhadores continuam representando uma elite entre os trabalhadores fabris pela existência de um trabalho fordista, mesmo que em constante fragilização, e com a contratação crescente de trabalhadores terceirizados.
De outra parte, a partir de 2012, o mercado doméstico de automóveis – favorecido pelo crescimento econômico do país, pelas políticas de expansão do crédito e redução do Imposto sobre Produtos Industrializados (IPI) – alcança os melhores resultados em termos de vendas e produção. Nesse período, o governo federal adotou medidas, reunidas sob o rótulo de Inovar-Auto, que incentivaram a produção de veículos mais seguros e econômicos, além de restringir ou condicionar a importação de veículos acabados aos investimentos das empresas globais na cadeia de fornecedores locais, engenharia industrial básica, e pesquisa e desenvolvimento. Apesar dos resultados parcialmente alcançados e da reversão das expectativas econômicas, decorrentes da crise e ruptura política e institucional ocorridas entre 2015 e 2016, no mesmo período o estado de São Paulo recebeu novas unidades industriais de montadoras como a Toyota, em Sorocaba (2012); Hyundai, em Piracicaba (2012); Caoa-Chery, em Jacareí (2014); Honda, em Itirapina (2016); Toyota, em Porto Feliz (2016); e Mercedes-Benz, em Iracemápolis (2016).
Esse movimento coincide com a estratégia de expansão de empresas japonesas, sul-coreanas e chinesas na economia mundial que, além de investimentos no Sul e Sudeste asiáticos, intensificam a presença na América Latina, incorporando a configuração de suas produções internas à lógica da fragmentação e descentralização produtiva. Sendo a automação uma das ferramentas mais importantes para a competitividade da indústria, Althuon e Landin (2020) destacam que o emprego de robôs na funilaria (solda) já alcançou 96% na unidade de Indaiatuba da Toyota e 70% na unidade de Sorocaba. Nessa última unidade, a montadora produz e utiliza também carrinhos autônomos, os AGVs, que fazem transportes internos para abastecer as linhas.
Na Honda, para fabricar os novos modelos de SUVs na unidade de Itirapina (previstos para 2022), o destaque são os investimentos nas linhas de prensa com três máquinas e cinco robôs para o aumento da capacidade; a inclusão de 13 novos robôs no departamento de hemming (processos em que as chapas estampadas são agregadas para construir peças como porta-malas, porta e capô) e 16 no processo de solda. A fábrica também conta com a automação no transporte de partes da carroceria na linha de montagem e suspensão. O último destaque dentre as asiáticas refere-se à Hyundai, em Piracicaba, onde a produção já foi iniciada com um elevado grau de automação (170 robôs presentes em todas as etapas produtivas: da estamparia à soldagem de carrocerias, pintura e montagem) e, ao contrário da tendência mundial, adotou-se um modelo verticalizado em que, além de oito fornecedores operando junto à linha de montagem, existe uma siderúrgica do próprio grupo, a Hyundai Steel, encarregada de fornecer o aço a partir da importação da Coreia do Sul (que corresponde a 40% do aço utilizado) (ALTHUON; LANDIN, 2020, p. 11-12).
A literatura sobre o tema identifica novos investimentos das montadoras em regiões tradicionais – como a linha de caminhões da Mercedes-Benz em São Bernardo do Campo, onde se instalaram 60 AGVs, empilhadeiras com câmeras, 100 apertadoras eletrônicas, impressoras 3Ds e prateleiras de estoque com sensores luminosos – e outros avanços significativos na conectividade, segurança e experiência de bordo dos automóveis produzidos no Brasil. Apesar disso, existe uma avaliação dominante de que os investimentos realizados e incentivos oferecidos em programas como o Inovar-Auto e o Rota 2030 foram incapazes de reduzir os problemas estruturais da indústria aqui instalada, como a crescente importação de componentes estratégicos e a carência de aprimoramento de tecnologias cada vez mais valorizadas, como motorização híbrida, elétrica e veículos de direção autônoma (BICEV, 2019; STURGEON; CHAGAS; BARNES, 2017; IBUSUKI; KAMINISKI; PASCOAL, 2017).
Fenômenos como a reconfiguração das cadeias globais de produção, o aumento da automação das fábricas e a crescente interação entre as atividades financeiras e produtivas das montadoras desafiam recorrentemente os trabalhadores dos grandes conglomerados e empresas globais do setor automotivo. Ser sindicalista nesses setores é agir em meio a escolhas ou dilemas, como tolerar certo nível de desemprego tecnológico e negociar a maior indenização possível para os trabalhadores desligados, em uma tentativa de evitar um desemprego ainda maior devido à queda de produtividade ou até mesmo do encerramento das fábricas (CARDOSO; COMIN, 1995).
Outro dilema consiste em ceder às práticas de remunerações variáveis (como a PLR) e contratações flexíveis (como temporários e terceirizados) em troca da atração de novos investimentos e melhorias nas condições de trabalho dos empregados diretos (como aumento dos vencimentos, da segurança e a limpeza dos ambientes). Ainda que a preservação dos empregos justifique a negociação de tais mudanças, nota-se a dificuldade dos sindicatos em mobilizar trabalhadores de perfis mais diversos, muitos deles qualificados e de renda média familiar relativamente alta, “que está metalúrgico, mas não se enxerga metalúrgico”, ou seja, que possui expectativas de ascensão profissional que transcendem a permanência no chão de fábrica e nem sempre se identificam com a cultura coletiva do sindicato (BEAUD; PIALOUX, 2009). Por outro lado, a instabilidade dos vínculos e rotatividade dos novos contratados, terceirizados, temporários e prestadores de serviços (PJs), dificulta a organização sindical no interior das empresas e a construção de identidades coletivas.
Nos tempos atuais, no entanto, a novidade consiste em adicionar a esses dilemas uma concentração ainda maior dos investimentos das montadoras nos centros de pesquisas, localizados em países do Norte global, onde se desenvolvem tecnologias baseadas na internet das coisas, big data e inteligência artificial, que ampliam a capacidade de monitoramento e programação de robôs e máquinas por uma parcela diminuta de trabalhadores, que, além da familiaridade com os processos fabris, detêm habilidades de informática e computação. Uma vez que as operações de manufatura empregam atualmente menos trabalhadores (isto é, reduzem-se os encargos com o custo do trabalho), é possível verificar um movimento de retorno de unidades fabris para os países de origem do capital das montadoras.
Ademais, o desenvolvimento da mobilidade elétrica e dos novos serviços de transportes baseados no compartilhamento, conectividade e autonomia dos veículos tendem a aumentar as incertezas e instabilidade dos empregados das montadoras de países sul-americanos como o Brasil, em que o Estado se destaca no desenvolvimento científico de biocombustíveis, mas que antes mesmo da pandemia encontrava-se em dificuldades para financiar a pesquisa e a infraestrutura logística de abastecimento necessárias para produção de veículos híbridos ou elétricos.
Por último, mas não menos importante, o quadro desafiador para o movimento sindical brasileiro se completa pelo desmonte dos direitos trabalhistas, ocorrido desde 2017, que alterou a estrutura de financiamento das atividades sindicais6. Se antes, mesmo em contextos recessivos, as greves, protestos e as negociações coletivas conduzidas pelos sindicatos se davam com a situação financeira minimamente garantida pelo imposto sindical e contribuições voluntárias, agora as mobilizações dependem, em grande parte, do trabalho voluntário, da participação e contribuição dos associados.
Trabalhadores metalúrgicos e emprego em São Paulo
Ao avaliarmos os efeitos da reespacialização da indústria automotiva sobre o emprego metalúrgico paulista, é preciso destacar que apesar de o ABC continuar como o local onde as montadoras mais empregam metalúrgicos (25,2 mil trabalhadores, total de 55%), entre 2003 e 2018, cresceu a participação dos municípios que fazem parte da Região Administrativa de Campinas (Sumaré, Indaiatuba e Piracicaba)7, os quais aumentaram consideravelmente a sua participação de 4% para 18% no total dos postos de trabalho da indústria automobilística no estado (Tabela 1).
Tabela 1 – Estoque do emprego nas montadoras por polo da indústria automobilística
do estado de São Paulo
Polos industriais automotivos |
2003 |
2006 |
2009 |
2012 |
2015 |
2018 |
Polo ABC |
29.705 |
30.762 |
32.787 |
26.640 |
29.682 |
25.221 |
Polo Vale do Paraíba |
13.552 |
14.061 |
14.673 |
13.682 |
9.906 |
8.444 |
Polo Campinas |
2.056 |
3.600 |
5.372 |
5.457 |
5.208 |
5.208 |
Polo Sorocaba |
- |
- |
- |
1.611 |
2.261 |
3.477 |
Polo Piracicaba |
- |
- |
- |
1.674 |
2.333 |
3.051 |
Polo São Carlos |
486 |
472 |
781 |
827 |
968 |
1.069 |
Total do estado de SP |
45.799 |
48.895 |
53.613 |
49.891 |
50.358 |
46.470 |
Vínculos ativos no dia 31/12.
Fonte: RAIS – Migra Vínculos. ME. Anos selecionados. Elaboração própria.
Obs.: (-) Polo Sorocaba e Polo Piracicaba foram constituídos a partir de 2012, com a chegada da Toyota e da Hyundai, respectivamente, nos territórios mencionados.
Ao observamos as características do perfil socioeconômico desses trabalhadores, é preciso destacar que a divisão sexual do trabalho pouco se alterou no período, sendo diminuta a participação de mulheres metalúrgicas em polos industriais automotivos novos ou antigos. Entre 2003 e 2018, ainda que a participação feminina tenha crescido 4 pontos percentuais em duas regiões, ABC e São Carlos, a participação das mulheres na força de trabalho é baixa, variando de 12% em Piracicaba a apenas 5% no Vale do Paraíba (composto pelos trabalhadores de São José dos Campos, Taubaté e Jacareí). A alta concentração de trabalhadores do sexo masculino na indústria automobilística paulista valida a diferenciação de gênero historicamente observada no emprego metalúrgico, a despeito das várias mudanças ocasionadas pelo processo de reespacialização.
Outro dado que se destaca é o crescimento dos trabalhadores com ensino superior completo ou pós-graduação. Se, em 2003, eles representavam menos de 10% dos empregados da indústria automobilística paulista, em 2018, eles alcançavam 29% dos empregados nas montadoras do ABC, 21% do Polo Campinas e 19% do Polo São Carlos. Nota-se que, nas regiões onde estão as unidades mais recentes, como Toyota (Sorocaba e Porto Feliz), Hyundai (Piracicaba) e Mercedes-Benz (Iracemápolis) – inauguradas a partir de 2012 –, a presença de trabalhadores com ensino superior é proporcionalmente menor à verificada em polos mais antigos. Mas isso não pode ser considerado um limitador na construção de uma possível identidade de classe. Esses polos concentram uma produção industrial diversificada, diferenciando-se dos mais antigos pela menor mobilização dos trabalhadores que pode ser atribuída, entre outros fatores, ao tamanho das unidades industriais e de setores, com concentração variada de trabalhadores
Essa diferença no que tange à escolaridade está relacionada, em larga medida, à faixa etária, que pode ser também associada ao ritmo da trajetória escolar. Assim, enquanto os trabalhadores jovens (com até 35 anos) representavam, respectivamente, 80% e 68% dos empregados no Polo Sorocaba e Piracicaba – ou seja, duas regiões em que os trabalhadores das montadoras apresentavam escolaridade relativamente mais baixa – no ABC, Polo São Carlos e Polo Campinas, os jovens não chegavam a 50% dos empregados em 2018, sendo apenas 24% no Vale do Paraíba (São José dos Campos, Taubaté e Jacareí). Esses resultados indicam diferentes estratégias de gestão de mão de obra, enquanto nas montadoras mais recentes (Polos Sorocaba e Piracicaba) há uma preferência pela contratação de trabalhadores mais jovens, sem curso universitário ou com a graduação universitária ainda em andamento; em montadoras já estabelecidas, existe uma opção pela contratação de trabalhadores mais experientes, com o ensino superior completo e muitos deles com uma sólida trajetória de trabalho em montadoras da região, conforme Tabela 2, abaixo.
Tabela 2 – Percentual de trabalhadores das montadoras do estado de São Paulo
com até 35 anos de idade
Polos industriais automotivos |
2003 |
2006 |
2009 |
2012 |
2015 |
2018 |
Polo ABC |
16% |
25% |
37% |
45% |
39% |
35% |
Polo Vale do Paraíba |
16% |
23% |
32% |
36% |
32% |
24% |
Polo Campinas |
66% |
76% |
83% |
77% |
63% |
49% |
Polo Sorocaba |
- |
- |
- |
92% |
87% |
80% |
Polo Piracicaba |
- |
- |
- |
89% |
79% |
68% |
Polo São Carlos |
23% |
23% |
42% |
35% |
32% |
29% |
Total do estado de SP |
18% |
28% |
41% |
49% |
44% |
39% |
Vínculos ativos no dia 31/12.
Fonte: RAIS – Migra Vínculos. ME. Anos selecionados. Elaboração própria.
A partir da leitura do Gráfico 1, a seguir, as diferenças em relação à trajetória ou tempo de vínculo ficam ainda mais evidentes. Ao se considerar a totalidade de vínculos existentes em cada ano (ativos e desligados), nota-se que mais de ¾ dos trabalhadores das montadoras do Vale do Paraíba, ABC e Polo Campinas, estavam no emprego há mais de 5 anos. Em São Carlos, no ano de 2016, essa condição chegou a representar cerca de 90% dos empregados (atualmente está em 68%). Embora o tempo de atuação das empresas deva ser levado em consideração, chama a atenção que, após 10 anos de funcionamento, os percentuais de vínculos de trabalho duradouros na indústria automobilística dos Polos Sorocaba e Piracicaba (ou seja, vínculos com mais de 5 anos) sejam inferiores aos verificados nas demais regiões. Isso pode ser atribuído à maior permanência de postos de trabalho com características fordistas nas regiões de industrialização mais antiga. Apesar do crescimento da terceirização, nesses locais a organização operária contribui para a extensão dos vínculos ao pressionarem pela manutenção de empregos.
Gráfico 1 – Percentual de vínculos de trabalho ativos há mais de 5 anos
Fonte: RAIS – Migra Vínculos. ME. Anos selecionados. Elaboração própria
Obs.: Percentuais referentes à totalidade de vínculos (ativos e desligados) em cada ano.
Outro resultado que se destaca, de acordo com o Gráfico 2, refere-se às diferenças entre as médias salariais. Historicamente, devido à tradição de luta e organização sindical, tempo de atuação das empresas e a presença de diretores e outros trabalhadores administrativos ou mensalistas, as montadoras do ABC e do Vale do Paraíba possuem médias salariais mais elevadas que as demais montadoras do estado. A partir de 2011, porém, a média salarial dos trabalhadores do Polo Campinas superou a média verificada em polos tradicionais da indústria automobilística. Esse resultado é combinado com o crescimento da participação da região no Valor de Transformação Industrial (VTI)8 do setor automotivo estadual e corrobora a relação entre produtividade e salários, ou seja, quanto maior o valor gerado pelo trabalhador à empresa, maior o salário e as chances dele conquistar aumentos salariais (RODRIK, 2011). Também no Polo São Carlos, a diferença salarial foi gradativamente reduzida com a presença de trabalhadores vindos da fábrica mais antiga, no ABC, e a constituição de um sindicato mais presente no local de trabalho. Contudo, ainda que a relação causal entre VTI e ganhos de produtividade partilhados com trabalhadores seja um fator importante de ser observado, a comparação é relativizada quando olhamos para os demais polos analisados.
Gráfico 2 – Remuneração média dos empregados das montadoras do estado de São Paulo (em R$ de 2018)
Vínculos ativos no dia 31/12.
Fonte: RAIS – Migra Vínculos. ME. Anos selecionados. Elaboração própria.
Por fim, nota-se também uma diferença em relação à modalidade de vínculos de trabalho dominante dentre as montadoras. Embora os contratos CLT, sem duração pré-definida, representem quase a totalidade dos vínculos do estado, nos Polos Sorocaba e São Carlos, a sua presença se reduz em 2018 para 69% e 68%, respectivamente. Essa diferença em ambas as localidades em relação às demais intensificou-se durante a crise que se abateu no setor automotivo nos últimos anos, mas apoiou-se, principalmente, nas modalidades flexíveis de trabalho, que existiam antes da Reforma Trabalhista de 2017, como os contratos CLT por tempo determinado (que, em 2018, representaram 29% dos vínculos em São Carlos) e os contratos por prazo determinado (regidos pela Lei 9.601/98, que representaram 26% dos contratos de Sorocaba e dependem de acordo ou convenção coletiva com os sindicatos) (RAIS-Migra Vínculos, 2018).
Embora as montadoras tenham evitado, até agora, recorrer às novas formas flexíveis de trabalho, como os contratos intermitentes e por tempo parcial, as regiões de industrialização mais recente, como Piracicaba e Sorocaba, revelam dificuldades sindicais em conter os contratos com jornadas mais extensas. Assim, enquanto em Sorocaba os trabalhadores que escapam da jornada-padrão já representam 24%; em Piracicaba, a totalidade dos contratos difere dos limites estabelecidos no setor, sendo que 77% ultrapassam as 40 horas semanais. A partir das modalidades flexíveis de trabalho autorizadas pela Reforma Trabalhista, uma suposição a ser auferida sobre o emprego metalúrgico nos próximos anos é a de que nos polos industriais automotivos mais novos a disseminação de contratos intermitentes e parciais poderá ser mais intensa em comparação com os polos industriais automotivos tradicionais.
Em suma, o ABC paulista continua como a região automotiva que mais emprega, e possui a mão de obra com maior escolaridade e com melhores condições de trabalho, ainda que esse último aspecto esteja em risco no atual contexto. Nos últimos anos, porém, é uma das regiões que mais perdeu vínculos de trabalho e reduziu a sua importância relativa no conjunto do emprego nas montadoras. O Polo Automobilístico de Campinas (composto por Sumaré e Indaiatuba) se destaca pelo aumento da participação de Sumaré no Valor de Transformação Industrial (VTI) automobilístico do estado de São Paulo (subiu de 2% para 6,7%), que se deu acompanhado do aumento das médias salariais dos trabalhadores, superando as médias verificadas no ABC.
No Polo vizinho, Piracicaba, o crescimento na participação do VTI foi ainda maior (de 0,8% para 7%), porém as médias salariais não acompanharam o mesmo ritmo e permaneceram estagnadas, em torno de R$ 4,2 mil, uma das menores dentre as montadoras do estado. Esse resultado, ao lado da maior proporção de trabalhadores em jornadas acima de 40h, reforçam os indícios de que os sindicatos da região apresentam maiores dificuldades em regular o processo produtivo ou extrair melhorias salariais que acompanhem o crescimento do emprego e a rentabilidade das atividades ali desenvolvidas. Apesar do fraco desempenho do mercado doméstico, no ano de 2018, as montadoras de Piracicaba demonstravam sinais de recuperação e empregavam cerca de 3 mil trabalhadores, isto é, um número superior a 2013, quando o emprego na região alcançou o seu melhor momento com 2,48 mil empregados.
Por fim, destaca-se Sorocaba que, semelhante aos Polos Piracicaba e Campinas, demonstra crescimento positivo na composição do VTI automobilístico (de 2,8% para 6,6%), na totalidade dos empregos (de 3% para 8%), mas os sindicatos, apesar de assegurarem a jornada de 40h para 76% dos empregados, encontram dificuldades de conter as perdas salariais dos últimos anos.
Desdobramentos políticos e territoriais da reespacialização
Em 2019, o Brasil possuía 22 companhias do setor automotivo e destas, 9 tinham fábricas em São Paulo. De outra parte, é importante ressaltar que das 38 unidades fabris no Brasil, 23 se encontram ou encontravam no estado de São Paulo (ANFAVEA, 2019). Além disso, com relação ao número de empregos diretos no setor automotivo, dos 106.887 postos de trabalho no âmbito nacional, quase a metade – ou seja, 52.679 – se encontra em território paulista (RAIS Migra Vínculos, 2019).
Vale dizer que se há uma forte diminuição, nesta última década, do emprego industrial automotivo em uma região de industrialização antiga do setor (caso da região do ABC), há um crescimento importante em outras áreas do estado que, como foi mencionado, vem dos anos 1990 e, principalmente, dos anos 2000.
Esses resultados são coerentes com os achados da literatura sobre aglomerações industriais que há tempos identifica um movimento de migração das empresas atuantes nos setores industriais maduros – isto é composto por “empresas financeiramente sólidas, que possuem a expertise do processo produtivo” (NEVES JÚNIOR, 2018, p. 11) – para áreas de greenfields. Essa migração ocorre pela busca de vantagens fiscais e outros incentivos decorrentes, antes da localidade, que da urbanização, como o acesso privilegiado aos insumos e matérias-primas, áreas para expansão das instalações, menor congestionamento, facilidades para exportação, mão de obra de baixo custo e incipiente organização sindical (NEVES JÚNIOR, 2018).
No Brasil, ainda que o grupo FCA-Jeep, com sua unidade em Goiana, Pernambuco, atue desde 2015 na região Nordeste, a grande maioria das unidades industriais, montadoras de automóveis, localizam-se nos estados da região Sul e Sudeste. Isso porque esses estados concentram os principais mercados consumidores do país, estão territorialmente mais próximos dos países do Cone Sul, e desfrutam de melhor infraestrutura logística e de transportes. Assim, o mais recente movimento de abertura de novas montadoras no interior do estado de São Paulo manteve a lógica de, primeiro, manter a proximidade dos mercados e das principais empresas da cadeia produtiva doméstica e regional (instaladas na Argentina, Uruguai e Paraguai) e, segundo, desfrutar das vantagens locacionais identificadas na seção anterior, tendo por base as condições notadas especialmente nos casos dos Polos de Sorocaba e Piracicaba, como os salários mais baixos; jornadas mais longas; índices significativos de contratos por prazo determinado; mão de obra jovem e com escolaridade, comparativamente, mais baixa ou em andamento.
As isenções, descontos tributários e incentivos fiscais, embora não determinantes, também influenciam a reespacialização da indústria ou a sua continuidade em determinada região. Com exceção dos primeiros acordos, estabelecidos em meados dos anos 1990, existe, atualmente, uma maior dificuldade em obter informações ou calcular de modo preciso os valores das vantagens oferecidas. Informações do último programa de incentivos lançado pelo Governo de Estado de São Paulo (o IncentivAuto) revelam, no entanto, que o acordo para a manutenção das operações da General Motors no estado envolveu a oferta de descontos de 25% no valor do imposto estadual (o ICMS) condicionado ao investimento de R$ 10 bilhões e a geração de no mínimo 400 postos de trabalho diretos.
Algumas montadoras, como os exemplos recentes da Honda, em Itirapina, e da Mercedes Benz, em Iracemápolis, têm optado por assumir o financiamento das unidades de modo independente ou sem o auxílio do poder público local. Foi isso que permitiu que a Honda adiasse continuamente (de 2016 a 2019) a inauguração de sua unidade no Polo São Carlos e que a Mercedes Benz encerrasse as suas operações em Itirapina, quatro anos após o início de suas atividades. No caso da montadora de origem alemã, cabe destacar que a indenização aos trabalhadores foi negociada diretamente com o sindicato e as críticas ao Estado brasileiro se deu em relação à mudança de orientação política do governo federal, que resultou em atraso do repasse dos créditos de IPI obtidos durante o Inovar-Auto e a redução dos incentivos para produção local.
A presença de fábricas com plataformas flexíveis, de menor dimensão e cada vez mais especializadas na produção de CKD(s), reduz a participação do Brasil na produção automotiva mundial e favorece ainda mais a mobilidade do capital na mais recente configuração do neoliberalismo. Considerada estratégica para o desenvolvimento econômico das nações, a indústria automobilística parece vivenciar um ciclo de sobrevida no país, dado que o cenário pandêmico de incertezas em escala global se une às mudanças tecnológicas que estão sendo paulatinamente incorporadas pelas cadeias produtivas, sinalizando uma transição paradigmática da manufatura. O quadro potencialmente desestabilizador é delineado por um ambiente de negócios em constante movimento, influenciado por estratégias de competição que envolvem corporações transnacionais e autoridades governamentais na corrida pelo predomínio no mercado automobilístico, com investimentos de larga escala nas áreas de ciência e inovação tecnológica, em resposta aos desafios de renovação das plantas produtivas, cada vez mais focadas na conectividade, uso de energia limpa, diversificação de modelos e demanda personalizada9.
A revitalização do setor automotivo está diretamente relacionada com a capacidade de investimentos das multinacionais em processos automatizados e interconectados, que demandam um conjunto de trabalhadores formados especialmente nas áreas tecnológicas. É para esse sentido que as estratégias de competição e produtividade da indústria automobilística apontam, mudando consideravelmente a dinâmica regional da cadeia de valor (DE PROPIS; BAILEY, 2020; UNCTAD, 2020).
A simultaneidade de crises vividas pelas sociedades industriais avançadas e em desenvolvimento, expressadas especialmente após a eclosão da pandemia, impõe um processo de reorganização das cadeias produtivas globais que implica desafios significativos à capacidade de adaptabilidade à conjuntura com a qual parte considerável das empresas e dos trabalhadores não conseguem lidar. Após dois anos completados de pandemia, a situação se mantém pouco favorável à retomada da atividade produtiva automobilística e à atração de investimentos frente às restrições do contexto interno e externo10. Conjuntura que acentua as motivações da reespacialização das montadoras no estado de São Paulo, com o objetivo de redução de custos, seja pelos incentivos fiscais que receberam, seja por menores salários pagos aos trabalhadores; mais ainda, pela maior fragmentação dessa categoria de trabalhadores, enfraquecendo suas formas organizativas que cumprem papel imprescindível na manutenção de condições dignas de trabalho.
Escapam, assim, do passivo político do ABC paulista, marcado pela tradição operária e sindical. Contudo, mesmo no ABC, essa tradição está se fragmentando e a região tem vivenciado, cada vez mais, a substituição da indústria pelos serviços. O mesmo acontece em outras regiões do país que receberam montadoras nos últimos anos, onde a ausência de uma experiência operária anterior mantém os salários baixos comparativamente ao estado de São Paulo. Nota-se que, em parte dos polos do estado, o salário superou a média do ABC paulista (Polo Campinas) e outros se aproximam, com exceção dos mais recentes, como os polos de Piracicaba e Sorocaba.
A crise econômica, política e institucional que se abateu sobre o país a partir de 2016, como já mencionado, tem levado ao fechamento de unidades industriais e mesmo ao abandono das atividades no país, como o caso da Ford. Isso tende a se refletir nas regiões onde a indústria automotiva chegou recentemente com o fechamento de fábricas, como a da Mercedes-Benz em Iracemápolis; acentuando, assim, o processo que alguns autores chamam de “desindustrialização prematura”11 da região ou mesmo do país, que acontece já há algum tempo (CASTILLO; NETO, 2016).
Em complemento, nota-se que:
a reforma trabalhista de 2017 expandiu o poder das empresas multinacionais no que diz respeito às relações de trabalho. No caso do setor automotivo, a ameaça permanente de retirar os seus investimentos como forma de pressão sobre operários, sindicatos e governos se agravou ao final de 2018 e início de 2019 (RAMALHO; SANTOS; RODRIGUES, 2019, p. 353-354).
No que tange ao conjunto dos sindicatos metalúrgicos no estado de São Paulo – que representam os operários do setor automotivo – no total de onze associações de trabalhadores desse setor, cinco estão filiadas à Central Única dos Trabalhadores (CUT); três à Força Sindical, duas à Intersindical e uma à Central Sindical e Popular (CSP- Conlutas). Os sindicatos ligados à CUT representam a maioria dos operários do setor automotivo no estado seguidos, respectivamente, daqueles da Força Sindical, da Intersindical e da CSP-Conlutas. É importante observar que, a despeito de representarem quatro diferentes centrais sindicais e terem, em suas origens, diferenças de concepção da luta sindical, práticas de organização nos locais de trabalho que privilegiam, como no caso do sindicalismo-CUT, particularmente nas montadoras, organizações de comissões de fábricas; Sistema Único de Representação (SURs) e/ou Comissão Sindical de Empresa (CSEs), observa-se que não há uma diferença muito grande que possa influenciar decisivamente a ação cotidiana dos sindicatos na indústria automobilística em São Paulo. Uma das razões que podemos destacar a uma certa conformidade de ação entre as centrais sindicais nesse setor seria a condução do plano estratégico das montadoras que levariam em conta as macrotendências da produção automobilística mundial, tanto em termos de reengenharia e gestão dos processos de trabalho quanto em termos de competição mercadológica para atrair novos consumidores (CANDELO, 2019). Em que pesem as especificidades de cada montadora no território, os diversos sindicatos de metalúrgicos enfrentam problemas parecidos, sendo a reespacialização um fator que pressiona a ação sindical frente às limitações negociais nos casos disruptivos, de fechamento de fábrica, transferência de funcionários para outras plantas produtivas, mudanças nas estratégias de investimentos e descumprimento de garantias acordadas12.
Conforme o discurso de um sindicalista entrevistado,
[...] essa geração mais nova já pegou o nosso modelo, mais ou menos montado, eles já pegaram o modelo com o PLR, com os salários em dia, eles não tiveram que fazer muita luta. Quando se tem greve, a gente negocia e nem os dias de greve você perde. Na nossa geração, se você parava 40 dias, você perdia os quarenta dias e mesmo assim a gente continuava porque a gente sabia que ali era guerra, era disputa direta. Essa geração atual, não que eles tenham culpa disso, mas pegaram o modelo montado. Para demitir alguém, antes o caso tem de ser discutido na comissão de fábrica, todos os assuntos desde o bebedouro até a escolha do presidente da Ford são discutidos com o sindicato [...] Agora para trazer esse pessoal [para o sindicato] nós temos de trabalhar de outra forma né, porque a luta ela traz o trabalhador para a política, para o dia-a-dia do sindicato (Entrevista realizada, em nov. de 2016, com um trabalhador metalúrgico, que trabalhou na Ford entre 1979 e 2021 e fez parte do Sistema Único de Representação sindical).
A partir da citação, é como se os anos de crescimento da produção e das vendas automotivas, de 2004 a 2013, tenham contribuído para que os trabalhadores se interessassem pelo sindicato apenas nas campanhas salariais visando a manter seu padrão de consumo, mais do que por qualquer veleidade política. Obviamente, a afirmação desse sindicalista é insuficiente para entender o envolvimento sindical dos trabalhadores, mas é indicativo de tendência que tem se verificado nas últimas décadas, principalmente a partir dos governos trabalhistas do PT, da ascensão de parte desses trabalhadores numa nova classe média, marcada mais pela inserção social via consumo do que na conquista e manutenção de direitos13. Na atualidade, esses mesmos sindicalistas estão sendo confrontados, tanto no âmbito internacional quanto nacional – e também no estado que possui o maior número de montadoras instaladas em seu território comparado com o resto do Brasil, além do maior contingente de trabalhadores –, com uma nova realidade que tende a eliminar direitos e levar ao fechamento de empresas e, portanto, perda de empregos, trazendo uma vulnerabilidade muito grande à ação sindical que possui relação intrínseca com o desenvolvimento do território.
Durante a pandemia da Covid-19, notamos uma maior semelhança e unidade de ação, em que os sindicatos de diferentes orientações negociaram coletivamente ou observaram os acordos estabelecidos pelo sindicato dos metalúrgicos do ABC para estabelecer acordos semelhantes de suspensão dos contratos e redução dos salários com redução da jornada (MP 927 e MP 936).
Considerações finais
O sindicalismo, na contemporaneidade, em decorrência das transformações na economia, na política, na sociedade e no âmbito das empresas, está passando por uma crise aguda. Em contraposição, no capitalismo do pós-guerra, os sindicatos foram amplamente reconhecidos e seu poder se consolidou enormemente. Desde os anos de 1970, no entanto, as grandes organizações industriais que, em alguma medida, representavam a força do trabalho organizada, foram progressivamente adotando novas tecnologias e formas de gestão de trabalho “enxutas”, no sentido da maior terceirização de atividades e redução da força de trabalho utilizada, tornando o modelo anterior obsoleto. Essas mudanças se deram num quadro de acirramento da competição global, recessão e incertezas econômicas crescentes que, somadas, colocaram em crise o sindicalismo e as bases institucionais nas quais ele se desenvolveu (WESTERN, 1999). O mundo assistiu a uma profunda transformação, notadamente nos países centrais, como resultante dessas mudanças que levaram a mudanças no perfil das classes trabalhadoras. O setor industrial deixou de ser predominante em termos de ocupação da força de trabalho, sendo substituído, cada vez mais, pelo setor de serviços. Essas mudanças têm trazido desafios substanciais à ação sindical14.
Essa questão sempre envolve o desafio de como medir a força dos sindicatos. Não existe uma resposta definitiva para esse debate, mas alguns dados empíricos são indicativos: a) Se tomarmos como um indicador da força dos sindicatos o número absoluto de trabalhadores sindicalizados, os dados da Pnad Contínua (2012-2019, a última realizada antes da pandemia) do IBGE, revelam que o número de trabalhadores sindicalizados caiu de 14,4 milhões, em 2012, para 10,6 milhões, em 2019; b) Se considerarmos a densidade sindical ou a taxa de sindicalização, (ou seja, o percentual da população ocupada que se declara filiada aos sindicatos), segundo a mesma fonte, o percentual cai de 16,1% para 11,2%, a menor taxa em toda a série histórica; c) Se considerarmos a capacidade dos sindicatos assegurarem a reposição da inflação ou reajuste salariais, o último boletim salariômetro da FIPE (2022), que entre janeiro e abril de 2022, monitorou 3.298 instrumentos coletivos, constatou que pouco mais de um quarto, ou 26,9%, das negociações resultaram em reajustes salariais acima da inflação (INPC). No geral, 29,5% somente repuseram as perdas (ou seja, conquistaram reajustes iguais ao INPC) e 43,6% tiveram reajustes abaixo do INPC, o que representa perda do poder aquisitivo dos trabalhadores. Esse estreitamento da margem de reajustes só se compara ao período de acirramento da crise política do governo Dilma, entre outubro de 2015 e abril de 2016 (FIPE, 2022); d) Se verificarmos o mesmo indicador, ou seja, o resultado das negociações coletivas só que agora calculado pelo DIEESE, a partir da mesma fonte, notamos que a conclusão é semelhante. Com a informação mais recente, disponível apenas para os meses de janeiro a abril desse ano (2022) notamos que 40,8% dos reajustes ficaram abaixo a inflação (INPC-IBGE), 31,6% mantiveram-se iguais e 27,6% conquistaram aumentos (DIEESE, 2022). Além disso, só no primeiro ano da reforma trabalhista, ou seja, em 2018, os sindicatos perderam entre 80% e 90% da arrecadação decorrente da contribuição obrigatória, o que levou a um enxugamento de estruturas administrativas, dispensa de quadro técnico permanente, mudanças e venda de sedes, além da maior dificuldade de financiar atos e ações de rua15.
É evidente que os sindicatos continuarão a existir e não descartamos a possibilidade de encontrarmos negociações coletivas e ações políticas inovadoras. Sindicalistas metalúrgicos, entretanto, têm indicado em nossas entrevistas uma maior intransigência das montadoras nas negociações com os trabalhadores e dificuldades de conquistar novos filiados, apesar do reforço das campanhas de sindicalização.
Trabalhamos com a ideia de crise, não de declínio também presente na literatura (RODRIGUES, 2002), pois defendemos que a conjuntura pode se alterar e parte das dificuldades podem ser revertidas. Contudo, acreditamos que vivenciamos no presente uma conjuntura política e social de dificuldades para o movimento dos trabalhadores e isso trouxe impactos significativos à capacidade de mobilização e ação propositiva dos sindicatos.
Desde 2015, tivemos o golpe sofrido pelo governo Dilma, a reforma trabalhista foi aprovada, Bolsonaro foi eleito pelo voto, com um discurso sobre o trabalho, baseado na escolha “trabalho ou direitos”, a Ford encerrou as suas operações no Brasil, a Toyota também fechou a sua fábrica no ABC e a CAOA Chery anunciou o encerramento de suas operações em Jacareí. Diante desse cenário, sem menosprezar os esforços dos sindicalistas, é preciso reconhecer que eles tiveram pouca capacidade de impedir ou mobilizar a sociedade para reverter esses processos.
Este artigo, ancorado em amplo conjunto de dados secundários, procurou discutir o processo de reespacialização industrial no estado de São Paulo, tendo como objeto os trabalhadores metalúrgicos que trabalham na indústria automobilística nesse estado. A reespacialização industrial que se inicia na década de 1990, e que aumenta seu ritmo nas duas décadas seguintes do século XXI, no caso paulista, significou um processo de interiorização de unidades fabris, caracterizando-se pelo uso decrescente da força de trabalho e redução do número de empregos e dos salários sem, contudo, se destacar em termos de inovação na comparação com suas matrizes no exterior.
É importante ressaltar que este conjunto de dados, temas, problemas e questões são fundamentais para ilustrar os desafios enfrentados pelo sindicalismo metalúrgico em geral e, em particular, os onze sindicatos que representam os trabalhadores das montadoras presentes em seis polos de produção no estado de São Paulo.
Os desafios que estão postos para esses organismos de representação e os trabalhadores são os mesmos: as mudanças no âmbito da tecnologia nestes últimos anos; o tema da Indústria 4.0; a queda nos salários reais dos trabalhadores; fechamento de empresas como parte da estratégia global das multinacionais do automóvel; a pandemia que trouxe dificuldades inauditas para a ação sindical, são todos elementos que estão presentes no cotidiano do chão de fábrica e nos sindicatos. Além disso, as mudanças levadas adiante, pós-2016, com a Reforma Trabalhista em 2017 e todo o processo de regressão de direitos a partir deste período – e aprofundado em um grau nunca visto no período 2018-2021, com o aumento em massa do desemprego – são elementos explicativos para a queda da taxa de sindicalização entre os metalúrgicos em geral e, dos trabalhadores da indústria automobilística, em particular, como de resto de todas as categorias de trabalhadores no país. O grande desafio sindical hoje é disputar – nos locais de trabalho, de moradias e também na sociedade – o discurso que consiga atrair as novas gerações, bombardeadas, nas últimas décadas, pela ideologia neoliberal que reforça o individualismo e se contrapõe ao coletivo, à solidariedade, à justiça social, à luta por direitos.
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STURGEON, Timothy; CHAGAS, Leonardo L.; BARNES, Justin. Inovar Auto: Evaluating Brazil’s Automotive Industrial Policy to Meet the Challenges of Global Value Chains. Brazil’s Productivity Programmatic Approach. Washington, DC: World Bank Group, 2017. Disponível em: <https://openknowledge.worldbank.org/handle/10986/28947>. Acesso em: 05 nov. 2021.
TEIXEIRA, Patrícia. Sindicato cita falta de informações sobre PDV da Honda e diz que medida disfarça demissão em massa. G1, Campinas e Região, 14 out. 2021. Disponível em: < https://g1.globo.com/sp/campinas-regiao/noticia/2021/10/14/sindicato-cita-falta-de-informacoes-sobre-pdv-da-honda-e-diz-que-medida-disfarca-demissao-em-massa.ghtml>. Acesso em: 15 jun. 2022.
TOYOTA. Annual Report 2019. Ano fiscal de 1º de abril de 2018 a 31 de março de 2019, 2019.
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WESTERN, Bruce. Between class and market: postwar unionization in the capitalist democracies. Princeton: Princeton University Press, 1999.
Recebido em: 31/03/2022
Aceito em: 29/06/2022
1 Os municípios abrangidos por cada polo produtivo são: Polo ABC (São Bernardo do Campo e São Caetano); Polo Vale do Paraíba (São José dos Campos, Taubaté e Jacareí); Polo Campinas (Sumaré e Indaiatuba); Polo Sorocaba (Porto Feliz e Sorocaba); Polo Piracicaba (Piracicaba) e Polo São Carlos (São Carlos e Itirapina).
2 Projeto de Pesquisa: Trabalho, sindicalismo e pandemia (2020-2023).
3 O ano de 1950 marca o início da formação e concentração na região de uma classe trabalhadora industrial. Apesar de a Volkswagen-Anchieta ter sido inaugurada em 1959, a Simca naquele mesmo ano, e a Toyota em 1962, em São Bernardo do Campo, a Willys Overland (adquirida pela Ford em 1967) já tinha uma fábrica na região desde 1952, sendo que a montagem de jipes se iniciou em 1954. A Vemag lançou seu primeiro automóvel fabricado no Brasil em 1956, na fábrica do Ipiranga, em São Paulo, bairro fronteiriço à região do ABC.
4 Harvey (1993) e Castells (2003) discutem os processos de desconcentração industrial dos países centrais e sua reespacialização na periferia em busca de menores custos do trabalho.
5 Esse segundo movimento de chegada das montadoras foi, em grande parte, incentivado por três ações políticas. Uma delas setorial, chamada de novo regime automotivo (dez./1995), que aumentou as alíquotas de importação dos veículos de 20% para 70%, e estabeleceu uma cota de importação de veículos com tarifa especial de 35% para as montadoras que aqui atuavam ou aqui se instalassem. Uma segunda ação foi a guerra fiscal entre os estados, os quais, além dos subsídios nas tarifas de água e energia, ofereciam investimento público direto na construção das instalações e pagamentos em dinheiro vivo, à título de capital de giro e bonificações, como o que ocorreu no caso da GM, Gravataí (RS), bem como a política de incentivo de desenvolvimento do Nordeste, iniciada em agosto de 1999 (ARBIX, 2006).
6 Ver, por exemplo, Krein (2018) e Galvão et al. (2019).
7 A Região Administrativa de Campinas (que compreende uma área geográfica ampliada) reúne os municípios de Sumaré, Indaiatuba e Piracicaba. A Fundação Seade (Sistema Estadual de Análise de Dados) cita algumas vezes o Valor da Transformação Industrial (VTI) e outras informações para a Região Administrativa de Campinas. Cf. Seade (2019). Neste artigo, os dados foram organizados segundo polo industrial.
8 A Fundação Seade estima o VTI por municípios do estado de São Paulo a partir de um índice composto pelo Valor Adicionado das atividades industriais divulgadas anualmente pelo IBGE, na Pesquisa Industrial Anual (PIA), mais o valor da saída de produtos (mercadorias vendidas e serviços) declarado pelas empresas industriais à Secretaria da Fazenda do Estado de São Paulo. Cf. Seade (2019, p. 5-6).
9 Os projetos de renovação das plantas produtivas e renovação de portfólio constam nos relatórios anuais das montadoras. Ver, por exemplo, Fiat Chrysler, 2020; Volkswagen, 2019.
10 Análise baseada nos relatórios estatísticos constantes na página de OICA. International Organization of Motor Vehicle Manufacturers. World Motor Vehicle Production by country/region, 2020. Disponível em: <https://www.oica.net/category/production-statistics/2020-statistics/>. Acesso em: 10 set. 2021.
11 Ver também Rodrik (2016).
12 Dentre os casos mais recentes que suscitaram mobilizações dos(as) trabalhadores(as), podemos mencionar o programa de demissões voluntárias (PDV) da Honda, no município de Sumaré (SP), vigente até outubro de 2021, complementado pela transferência de trabalhadores para a fábrica de Itirapina (SP). (TEIXEIRA, 2021).
13 Veja-se a discussão sobre nova classe média no Brasil em Neri (2008), Pochmann (2012), Cardoso e Preteceille (2017).
14 Ver, por exemplo, Ramalho e Rodrigues (2018), especialmente da página 73 à 78.
15 https://economia.uol.com.br/noticias/estadao-conteudo/2019/03/05/sindicatos-perdem-90-da-contribuicao-sindical-no-1-ano-da-reforma-trabalhista.htm
Cf: https://www.redebrasilatual.com.br/trabalho/2018/05/com-reforma-trabalhista-sindicatos-perdem-80-das-receitas-no-1o-trimestre/.
CLASSE TRABALHADORA NA “CAPITAL DO AGRONEGÓCIO”:
Trabalho e espaço urbano em Sorriso (MT)
WORKING CLASS IN THE “AGRIBUSINESS CAPITAL” :
Labor and urban space in Sorriso (MT)
____________________________________
Luiz Felipe de Farias1*
Resumo
Este artigo tem como objetivo investigar as contradições que permeiam o espaço urbano de Sorriso (MT), maior município produtor de soja do Brasil. Destacaremos o processo de formação desse município desde a década de 1980, com ênfase especialmente nas causas e consequências da segregação socioespacial. Com base em trechos de entrevistas realizadas para nossa pesquisa de doutorado, vamos detalhar inquietações envolvendo o mundo do trabalho e o espaço urbano em Sorriso. Vamos nos ater em especial à dinâmica da especulação imobiliária e aos conflitos envolvendo moradia nessa cidade.
Palavras-chave: Agronegócio. Trabalho agroindustrial. Especulação imobiliária. Conflito por moradia.
Abstract
This article investigates the contradictions of the urban space in Sorriso (MT), the largest soy producing municipality in Brazil. We wil highlight the formation process of this municipality since 1980, especially the causes and consequences of the socio-spatial segregation that explicitly divides the city. Based on excerpts from interviews conducted for our doctoral research, we will detail concerns about labour and urban space in Sorriso. We are going to focus in particular on the dynamics of real state speculation and conflicts involving houving in this city.
Keywords: Agribusiness. Agro-industrial labor. Real estate speculation. Conflict over housing.
Introdução
Ao longo das últimas décadas o complexo da soja no Brasil alcançou um desempenho econômico excepcional, tornando-se atualmente um dos mais importantes sustentáculos do atual padrão de articulação de nosso país com o mercado internacional. Entre 2000 e 2018 a produção brasileira de soja saltou de 32,8 milhões de toneladas em 13,7 milhões de hectares para 117,9 milhões de toneladas em 34,8 milhões de hectares. Principal produtor brasileiro do grão no país hoje, o estado do Mato Grosso viu sua safra de soja saltar de 8,8 milhões de toneladas colhidos em 2,9 milhões de hectares no ano de 2000 para 31,6 milhões de toneladas colhidos em 9,4 milhões de hectares no ano de 2018. Ao longo de todo esse período, a soja e seus derivados consolidaram-se dentre os principais produtos da pauta de exportações brasileira: segundo as séries históricas do Ministério da Indústria, Comércio Exterior e Serviços, as exportações brasileiras de soja em grãos, farelo e óleo saltaram de US$ 4,2 bilhões ou 7,5% das exportações totais do país em 2000 para US$ 40,7 bilhões ou 17% das exportações totais do país em 2018.
1* Doutor em sociologia pela Universidade de São Paulo (USP). E-mail: luiz.fcdefarias@gmail.com
ISSN 1517-5901 (online)
POLÍTICA & TRABALHO
Revista de Ciências Sociais, nº 56, Janeiro/Junho de 2022, p. 42-61
Essa expansão da soja foi acompanhada por uma acelerada urbanização do campo. A leitura de Milton Santos (2013) acerca da urbanização brasileira é uma referência indispensável para a compreensão dessas transformações da hierarquia urbana do país como um todo e das principais regiões do assim chamado “agronegócio” em particular. Segundo a periodização proposta pelo autor, a segunda metade do século XX foi marcada pela expansão do meio técnico-científico-informacional em escala global, salto do processo de remodelação e artificialização do território através da criação e difusão de sistemas técnicos articulados entre si por crescentes fluxos materiais e imateriais fundamentais à reprodução de relações sociais hegemonizadas pelo capital monopolista. Por um lado, essa integração de diferentes lugares por meio de sistemas técnicos com graus diferentes de complexidade tornou possível uma cada vez mais minuciosa sincronia entre os eventos subordinados ao controle de grandes corporações transnacionais. Por outro lado, acentuaram-se diferenças entre os chamados espaços luminosos integrados aos automatismos técnico-sociais do capitalismo monopolista e os espaços opacos incompletamente racionalizados e carentes de incorporação técnico-científica.
Acentuaram-se assim a diferenciação e especialização no interior da hierarquia urbana, de modo que ao lado de grandes metrópoles capazes de produzir e administrar fluxos de informações por todo território nacional proliferaram-se diversas cidades pequenas e médias como pontos nodais de circuitos produtivos e de circuitos de cooperação que articulam a produção e o consumo locais às economias regional, nacional e global. Segundo Milton Santos (2013), os circuitos produtivos correspondem a fluxos de capitais, mercadorias e serviços que servem tanto como meios de consumo de famílias quanto como meios de produção de unidades fabris e agrícolas, enquanto os circuitos de cooperação dizem respeito aos fluxos de informações, mensagens e ordens que conformam nexos horizontais e verticais capazes de organizar os processos de trabalho e de apropriação do território em escala local de acordo com os projetos transnacionais. Nesse contexto, as cidades no campo que antes concentravam funções predominantemente administrativas tornaram-se o que Santos chamou de cidades do campo, espaços urbanos não metropolitanos que se afirmam como mediações-chave entre determinações macroeconômicas e políticas do mercado mundial e a produção agrícola e agroindustrial (SANTOS, 2013).
Denise Elias (2003) sustenta que tal leitura acerca do processo de urbanização brasileira tornou obsoleta a separação tradicional entre um Brasil urbano e um Brasil rural. Para tanto, a autora propõe o conceito de Regiões Produtivas Agrícolas para caracterizar os novos arranjos territoriais das redes agroindustriais, compostos tanto por espaços agrícolas quanto por espaços urbanos escolhidos para receber os mais expressivos investimentos produtivos do “agronegócio” globalizado. Segundo ela, nas RPAs o território organiza-se predominantemente com base em imposições do mercado de commodities agrícolas e agroprocessadas sob comando de grandes empresas nacionais e multinacionais conectadas diretamente aos centros de poder e consumo em nível mundial, capazes de subordinar a proliferação de nexos horizontais relacionados ao aumento populacional e aos fluxos de força de trabalho (ELIAS, 2003). Complementarmente, a autora propõe também o conceito de cidade do agronegócio para se referir àquelas cidades locais mais importantes das Regiões Produtivas Agrícolas, adaptando, dessa maneira, a noção de cidade do campo proposta por Milton Santos. A reestruturação produtiva da agropecuária brasileira complexificou a divisão social e territorial do trabalho no Brasil e criou novas relações campo-cidade, dando origem a espaços urbanos de médio porte em que funções de atendimento às demandas do “agronegócio” globalizado são hegemônicas sobre as demais funções (ELIAS; PEQUENO, 2007).
Por um lado, essas cidades passaram a concentrar estoques de meios de consumo, meios de produção e mão de obra com diferentes níveis de qualificação, estruturas de armazenamento, processamento industrial e escoamento da produção e escritórios de agroindústrias, tradings e demais instituições comerciais e financeiras responsáveis por articular a economia local a fluxos globais de mercadorias e capitais. Essas cidades caracterizam-se, portanto, pelo aumento exponencial da demanda de trabalho intelectual e consequentemente pela rápida expansão de núcleos dedicados à produção e difusão de informações, com destaque para instituições públicas e privadas de ensino e qualificação da mão de obra com cursos de formação técnica e superior voltados à agropecuária moderna e as instituições de pesquisa voltadas à produção e difusão de inovações e adaptações mecânicas, químicas e biotecnológicas para o campo.
Por outro lado, essas cidades foram também moldadas por iniciativas de especulação fundiária que criaram de maneira artificial a escassez de terras por meio da proliferação de espaços vazios, pressionando as levas migrantes que para lá se dirigiram a ocupar áreas distantes precariamente atendidas por serviços públicos enquanto se multiplicaram condomínios fechados para classes médias e altas amedrontadas pela violência urbana. Essas cidades do agronegócio distinguem-se pela elevada taxa geométrica de crescimento de sua população, decorrentes tanto de fluxos migratórios ascendentes de trabalhadores agrícolas e urbanos com baixo grau de qualificação oriundos majoritariamente das classes subalternas da região Nordeste, quanto de fluxos migratórios descendentes de profissionais liberais, técnicos, pesquisadores, representantes de empresas e trabalhadores com alto nível de qualificação oriundos das classes médias das regiões Sul ou Sudeste. Conforma-se desse modo em seu interior uma hierarquia social crescentemente complexa em que a desigualdade econômica assume nítidos contornos étnico-culturais e projeta-se em um espaço urbano segregado, atravessado por inúmeras barreiras materiais e simbólicas que limitam o fluxo e integração das classes e frações de classes sociais.
Dentre as principais “cidades do agronegócio” vinculadas à produção de soja no Brasil hoje, destaca-se o município de Sorriso localizado no meio norte mato-grossense. O município de Sorriso encontra-se hoje predominantemente sob controle de grandes propriedades dedicadas a culturas e criações voltadas para o mercado de exportação in natura ou para o abastecimento do complexo agroindustrial carnes/grãos. Conforme os dados das tabelas 1 e 2, apenas 235 estabelecimentos com mais de 1.000 hectares controlam cerca de 87,1% da área total ocupada no município de Sorriso, proporção maior que a do Brasil como um todo e do estado do Mato Grosso em particular. Neste contexto, em 2015 a Revista Exame publicou um relatório com 50 cidades consideradas “médias-pequenas” (com população entre 50.000 e 100.000 habitantes) que então despontavam como modelos de desenvolvimento econômico e social no país. Neste ranking, o município de Sorriso aparecia em 17º lugar especialmente devido à evolução de seu Produto Interno Bruto e de seu Índice de Desenvolvimento Humano. Como mostra o gráfico 1, de acordo com o IBGE em 2017 Sorriso alcançou um PIB de R$ 5.731.412.990,00 (4º maior dentre municípios no estado do Mato Grosso) e um PIB per capita de R$ 67.251,00 (14º maior dentre municípios do estado do Mato Grosso).
Tabela 1: Estrutura fundiária em Sorriso (MT) em 2017
Classes de área (ha) |
Número de estabelecimentos |
Área Ocupada (ha) |
||
Menos de 10 |
120 |
14,5% |
419 |
0,1% |
10 a 100 |
281 |
33,9% |
11.411 |
1,4% |
100 a 500 |
92 |
11,1% |
24.639 |
3,0% |
500 a 1.000 |
100 |
12,1% |
70.155 |
8,5% |
1.000 a 2.500 |
130 |
15,7% |
195.680 |
23,6% |
2.500 a 10.000 |
98 |
11,8% |
433.269 |
52,3% |
Mais de 10.000 |
7 |
0,8% |
92.259 |
11,1% |
Total |
828 |
100 |
827.832 |
100 |
(IBGE – Resultados preliminares do Censo Agropecuário 2017)
Tabela 2: Comparação da estrutura fundiária no Brasil, em Mato Grosso e em Sorriso em 2017
Número de estabelecimentos (%) |
Área ocupada (٪) |
|||||||
Menos de 10 há |
10 a 100 ha |
100 a 1000 há |
Mais de 1000 há |
Menos de 10 ha |
Menos de 100 ha |
100 a 1000 ha |
Mais de 1000 ha |
|
Brasil |
50,9% |
39,6% |
8,4% |
1,1% |
2,3% |
18,2% |
32% |
47,5% |
Mato Grosso |
15,1% |
53,7% |
23,1% |
8% |
0,1% |
4,9% |
14,9% |
80,1% |
Sorriso |
14,5% |
33,9% |
23,2% |
28,3% |
0,1% |
1,4% |
11,5% |
87,1% |
(IBGE – Resultados preliminares do Censo Agropecuário 2017)
Gráfico 1: Evolução do PIB de Sorriso a preços correntes (unidade R$ x 1.000)
entre 2010 e 2017
(IBGE Cidades)
Ainda que relevantes, esses indicadores socioeconômicos tendem a ocultar a desigualdade social e as condições de vida das famílias trabalhadoras em Sorriso (MT). Para acessar esse universo, podemos inicialmente recorrer à evolução do Cadastro Único, conjunto de informações sobre famílias brasileiras de baixa renda que ganham até meio salário mínimo por pessoa ou até três salários mínimos de renda familiar mensal total, base de dados para diversos programas do Governo Federal como o Bolsa Família. Segundo os dados do Ministério da Cidadania, em 03/2020 havia em Sorriso 8.243 famílias cadastradas no Cadastro Único (equivalentes a 22.477 pessoas, aproximadamente 24% da população total do município) distribuídas do seguinte modo: 830 famílias com renda per capita entre 0 e R$ 89; 1.051 famílias entre R$ 89 e R$ 178; 3.117 famílias de R$ 178 a ½ salário mínimo e 3.245 famílias acima de ½ salário mínimo. Ainda segundo os dados do Ministério da Cidadania, em 05/2020 havia dentro desse universo em Sorriso 1.921 famílias beneficiadas pelo Programa Bolsa Família (equivalentes a 5.746 pessoas, aproximadamente 6% da população total do município), que receberam naquele mês um benefício no valor médio de R$ 151,49 por família. Segundo o próprio Ministério da Cidadania, com base em estimativas do IBGE, a cobertura do programa era em 2020 de apenas 71% de famílias pobres no município e o foco da gestão municipal deveria ainda estar na realização de ações de busca ativa para localizar famílias no perfil do programa ainda não cadastradas.
Dentro desse contexto, o objetivo deste artigo será investigar a situação da classe trabalhadora subordinada ao complexo grãos/carnes em Sorriso (MT), autointitulada “capital do agronegócio” e um dos maiores municípios produtores de soja no Brasil hoje. Por meio da análise de trechos de entrevistas realizados entre 2018 e 2019, buscaremos mostrar como a tensão entre o crescimento econômico do município e a precariedade da reprodução social dessas famílias trabalhadoras de baixa renda expressa-se de maneira clara na produção de um espaço urbano marcadamente desigual e segregado entre diferentes raças e classes sociais que habitam e trabalham em Sorriso.
Formação do município de Sorriso
Localizado em Mato Grosso às margens da BR 163 cerca de 400 km ao norte de Cuiabá, o município de Sorriso foi resultado de um dos inúmeros projetos de colonização na região realizados por empresas privadas das regiões Sul e Sudeste nos anos 1970. As terras onde hoje se encontra o município eram no início dos anos 1970 propriedade do norte-americano Edmund Zanini e foram parcialmente adquiridas em 1973 pelo catarinense Benjamin Raiser para que seu filho Ivo Raiser e seu genro Nelson Frâncio iniciassem uma empresa agropecuária1. Em 1975, outra parte dessas terras foi adquirida pelos irmãos de Nelson Frâncio, Demétrio e Claudino Frâncio, responsáveis pela criação da Colonizadora Sorriso que desde então se dedicaria à venda de lotes na região para produtores rurais capitalizados vindos do Sul. Desenhado pela Platec, empresa prestadora de serviços na área de topografia, planejamento e assistência técnica, o projeto de colonização foi aprovado em 09/1979, incluindo uma área urbana a ser erguida sobre 600 hectares divididos em 4.500 lotes. Sorriso tornou-se distrito de Nobres em 1980 e adquiriu autonomia administrativa em 1986, desmembrando-se dos municípios de Nobres, Paranatinga e Sinop.
A expansão da produção de grãos ao longo da década de 1990 estimulou um primeiro momento de crescimento demográfico e complexificação do espaço urbano. Entre 1990 e 2000, a produção de soja no município de Sorriso cresceu de 225 mil toneladas em uma área de 96 mil hectares para 1.500 mil toneladas em uma área de 440 mil hectares, levando à proliferação no núcleo urbano às margens da BR 163 de empresas de revenda de insumos agrícolas e de estruturas de armazenamento e transporte de grãos. Paralelamente, o número de habitantes em Sorriso passou de 16.107 em 1991 para 35.605 em 2000 como mostra a tabela 3, enquanto a população rural diminuiu de 29,7% para 11,5% da população total em especial devido à acelerada concentração fundiária local.
Dessa forma, a intensificação de fluxos migratórios vindos do Norte e Nordeste e de áreas de garimpo em decadência no norte do Mato Grosso levou à formação dos primeiros bairros periféricos de Sorriso, compostos por ruas improvisadas, irregulares e estreitas, afastadas da mancha urbana originalmente planejada com avenidas largas e retilíneas. Segundo reportagens do jornal local Folha do Cerrado, os primeiros dentre esses bairros surgidos ainda ao final dos anos 1980 foram o Fraternidade no extremo leste e o União no extremo oeste da cidade, esse último composto de 120 lotes de 10x20 loteados por iniciativa de lideranças do Sindicato de Movimentação de Mercadorias da cidade.
Na primeira metade da década de 1990, surgiram o Jardim Carolina e o São Domingos, esse último formado a partir da construção de 100 casas populares pela Companhia de Habitação Popular (Cohab), o que impulsionou em seu entorno uma série de loteamentos irregulares em terrenos originalmente planejados como o Bairro Industrial em Sorriso. Surgiram assim o Bairro São Mateus e suas típicas ruas estreitas de três metros de largura, em tudo semelhantes às vielas dos assentamentos precários em grandes cidades. A partir dos fluxos migratórios, pessoas de baixa renda concentraram-se ao redor do Bairro São Domingos, à direita da BR163, atrás dos silos que margeiam a rodovia, consolidando nos anos 1990 a segregação que ainda hoje caracteriza a cidade entre “bairros de gaúchos” a oeste e “bairros de maranhenses” a leste da BR 163 que cruza Sorriso.
Tabela 3: População rural e urbana em Sorriso entre 1991 e 2010
Ano |
População rural |
% |
População urbana |
% |
Total |
1991 |
4.782 |
29,7 |
11.325 |
70,3 |
16.107 |
2000 |
4.076 |
11,5 |
31.529 |
88,5 |
35.605 |
2010 |
8.157 |
12,3 |
58.364 |
87,7 |
66.521 |
(IBGE – Censos Demográficos)
Durante os anos 2000 e 2010, o espaço urbano de Sorriso foi dinamizado pela implantação de diversas agroindústrias de médio porte ligadas ao complexo carnes-grãos. Em 2002, foi inaugurado no município o frigorífico Anhambi com a perspectiva inicial de abater 120 mil aves/dia e gerar 380 empregos, alcançando em 07/2018 a marca de 600 funcionários diretos segundo as informações obtidas durante nosso trabalho de campo. Em 2008, foi inaugurada em Sorriso a Nativ Pescados, com atuação em toda cadeia produtiva desde a criação de peixes até seu processamento e comercialização, empregando por volta de 250 trabalhadores em suas unidades rurais e agroindustriais. Em 2010, a Caramuru Alimentos arrendou e deu início à modernização de uma planta de processamento de soja de médio porte em Sorriso, mobilizando atualmente cerca de 250 empregados diretos segundo as informações obtidas em trabalho de campo em 07/2018. Em 2011, foi inaugurado no município o frigorífico Nutribrás com capacidade inicial de abater 1.500 suínos/dia e empregar cerca de 250 trabalhadores, chegando em 07/2018 a 580 funcionários no frigorífico mais 420 na produção de suínos no município de Vera. Em 2014, foi inaugurada no município a Delicious Fish, maior planta frigorífica de peixes do Brasil em uma área de 4,8 mil m², com capacidade para abater cerca de 40 mil quilos a cada 8 horas e para empregar cerca de 100 trabalhadores em sua unidade agroindustrial. Em 2019, a Safras Indústrias e Comércio de Biocombustíveis abriu oficialmente em Sorriso sua usina de etanol de milho com capacidade para produzir 120 mil litros e gerar 55 empregos diretos.
Nos anos 2000 e 2010, houve uma explosão de loteamentos em Sorriso voltados para classes de renda baixa, média e alta, o que em conjunto com as transformações econômicas destacadas provocou sucessivas ampliações do perímetro urbano da cidade. Nesse contexto, a maior parte dos novos loteamentos urbanos no município tem sido adquirida com objetivos exclusivamente especulativos, ampliando de modo vertiginoso nos últimos anos a já grande quantidade de vazios urbanos dentro da cidade de Sorriso. Informações obtidas em julho de 2018 junto à Secretaria da Cidade indicam que existiam no interior da zona urbana de Sorriso 24.130 lotes edificados e outros 14.491 vazios. Apesar disso, estava prevista para os próximos cinco anos a abertura de mais 9.963 lotes já aprovados e de outros 13.504 lotes aguardando aprovação, como mostra a tabela 4.
Acentuam-se assim prematuramente as contradições características de uma cidade espraiada, que cria de maneira artificial a escassez de terras e moradias e gera inúmeras possibilidades de valorização e apropriação da renda da terra urbana pelo capital, ao mesmo tempo em que sobrecarrega os cofres públicos com a manutenção de uma extensa malha e pressiona os novos migrantes a pagar altos aluguéis para ocupar áreas distantes e precariamente atendidas por serviços públicos. Assim, enquanto o eixo oeste da cidade de Sorriso (os chamados “bairros de gaúchos”) é caracterizado pela proliferação de loteamentos entremeados de amplos espaços vazios, o eixo leste da cidade (os chamados “bairros de maranhenses”) é marcado pela aglomeração de ampla parcela da população do município em lotes com alto nível de adensamento.
Tabela 4: Lotes urbanos existentes em 2018 e projetados para 2022
Lotes |
Quantidade |
% |
Edificados em 2018 |
24.130 |
39 |
Vazios em 2018 |
14.491 |
23 |
Em execução |
9.963 |
16 |
Em aprovação |
13.504 |
22 |
Total projetado para 2022 |
62.088 |
100 |
Secretaria da Cidade de Sorriso (julho/2018)
Ao longo da década de 2010, foram criados em Sorriso diversos conjuntos habitacionais voltados à faixa 1 do Programa Minha Casa, Minha Vida do governo federal, como o Residencial São Francisco com 248 casas, o Residencial Santa Maria I com 225 casas entregues em 2013, o Residencial Santa Maria II com 278 casas, o Residencial Santa Cecília com 80 casas entregues em 2014 e o Residencial Mario Raiter com 1.272 casas entregues em 2017. Para as famílias que se enquadram na faixa 2 do Programa Minha Casa, Minha Vida, em que os beneficiados pagam uma prestação maior pelo imóvel, também foram entregues em Sorriso 357 casas no Residencial Pinheiros III e outras 399 no Residencial Topázio. Apesar dessas iniciativas, informações obtidas junto ao Departamento de Habitação da Secretaria de Assistência Social de Sorriso em 07/2019 apontavam que havia 6.635 famílias cadastradas e aguardando nova etapa do Programa Minha Casa, Minha Vida no município, cuja população foi estimada naquele ano pelo IBGE em 87.815 pessoas.
Agronegócio e o mundo do trabalho
A partir da década de 2000, o acelerado progresso tecnológico na lavoura de soja e milho, a consolidação do complexo agroindustrial carnes/grãos e a expansão do espaço urbano provocaram amplas transformações na força de trabalho no município de Sorriso. Segundo o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística, em 2010 Sorriso tinha 66,5 mil habitantes dos quais 33,8 mil estavam ocupados (equivalente a 49,3% da população total). Ainda segundo o IBGE, o município alcançou em 2017 cerca de 90,3 mil habitantes dentre os quais 27,6 mil estavam ocupados (equivalente a 32,4% da população total). Comparando-se esses dados com a evolução do número de empregos formais no município de Sorriso segundo a Relação Anual de Informações Sociais (Gráfico 2), podemos concluir que houve um aumento significativo da participação de trabalhadores com carteira assinada de 51% da população ocupada em 2010 para 79,5% em 2017.
Gráfico 2: Número de empregos formais em Sorriso entre 2002 e 2017
(MTE – Relação Anual de Informações Sociais)
A maior parte das entrevistas que conduzimos com trabalhadores rurais em Sorriso descreve essas relações empregatícias marcadas por uma maior formalização, mas também por um crescente progresso técnico no maquinário agrícola que cada vez mais vem reduzindo a demanda por trabalho braçal dentro de fazendas de grãos da região. Neste sentido, o trecho de entrevista destacado abaixo é com um “peão de trecho” que se encontrava então reduzido à condição de morador de rua, radicalmente desterritorializado e privado de quaisquer relações mínimas de solidariedade que lhe servissem de amparo. O trabalhador descreve o processo de desagregação de sua identidade social que o converteu em resíduo ora invisível, ora ameaçador a perambular por “cidades do agronegócio”. O relato desse trabalhador ecoa uma profunda mudança no mercado de trabalho do Brasil como um todo e do estado do Mato Grosso em particular: a tendência ao longo das últimas décadas à drástica redução da capacidade de absorção de força de trabalho pouco ou não qualificada no interior de atividades agrícolas.
Eu vim do Paraná, atrás de serviço no mundão, que hoje em dia serviço tá difícil. Cê não sabe onde é que tem. Chegando em Rondonópolis, disseram que aqui ia abrir uma usina de álcool de milho, mas chegando aqui não encontrei nada. Daí o que acontece? Eu tô na rua, falando com a população da cidade pra ver se pode me ajudar. Aí tem uns que atende você bem, mas tem uns que atende na ignorância. [...] Eu tô no trecho há cinquenta anos, já trabalhei em tudo, corte de cana, machado, foice, motoserra. Já trabalhei de serviços gerais em tudo. E nisso eu me ferrei porque nessa história de trabalhar, trabalhar, trabalhar eu esqueci de me qualificar. A internet vem entrando, a tecnologia vai avançando e eu fiquei pra trás. E agora, o que acontece? Você vai pegar em uma fazenda pra trabalhar, tem maquinário tudo escrito em inglês, tudo automático, tudo no botão, não tem mais marcha, não tem mais nada. Antigamente você ia trabalhar em uma fazenda, cê não precisava de carteira de motorista. Hoje você tem que ter, dependendo do maquinário que você vai pegar, tem que ter carteira de motorista profissional. Então tá difícil o mundo... [...] O que eu ganhar de hoje pra amanhã eu vou seguir pra frente e vou embora, eu vou ver onde que eu vou parar. Pode ver a dificuldade, eu perdi a carteira de identidade lá em Primavera do Leste, coloquei no bolso assim, depois fui caçar e não achei mais. E aqui no Mato Grosso é de três a quatro meses pra eles te entregar uma nova. E aí? Eu tô na rua, a assistente social não dá abrigo, não dá nada. Como é que eu vou fazer essa carteira? Em Cuiabá disseram que entregava com cinco dias. Passei lá, disseram que era de um mês a quarenta e cinco dias. Como é que eu vou? (Entrevista com peão de trecho em Sorriso, 07/2019)
Os trabalhadores característicos em fazendas de Sorriso atualmente são os safristas que periodicamente afluem para o meio norte do Mato Grosso vindos especialmente do Maranhão para realizar os serviços gerais de apoio à colheita de grãos e, em menor escala, os operadores de máquinas geralmente empregados fixos com nível mais alto de qualificação técnica, poder econômico e prestígio social. Essa localização superior dos operadores de máquinas na hierarquia do mundo do trabalho tem como contrapartida as extensas jornadas de trabalho realizadas no interior das fazendas. Segundo o Observatório de Segurança e Saúde do Trabalho, cerca de 44,7% das pessoas ocupadas em 2010 em Sorriso realizavam jornada de trabalho semanal superior a 44 horas (limite máximo estabelecido pela legislação brasileira), proporção que chegava a 53,7% entre os homens e 31,2% entre as mulheres.
Exemplo do modo de pensar e viver de safristas no momento de nossa pesquisa de campo, o trecho de entrevista destacado abaixo é com um trabalhador rural sem-terra de ascendência maranhense que relata ser possível acumular R$ 5 mil durante o período de 90 dias no período de colheita da soja, caso possa evitar o pagamento de aluguel. Esse depoimento ecoa o senso comum em Sorriso ao afirmar que o aluguel no valor médio de R$ 500 mensais por uma kitnet com banheiro é o principal obstáculo para qualquer acúmulo de recursos por parte de trabalhadores que recebem entre 1 e 2 salários mínimos. Esse trabalhador também expressa uma percepção generalizada dos entrevistados ao afirmar que atualmente tem se tornado mais difícil encontrar empregos fora da safra na região, levando mais trabalhadores a seguir em seu permanente estado de mobilidade espacial:
Eu sou Maranhense, natural de Pedreiras. Lá nós faz é trabalho de roça, trabalha em terra dos outros. Terra nossa nem pra nós morrer. Quando morrer, se achar, enterra naquele pedacinho de terra, se não achar, joga fora... Lá o serviço é devagar e ganha muito pouco, se você trata da roça, lá não dá pra você comer um ano. E aqui você trabalha um mês aqui, dá pra você comprar alimento pra quase um ano lá. Aqui a diária tá de 70 a 80 reais, no Maranhão a diária tá 40 reais. Oh a diferença! Por isso que o cara fica, fica aqui por causa disso, se matando mas o cara fica. [...] Na safra o cabra levanta aqui até 5 mil, 5 e pouco. Porque depois da safra vai todo mundo embora. Eles assinam carteira por 90 dias, acaba aqueles 90 dias, vai procurar outro serviço. Aí fica só os que é de lá mesmo, já tão na fazenda mesmo. Aqui todo mundo pensa que a gente é rico, mas aluguel aqui é 600 e o salário é 1200, 1300, às vezes chega até 1500 reais. Você fazendo muita hora, trabalhando sábado e domingo, às vezes tem feriado no mês você trabalha, você tira hora. [...] Eu mesmo não penso de ficar aqui. Porque assim, aqui tá tão fraco, eu tô com a bicicleta seca a roda só de rodar isso aí. Aí quando acha, acha diária. Quando uma firma tá pegando, a gente quando você vai saber já encerrou. Porque aqui é gente demais, demais. E aí a maioria é desempregado. Aí você corre pra lá, opa fechou (Entrevista com um trabalhador safrista em Sorriso, 07/2019)
A partir da década de 2000, as agroindústrias de médio porte que se instalaram no município de Sorriso passaram a absorver ampla parcela da força de trabalho migrante que anteriormente dirigia-se em especial para as atividades braçais dentro das fazendas. Esse segmento da força de trabalho no estado do Mato Grosso tem sido submetido a um quadro de superexploração, que pode ser visualizado pela frequência de acidentes de trabalho: segundo o Tribunal Regional do Trabalho do Mato Grosso, o setor de abate de animais liderou o ranking de acidentes de trabalho no estado entre os anos de 2012 e 2018 com 10.363 casos ou 17,5% das ocorrências naquele período, seguido por atividades no cultivo de soja com 4.327 casos ou 7,16% das ocorrências no mesmo período (G1, “Setor de abate de animais lidera ranking de acidentes de trabalho em MT, diz TRT”, 02/05/2018).
Os relatos de diretores e supervisores por nós entrevistados retratam essa força de trabalho oriunda em especial do Maranhão como instável e insubordinada, desprovida da moral do trabalho e do cálculo racional que marcariam trabalhadores das regiões Sul e Sudeste. O trecho de entrevista destacado abaixo com o diretor de um frigorífico de aves em Sorriso destaca uma taxa de rotatividade média de 10% dos funcionários ao mês, a maior que encontramos dentre as empresas do município em nossa pesquisa de campo. Neste trecho, o entrevistado relata um contínuo movimento migratório pendular desses trabalhadores devido a vínculos familiares que permanecem nos estados de origem, acarretando custos à empresa decorrentes da constante seleção, contratação e treinamento. Esta entrevista deixa clara a existência de tensões entre as demandas da reprodução social dos trabalhadores migrantes e as exigências da reprodução ampliada de capital, que estão por trás do discurso patronal acerca da escassez local de mão de obra qualificada. Essa assim chamada “qualificação” não corresponde unicamente ao domínio de novas tecnologias e novos procedimentos necessários aos modernos processos produtivos, mas também à formação de novo ethos dentre estes trabalhadores baseado em parâmetros adequados ao “agronegócio” e distintos das expectativas sociais de seus estados natais:
Hoje nós temos 600 colaboradores, vamos dizer que 70% são do Nordeste. Esse volume de pessoas que chega, elas foram se integrando de uma forma assim bastante tranquila, porque a maioria das empresas daqui dá um suporte legal em termos de alimentação, de transporte, tem o transporte público que vêm até aqui. Pessoal chega e não tem moto, não tem bicicleta, não tem carro, não tem nada, vem realmente com muito pouco dinheiro no bolso, vem mal-e-mal com a passagem. Então eu acho que neste sentido tá se acomodando muito bem... Mas é aquele povo que 85% tem aquela saudade, em quatro, cinco, seis meses ele volta pra região de origem, passa mais cinco meses e volta pra cá de novo. Então, a rotatividade é bastante grande, hoje aqui na empresa está basicamente em torno de 10% [ao mês]. Nós temos aqui mais de 200 pessoas que têm mais de cinco anos de empresa, temos aí 150, 160 pessoas com mais de dois anos. O que roda muito é menos de um ano, esse pessoal roda demais, fica três, quatro meses, vai embora, é um entra e sai [...] Toda contratação tem um custo, né? Você tem que fazer exames, o treinamento também é um custo, no começo ele não rende, estraga produto. Com quatro, cinco meses ele tá bom, já sabe fazer as coisas, já dá pra fazer várias atividades no chão de fábrica, não precisa fazer uma só, né? E quando o cara tá bem treinado, ele fala “não, quero ir embora porque a minha família ficou lá”. E ninguém segura! Acaba sendo um custo a mais pra empresa (Entrevista com diretor de um frigorífico de aves em Sorriso, 07/2018)
Para além das atividades no interior de fazendas e das agroindústrias, a construção civil também absorve uma quantidade significativa dos trabalhadores que entrevistamos, seja na abertura de loteamentos devido à acelerada expansão da malha urbana de Sorriso, seja na construção de silos e de armazéns dentro da cidade ou no interior das fazendas, seja na construção e reforma de residências em relações predominantemente informais. Esse segmento da força de trabalho é particularmente marcado pela frequência de acidentes e mortes relacionados ao trabalho no estado do Mato Grosso. Segundo o Anuário Estatístico de Acidentes de Trabalho do Ministério da Previdência, o Mato Grosso foi em 2013 o estado com a maior taxa de mortalidade dentre trabalhadores da construção civil no Brasil, contribuindo para que o Mato Grosso liderasse o ranking de mortes por acidentes de trabalho no país com 626 ocorrências entre 2012 e 2017, alcançando a média impressionante de uma morte a cada 5.700 habitantes enquanto nas demais Unidades da Federação o índice foi de uma morte para 14.500 habitantes (Hipernotícias, “Com 120 casos por ano, Mato Grosso lidera ranking de mortes por acidentes do trabalho no Brasil”, 09/05/2017).
Dentro desse contexto, o trecho de entrevista destacado abaixo descreve a experiência de um trabalhador da construção civil de ascendência maranhense construindo silos em uma fazenda em meio ao ápice da geração de empregos nesse setor entre 2009 e 2010. Seu relato resume as principais inquietações da maior parte dos trabalhadores que entrevistamos acerca do confinamento em fazendas mais distantes dos núcleos urbanos: por um lado, ali é possível maximizar a economia de recursos a serem levados de volta ao Maranhão devido especialmente à ausência da necessidade de se pagar um aluguel; por outro lado, jornadas de trabalho excepcionalmente extensas e a drástica redução da sociabilidade decorrente do isolamento físico aparecem ali como angústias profundas.
Nasci lá na Santa Luzia no Maranhão, cheguei aqui no dia 19 de agosto de 2009. Eu cheguei e fui trabalhar em uma empresa de construção, comecei na Engbras. A firma que a gente ia trabalhar era uns 30 km daqui, nós saia cedinho e voltava de noite, ia e vinha todo dia. Mas depois eles pegaram a turma e transferiram pra uma fazenda perto de Brasnorte, pra gente fazer aqueles silos redondos. Trabalhava dia e noite, tinha vez de pegar 6h da manhã e parar 2h da madrugada... Se eu fosse um cara mais morto eu tinha voltado pra trás, porque na forma que nós trabalhava lá não podia sentar. Todo dia mandava ٢, ٣ embora, cê não podia sentar. Se eu parasse, os caras já me olhava e me mandava embora, tinha muita gente querendo emprego. [...] A fazenda era um lugar muito longe, você trabalhava no sábado, no domingo você tinha que ficar lá dentro, não tinha condição. Era dez quilômetros até uma vilinha ali pra beber cachaça, mas não tinha nem cinco casas, era uma coisinha simples. Mesmo assim tinha um rapaz que ia a pé até lá... Eu passei lá bem acho que uns cinco meses sem vir pra cá [Sorriso]. Desse jeito você não vive, cê só trabalha. Pra cê ter noção, nós ia receber dinheiro de manhãzinha, três horas, quatro horas o ônibus já tava voltando. Tinha aqueles rapazes que ficavam, mas eu não, eu ia, depositava o dinheiro todo ali e já voltava... O mestre de obras um dia falou bem assim pro dono: “ou tu arruma uma obra mais perto de Sorriso, ou eu vou sair. Porque empresa tem muita, agora família só tem uma”. Ele falou isso bem, foi uma frase que eu memorizei na cabeça (Entrevista com trabalhador da construção civil em Sorriso, 07/2018)
Dentre as atividades que mobilizam maior quantidade de mão de obra em Sorriso destacam-se ainda as realizadas por cooperativas de serviços contratadas pelo poder público municipal especialmente para limpeza e manutenção do espaço urbano em geral. Conforme mencionado anteriormente, a Cooperativa de Trabalho dos Prestadores de Serviço de Sorriso (Coopserv’s) e a Cooperativa do Vale do Teles Pires (CooperVale) ocupavam juntas cerca de 700 trabalhadores em Sorriso segundo entrevistas de 07/2018. Nesse universo, o trecho de entrevista destacado abaixo com o advogado da Coopervale explica de maneira elucidativa as diferenças entre as relações de trabalho de assalariados e de cooperados no que diz respeito à legislação trabalhista atualmente. Segundo esse depoimento, a Lei 12.690 de 07/2012 estabeleceu o direito dos membros das Cooperativas de Trabalho a retiradas não inferiores ao piso da categoria profissional e, na ausência desse, não inferiores ao salário mínimo; à jornada normal não superior a ٨ horas diárias e ٤٤ horas semanais, facultada a compensação de horários; ao repouso semanal remunerado, preferencialmente aos domingos; ao repouso anual remunerado; à retirada para o trabalho noturno superior à do diurno; ao adicional sobre a retirada para as atividades consideradas insalubres ou perigosas e ao seguro de acidente de trabalho. Entretanto, como explica o entrevistado, as Cooperativas de Trabalho seguem uma ferramenta eficaz de redução de encargos trabalhistas na medida que os cooperados não têm direito a Fundo de Garantia por Tempo de Serviço (FGTS) e fazem o recolhimento do INSS por meio de contribuição individual no valor de 20% sobre seu repasse por mês. Com isso, a maior parte dos trabalhadores cooperados com quem conversamos em Sorriso relata alcançar uma remuneração mensal de pouco mais ou menos que um salário mínimo, ocupando assim o patamar mais baixo do mundo do trabalho naquele município.
Eu vejo que as cooperativas foram criadas, principalmente aqui em Sorriso, não tanto com um olhar pra seguir o modelo cooperativista, mas como uma saída para a prefeitura poder terceirizar o serviço, porque eles não querem fazer concurso, porque isso dá trabalho e não passa quem a administração quer que tenha a vaga. Aí criou-se a cooperativa que, por não ser uma empresa comum, tem uma série de tributos que não recolhe e acaba por ser uma mão de obra mais barata pra prefeitura. [...] O prestadores de serviço não têm suas carteiras assinadas, então eles não são registrados pela CLT. E não possuem direitos trabalhistas, como o FGTS e seguro-desemprego, até por isso acaba sendo mais barato. Com um porém: a Lei 12.690, a lei das cooperativas que foi promulgada em julho de 2012, traz lá no artigo sétimo meio que uma reprodução dos direitos trabalhistas do artigo sétimo da constituição, mas com outros nomes. Até então a legislação era muito vaga, não se sabia se o cooperado tinha direito a adicional noturno, insalubridade, hora extra, porque em tese ele é um dono, ele tem uma parte, então como é que ele mesmo vai se pagar? Mas mesmo assim essa legislação trouxe uma reprodução dos direitos trabalhistas da Constituição Federal, eles têm adicional noturno, horas extras (na verdade não se fala hora extra, se fala compensação de horários), insalubridade, descanso anual remunerado que seriam as férias e descanso semanal remunerado que é o domingo. Então na prática a diferença hoje é o FGTS, o seguro-desemprego e o recolhimento do INSS, porque o cooperado é considerado contribuinte individual como os outros autônomos, então ele contribui não com 9% mas com 20% sobre o repasse por mês (Advogado da Coopervale, 07/2018)
Agronegócio e o espaço urbano
A crescente urbanização de áreas que até recentemente compunham a fronteira agrícola do Centro-oeste e Norte do país provocou amplas alterações no modo de vida das classes trabalhadoras subordinadas ao agronegócio, preservando e subordinando a uma nova equação socioespacial as contradições características das zonas rurais do país. Os espaços urbanos de pequeno e médio porte funcionais à moderna agropecuária globalizada têm sido dirigidos por iniciativas de especulação fundiária que criam de maneira artificial a escassez de terras por meio da proliferação de espaços vazios, pressionando as levas migrantes que para lá se dirigem a ocupar áreas distantes precariamente atendidas por serviços públicos ao mesmo tempo que se multiplicam condomínios fechados para classes médias e altas amedrontadas pela violência urbana. Criam-se assim espaços urbanos altamente segregados que cristalizam na consciência popular e na vida cotidiana dos trabalhadores subordinados ao “agronegócio” as angústias e frustrações decorrentes de sua permanente subalternidade econômica e política.
No momento em que realizamos nossos trabalhos de campo entre os anos de 2018 e 2019, havia 19 incorporadoras envolvidas no lançamento de loteamentos urbanos em Sorriso, compondo um arco de alianças econômicas e políticas com proprietários de terras no entorno da cidade interessados em ditar os sentidos da expansão do perímetro urbano. Em entrevista realizada em 07/2018, o secretário da cidade afirmou que o custo de manutenção da mancha urbana espraiada era o principal desafio de gestão de Sorriso, uma vez que a arrecadação de impostos municipais se via crescentemente pressionada pela proliferação das demandas de manutenção do asfalto e rede pluvial, de extensão da rede de coleta e destinação de lixo, de criação de praças, creches e escolas públicas etc. No trecho de entrevista destacado abaixo, o secretário identifica na raiz dessa questão o fato de que o crescimento do perímetro urbano é induzido prioritariamente por uma iniciativa privada cada vez mais capaz de impor interesses ao poder público municipal. Ainda nesse trecho, ele aponta ferramentas regulatórias para tentar minimizar os custos crescentes do processo vertiginoso de especulação imobiliária aos cofres públicos, deixando simultaneamente claro que a prefeitura municipal está aprisionada ao arco de alianças que gera essa crescente irracionalidade da organização do espaço urbano local. Desde essa perspectiva, mais do que os interesses da grande produção agropecuária empresarial que se realizam mais propriamente nas escalas políticas estadual e federal, são as dinâmicas em torno da apropriação da renda da terra urbana que cada vez mais pautam a vida política municipal em Sorriso:
O IPTU progressivo foi implantado em 2013 com 5 anos de prazo, ele entrou em vigor no ano fiscal 2019, pra tentar diminuir essa especulação com os lotes urbanos. Nós também estamos propondo no plano diretor que vai ser encaminhado pra Câmara algumas obras de infraestrutura maior para os loteamentos: hoje eles entregam com infraestrutura básica, iluminação, água, esgoto e asfalto, mas nós queremos também calçadas, grama e sinalização viária em todos os lotes do município. Além disso, nós estamos propondo que só se abra novo loteamento a partir do momento em que os que precedem tenham alcançado uma taxa de ocupação mínima. Então nós estamos tentando colocar algumas ferramentas com o intuito não de proibir os loteamentos, mas de induzir que eles saiam já com o máximo de infraestrutura possível para que isso não fique a cargo só da prefeitura [...] Na verdade, esse foi um mercado que surgiu e as administrações acharam que era uma boa coisa, né? Então hoje nós temos 19 empresas na cidade que são especializadas exclusivamente em loteamento. Foi um mercado que foi fomentado e a partir do momento que você tem a empresa que visa aquilo ali, ela precisa daquilo ali pra continuar vivendo, é o mercado dela. Esses dias um empreendedor falou “a gente não vende pão, não tem como, a gente tem que vender lote, tem que produzir lote”, esse é o conceito, né? Então é um processo que vem sendo induzido pela iniciativa privada e não pelo poder público, a expansão do perímetro urbano vem sendo induzida pela iniciativa privada, né? E o poder público vem a rebote, ele não é o indutor desse crescimento. Quem define pra onde tá crescendo é o incorporador mesmo, eles que dão essa característica do crescimento das cidades (Entrevista com secretário da cidade de Sorriso, 07/2018)
Atualmente, a inquietação mais recorrente mencionada por todos os trabalhadores que entrevistamos nesta pesquisa ainda é o elevado custo da moradia na cidade de Sorriso. O trecho destacado abaixo com um trabalhador da construção civil e então morador do bairro Boa Esperança sublinha o aluguel como mecanismo de coerção econômica capaz de maximizar a exploração da força de trabalho. Esse trabalhador, natural de Fortaleza no Ceará, descreve um movimento pendular entre seu estado de origem e a cidade de Sorriso, oferecendo um contraste à coerção para o trabalho que sofre nestes diferentes locais. Segundo o entrevistado, “em Sorriso você não vive, você trabalha” uma vez que o custo de vida e a cultura locais exerceriam pressão para uma extensão da jornada de trabalho e comprimiriam as perspectivas de lazer como válvulas de escape à labuta e à solidão diárias. Em contraponto, “no Nordeste, quando num tá em crise, tem trabalho e tem lazer”, uma vez que um menor custo de moradia e as relações de solidariedade familiar e vicinal ampliariam o leque de possibilidades de não trabalho vistas como socialmente legítimas:
Lá em Fortaleza eu trabalhava na construção civil, só que lá tá fraco, tá parado lá, eu vim pra cá. Mas aqui tá fraco também e eu tô com vontade de voltar pra lá de novo, porque lá tenho a minha casa. Aí na casa da gente é bom demais, né? Tô em casa, tô de boa. Agora pra ficar aqui eu tenho que pagar aluguel R$500, R$600... [...] Na construção dá pra tirar R$1.100 na carteira. O salário aqui é 1.100 redondo, sabe? Aí todo mês só vai tirar mil real, por causa do desconto que é R$100,00 [contribuição previdenciária]. Por isso que eu não tô nem na carteira, eu tô na diária, quando eu cheguei eu trabalhei 1 mês completo, ganhei R$1.600. Agora tô aqui dentro da mata, fazendo mansão de fazendeiro. Lá é mansão mesmo, né não amigo? Mas tá de boa, tô achando bom lá... Agora o dia é comprido! Pego 5:30 da manhã e paro 6 hora da noite, né? Fazer o quê? A gente faz porque a gente precisa [...] Aqui em Sorriso você não vive, você trabalha. Aqui você não tem lazer. Aqui tem trabalho. Agora no Nordeste, quando num tá em crise, tem trabalho e tem lazer. Todo fim de semana você vai numa praia curtir com sua família, aí segunda-feira você vai pro seu trabalho. Aqui você entra 5h da manhã, sai às 6h da tarde. Isso é lazer? E trabalha domingo a domingo! Então aqui num tem lazer, tem trabalho (Entrevista com trabalhador da construção civil em Sorriso, 07/2019)
Conforme já apontamos, a resposta do poder público a essas inquietações ao longo da última década consistiu na criação de diversos conjuntos habitacionais voltados às faixas 1 e 2 do Programa Minha Casa, Minha Vida. Nesse contexto, o trecho abaixo de entrevista com o secretário da cidade de Sorriso em 07/2018 destaca o fato de que o Programa Minha Casa, Minha Vida reproduz e intensifica mecanismos de especulação fundiária que ampliam a segregação socioespacial na cidade. O secretário deixa claro que a localização das casas populares construídas sob o PMCMV não é determinada pelo poder público municipal com base em necessidades coletivas, mas sim pelas empresas privadas responsáveis pela construção dos empreendimentos com base em critérios estritamente econômicos vinculados ao mercado de terras na região. Ao invés de se ocupar os espaços vazios no interior da cidade, cria-se assim um cinturão de conjuntos habitacionais crescentemente afastados voltados às famílias de baixa renda, com especial destaque ao Residencial Mario Raiter, localizado no extremo sudeste, a cerca de 7,5 km do centro em uma área descontínua em relação à mancha urbana já estabelecida. Ambas as citações ilustram assim ambiguidades de uma política pública de acesso à moradia aprisionada aos limites impostos pela subordinação da renda da terra ao capital:
Na verdade nós criamos um corredor de bairros afastados que dependem muito do município, do poder público na questão de saúde, educação, segurança, transporte, né? Isso traz dificuldades, traz vários problemas, mas isso foi definido mercadologicamente, não foi uma definição pública. Não foi o município que chegou à conclusão de que ali era o melhor lugar para o Mario Raiter, por exemplo. Foi porque esse empreendedor entrou numa negociação de valor de área. Eles tentaram em outros lugares, não conseguiram. E esse empreendedor vendeu a área pelo preço que cabia no projeto. Então é por isso que ele aconteceu ali, não tem um planejamento. Esse é um problema difícil de você conseguir trabalhar ele. Urbanisticamente falando, é um problema difícil em função de como esse desenvolvimento é feito, né? Porque ele é feito de forma inversa, não é o poder público, até hoje não foi o poder público que deu as coordenadas desse desenvolvimento. Tem a questão financeira, os empreendimentos com valores acessíveis pras baixas rendas estão saindo na mesma região. Então hoje nós temos áreas que estão com essa característica, no fundo do São Domingos aqui, próximo ao Novo Horizonte e nessa região do Santa Maria. Então nessa região os loteamentos eles têm terrenos menores, não é que eles são mais baratos. Se você pegar hoje por metro quadrado é praticamente o mesmo valor dos bairros residenciais mais nobres. Eles estão enquadrados em um padrão de lotes menores, por isso no preço final acabam sendo mais baratos (Entrevista com secretário da cidade de Sorriso, 07/2018)
Como menciona o secretário da cidade neste último trecho destacado, paralelamente às casas populares erguidas através do Programa Minha Casa, Minha Vida multiplicaram-se também em Sorriso os loteamentos voltados a famílias de baixa renda. A esse respeito, o primeiro trecho de entrevista abaixo com um funcionário de uma corretora da cidade explica condições de pagamento no loteamento popular “Morada do Bosque”: entrada correspondente a 5% do valor do imóvel (em torno de R$70 mil em 2019) e o restante parcelado em até 240 vezes com um reajuste anual de 6% mais a inflação segundo o índice IGPM (Índice Geral de Preços do Mercado), podendo chegar ao máximo de 12%. De fato, o entrevistado ressalta que esse loteamento localizado na “periferia da cidade, uma região onde já aconteceu muitas coisas” é voltado para a faixa de trabalhadores com renda de 1 a 2 salários mínimos e com o sonho de ter sua casa própria e sair do aluguel. Apesar disso, esse entrevistado afirma ser comum que estes lotes “a preços populares” sejam adquiridos por pessoas de alta renda não para moradia própria, mas como investimento, com objetivo de construir quitinetes ou similares voltados pra locação. Dentro desse universo, não foi incomum que os trabalhadores assalariados entrevistados para esta tese tenham relatado a perspectiva (mais ou menos real) de também comprar lotes e participar dessas iniciativas de especulação como uma estratégia de aposentadoria. Dessa maneira, também esses loteamentos “a preços populares” se tornaram vetores de consolidação da especulação fundiária urbana como aspecto central da cultura local:
Esse aqui é um loteamento popular, o Morada do Bosque. Ele é voltado para faixa B menos, faixa do assalariado, a partir de um salário mínimo até 2 mil reais mais ou menos, essa é a faixa que a gente vende em média, né? Pessoal trabalhador, operário, funcionário. É que essa é uma região mais, como posso dizer... É parte da periferia da cidade, uma região onde já aconteceu muitas coisas, né? Então o pessoal de alta renda pensa em comprar pra investimento, não pra moradia. Geralmente o pessoal de classe A compra pra fazer quitinete, uma coisa mais voltada pra locação, né? Porque aqui em Sorriso, fez, alugou, cara... Aqui é muito fácil a questão de locação. Um dos meus clientes, ele foi morar no Japão, comprou 8 lotes, 4 um detrás do outro, nesse Morada do Bosque, pensando em montar apartamento para locação. [...] Os operários, os funcionários acham que o mesmo valor do aluguel dá pra ele pagar a parcela de um lote que vai ser uma coisa dele, aí ele prefere pagar um lote. Até nosso merchand maior é “saia do aluguel pra você ter sua residência própria, sua casa própria, você ter seu sonho da casa própria”, que todo mundo tem. Um lote lá no Morada de 10 por 20, 200 metros quadrados, tá R$70 mil. A gente pede 5% do valor do imóvel de entrada, em torno de 3.500 reais hoje, o restante é parcelado em até 240 vezes. E cada loteamento tem o seu reajuste, que é despesa de cartório, despesas pra manter a incorporadora... Lá no Morada é 6% de contrato mais o índice IGPM. Se o IGPM der negativo, mantém os 6%, se der positivo, o máximo que chega o reajuste é 12%, a gente nunca ultrapassa os 12% ao ano (Entrevista com trabalhador de corretora imobiliária em Sorriso, 07/2019)
Conclusão
Em meio a um crescente protagonismo econômico, político e cultural das cadeias produtoras de commodities agrícolas e agroprocessadas no Brasil contemporâneo, é hoje urgente a investigação da dinâmica da sociedade civil impulsionada pelo agronegócio. Com este objetivo em mente, a hipótese que orientou o presente artigo aponta para uma crescente centralidade da produção e reprodução de espaços urbanos de pequeno e médio porte na determinação do mundo do trabalho e do modo de vida dos trabalhadores subordinados ao moderno complexo grãos-carnes globalizado no estado do Mato Grosso. Invisibilizadas pelas narrativas dominantes e pouco investigada pela pesquisa acadêmica, as periferias dessas cidades são provavelmente o espaço mais dinâmico de fermentação das inquietações da juventude trabalhadora subordinada ao chamado “agronegócio”, atraída por perspectivas de qualificação, formalização e lazer e frustradas em maior ou menor medida por precárias condições de trabalho e por altos custos de moradia locais.
Acompanhamos ao longo do texto as transformações do mundo do trabalho no município de Sorriso, marcado por uma crescente formalização das relações empregatícias e por um acelerado progresso técnico nas lavouras e nas agroindústrias. A voz dos trabalhadores nos permitiu identificar os impasses desse processo de modernização em que se acentuam a exclusão de trabalhadores braçais não qualificados do interior das fazendas, a frequência de acidentes e mortes relacionados ao trabalho no interior das fábricas processadoras de carnes e na construção civil e a permanência do trabalho precário informal em cooperativas de conservação do espaço urbano. Os depoimentos dos trabalhadores também nos permitiram reconhecer na “capital do agronegócio” contradições envolvendo a especulação imobiliária acelerada que leva à formação de um espaço urbano espraiado, enquanto a população trabalhadora é segregada em faixas de terra altamente adensadas e submetida a elevados aluguéis e/ou prestações de lotes urbanos. Conclui-se, portanto, que as cidades do agronegócio não são apenas espaços funcionais à moderna agropecuária globalizada, mas também importantes laboratórios da inquietação social de trabalhadores comprimidos em suas periferias.
Referências
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Recebido em: 17/09/2021
Aceito em: 28/06/2022
1 Em um exemplo característico da (des)ordem fundiária brasileira, o norte-americano Edmund Zanini argumenta que parte dessa área foi loteada e vendida por meio de uma procuração falsa em 1978 e desde então reivindica na justiça a propriedade sobre 150 mil hectares no atual município de Sorriso. Em 08/2011 foi homologado um acordo pela Justiça de Mato Grosso em que produtores rurais locais comprometeram-se a pagar a Zanini uma indenização, cujo valor não foi divulgado à época, em troca do domínio definitivo sobre 74 áreas que juntas somavam 40 mil hectares (Folha de São Paulo, “Produtores de Sorriso vão indenizar americano”, 13/08/2011).
O SUBÚRBIO FERROVIÁRIO DE SALVADOR
ENTRE DESPOSSESSÕES E ATRAVESSABILIDADES:
(des)encontros entre mundos de vida e produção de infraestruturas
THE SUBURBIO FERROVIARIO OF SALVADOR
BETWEEN DISPOSSESSIONS AND TRAVERSABILITIES:
(dis)encounters between life worlds and infrastructure production
____________________________________
Thaís Troncon Rosa1*
Glória Cecília Figueiredo**
Atailon da Silva Matos Silva***
Resumo
Neste artigo, intentamos alinhavar uma trama entre mundos de vida, teorias e produção de infraestruturas urbanas desde o Subúrbio Ferroviário, um território de territórios negros em Salvador (BA). Tomamos como ponto de inflexão o conflito, em pleno ato, em torno da substituição do trem por um monotrilho, através de parceria público-privada entre o Governo do Estado da Bahia e uma corporação chinesa. A produção dessa infraestrutura evidencia implicações entre colonialidade, racialidade e modernidade nas formas contemporâneas de extração de valor financeiro. Lançando um olhar crítico aos dispositivos de conhecimento que configuram os estudos urbanos no país, encaramos a transformação urbana em curso como lócus privilegiado para a reflexão sobre as disputas racializadas constitutivas do social/territorial. Partimos de questões de interesse das/os moradora/es frente às remoções e desarticulações de dinâmicas laborais, cujas enunciações descentram os referentes de moradia e trabalho da imanência do valor, ao circunstanciá-los como parte de entrelaçamentos vitais mais amplos e heterogêneos. Propomos uma abordagem heurística da infraestrutura como nexo territorial conflitivo-generativo, a partir do qual se confrontam e se articulam neodesenvolvimentismo, expropriação colonial, banimento racial e fugitividades, atravessabilidades, reposicionamentos da negridade, evidenciando uma inter-relacionalidade complexa que faz emergir mundos de vida divergentes. O artigo desdobra um conjunto de iniciativas de colaboração que se encontram na interseção das lutas urbanas, do ensino, da pesquisa, da extensão e das assessorias populares, e tem no interconhecimento e na redistribuição epistêmica algumas de suas apostas ético-políticas para o enfrentamento das complexidades inerentes aos processos e relacionalidades aqui enfocados.
Palavras-chave: Salvador. Estudos urbanos. Infraestrutura. Negridade.
Abstract
In this article, we intend to align a weave between lifeworlds, theories and the production of urban infrastructures from the Subúrbio Ferroviário, a territory of black territories in Salvador/BA. We take as a turning point the conflict, in act, around the replacement of the Train by a Monorail, through a Public-Private Partnership between the State Government of Bahia and a Chinese corporation. The production of this infrastructure highlights implications
1* Professora adjunta da Faculdade de Arquitetura, da Residência AU+E (Especialização em Assistência Técnica Habitação e Direito à Cidade) da Universidade Federal da Bahia e do Programa de Pós-Graduação em Arquitetura e Urbanismo, onde articula o grupo de estudos Margear. E-mail: thais.troncon@ufba.br
** Professora adjunta da Faculdade de Arquitetura, da Residência AU+E (Especialização em Assistência Técnica Habitação e Direito à Cidade) e do Programa de Pós-Graduação em Arquitetura e Urbanismo da Universidade Federal da Bahia, onde integra o grupo de pesquisa Lugar Comum e articula a Rede Cidades Pretas. E-mail: gloria.cecilia@ufba.br
*** Mestrando no Programa de Pós-graduação em Arquitetura e Urbanismo da Universidade Federal da Bahia, onde integra o grupo de estudos Margear e o grupo de pesquisa Lugar Comum. Membro fundador do Coletivo Trama (Salvador/BA). E-mail: atailonmatos@gmail.com
ISSN 1517-5901 (online)
POLÍTICA & TRABALHO
Revista de Ciências Sociais, nº 56, Janeiro/Junho de 2022, p. 62-85
between coloniality, raciality, and modernity in contemporary forms of financial value extraction. Taking a critical look at the devices of knowledge that configure urban studies in Brazil, we consider the urban transformation underway as a privileged locus for reflection on racialized disputes constitutive of the social/territorial. We start from questions of interest of the inhabitants in face of evictions and disarticulations of labor dynamics. Their enunciations decenters the referents of housing and work from the immanence of value, by circumstantializing them as part of wider and heterogeneous interlacements. We propose a heuristic approach to infrastructure as a conflictive-generative territorial nexus from which neodevelopmentalism, colonial expropriation, racial banishment, and fugitivities, traversabilities, and repositionings of blackness are confronted and articulated, evidencing a complex interrelationality that brings out divergent lifeworlds. The article unfolds a set of collaborative initiatives in the intersection of urban struggles, teaching, research, extension, and popular advisory, that have in interknowledge and epistemic redistribution some of their ethical-political bets for facing the complexities inherent to the processes and relationalities focused on here.
Keywords: Salvador. Urban studies. Infrastructure. Blackness
Introdução
“Quem mora aqui já há muitos anos, já tem seus vizinhos, amigos, parentes… Nós temos uma relação com o lugar que o capital e a modernidade não consideram”. Gilson1, morador do Subúrbio Ferroviário de Salvador (BA) e ativista em defesa dos trens de ferro no Brasil, enuncia elementos fundamentais para a reflexão a que nos propomos neste artigo. Evidenciando, desde a perspectiva da vida cotidiana e das redes de relações, a importância do lugar para além de dimensões funcionalistas, exclusivamente produtivas e monetariamente valoráveis, ele nos fornece um ponto de partida precioso para refletirmos sobre os muitos mundos de vida e modos de enunciação que conformam o Subúrbio Ferroviário de Salvador, um vasto território de territórios2 negros3 margeado pela Baía de Todos os Santos, justamente quando uma intervenção urbana em infraestrutura ameaça reconfigurá-los profundamente.
Em 2014, o Governo do Estado da Bahia anunciou a modernização do Trem do Subúrbio – que seria substituído por um veículo leve sobre trilhos (VLT) –, dando início a uma licitação que foi embargada diversas vezes pelo Ministério Público Estadual, diante de inúmeras irregularidades. No contexto da crise política institucional instaurada no país em 2016, o Ministério das Cidades retirou o aporte de recursos previstos para o projeto, levando os consórcios e empresas habilitadas a desistirem do certame. Em 2017, o governo do estado propôs uma parceria público-privada (PPP) para viabilizar a proposta. A concessionária Metrogreen Skyrail Bahia, vinculada à corporação chinesa Build Your Dreams (BYD), foi a vencedora da licitação, sendo a única empresa a submeter uma proposta. Na ocasião, essa apresentou expertise no modal monotrilho, levando o governo a alterar sua proposta inicial quando da efetivação do contrato, em 2019. O governo, desde então, vem negando a alteração do modelo, em uma manobra conceitual na qual defende que a nomenclatura VLT significaria veículo leve de transporte, o que enquadraria o monotrilho.
Depois de quase dois anos de incertezas e muitas controvérsias, em fevereiro de 2021, em plena pandemia, o antigo trem foi desativado e a movimentação das obras teve início, anunciando a “nova era do sistema ferroviário de Salvador” (CTB, 2021). No momento em que finalizamos este artigo, a maioria das estações já foram demolidas e parte dos antigos trilhos foram retirados, instaurando as ruínas para que o “novo VLT”, como o governo segue apresentando a intervenção, seja implantado.
A desativação do trem tem desestruturado modos de vida e redes de relações constituídas pelos usos da infraestrutura ferroviária e que também atualizam uma presença ancestral indígena e afrodescendente, evidenciando as marcas da colonialidade que remanescem e se imbricam à conformação contemporânea do Subúrbio Ferroviário. Conexões que ativavam importantes circuitos populares e tradicionais, tais como aqueles ligados aos mundos da pesca e do trabalho informal, estão sendo interditadas ou dificultadas. Moradias e outros usos sedimentados ao longo da ferrovia, tais como aqueles relacionados a práticas sacras de religiões de matriz africana, têm suas permanências ameaçadas.
Nero, pescador do Porto da Sardinha, questiona: “Vai tirar a gente do nosso habitat natural de ganho, e aí?”. Mameto de Inkissis Val de Ogun, da Senzala religiosa Mukkunndewa, localizada no bairro de Coutos, atenta que: “Com o anúncio do Monotrilho, precisamos pensar como evitar a retirada das linhas de trem, tão importante para os rituais das religiões afro-brasileiras.” Ciata, moradora de São João do Cabrito, relata a situação de insegurança da posse: “Pra onde a gente vai? Como vai ser? (...) Eu não tenho dormido, desde a ameaça de remoção. (...) Essa casa é minha única herança.”
Essas breves enunciações de moradoras/es do Subúrbio Ferroviário, desdobradas adiante, sinalizam um momento crítico de redefinição de suas agências, na qual entrevemos a recusa à univocidade da violência racial como modo de subjetivação (SILVA, 2019; HARTMAN, 1997). As ameaças postas pela intervenção do monotrilho convivem e são confrontadas generativamente por reposicionamentos da negridade, evidenciando uma inter-relacionalidade complexa na constituição do que aqui conjugamos como social/territorial4.
As questões das/os moradoras/es nos fornecem, então, os primeiros fios da trama entre mundos de vida, teorias e produção de infraestruturas urbanas que nos interessa alinhavar neste artigo. Tomando como ponto de inflexão o conflito em torno da substituição do trem do subúrbio pelo monotrilho, buscamos apreender a construção histórica de uma “infraestrutura social altamente urbanizada” (SIMONE, 2004, p. 407) em perspectiva relacional frente à gestão diferencial racializada e suas políticas de morte (MBEMBE, 2018) que, impostas historicamente a tal território, têm na produção de infraestruturas de mobilidade um de seus modos de operação socialmente legitimados. Nessa abordagem, moradia e trabalho serão mobilizadas enquanto noções provisórias, referentes importantes da vida coletiva, mas tendo os seus sentidos e formas circunstanciados por associações mais amplas e altamente móveis entre elementos heterogêneos constitutivos do social/territorial.
Retomamos, inicialmente, um duplo argumento, desdobrado em artigo anterior (FIGUEIREDO; ESTEVEZ; ROSA, 2020). Ele parte da ideia de que o Estado tem rearticulado contemporaneamente, em Salvador, noções de desenvolvimento e modernização há muito mobilizadas para legitimar a realização de intervenções urbanas – em grande medida infraestruturais – em territórios negros consolidados a duras penas, renovando seus modos de operação como estratégia de “branqueamento” socioespacial (SANTOS, 2012). E, seguindo o pensamento de Silva (2019), avança para uma questão importante que pretendemos assinalar neste artigo, que diz respeito aos modos como as políticas urbanas (neo)desenvolvimentistas, como ferramentas da racialidade, articulam as instâncias ética e econômica na extração do valor, operando “acumulação negativa”. Entretanto – e aqui o segundo nexo do argumento – tais processos não são unívocos, sendo as reiteradas tentativas de interdição interpeladas por práticas e dinâmicas socioespaciais divergentes. Consideramos que é justamente nessa permanente dinâmica de litígio com a branquidade do estado (PATERNIANI, 2019) – nomeadamente, sua política de infraestruturas – que Salvador foi se construindo historicamente como uma cidade negra, expandida e atravessada por uma miríade de mundos que excedem o referente moderno-colonial.
Neste artigo, intentamos uma elaboração de conhecimentos situada, reunindo processos metodológicos e deslocamentos epistêmicos experimentados pelas autoras e pelo autor, em articulação com diversas/os moradoras/es, pesquisadoras/es, estudantes, coletividades vinculadas/os ao Subúrbio Ferroviário. Trata-se de uma práxis coletiva, inscrita em um conjunto de iniciativas de colaboração5 que se encontram na interseção das lutas urbanas, do ensino, da pesquisa, da extensão e das assessorias populares, e que têm no interconhecimento e na redistribuição epistêmica algumas de suas apostas ético-políticas para o enfrentamento da complexidade inerente aos processos e relacionalidades aqui enfocados.
Mais do que meramente documentar, ou escrutinar analiticamente tais transformações e seus sentidos, pensamos esta escrita também como incidência interepistêmica nos processos em curso, em diálogo com outros movimentos territorializados que, confrontando, negociando, tomando partido, escapando ou ressignificando, pautam publicamente o conflito a partir de algumas questões de interesse das/os moradoras/es, visibilizando dimensões da vida e da cotidianeidade, para além dos encaixes e normatividades estabelecidos pelas teorias e políticas urbanas no país.
Reivindicando a negridade: a cidade que excede o valor
Situado há vinte quilômetros do chamado centro histórico de Salvador e tendo se consolidado na literatura acadêmica como “lugar de moradia de trabalhadores assalariados e informais” (SANTOS et al, 2012, p. 23), o Subúrbio Ferroviário poderia remeter aos já clássicos estudos sobre periferias que, a partir da acelerada e desigual urbanização encarnada na cidade de São Paulo, moldaram os estudos urbanos no país. De fato, esse território tem sido pensado como “uma das áreas mais carentes e problemáticas da cidade, concentrando uma população bastante pobre e sendo marcada pela precariedade habitacional, pelas deficiências de infraestrutura, equipamentos e serviços e, mais recentemente, por altos índices de violência”, (CARVALHO; PEREIRA, 2014, p. 114) configurando-se, nessa perspectiva, como uma “periferia distante e desequipada” (CARVALHO; PEREIRA, 2014, p. 121) caracterizada pela “ilegalidade e irregularidade da propriedade da terra” (CARVALHO; PEREIRA, 2014, p. 149).
Tal abordagem evidencia a capilaridade e permanência de uma tradição, oriunda do pensamento social e que se consolida como a matriz mais difundida dos estudos urbanos no país, que enfatiza os vínculos entre urbanização e desenvolvimento capitalista, sintetizada na perspectiva da “economia política da urbanização” (SINGER, 1973). Em tal matriz materialista histórica, a articulação trabalho/moradia é o mote para pensar “a cidade brasileira” e seu crescimento desigual, na chave da espoliação (KOWARICK, 1979). Nessas abordagens, o trabalho é referido, em sua concepção moderna, à força criadora de valor e ao tempo social de produção das coisas, a partir de lógicas capitalistas. A moradia aparece como um dos seus produtos ou como disfunção – a informalidade –, além de meio de consumo/condição de reprodução do trabalho (a serviço do capital).
A despeito de terem se estruturado como crítica às “teorias do desenvolvimento”, cuja aposta na integração pelo trabalho então já dava sinais de inviabilidade, tais formulações teóricas e políticas acerca da cidade e sua produção seguiram, em grande medida, alicerçadas na ideia de um “mundo do trabalho” e da superação do dito “trabalho informal”, e, por conseguinte, da “cidade informal” – tomados como característica central de um capitalismo periférico e dependente – como condição de realização de uma certa ideia de democracia. Em alguma medida, tais abordagens ecoariam, ainda que criticamente, aqueles ideais de “construção da modernidade e da modernização no Brasil [que] teriam permitido figurar um horizonte de integração a ser atingido pela ideia de desenvolvimento e desenvolvimentismo”, e que, (re)tomados em sentido democratizante, reeditariam a cidade como “lugar e espaço de uma utopia e um projeto claramente modernos, que finalmente conformariam uma ordem e uma sociabilidade públicas” (RIZEK, 2003, p. 82-83).
Esse horizonte, inegavelmente democrático, teria na transmutação das apostas teóricas nas “classes populares” até a “entrada em cena” dos “movimentos sociais urbanos”, as bases de interpretação da pobreza como experiência e condicionante de uma sociabilidade política, e da “luta de classes” como enunciação privilegiada do conflito urbano. Desde então, a questão da desigualdade urbana no país tem sido interpretada majoritariamente como um problema de diferenciação, hierarquização e disputa entre classes sociais.
Dois aspectos cruciais chamam a atenção nessa produção: o fato de que, elaboradas principalmente a partir da cidade de São Paulo (mas também do Rio de Janeiro), propagaram-se como formulações acerca da “cidade brasileira”, em transparência ao plural de cidade no país; e de, perpetuadas, seguirem alimentando uma sempre renovada predominância que se reveza entre um mainstream influenciado pelos preceitos da economia urbana e o campo crítico de matriz marxista, que fez das dimensões de trabalho, classe e valor vetores quase unívocos de interpretação de certo campo dos estudos urbanos no país. Tais aspectos têm sido apontados, mais recentemente, como sendo responsáveis por invisibilizar ou subsumir dimensões e questões atravessadas por racialidade, generidade e outras normatividades, homogeneizando e centralizando as possibilidades interpretativas acerca das cidades no país.
Nessas abordagens, o espaço e a cidade são tomados como universais, e a reflexão sobre seus processos vincula-se à figuração de um “mundo do trabalho” que se constitui, no país, como espécie de “ficção” moderna ancorada na branquidade (PATERNIANI, 2019), que abstrai os negros espoliados pela abolição da escravidão, conformando a “ideia de um proletariado abstrato” (MOURA, 1983). Esses imaginários e subjetivações têm efeitos prático-sensíveis, na medida em que convergem com a política de branqueamento que “importou” a classe trabalhadora europeia, deslocando a negridade, da coisificação do sistema escravocrata, para fora da humanidade cidadã inscrita pela ordem industrial metropolitana e sua esfera de formalidade restritiva (NASCIMENTO, 2016).
Assim, mesmo no campo crítico, a heterogeneidade do social foi, geralmente, achatada e contida em ordenamentos dicotômicos da diferença, emanados desde posições de poder (científico) não marcadas (HARAWAY, 1995). A base do corpo social urbano, então pensada na chave da pobreza e articulada ora à ideia de “classe trabalhadora”, ora de “mundo popular”, foi lida em transparência a um corpo, um modo de vida e uma episteme universais, brancos. Trabalho e moradia foram, assim, atados às cadeias de equivalências nas quais o valor se faz intrínseco a um tempo linear desimplicado do continuum (NASCIMENTO, 2018) colonial e racial na matriz contemporânea do capital global (SILVA, 2019). Os estudos urbanos têm reforçado, nesse sentido, a cumplicidade entre ciência e modernização, cooperando com a promulgação de uma cidade racializada, por meio de reiteradas despossessões que, ao mesmo tempo, são também processos interditivos da heterogeneidade epistêmica e de modos de enunciação.
A despeito disso, queremos aqui destacar a emergência da questão racial em trabalhos mais recentes no âmbito dos estudos urbanos no Brasil. Nessas abordagens renovadas, vêm sendo recuperadas e atualizadas tanto a contribuição de pensadoras/es e militantes negras/os brasileiras/os como Abdias Nascimento, Lélia Gonzalez ou Beatriz Nascimento, como alguns trabalhos produzidos desde meados do século XX acerca da articulação entre classe e raça como dispositivos de exploração, como os de Carlos Hasenbalg ou Clovis Moura; ou da segregação racial e da historicidade negra na formação das favelas e periferias, como os de Donald Pierson, Raquel Rolnik ou Andrelino Campos; para citar alguns.
Evidenciando ordenamentos socioespaciais racializados e a coexistência de diversos sistemas classificatórios no tecido social, e centrando atenção nas combinações e superposições de hierarquias, alguns desses estudos têm destacado que o ambiente construído é sempre moldado de forma racializada e, a um só tempo, molda percepções de raça (SANTOS, 2012; VELAME, 2019). Em diálogo com a ideia de que “raça é a maneira como a classe é vivida” (DAVIS, 2011, n.p), têm se desdobrado investigações sobre os modos como a classe é vivida por meio de desigualdades raciais inscritas no espaço urbano (CAMPOS, 2012; OLIVEIRA, 2015).
Apesar dessa maior importância, os estudos urbanos brasileiros, mas também as ciências sociais e as disputas políticas em escala global, ainda têm concebido raça ou como um efeito ideológico distorcendo o real, ou subsumida à primazia de classe e das relações econômicas (GILROY, 2002), ou reduzida a princípio classificatório. E, segundo Silva (2019), mesmo em algumas das abordagens ditas decoloniais, a classificação e as hierarquias raciais são tomadas como exterioridade econômica e/ou ética. A partir dessas posições críticas, atesta-se ora o pressuposto de uma anterioridade do mecanismo colonial ao capital global, ora a estruturação racial como sendo imposta a partir (e na sequência) do advento do capital (e aprofundada pela regulação estatal). A temporalidade linear não é, portanto, confrontada, enevoando as profundas implicações da tríade colonial, racial e capital (SILVA, 2019).
Há também alguns estudos que, sem abrir mão de certos aportes importantes que moldaram os estudos urbanos no país – como o papel determinante do Estado nos processos de expansão do capitalismo e, portanto, nas lógicas de espoliação em que se ancora –, têm explicitado dimensões de uma governamentalidade espacial racializada (ALVES, 2014; PATERNIANI, 2019), a qual se ancoraria também na despossessão, lida não mais apenas na chave da espoliação de classe, mas em sua articulação com a perspectiva da necropolítica (MBEMBE, 2018), enfatizando, em diálogo com Foucault (2008), a violência seletiva e territorializada como técnica de governo central ao estado racial.
Reiterando e indo além da ideia de uma “territorialização da pobreza”, algumas dessas abordagens chamam atenção para a articulação entre a criminalização de determinados corpos, práticas e modos de habitar, e os deslocamentos forçados como mecanismos de “destruição contínua de um sentido negro de lugar nas Américas” (MCKITTRICK, 2011, p. 951). A ideia de “banimento racial”, tal como proposta por Roy (2019), reitera que o quadro conceitual mais amplamente utilizado para pensar a violência das transformações urbanas (a exemplo de “gentrificação” ou “expulsão”) seria insuficiente para dar conta de um aspecto fundamental desses processos: o entrecruzamento entre o papel do Estado e a centralidade da raça, ou, em outras palavras, “a violência instituída pelo Estado contra corpos e comunidades racializados” (ROY, 2019, p. 227). Como elucida Silva (2019), é, aliás, a dependência do capital a essa capacidade do Estado de mobilizar violência total e taxação extrema que faz continuar a acumulação “primitiva” no capital global. A forma jurídica colonial não só persiste como viabiliza o capital global através da racialidade, manifesta ao transubstanciar a defasagem econômica herdada pelos descendentes dos escravizados – a “acumulação negativa” (SILVA, 2019, p. 171) – em “déficit natural, o qual consiste na justificação principal para a violência racial perpetrada ou autorizada pelo estado” (SILVA, 2019, p. 180).
E aqui nos alinhamos a algumas abordagens que, referidas a uma tradição radical negra, recusam tanto a “familiar naturalização analítica” que articula negritude, violência e morte e enfatiza exclusivamente dimensões de opressão e abjeção (MCKITTRICK, 2011, p. 955), quanto o movimento inverso de pautar apenas positividade, agência, resistência ou excepcionalidade. Buscando ir além da reificação dos marcos coloniais e da produção de conhecimento a eles atrelados, que situam os corpos e os territórios negros fora da modernidade – e, de alguma forma, fora da humanidade –, fazem ver, em contraponto, uma “modernidade fugitiva” na qual outras formas de organização social e espacial, para além da branquidade do Estado, poderiam ser imaginadas (KRUG, 2018; NASCIMENTO, 2018).
São perspectivas críticas àqueles ideais de integração, que centram atenção a formas de escape às construções normativas da diferença – tornadas desigualdades – e aos repertórios de práticas e políticas de recusa aos processos induzidos – social, política ou epistemologicamente – de precarização, ilegalização, criminalização ou patologização de corpos e territórios negros. Harney e Moten (2013) consideram que essas “fugitividades” constituem mesmo uma “ontologia da negritude”, que urgem ser percebidas e mobilizadas nos estudos e políticas urbanas.
Nesse sentido, tomamos as transformações urbanas como lócus privilegiado para reflexão sobre as disputas racializadas constitutivas do social/territorial. O acompanhamento da transformação em pleno ato, relativa à implantação do monotrilho no Subúrbio Ferroviário de Salvador, permite conectar as questões esboçadas nesta seção a um campo de debates mais recente em torno das infraestruturas (ANAND; GUPTA; APPEL, 2018) e da centralidade que adquirem, contemporaneamente, como dispositivos em que colonialidade, racialidade e modernidade se articulam a modalidades contemporâneas de extração de valor financeiro, reencenando – material e discursivamente – desenvolvimento e progresso, como modos de gerir diferencialmente populações e territórios racializados.
Na seção a seguir, buscamos elaborar uma abordagem heurística e situada da infraestrutura como nexo conflitivo-generativo em que simultaneamente se confrontam e se articulam (neo)desenvolvimentismo, expropriação colonial, banimento racial, fugitividades e reposicionamentos da negridade. Derivaria daí um entre – relacional e disruptivo – que acaba por conformar territorialidades e mundos de vida (im)possíveis (MOMBAÇA, 2020) na qual se vislumbram – e se reivindicam – experiências divergentes de habitar. A dimensão da atravessabilidade, tal como elaborada por Silva (2019), é crucial nesse sentido, enquanto capacidade da negridade de atravessar e criar brechas, desafiando as fixações e limites do espaço-tempo formal e linear do mundo ordenado, ao ativar uma transespaçotemporalidade fractal referida a um domínio (in)comum (BLASER; DE LA CADENA, 2017).
A produção de infraestruturas no Subúrbio Ferroviário de Salvador:
acumulação negativa e reposicionamentos da negridade
A narrativa mestra – marcadamente acadêmica – sobre o Subúrbio Ferroviário toma como espécie de marco inaugural a implantação da Estrada de Ferro da Bahia ao São Francisco, na década de 1860, quando se inicia uma ocupação mais marcadamente urbana. Da conexão estabelecida pela linha férrea, decorreria sua ocupação inicial como lugar de veraneio das elites, a instalação da primeira fábrica de tecidos, e a posterior consolidação do que foi considerado por essa narrativa como seu caráter “funcional”, a saber: lugar de moradia dos pobres urbanos. A combinação de loteamentos (regulares ou não) e “invasões” é também elemento destacado na maior parte dessas abordagens, que via de regra acentuam aspectos como exclusão e segregação social, ausência do Estado e precariedade na produção do espaço – majoritariamente associada à autoconstrução como forma desigual de acesso à moradia (GORDILHO-SOUZA, 2004).
Assim, definido e enquadrado no âmbito do “padrão periférico de crescimento urbano” (CARVALHO; PINHO, 1996), como “território de pobreza” (SOARES, 2009); “cidade precária” (CARVALHO; PEREIRA, 2008); “aglomerado de bairros” (DIAS, 2017); “urbanização de sufoco e sufocante” (ESPINHEIRA, 2003); o Subúrbio torna-se nacional (e mesmo internacionalmente) conhecido na transição dos anos 1970/1980 através do crescimento, apesar das tentativas iniciais de erradicação e, posteriormente, de urbanização, de Alagados, então difundida como uma das maiores favelas do Brasil – e mesmo da América Latina.
Ainda que uma certa ideia de periferia – assim como a nomeação exógena Subúrbio Ferroviário – seja mobilizada por moradoras/es em sentido afirmativo, outros modos de pensar e narrar as territorialidades e temporalidades imbricadas no Subúrbio têm sido invocados por elas/es, em contraponto às abordagens pela falta, exclusão ou violência. Em uma visada histórica ampliada, recobram outras camadas transtemporais e transespaciais, mais ou menos visíveis, que conformam suas complexas ecologias contemporâneas e que escapam daquela abordagem funcionalista da periferia, ainda recorrente. De território originariamente ocupado por aldeamentos indígenas tupinambás à ocupação colonial por fazendas de dendê e engenhos de açúcar ou pelos marcos da presença holandesa; da fugitividade materializada nos quilombos que ali coexistiram com e para além das políticas de morte e subjugação às heranças acumuladas em comunidades pesqueiras, vestígios materiais, culturais e simbólicos dessas muitas camadas sobrepostas são mobilizados por moradoras/es para refutar uma narrativa de “origem” associada estritamente à modernização/industrialização.
O subúrbio ferroviário de Salvador, que tem seiscentas mil pessoas e é uma área histórica, mas caracterizada pela pobreza, violência. Tanto que eles não conseguem conceituar como lugar que tem educação, tem arte, tem cultura. E, no entanto, é um lugar que tem tudo isso, mas que foi abafado desde o século XVI. É uma contradição das contradições: um lugar que tem artefatos do século XVI e que é preenchido de pobreza, que não permite que ninguém nem sonhe que exista isso, que exista história, que exista…
Essa é a luta da memória e do esquecimento: de uma hora para a outra a memória foi suplantada. Coisas que são fundamentais para conhecer e ter uma dimensão de pertença ao lugar foram destruídas: sambaquis, igrejas antigas... (José Eduardo, morador de São João do Cabrito, fundador e pesquisador do Acervo da Laje, em Leite e Mahfoud, 2018).
Mais de um século após a implantação da ferrovia, uma outra intervenção infraestrutural reconfiguraria significativamente o território: no início da década de 1970 seria inaugurada a Avenida Afrânio Peixoto (mais conhecida como Avenida Suburbana). A construção dessa avenida conecta o Subúrbio com uma série de políticas desenvolvimentistas iniciadas nos anos 1940/1950 e intensificadas nos anos de 1960/1970 no país e no estado (culminando na delimitação da Região Metropolitana de Salvador e seu Plano de Desenvolvimento Integrado), momento a partir do qual a Avenida Suburbana passaria, supostamente, a integrar os territórios do Subúrbio à nova ordem industrial metropolitana e ao horizonte de desenvolvimento, modernização e industrialização que se anunciava nas políticas de indução à metropolização de então, conformando novas formas de concentração de poder econômico, associadas a novas camadas de extração de valor das vidas negras.
Para além de receber a migração em busca de trabalho na região metropolitana, o Subúrbio se tornaria ainda um dos principais destinos dos deslocamentos forçados de moradora/es majoritariamente negras expulsas de outras áreas da cidade, notadamente do centro histórico, mas também de outras regiões tidas como “periféricas”. Tais expulsões estiveram associadas a vários projetos de modernização que incidiram sobre Salvador ao longo de todo século XX.
A própria construção da Avenida Suburbana foi responsável pela remoção de inúmeras moradias, bem como pelo aterro de diversas nascentes e fontes de água, estendendo e adensando o Subúrbio. Sua construção ocorreu quase simultaneamente à também emblemática intervenção de substituição das moradias em palafitas sobre a Baía de Todos os Santos em Alagados. Tais intervenções, somando-se à produção de alguns conjuntos habitacionais e loteamentos, buscavam afirmar a presença intervencionista do Estado numa suposta tentativa de contenção do rápido processo de “urbanização popular” (SERPA, 2007).
Essa atuação estatal não apenas não conseguiu controlar ou disciplinar tal processo, como suas intervenções o potencializaram, de modo que a autoconstrução de moradias e infraestruturas coletivas se tornaria a tônica da produção desse território, em articulação com dinâmicas pré-existentes como a pesca e a mariscagem, as práticas religiosas de matriz africana, ou o cultivo e vendagem de alimentos, para citar algumas. Atualmente o Subúrbio compreende uma contiguidade de cerca de 22 bairros, majoritariamente construídos pelas/os próprias/os moradoras/es, ao longo de todo o século XX e ainda hoje, totalizando aproximadamente 600.000 habitantes (FGM, s.d). Trata-se, portanto, de um espaço urbano extremamente complexo e heterogêneo, a despeito da sua reiterada homogeneização tanto por alguns discursos acadêmicos quanto pelo senso comum, mas, sobretudo, pelas políticas urbanas ali incidentes.
Passados cinquenta anos da implantação da Avenida Suburbana, em fevereiro de 2021 o trem do Subúrbio foi desativado, dando lugar às obras do monotrilho, que se assentam no argumento de configurar “uma realidade toda nova de transporte” – amplificando as conexões com a região metropolitana, bem como com as redes de metrô de Salvador – e “restaurar toda a região” (BAHIA, 2017). A referida participação da BYD na PPP do monotrilho, no contrato formalizado em 2019, atualiza a histórica presença de multinacionais em parceria com as elites locais na produção de infraestruturas6, além de indicar um crescimento da influência da economia de mercado chinesa na América Latina, nos informando sobre contornos da modernidade global incidente em Salvador, a partir de relações internacionais multidirecionais, que descentram os tradicionais polos euro-americanos (DIRLIK, 2003). O arranjo político, institucional e financeiro que se constrói em torno dessa intervenção conecta Salvador – e seu Subúrbio Ferroviário – a toda uma economia inter e transnacional, que parece ter na infraestrutura uma moeda atual de investimento em grande parte do Sul global (ANAND; GUPTA; APPEL, 2018). A atenção à produção estatal-corporativa envolvida na implantação do monotrilho e suas formas de expropriação evidencia alguns nexos entre racialidade, colonialidade e circuitos globais de financeirização (CHAKRAVARTTY; SILVA, 2012; ROY; ROLNIK, 2020).
Requentando o argumento de impulsionar o desenvolvimento da região, essa intervenção infraestrutural projeta reconfigurações do território já evidenciadas pela presença de novos interesses imobiliários e empresariais no Subúrbio, ainda mais potencializados por intervenções urbanas realizadas nos últimos anos pelos governos municipal e estadual. Essas iniciativas dão indícios da potencial valorização imobiliária e turística na orla da Baía de Todos os Santos, a partir da implantação do monotrilho e da amplificação da conexão do Subúrbio com o centro da cidade, cujos interesses em jogo se cruzam em outras intervenções projetadas em articulação com capitais chineses (como a ponte que irá conectar Salvador e Ilha de Itaparica, para citar um exemplo emblemático).
Essas dinâmicas em curso no território vêm tornando as/os moradoras/es ainda mais suscetíveis aos efeitos de processos que orbitam entre lógicas de privatização e comoditização que vulnerabilizam o território e ameaçam, uma vez mais, a permanência de seus habitantes, configurando-se como estratégias renovadas de “branqueamento” socioespacial. A produção de mais essa grande obra de infraestrutura no Subúrbio, se, por um lado, reedita lógicas desenvolvimentistas, pode também ser lida como dispositivo de governamentalidade racializada que rearticula a expropriação moderno-colonial às modalidades contemporâneas de extração de valor financeiro, intensificando a “acumulação negativa” (SILVA, 2019).
Eles tiraram o pessoal de lá e jogaram pra cá, como o pessoal mais velho sabe... achando que lá era bom, o melhor lugar pra eles e que a gente não poderia estar lá junto deles… mas o Subúrbio cresceu. Agora que estamos aqui enraizados querem nos tirar de novo. (Pedro, morador de Periperi).
O monotrilho reincide na ameaça de remoção ou relocação de várias centenas de famílias assentadas há muitas décadas no território, promovendo novas rupturas das tessituras materiais e sociais sedimentadas no tempo. Muitas delas têm, na moradia autoconstruída, seu maior bem, herança de lutas familiares e coletivas que se misturam à própria produção da paisagem local, conformando um sentido negro de lugar, nos termos de Mckittrick (2011). A fala de Pedro reforça a percepção de uma contínua produção de despossessão, precarização e pauperização por intervenções infraestruturais como a do monotrilho, reincidente sobre sujeitos racializados que têm, na relação com o território, condição vital de seus modos de existir, como também aponta Gilson, em complemento a sua fala que abre este artigo: “Eles não consideram o tempo, as relações. Acha que pagando o imóvel tá resolvendo a situação. E essa sociabilidade pra eles não tem valor.”
A intervenção prevê, até o momento, entre desapropriações e reassentamentos, um espectro de cerca de 640 remoções, que chegam até a Ilha de São João (no município de Simões Filho). Muitas/os moradora/es descobriram serem alvos das remoções ao se depararem com pichações na fachada de suas casas, feitas sem o seu consentimento por técnicos sociais a serviço do Consórcio, e em muitos casos sem terem recebido sequer uma notificação ou qualquer comunicação sobre a desapropriação ou o reassentamento. A falta de informações sobre o projeto, sobre a política de reassentamento e sobre as indenizações reforçam a situação de violência discriminatória e insegurança possessória, e seus impactos em dinâmicas laborais locais são pouco mensuráveis, como explicitado por Dandara: “A minha preocupação é a moradia... O meu sustento é aqui do bairro... Não me perguntaram nada! Tenho muitas dúvidas!”
Figura 01 - Violências sobrepostas (2019)
Fonte: Acervo do grupo de estudos Margear. Autoria de Marina Muniz (2019)
Para além do impacto direto para essas famílias cujas moradias serão removidas, a intervenção incide também sobre dinâmicas de vida de outras milhares de pessoas. Mais de 10 mil pessoas (CTB, 2021), incluindo moradoras/es, estudantes, pescadoras/es e marisqueiras/os, integrantes de terreiros de candomblé e religiões de matriz africana, trabalhadoras/es informais e rurais, catadoras/es de folhas medicinais e alimentos, catadoras/es de recicláveis e artistas, faziam uso do trem cotidianamente para ir ao trabalho, acessar escolas, comércio, serviços em centralidades como Calçada, São Joaquim e Paripe – antes da sua desativação em fevereiro deste ano (ACERVO DA LAJE et al, 2020). Mais do que números de usuárias/os ou deslocamentos, esse registro é índice de uma miríade de conexões e redes de relações que eram agenciadas pelos usos da infraestrutura ferroviária, indicando a sua vitalidade, no que pese seu processo de sucateamento, marcado por desinvestimentos, descontinuidades ou interrupção de políticas de manutenção e qualificação que evidenciam uma gestão diferencial em relação ao território.
A problemática em discussão não se deve exclusivamente à mudança do modal ferroviário para o monotrilho, perpassando políticas de financiamento e de (in)justiça tarifária. O aumento de 740% do valor da tarifa pública projetado para o monotrilho aponta para a redução da capacidade de deslocamentos vitais – mobilidades cotidianas intrabairros ou para outras centralidades da cidade, bem como práticas laborais e econômicas, as quais dependiam do trem e de sua tarifa módica –, já que apenas 9% desses usuários poderiam arcar com o novo valor da passagem do monotrilho. Aponta, ainda, para impactos na renda das/os antigas/os usuárias/os do trem, dos quais 93% integram famílias com renda domiciliar mensal de 0 até 2 salários mínimos, para quem a projeção da nova tarifa significa um aumento da despesa com transporte público variando de 4,2% para 35,4%, ao considerarmos o teto da faixa de zero até um salário mínimo, e de 2,1% para 17,7% no limite do nível de um até dois salários mínimos (MP-BA et al, 2020).
Mahin, moradora de Itacaranha, indica como a previsão de aumento da tarifa afeta modos de vida que tinham, no trem, a garantia de deslocamentos não simplesmente funcionais: “Eu uso o trem como mobilidade pela Suburbana. Vou à feira, visito o meu avô ... A gente paga um real pra ir e voltar da feira. Se pagarmos oito reais, fará muita falta. (...) Vai impactar o lazer dos moradores, o ‘baba’, a praia do fim de semana.” Gilson, um defensor da manutenção – modernizada – do trem, também nos ajuda a compreender essa relação das/os moradoras/es com o trem que, além de meramente econômica, é também afetiva e vital: “preservar o trem é valorizar a nossa cultura, memória e relações. A ferrovia é o coração da região. Coração que faz pulsar”.
Com ele pudemos apreender que, no horizonte de “espera” das/os moradoras/es, que configura uma temporalidade habitada da vida cotidiana sedimentada por repetidas e frustradas promessas de futuro e democracia (CAVALCANTI, 2021), o trem, propositadamente sucateado, tomava parte de um imaginário de “melhorias”, associado a uma certa ideia de modernização coletivamente compartilhada. A modernização imposta, materializada no monotrilho, ao incidir sobre dimensões afetivas e memoriais da relação com o território, configuraria, nos termos de De La Cadena (2018, p. 98) – em diálogo com Jacques Ranciére e Viveiros de Castro – um dissenso histórico sobre um equívoco, no qual se evidenciam os diferentes sentidos de modernização, progresso, desenvolvimento e, em última instância, de futuro. Da perspectiva das/os moradoras/es, a melhoria do trem geraria um acúmulo no processo coletivo de construção de espaços e vidas na chave da “luta”. Já o monotrilho, ao expropriá-los de memórias, afetos, práticas cotidianas, modos de vida, dinâmicas laborais, e da própria moradia, representaria o “atraso”, no sentido de um novo recomeço, da necessidade de retrabalho para estruturação da vida.
A fala sensível e acurada de José Eduardo indica que as múltiplas (super)explorações e precarizações do trabalho, despossessões e espoliações urbanas, territoriais e cognitivas abordadas neste artigo – situadas pela vigência do capital contemporâneo – confluem com a perpetuação da expropriação total do trabalho escravo (SILVA, 2019). A centralidade da coimplicação de diferentes regimes extrativos do valor tem sido, no entanto, enevoada tanto pelas narrativas desenvolvimentistas como por boa parte dos seus críticos.
Essas pessoas poderosas chegam e querem intervir e definir nosso território pelo antes e depois de suas próprias ações, ignorando que aqui há antecedências, precedências e existências. É de muito antes… tudo, tudo aqui é de muito antes, a gente não é o começo nem o fim, a gente é a continuidade. (José Eduardo).
Fazendo ecoar o dissenso, moradoras/es têm se articulado a partir da reivindicação do Subúrbio Ferroviário como um território ancestral, moldado por esforços e investimentos coletivos acumulados no tempo e espaço, que se configuram como uma “infraestrutura social altamente organizada” (SIMONE, 2004, p. 407), sistematicamente desconsiderada e desmantelada pela política de infraestruturas ali reincidente. Dona Silvana, marisqueira e moradora do Bairro de Periperi, enuncia as posições diferenciadas dentro dos rumos do progresso modelados pela intervenção do monotrilho, revelando camadas de (re)construção de desigualdades e políticas de morte.
Quando chega o concreto e o asfalto, a primeira coisa que faz é tirar a gente, os “pequeno”, ambulante, camelô, pescador, marisqueira, porque dizem que somos poluição visual. Quando vem um megaprojeto “pro” nosso subúrbio, vem tentar limpar e dizer que por si só um trem elevado vai mudar a vida da nossa população empobrecida, que não tem o direito nem de trabalhar, nem de ter um barraco. Os ambulantes não “teve” nenhuma alternativa, é como se assassinasse a pessoa, não tem direito à sobrevivência. Como sempre, em todos os projetos dessa cidade, nós temos que ser mortos. Como a gente vai poder usar esse VLT do Subúrbio? É muito perverso e cruel. Eu não aceitei essa parada do trem! Por que a gente não é incluído no progresso? Nós não merecemos? Por que esse progresso só vem pra matar os nossos?
Mero, pescador do Porto da Sardinha, em São João do Cabrito, quando a desativação do trem era ainda apenas uma ameaça, destacava sua importância para a circulação e comercialização do pescado da região, viabilizando meios de vida para centenas de pescadoras/es e marisqueiras/os que trabalham nesse e em outros portos ao longo da Baía, e o impacto que a intervenção geraria para essas práticas e circuitos:
Vivemos da pesca, todos que moram perto da praia têm uma canoa, uma rede, um barco. Vão tirar a gente e colocar onde? Não é assim, só tirar, mas pra onde? Vamos levar o barco pro meio do mato? Vamos viver de que? Nós só sabemos pescar, pegar peixe, marisco, camarão, vamos viver de que? Eles têm que se adequar a gente, na nossa comunidade, não a gente a eles.
Muitas/os moradoras/es do Subúrbio também utilizavam o trem para comprar peixes e mariscos em portos como o da Sardinha, sendo muitas vezes a única garantia de refeição para algumas famílias, conforme destaca Mero: “O dia que não tem sardinha é pânico, porque muita família vai ficar sem comer. Como vai ficar sem o trem?”
Figura 02 - Cotidiano suburbano: luta e criação.
Fonte: Acervo do grupo de estudos Margear. Autoria de Atailon Matos (2020)
Moradia e trabalho figuram entrelaçados nessas narrativas de pescadores e marisqueiras, afetadas pela implantação do monotrilho. Piau, pescador do Porto da Sardinha, destaca ainda o grande tempo de permanência das famílias no território, no caso dele há 37 anos, evidenciando uma relação indissociável entre lugar de moradia e modos de vida que têm, na pesca e na mariscagem, o cruzamento entre valor econômico, subsistência, herança cultural transmitida geracionalmente, “distração”, horizonte de imaginação social (SILVA, 2001). De fato, como destaca o Movimento e Pescadoras e Pescadores (2012, p. 19) acerca do território pesqueiro: “O território envolve as áreas de pesca e coleta, as áreas de moradias, os locais de embarque e os trajetos com seus barcos, os locais sagrados e as áreas necessárias à reprodução física e cultural do grupo.”
As preocupações de Piau e Mero são ecoadas também por Ciata, moradora da área há 44 anos, e Dandara, marisqueiras que afirmam que “para os governantes somos invisíveis, não existimos”. Essa invisibilização estatal é paradoxal, já que os circuitos da pesca e da mariscagem são vigorosos e importantes, inclusive em termos econômicos, constituindo uma presença conformadora de Salvador e do seu Subúrbio Ferroviário (SILVA, 2013). A “cultura pesqueira”, não reduzida à atividade produtiva, mas compreendida como prática ancestral de sobrevivência, é “fruto do acúmulo de conhecimentos e tecnologias indígenas, africanas e também europeias sobre a pesca”, conformando “saberes ecológicos e tecnológicos” perpetuados sobretudo por negras e negros que transitaram e se fixaram em diferentes pontos da Baía de Todos os Santos (BANDEIRA; BRITO, 2011, p. 303), e que persistem, não sem conflitos, ao longo de toda orla de Salvador – ainda hoje um dos principais municípios pesqueiros do país (SILVA, 2013).
São muitas as incertezas e expectativas desse vasto grupo de pescadoras/es e marisqueiras/os suburbanas/os, não apenas sobre interrupções, obstáculos, restrição de horários ou cobranças de taxas às suas atividades, mas sobretudo acerca de uma possível remoção, seja de suas moradias, seja dos próprios portos em si, uma vez que já é bastante conhecida por eles a dissociação, operada recorrentemente por tais intervenções infraestruturais, entre moradia e essas vinculações ampliadas com o território, como as que as práticas e circuitos de pesca e mariscagem evocam:
A gente aqui do Porto fica se perguntando: vai melhorar? O que sai e o que fica? Pra onde vai? E onde ficam os barcos? Em um conjunto na Fazenda Grande 3? Vai tirar a gente do nosso habitat natural de ganho, e aí? Quais são as garantias para comerciantes e pescadores?
Os questionamentos de Mero, que enunciam outras relações entre território, moradia e trabalho pouco presentes nos estudos urbanos, e absolutamente desconsideradas pelas lógicas que presidem a produção de infraestruturas como o monotrilho, são confluentes com aqueles levantados também pelo “Povo de Santo” do Subúrbio Ferroviário. Leonel Monteiro, presidente da Associação Brasileira de Preservação da Cultura Afro-Ameríndia (AFA) denuncia, em matéria do jornal Correio da Bahia: “as obras não estão levando em conta a presença de comunidades tradicionais e que precisam do meio ambiente preservado para continuar existindo” (SANTANA, 2020a).
O Subúrbio Ferroviário é considerado uma das regiões de Salvador com maior concentração de terreiros de candomblé e religiões de matriz africana, cujas existências ancestrais no/com o território sustentam modos de vida nos quais moradia e sacralidade se entrelaçam, tendo algumas de suas práticas ligadas diretamente aos sentidos que atribuem à linha férrea. Essa presença encontra-se também ameaçada pela intervenção, que se soma à insuficiência, fragilidade e aplicação diferencial dos instrumentos de proteção cultural e patrimonial na cidade. O babalorixá Márcio de Ayrá do Terreiro Ilê Axé Obá Logun Silé, situado no bairro do Lobato, relata que em novembro de 2019 encontrou o terreiro marcado com um número pintado na calçada e, assim, sem qualquer aviso prévio, descobriu que seria demolido devido às obras do monotrilho.
Como índices dos muitos mundos que constituem e habitam o Subúrbio, e de suas distintas formas de lidar com essas transformações e ameaças instauradas pela intervenção do monotrilho, diversas coletividades de moradora/es, marisqueiras/os, pescadoras/es e o “Povo de Santo” têm buscado se (re)articular política e afetivamente, pautando o conflito em ato. Suas mobilizações tornaram visíveis, na cena pública, mundos de vida e modos de enunciações divergentes sobre o território e suas temporalidades, que confrontam os sentidos de progresso e desenvolvimento, e os limites e separações modernas entre tempo e espaço que os sustentam. Reivindicando, frente à iminência de mais um “urbicídio”, um “sentido negro de lugar” no qual se almeja alcançar o passado, não apenas como memória, mas como possibilidade de vida futura (MCKITRICK, 2011), eles têm colocado no centro do debate uma relação visceral com o território (MBEMBE, 2019), que perpassa as questões da moradia e do trabalho, mas não se reduz a elas; que não escapa de enunciados de necessidade ou valor, mas os ultrapassam.
Seus esforços políticos e as narrativas que conformam distanciam-se das abordagens que as qualificam apenas como reações a situações de opressão, sendo aqui tomadas como elaborações partilhadas de conhecimentos e sensibilidades, ou, em sentido ampliado, de transmutação do entendimento em imaginação ativa (SILVA, 2019), recusando – e disputando – os futuros reincidentes que o monotrilho impõe como “novos”.
Temos acompanhado e tomado parte da construção desses espaços de colaboração que forçam a reabertura do debate público sobre as políticas de infraestruturas, pautando não apenas os processos de precarização, vulnerabilização, pauperização por elas induzidos, mas sobretudo a desarticulação de vigorosos mundos de vida e suas ecologias, e apostando no dissenso como potência de enunciação e ação frente ao discurso (neo)desenvolvimentista estatal. O recuo, por parte do governo e do consórcio, naquele caso do terreiro ameaçado de remoção (CORREIO, 2020b), reforça a importância dessas alianças diante das transformações em curso, ao abrirem brechas amplificadoras das questões de interesse das/os moradoras/es, criando rupturas e fissuras, mesmo que intermitentes, ao circuito da expropriação e da violência racial reencenado na intervenção do monotrilho7.
Atravessando
A cidade de Salvador pode ser considerada emblemática dos diversos processos de expropriação colonial que acompanham a invenção do Brasil, em sua reiterada tensão entre modernidade e modernização. Tendo se configurado como um dos principais campos de experimentação, no país, de tecnologias de expropriação e despossessão racializadas, nela se evidenciam ainda, contemporaneamente, as históricas políticas de morte sob as quais se instauraram processos modernizadores que delinearam, colonialmente, o urbano no país.
Tais processos, que tiveram na subsunção dos povos originários e na escravização de africanos sua ancoragem inicial, foram marcados por múltiplas formas de violência racial. Mas, também por formas de luta, práticas de recusa e fugitividades que conformaram estratégias e táticas de recriação da vida – tanto na cidade quanto nos quilombos, e nos limiares territoriais de seus cruzamentos. A presença negra nas ruas das cidades coloniais, recobrada historicamente apenas recentemente no Brasil, conformou grande parte da cidade de Salvador, e se expressa, contemporaneamente, na amplitude de seus territórios negros e na multiplicidade de suas formas de vida.
A atenção às transformações urbanas em ato no Subúrbio Ferroviário, a partir da implantação de uma grande infraestrutura de mobilidade, nos permite apreender a atualização dessas relações historicamente estabelecidas entre tecnologias coloniais de expropriação e tecnologias ancestrais de perpetuação da vida em comum. A implantação do sistema ferroviário no século XIX, buscando ordenar os territórios do seu campo de influência para uma expansão da economia agroexportadora colonial; a modernização rodoviarista-industrial-metropolitana a partir das últimas décadas do século XX, por meio, dentre outros, de remoções para implantação de vias; e o atual processo de substituição do antigo Trem do Subúrbio Ferroviário pelo monotrilho – selando a desconexão e sucateamento da malha ferroviária, iniciados nos anos de 1980 – pontuam iniciativas urbanas realizadas ciclicamente pelas elites e porta-vozes oficiais de Salvador que, sob as ideologias e discursos do progresso, da modernização, da civilização e/ou do desenvolvimento, sempre ameaçam os modos de habitar da negridade.
As narrativas desenvolvimentistas assumem, portanto, histórica e contemporaneamente, uma função subalternizadora, ao abrir caminho para intervenções despossessórias como as do monotrilho: ao subjetivar o Subúrbio Ferroviário de Salvador como perpetuamente “não-desenvolvido”, o arsenal político-simbólico de tais narrativas já está implicado, a priori, com regimes extrativos e de violência antinegridade. Como ferramentas da racialidade, as políticas urbanas (neo)desenvolvimentistas operam acumulação negativa, transubstanciando a atribuição de defasagem econômica de pessoas racializadas em “déficit natural”, “defeito moral e intelectual inerente”, justificando a violência racial perpetrada ou autorizada pelo Estado. A (des)valoração aqui vincula um significante cultural/econômico a um pressuposto ético que lhe é (auto)determinante.
Some-se a isso a reiteração da diferença racial como “datum (matéria empírica ou natural)” que persiste mesmo nas formulações teórico-críticas da relação entre o racial e o capital, como nos instrui Denise Ferreira da Silva. Nessa chave, os processos de expulsão de moradora/es, de espoliação urbana e de exploração do trabalho são descritos como situações presentificadas, subsequentes e desvinculadas do colonial. Essas abordagens acerca de processos de valorização urbana acabam, assim, por reiterar a normalização da diferença racial pelas suas associações a uma concepção linear do tempo, subestimando a amplitude da extração cumulativa destituinte da negridade – e os seus desdobramentos. É assim que as vidas negras, indígenas, seus territórios, recursos e criações são reiteradamente e cumulativamente usurpadas e (re)inscritas no plano do valor, potenciando índices extrativos de valor ao infinito.
Os impasses entre essas intervenções infraestruturais e os muitos mundos de vida que habitam o Subúrbio Ferroviário ativaram, historicamente, instâncias conflitivo-generativas constitutivas do território e das vidas que a ele se entrelaçam. Como buscamos enunciar neste artigo, as ameaças configuradas pela implantação do monotrilho reencenam a confluência de diferentes regimes de expropriação e extração do valor implicados na tríade colonial, racial e capital, mas também se conjugam a um momento crítico de reposicionamento e de redefinição de atravessabilidades pela negridade. Mesmo nesse estado de emergência e urgência, podemos ler o Subúrbio Ferroviário de Salvador referido às potências e infinidades da negridade que articulam, coproduzem, expandem e alteram o social/territorial, através de conexões que excedem transespaçotemporalmente os limites das posições subalternas demarcadas pela cidade moderna, em sua configuração mais recente nos marcos do capitalismo financeiro.
Não queremos, aqui, minimizar a escalada da violência racial e dos processos despossessórios, operados pelo Estado e por corporações na chave da “acumulação negativa”, e evidenciados pela generalização de um modo de produção de infraestruturas que sobrepõe a financeirização neoliberal à matriz colonial e racial. Mas, é justamente em meio aos antagonismos entre formas de fazer cidade que alianças entre distintas agências, coletividades e mundos que configuram o Subúrbio, aí incluída a universidade, se tornam possíveis e potentes, quebrando, mesmo que localizadamente, o estado geral da indiferença.
Essas alianças têm ativado, a partir do conflito, movimentos de redistribuição epistemológica – e política – que tencionam reposicionar, também, o papel da universidade e suas formas de produção de conhecimento, rearticulando criticamente modos de pensar e enunciar cidades e territórios para reafirmar epistemes e práxis urbanísticas que se aproximem mais das formas de habitar, fazer e conhecer a cidade cotidianamente, do que uma questão exclusiva de profissionais e especialistas. Os engajamentos com a outridade nos desafiam a transformar e desierarquizar as nossas próprias relações, que, por serem parte da constituição do social/territorial, podem nos conduzir a outras formas coletivas de pensar, enunciar e fazer cidade.
Referências
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Recebido em: 06/04/2022
Aceito em: 06/07/2022
1 A maior parte dos nomes de moradoras/es foi substituída por nomes fictícios, excetuando-se aquelas/es cuja atuação e produção discursiva é representativa, na esfera pública, de instituições e coletividades locais.
2 O Subúrbio Ferroviário é referido a elementos, identidades e intersubjetividades – destacadamente o sistema ferroviário – compartilhadas por habitantes de um vasto território que, ao mesmo tempo, se constitui na complexidade da composição de diversos territórios, congregando dezenas de bairros e suas múltiplas e sobrepostas territorialidades e mundos de vida (SOUZA, 2009; HAESBAERT, 2001).
3 Diferente da tradição norte-americana que diferencia black e negro, no Brasil negro é o termo a partir do qual afrodescendentes e movimentos antirracistas construíram um vocabulário e repertórios conceituais próprios (negritude, cidade negra, negro na cidade, etc), seguindo uma prática política de esvaziamento do sentido colonizador originário do termo negro (EVARISTO, 2020). Neste artigo, utilizamos a palavra negro e suas derivações (negra e negritude) ativando uma semântica mais ampla e multirreferencial, que conflui a especificidade da experiência brasileira e referências norte-americanas e afro-diaspóricas em torno de black e blackness. Particularmente no caso da tradução de blackness como negridade (SILVA, 2019), o seu significado se refere à condição racializada de modo mais abrangente. Neste artigo, quando usamos negro/a e negritude estamos sublinhando a preponderância de afrodescendentes, e quando usamos negridade remetemos à racialização da vida negra, indígena, colonizada e/ou dissidente.
4 O registro, na escrita, dessa dobra social/territorial pretende enfatizar as conexões formativas do social que se imbricam a dimensões territoriais e suas relações de poder. A intenção é nos distanciarmos de abordagens que pensam o território como projeção do social; ao contrário, considerando seus distintos campos conceituais e onto-epistêmicos, propomos conjugá-los para interrogar os processos aqui enfocados.
5 Dentre essas múltiplas iniciativas, destacamos a realização, no início de 2020, da Escola de Verão Monotrilho em Disputa: articulando comunicação comunitária e avaliação de políticas urbanas (ACERVO DA LAJE et al., 2020), bem como algumas atividades posteriores ao período mais crítico da pandemia do coronavírus, como o encontro realizado em maio de 2022, onde moradoras/es, pesquisadoras/es, estudantes, coletividades vinculadas/os ao Subúrbio Ferroviário reuniram-se para reativar colaborações diante do conflito que segue.
6 Embora nos séculos XIX e XX essa produção infraestrutural internacionalizada respondesse mais diretamente à demanda de aceleração da circulação do capital e/ou por meios de consumo coletivo necessários a sua (re)produção, esses sentidos agora estão sendo reconfigurados pela matriz contemporânea do capital financeiro, ao esvaziar as dimensões produtivas e fabris, delas prescindindo.
7 Consideramos importante sinalizar, às vésperas da publicação deste texto, que após mais de um ano do início da implantação do monotrilho, essa segue ainda mais eivada de contradições, tal como enumeraram diversas coletividades em recente encontro de retomada das articulações da Escola de Verão: progressivo aumento do número de remoções; paralisação das obras; denúncias de irregularidades no processo e seu impacto sobre a viabilização do financiamento pelo Banco Interamericano de Desenvolvimento; múltiplas reivindicações por acesso ao transporte público por parte da população que usava o trem, para citar alguns dos elementos que seguem amplificando o conflito. Gilson enumera, por sua vez, uma série de iniciativas coletivas que seguem confrontando tais processos expropriatórios, tais como um projeto de formação comunitária com o apoio da Coordenadoria Ecumênica de Serviço (CESE), cujo título é “VLT só com participação popular”, envolvendo o projeto Verde Trem, Grupo Germen, pescadoras, marisqueiras, ex-usuários do trem e o Movimento Sem Teto da Bahia (MSTB), bem como a proposição e realização de audiências públicas, em articulação com o Ministério Público e a Frente Parlamentar Ambiental Mista.
AS PRESTAÇÕES DE CONTA DE UM PEQUENO NEGÓCIO
THE ACCOUNTABILITY OF A SMALL BUSINESS
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Marcella Araujo*
Este artigo analisa as práticas econômicas de um “patrão trabalhador” de uma subempreiteira da construção civil. Exploro a polissemia das contas no seu cotidiano: contas matemáticas, prestações de contas documentadas, satisfações morais, justificações de diferenças e desculpas para dificuldades e erros são alguns dos sentidos mobilizados para realizar o trabalho nos canteiros de obras. Proponho, então, a etnografia das prestações de contas como forma de analisar modos contemporâneos de administração do tempo, de trabalhadores e de dinheiro. Pretendo defender que as prestações de contas são um objeto sociológico relevante que permite compreender as imbricações entre formas jurídicas, satisfações morais e atividades econômicas.
Palavras-chave: Pequenos negócios. Prestação de contas. Regulação econômica. Cálculos econômicos.
Abstract
This paper investigates the economic practices of a small business in the construction market. It explores the polysemy of counts and accounts in everyday activities: mathematical calculations, documented accounts, moral accounts, justifications of differences and apologies for difficulties and mistakes in the work process in construction sites. The paper proposes the ethnography of accounts as a methodological approach to the comprehension of contemporary modes of administration of time, workers, and money. It sustains that accounts are a relevant sociological object to the understanding of how legal forms, moralities and economic activities interweave.
Keywords: Small business. Accounts. Economic regulation. Economic calculation.
Introdução
Em uma manhã qualquer de meados de 2015, Gê preparava o almoço, quando recebeu a ligação de seu cunhado José para discutir uma fofoca. O carro recém-comprado por Oliveira, marido de Gê e patrão de José, estava incomodando os homens no canteiro de obras. O deslocamento do subempreiteiro de carro, como faziam os engenheiros, passava a impressão errada de superioridade de Oliveira em relação aos demais. Para acalmar os ânimos e evitar conflitos, Gê explicou a José que o carro tinha sido um investimento de Oliveira. Com o nome sujo, ele não podia deixar dinheiro no banco e precisava de autonomia para circular pela cidade em busca de trechos. A justificativa foi suficiente e o carro não virou objeto de outras discussões1.
A crítica feita à suposta distinção de Oliveira revela uma dissonância entre a posição de patrão performada por ele e a realidade do trabalho no canteiro. Reivindicar o status de patrão, por meio de símbolos como o carro, indicava que Oliveira agia de acordo com a posição de quem tinha parte na sociedade responsável pelo contrato de prestação de serviços com uma grande construtora e, consequentemente, pelo pagamento dos salários. Contudo, na prática, a sociedade significava uma teia de relações sociais entre Oliveira e outros trabalhadores, com hierarquias e valorações, morais e financeiras, específicas.
Ao longo dos últimos sete anos, o comportamento dos “pequenos negócios”2 desafiou estudiosos da economia e do trabalho. Segundo dados do Sebrae (2017), foram os “pequenos negócios” os que mais geraram postos de trabalho, no período de crescimento econômico de 2011-2013; os que menos demitiram, no período de retração de 2014-2016; e os que deram os primeiros sinais de recuperação econômica, em 2017. Contudo, a partir de 2018, ano de referência das últimas estatísticas a nível nacional, as pequenas empresas não apenas passaram a sobreviver menos, como a entrar e sair mais rapidamente de atividade (IBGE, 2020).
A participação de micro e pequenas empresas na economia brasileira foi estimulada, de múltiplas formas, por medidas governamentais. Certamente, a Reforma Trabalhista (Lei 13.467/2017) e a Lei das Terceirizações (Lei 13.429/2017) disseminaram a lógica da empregabilidade e do empreendedorismo (KREIN; COLOMBI, 2019), mas, antes delas, a criação da figura jurídica do microempreendedor individual, em 2008, e o lançamento da Política Nacional de Empreendedorismo, em 2013, foram marcos institucionais de novas formas de administrar o trabalho.
Criada em 2008, pela Lei Complementar 128/2008, que modificou a Lei Geral da Micro e Pequena Empresa, a figura do microempreendedor individual conferiu personalidade jurídica a inúmeras atividades econômicas marcadas por expressivo “nível de informalidade”3, com faturamento anual de até R$81mil, segundo valores de 2018. Em 2011, o então Ministério de Desenvolvimento Social incluiu o empreendedorismo como estratégia de “inclusão produtiva urbana”, no programa federal Brasil Sem Miséria, conferindo ao Sebrae (Serviço Brasileiro de Apoio às Micro e Pequenas Empresas) papel de destaque na formalização e assessoria aos novos agentes econômicos. Dois anos mais tarde, em 2013, foi lançada a Política Nacional de Empreendedorismo, que conferiu protagonismo ao microempreendedor individual no desenvolvimento do país. Marcelo Neri, então ministro da Secretaria de Assuntos Estratégicos da Presidência da República, afirmou que estava em curso, no Brasil daquele momento, uma “revolução empresarial vinda de baixo” (BRASIL, 2013, p. 9). A eleição de Jair Bolsonaro fez intensificar o protagonismo do empreendedorismo na política econômica. Em junho de 2019, a Subsecretaria de Desenvolvimento das Micro e Pequenas Empresas, Empreendedorismo e Artesanato, do Ministério da Economia, firmou uma aliança com o Sebrae para difundir a “cultura empreendedora” como forma de combate às altas taxas de desocupação4.
Além das políticas públicas, ampla literatura sobre histórias de sucesso de “gurus” da administração de empresas (LEITE; MELO, 2018) busca “construir uma cultura do trabalho adaptada ao desemprego, risco e insegurança” (MACHADO DA SILVA, 2002, p. 81). Mas, apesar de suas promessas, o empreendedorismo não tem se mostrado eficaz no combate ao desemprego (KREIN; COLOMBI, 2019). Pelo contrário, os movimentos de trabalhadores e a sociologia do trabalho têm se perguntado sobre o agravamento da precarização do trabalho no Brasil. A erosão do assalariamento regulamentado fez surgir uma série de modalidades de “trabalhos atípicos”, cuja diversidade, porém, não mascara um “processo tendencial de precarização estrutural do trabalho” (ANTUNES, 2014, p. 24). Esse não deixa de ser um velho e novo problema (DRUCK, 2011). Velho, por reforçar o trabalho por conta própria como forma de ganhar a vida; novo, por criar novas regulamentações (LEITE, 2012) para amplas categorias historicamente desassistidas.
O que significa o empresariamento para os trabalhadores? Como Lima (2010, p. 159) destaca, é importante discutir em que medida a ideologia é incorporada na conformação de novas culturas de trabalho, como ela altera não apenas as formas de organização da produção, mas também a própria percepção do trabalho, os valores a ele vinculados, a construção da identidade e dos projetos (pessoais e coletivos). Neste artigo, a partir da etnografia das contas da subempreiteira de Oliveira, discuto as relações sociais, os cálculos econômicos, as valorações morais e as negociações jurídicas que fazem do seu pequeno negócio um agente econômico.
As contas como objeto da sociologia da economia e do trabalho
Este artigo explora as práticas econômicas de uma microempresa da construção civil, a fim de discutir o modo de administração de pessoas, dinheiro e tempo. Como fio condutor da análise, exploro as múltiplas dimensões da categoria conta, entre as quais destaco três: tomar contar, dar conta e prestar conta. A primeira se refere à observação e vigilância de comportamentos. O almoxarife toma conta dos instrumentos de trabalho e da frequência dos trabalhadores, tarefas que viabilizam o cálculo dos gastos da subempreiteira e os pagamentos de cada funcionário. A segunda tem um duplo sentido: trata de desempenho e também da superação de problemas. A equipe dá conta da obra, consegue realizar o projeto contratado, e dá conta enfrentando conjuntamente alguns percalços, como as chuvas e a necessidade de aluguel de equipamentos. A terceira dimensão é particularmente complexa e, por isso mesmo, profícua para a análise.
A prestação de contas tem sido uma tarefa social secundarizada pela sociologia. “Prestar contas” a alguém implica levar o outro em consideração – como o faz toda ação social, na clássica definição de Max Weber –, descrever certa linha de conduta e justificar eventuais discordâncias quanto aos seus desdobramentos. Como Wright Mills elaborou, em 1940, os “motivos” apresentados pelos indivíduos para o desenrolar de suas ações devem ser entendidos como justificações circunstanciadas com a pretensão de enquadrar situações e as consequências delas previstas. Nessa importante releitura do conceito de “motivo” weberiano, Wright Mills propôs o estudo de conversações como operações de concertação de condutas, em que certos “vocabulários de motivos” seriam válidos para embasar aquilo que se faz.
Anos mais tarde, Scott & Lyman (1968) apresentaram uma tipologia de accounts, esse termo polissêmico que engloba, na tradução para o português, dar conta, dar satisfação, prestar conta etc. Logo na primeira página do artigo, os autores sugerem o account como “dispositivo linguageiro5 empregado sempre que uma ação está sujeita a questionamentos valorativos” (SCOTT; LYMAN, 1968, p.46). Em um esforço etnometodológico de elaboração de índices, eles constroem uma tipologia de accounts que desdobra as discussões do filósofo John Austin (1990) sobre ações desfavoráveis. Por um lado, os atores oferecem uns aos outros justificações, reconhecem e assumem a responsabilidade por seus atos, mas negam ou afastam a carga negativa daquilo que fizeram. Por outro lado, os atores podem oferecer desculpas, pretender se eximir da responsabilidade por ações negativas, por meio de apelos a acidentes, falta de informações e fatalismos. Justificações e desculpas, em suma, tratam de “interações remediadoras” (GOFFMAN, 1971) e servem, portanto, como dispositivos de manutenção de relações sociais (WERNECK, 2012).
Discutir prestações de conta em atividades econômicas requer analisar quem e o que conta, quem conta e como se conta. Nesse esforço de etnocontabilidade (COTTEREAU; MARZOK, 2012), cabe apreender os “vocabulários de motivos” de trabalhadores e as operações de concertação das atividades econômicas. Quais são as entidades em interação, como pessoas jurídicas e pessoas físicas (ONTO, 2015)? Quais são as ordens de grandeza e as sustentações das diferenças entre pequenos e grandes agentes econômicos? Como se distribui, marca e circula o dinheiro (ZELIZER, 2011)? Como equivalências entre práticas de trabalho e valores são estabelecidas, com base em quais unidades de medida e por meio de quais operações de cálculo? Uma série de negociações, satisfações, justificações e desculpas são encadeadas para que transações econômicas possam ser realizadas. Aqui, como estratégia metodológica para analisar as dimensões morais, econômicas e jurídicas das prestações de conta, sigo as tarefas sociais realizadas com o intuito de buscar trecho e manter trabalho pela Oliveira Construções Ltda. Exploro a materialidade dos documentos que são produzidos pela empresa, atentando para as práticas de anotação, as técnicas cognitivas empregadas, as formas de cálculo (WEBER, 2002) e as operações de tradução das práticas de trabalho no canteiro de obras nos termos do contrato de prestação de serviços.
O contrato de prestação de serviço e seus problemas
Os papéis existem desde o final dos anos 1990 na vida de Oliveira. Em meados dos anos 1990, o programa Favela Bairro, da prefeitura da cidade do Rio de Janeiro, levava massivos investimentos para a produção de infraestrutura urbana em favelas cariocas. A partir desse momento, as associações de moradores assumiram novo papel na política local e passaram a fornecer currículos de moradores para trabalhar nas obras realizadas por construtoras. Oliveira foi um entre tantos milhares de trabalhadores que conseguiram entrar nos canteiros de obras de urbanização e saneamento por essas novas portas.
Alguns anos mais tarde, quando Oliveira já acumulava experiência fazendo contenção de encostas, instalação de tubulação de esgotamento sanitário, calçamento e asfaltamento, o engenheiro de uma construtora lhe ofereceu a oportunidade de se tornar subempreiteiro diretamente contratado por uma empresa que fazia obras para a Cedae, a Companhia Estadual de Águas e Esgotos do Rio de Janeiro, sem a intermediação dos mestres de obra da associação de moradores. O problema era que Oliveira teria que abrir uma empresa, para poder fornecer nota fiscal. Ele então juntou a rescisão do contrato com a Comlurb, seu emprego assalariado até então, e abriu a primeira das seis empresas que já teve até hoje6. Para sócio, ele chamou seu pai, bombeiro hidráulico com décadas de experiência na indústria e pessoa com bons contatos na associação de moradores da favela onde moravam.
Desde então, Oliveira tem atuado como empreiteiro gato, fornecedor de mão de obra para as construtoras. Entre 2007 e 2016, ele viveu uma estabilidade no trabalho até então pouco experimentada, em virtude dos vultosos investimentos em infraestrutura urbana e social do Programa de Aceleração do Crescimento, que, segundo a Câmara Brasileira da Indústria da Construção (2016), foram a alavanca do setor. O material deste artigo se refere ao período entre 2014 e 2016, durante o qual realizei pesquisa etnográfica com Gê e Oliveira. Apesar de transcorrido certo tempo, em que a cidade e o país passaram por inúmeras mudanças, o processo de prestação de contas se mostra ainda relevante pelas questões que suscita. Eram duas as prestações de conta que Oliveira realizava. Uma envolvia menos papel e era feita por ele mesmo junto aos almoxarifes das construtoras, para quem ele pagava o aluguel dos uniformes e equipamentos da sua equipe. Os uniformes causavam certo transtorno, pois “seus homens” pegavam novas luvas e botas sem restituir os itens usados e gastos. As ferramentas quase não eram alugadas, pois cada um dos seus pedreiros tinha os próprios instrumentos de trabalho. Em geral, Oliveira não optava por alugar máquinas das construtoras, apostando que poderia alugá-las, a melhores preços, de outros subempreiteiros.
A outra prestação de contas era bem mais complexa e envolvia uma grande quantidade de papel. Como microempresário, Oliveira deveria fazer uma prestação de contas junto ao setor financeiro da construtora, apresentando mais de dez documentos. Eram eles: a) o projeto da obra, com todas as tarefas executadas e seus respectivos preços, conforme a tabela apresentada pela construtora aos subempreiteiros e acordada entre eles, na assinatura do contrato de prestação de serviço; b) o boletim de medição realizado pelo engenheiro gerente de obra com o encarregado de obras da subempreiteira, no caso Oliveira mesmo; c) as folhas de ponto dos últimos 30 dias – período para realização das empreitadas – com a lista de todos os funcionários, quantos dias cada um trabalhou e em quais atividades; d) o Registro de Empregados – documento com a identificação da carteira de trabalho, do Número de Identificação do Trabalhador (NIT) ou do Programa de Integração Social (PIS/PASEP), as datas de admissão e demissão (quando fosse o caso), o cargo ocupado ou a função, a remuneração devida e a forma de pagamento, local e horário de trabalho, concessão de férias e a identificação de acidentes de trabalho ou doença (quando fosse o caso), para cada funcionário; e) as folhas de pagamento devidamente assinadas por cada um dos trabalhadores e o Registro de Eventos Trabalhistas, com datas de admissão, demissão e transferências de função, inclusive de Trabalhadores Sem Vínculo (TSV), e suas respectivas remunerações, para validação da folha de pagamento; f) o comprovante de pagamento da Guia de Recolhimento do Fundo de Garantia por Tempo de Serviço (GRF), pagável até o sétimo dia do mês seguinte à remuneração do funcionário; g) o Relatório Analítico da GRF, com as especificações, caso a caso, da remuneração, do depósito, dos encargos do FGTS, contribuição social e encargos de contribuição social; h) a Guia de Recolhimento Rescisório do FGTS (GRRF), nos casos de demissão sem justa causa e de aviso prévio indenizado ao trabalhador; e i) por fim, o Documento de Arrecadação de Receitas Federais (DARF).
Em cada uma das declarações, Oliveira concluía com: “Sem mais e pela veracidade do documento, firmamos o presente para que produza o efeito desejado” e assinava. Aprovados todos esses documentos pelo setor financeiro da construtora, era liberado o dinheiro correspondente à empreitada contratada e já concluída. Aí então, Oliveira deveria emitir a Nota Fiscal Carioca, pelo site da prefeitura, especificando os números do Cadastro Nacional de Pessoa Jurídica (CNPJ) do contratante e o seu, como contratado, a descrição do serviço prestado, o Cadastro Específico do INSS-CEI e o Código de Obras e Edificações (COE).
Praticamente todos os meses, a prestação de contas voltava com pendências. Inúmeras vezes durante meu trabalho de campo, Oliveira chegava da obra esbaforido e ansioso para emitir novamente algum documento. Almoçávamos eu, ele e Gê e subíamos ao escritório no segundo andar da casa para recalcular valores de alguma tarefa, contabilizar encargos esquecidos, anexar novas declarações ou incluir “favores” demandados “por baixo dos panos” por alguns engenheiros. Invariavelmente, Oliveira se irritava com os adiamentos na liberação do pagamento, causados pela incompletude da prestação de contas. Na sua opinião, as postergações eram resultado de certos problemas inerentes à relação contratual entre as empresas grandes e os empreiteiros gato.
O primeiro problema nos contratos era o “custo da formalização”. Os gastos envolviam não apenas a criação de CNPJ, emissão de alvará e contratação de um contador na Junta Comercial, “para dar um ar de legalidade”, como também o pagamento dos encargos trabalhistas. O contrato de prestação de serviço implicava uma distribuição de responsabilidades entre construtora e subempreiteira. Segundo Oliveira, as grandes “garantiam legalidade” às custas de uma série de flexibilizações realizadas pelas pequenas. Já houve casos em que o engenheiro de obras sugeriu o envio de clandestinos, trabalhadores não formalizados, para uma agência de emprego, para contratação por tempo de experiência, evitando, assim problemas com a fiscalização do sindicato. É comum que empresa grande use intermediárias de mão de obra e só efetive o pessoal após a triagem da agência de empregos. Muitas vezes, porém, para diminuir os custos do trabalho, aproveitando-se de brechas legais, as empresas alternam contratos por tempo de experiência via duas agências de emprego diferentes. Assim, não precisam descontar o Fundo de Garantia por Tempo de Serviço ou pagar a rescisão de contrato. Em uma empresa para a qual Oliveira trabalhou, havia contrato com duas agências: após os 180 dias do tempo de experiência, “os peões passavam de um lado para o outro e, assim, ficavam um ano sem receber os direitos”.
Como, na prática, o contrato de prestação de serviço entre empresas grandes e subempreiteiras é uma terceirização de mão de obra, a assimetria no volume do capital de giro entre as empresas é o segundo problema do contrato. Uma minoria de contratantes cobra comprovação da posse do valor de, ao menos, um quinto do custo da empreitada. Mesmo quando esse não é o caso, Oliveira deve ter um capital mínimo que permita cobrir despesas com refeição, transporte e alguns vales dos seus funcionários até a liberação do primeiro pagamento. Ele é particularmente cioso com esses custos. Sem adiantar o pagamento do transporte e sem pagar um almoço decente, ele não teria como dar conta da obra.
O terceiro problema na relação contratual é a divisão do trabalho estabelecida entre construtoras e subempreiteiros. Na assinatura do contrato, a empreitada já vem com “preço fechado”. Ao ganhar uma licitação, a empreiteira recebe uma tabela de valores liberada pela prefeitura, especificando todas as tarefas que deverão ser realizadas e o valor pago por cada uma delas. A empreiteira ganha por tarefa, isto é, por atividade realizada durante um período delimitado, mas os subempreiteiros ganham por empreitada, isto é, por obra finalizada. Na relação com os subempreiteiros, as empreiteiras fecham o produto pronto, sem especificar as atividades implicadas na realização de cada um deles. “Quando eu fecho [o negócio], eu fecho a calçada pronta”, me disse Oliveira. Assim, na conversão de uma tabela de valores especificada por tarefas em outra por empreitada, “eles [as empreiteiras] ganham na planilha”. A distância temporal entre a licitação e o início das obras é a justificativa apresentada pelas empresas aos subempreiteiros para a diferença nos valores. Elas alegam que a demora na liberação dos trechos cria uma defasagem de preços, mas Oliveira diz que é, na conversão de planilhas, que se realiza o lucro.
Essa divisão de trabalho no contrato se desdobra em diferentes níveis de produtividade. Como o mestre de obras e sua equipe ganham por diária, a preocupação com o prazo de conclusão das atividades não segue o mesmo ritmo dos subempreiteiros, que procuram concluir o mais rapidamente possível as empreitadas. Os diferentes regimes de trabalho criam uma intensificação das jornadas entre os subempreiteiros, tendo em vista conseguir novas empreitadas e estender a relação de trabalho no tempo.
Aos diferentes regimes de trabalho correspondem, claro, distintos regimes de pagamento. Tanto as equipes das construtoras como “os homens” de Oliveira recebiam salários de acordo com a tabela do sindicato. Na rotina do canteiro de obras, porém, Oliveira controlava, pela folha de ponto, a participação de cada um dos seus funcionários nas empreitadas. Ele dividia a obra contratada pela construtora em tarefas e pagava seus homens pelo trabalho prestado para a sua conclusão. Em geral, sua equipe recebia, “por fora”, a diferença entre o salário e o total do valor acordado pelas tarefas.
Fazendo as contas
“A gente faz uma química para a matemática fechar”. Se a construtora pagava para fazer calçada, outros itens não poderiam aparecer na memória de cálculo, pois, no contrato, estavam especificados todos os itens a serem pagos, com os respectivos preços, acordados entre empresa e subempreiteiros. A tarefa funciona como uma unidade de cálculo que facilita a conversão entre diárias e empreitadas. Nela, o acordo é sobre o tempo necessário à realização de uma atividade específica. A tarefa dá maior margem de manobra ao trabalhador, na medida em que é possível demandar um número maior de horas à realização da atividade do que o realmente necessário. Como a tarefa define o tempo da atividade, ela é mais facilmente convertida nas duas outras unidades de cálculo – a diária e a empreitada.
No canteiro de obras, Oliveira avaliava seus custos e calculava, segundo o preço tabelado, a produtividade que sua equipe deveria ter por dia. “Faço a minha folha. Tenho despesa de R$800 por diária. Então tenho que fazer 100m² de calçada por dia. Eu transformo a minha despesa em produção por dia”. As despesas diárias não são, porém, fixas. Oliveira começa uma obra com certo número de homens. Os serventes ganhavam em torno de R$1200 (então valor do piso do sindicato), contando vale-transporte, alimentação e honorários. Para começar a obra, Oliveira multiplicava esse valor de salário pelo número de homens empregados e dividia o montante pelo custo do trecho. Assim, ele sabia que em x tempo conseguiria cobrir todas as despesas do início da obra, fazer o dinheiro para o pagamento dos pedreiros e tirar algum dinheiro para si.
Para efetuar esses cálculos, Oliveira mobilizava unidades de medida práticas. No início de uma obra, os subempreiteiros são divididos por trechos, unidades espaciais que podem ser ruas, encostas, quilometragem de tubulação, entre outras. Na distribuição dos trechos, a Oliveira Construções Ltda. entrava em concorrência com outros subempreiteiros Para escolher seus trechos, Oliveira empregava estratégias de avaliação rápida dos espaços. Seu olhar treinado calculava a área aproximada do trecho, usando como medidas quantas pessoas passavam ao mesmo tempo na calçada, quantos carros e máquinas passavam na rua, se passava caminhão, por quantos quarteirões a rua se estendia. A qualidade do terreno era o outro fator levado em consideração no cálculo. A matemática era difícil. Por um lado, era interessante pegar ruas em pior estado, mais esburacadas, precisando de obras de meio fio e revisão dos bueiros. Por outro, se os problemas fossem muito ruins, a obra poderia exceder a capacidade física dos seus homens e implicar o contrato de maquinário, tornando-se, assim, muito onerosa.
Uma vez acordados os trechos sob incumbência de cada subempreteiro, eram assinados os contratos que convertiam a série de atividades necessárias à conclusão da empreitada em obra contratada. Se um subempreiteiro quebrasse e não conseguisse entregar a obra, ele, em geral, desaparecia e perdia consequentemente a confiança do gerente de obras. O trecho abandonado era então repartido entre os outros subempreiteiros e novos contratos eram assinados.
Para entregar os documentos corretos para a empreiteira e manter-se limpo com o sindicato dos trabalhadores, Oliveira tinha que, mensalmente, converter os ganhos pelas empreitadas em remuneração por salário. “Para fechar as contas, eu faço acordos, acordos de cavalheiros”. E mesmo assim, nem sempre as contas fechavam. Oliveira não deixava de pagar um “almoço decente”, mais do que um “pão com ovo”, e as passagens de ônibus para todos os funcionários, fichados ou clandestinos.
A conversão entre empreitadas e salários era feita na folha de ponto, em que José, braço direito de Oliveira e cunhado de Gê, registrava os dias e os horários de entrada e saída do canteiro, as atividades em que participara cada um dos trabalhadores, os custos com almoço e passagem de ônibus. Esses eram os dados que iam para a empreiteira. Os vales, ou adiantamentos, não entravam. Os clandestinos, homens contratados para trabalhar na obra como bico, também não entravam na planilha que Oliveira enviava para o setor financeiro da construtora. “Quando o sindicato caía em cima”, ele enquadrava esses homens como contratados por tempo de experiência e, assim, conferia-lhes legalidade.
Por fim, a última estratégia “para fazer as contas fecharem” era acordar algumas flexibilizações com seus funcionários fichados. Alguns trabalhadores preferiam ganhar por produtividade, para poder tirar mais no final do mês. Na carteira, seguia registrado o piso salarial, mas “por fora” eles recebiam valores maiores. Para Oliveira, era menos custoso pagar o piso salarial do sindicato – R$1200 para serventes e R$1700 para pedreiros, nos valores de 2016 –, mas ele achava que perdia muito em produtividade. Como seu contrato com as empreiteiras é sempre por produção, ele depende da produtividade “dos seus homens”. Ou então a matemática não fecha. Os bicos, por suposto, são feitos por clandestinos e têm como base de cálculo a diária dos serventes. Entre os fichados, a maioria recebia por produção, apesar de, na carteira, constar o salário mínimo da categoria. De acordo com o reconhecimento de Oliveira pelo trabalho dos seus homens, ele diferenciava o valor das diárias de cada um deles, entre R$80, R$120 e R$150. Desse modo, “por fora”, eles tiravam o valor resultante da multiplicação do número de diárias trabalhadas e dos honorários acordados. Então, um pedreiro fichado recém-promovido ganhava o piso de 20 diárias de R$80. Um pedreiro fichado mais antigo e produtivo poderia passar a ganhar 20 diárias de R$120. Um pedreiro fichado e fechamento poderia tirar 20 diárias de R$150. O salário de Oliveira mesmo era “o que sobrava no final do mês”. Inúmeras vezes, ele tirou muito menos do que seus funcionários e já houve meses de não tirar nada.
Os abandonos sistemáticos de empresas são uma última estratégia da administração do negócio. “A gente não fecha, abandona. Para fechar, a empresa não pode estar devendo, ela tem que estar limpinha”. Até a conclusão da minha pesquisa de doutorado, Oliveira já tinha abandonado quatro empresas, em cerca de vinte anos, e tinha inúmeros amigos subempreiteiros que faziam o mesmo com relativa regularidade. Nenhum deles saía do ramo da construção civil. O nome sujo que impediria a criação de uma nova empresa era contornado com a nomeação de parentes e compadres como os sócios legais das novas empresas, sem, contudo, sua responsabilização prática. O pai, seus dois filhos homens e quatro compadres já haviam “emprestado o nome” para Oliveira criar suas cinco empresas, até 2017. Como era ele que detinha os contatos profissionais para buscar trecho, ele mantinha a responsabilidade de tomar conta das contas.
As satisfações internas
Alguns acordos pré-contratuais – os “acordos de cavalheiros” aos quais Oliveira se referiu acima – garantiam que a administração do tempo, do dinheiro e do processo de trabalho seguisse sem dificuldades.
Apesar do formato de empresa, a subempreiteira não seguia essa hierarquia organizativa. A posição de patrão de Oliveira era sustentada pelos contatos com mestres de obras e engenheiros, acumulados ao longo de mais de duas décadas atuando no ramo das obras urbanas. Como patrão, ele tinha prerrogativa de demitir, mas as decisões não eram tomadas apenas de cima para baixo. A organização da equipe por funções – encarregado de obra, encarregado de turma, apontador, almoxarife, pedreiros e serventes – não se revertia em uma hierarquia piramidal de poder.
A distribuição e o uso do dinheiro da empresa seguiam uma moralidade compartilhada entre os trabalhadores. Se houvesse excedente, já devidamente calculados os salários registrados e os salários reais, esse dinheiro era entendido como fonte potencial de melhores condições de trabalho – e não como lucro. Os funcionários esperavam generosidade de Oliveira, que ele pagasse bons almoços e adiantasse vales. Havia um entendimento tácito de que a bonança da empresa deveria ser partilhada entre os trabalhadores. Nesse sentido, as dinâmicas internas acabavam se aproximando mais de uma cooperativa de trabalhadores, do que de uma empresa. Aqui vale destacar que Oliveira teve experiência nos anos 1990 em cooperativas, modo de organização do trabalho que foi fomentado pela Secretaria Municipal do Trabalho, na gestão do economista André Urani. O fechamento era o princípio moral recorrentemente mobilizado para diferenciar os trabalhadores. A prova do domínio das técnicas não era suficiente para garantir a valorização dos salários ou a ascensão na carreira. Os postos mais altos, como os de encarregado de turma e almoxarife, eram delegados aos homens fechamento, trabalhadores mais antigos com quem Oliveira já havia desenvolvido uma relação de confiança. José era um deles. Ele começou como servente e, com o tempo, tendo provado domínio da técnica, se tornou oficial. Mostrando-se fiel a Oliveira, ele assumiu como encarregado de pessoal, cuidando das folhas de ponto. Com o passar do tempo, José teve os honorários aumentados. Mais adiante, Oliveira delegou a ele também a posição de almoxarife. Ainda que, no caso da subempreiteira, ele só tivesse que controlar quantas luvas, mudas de uniforme, pares de botas e ferramentas os funcionários pegavam junto ao almoxarifado da construtora, a sua dupla função justificava um importante aumento no pagamento e a distinção de José em comparação com os demais trabalhadores.
É no processo de trabalho, combinando as formas práticas de avaliação e formas institucionais de enquadramento das relações de trabalho, que a diferenciação interna dos trabalhadores era construída. Segundo Oliveira, a formalização e as exigências de legalidade “mercantilizaram relações de confiança”. Na prática, contudo, não havia propriamente uma precedência da confiança em relação ao dinheiro. A confiança era ela mesma construída nas relações de trabalho e o dinheiro, pagar mais ou menos, era indicador do tamanho da confiança que se tinha pelo funcionário. Quando alguém pedia trabalho, Oliveira, “se estivesse em situação” de atender, encontrava um lugar na obra. Mas o trabalhador deveria provar ser alguém dotado de técnica e de confiança.
Dentro da subempreiteira, havia dois principais conflitos que rompiam o fechamento: os abusos de confiança e os roubos. Os primeiros são usurpações das posições privilegiadas dentro da empresa para auferir ganhos particulares. Certa vez, Everaldo, um dos pedreiros, abusou da confiança de Oliveira e quis tirar vantagens pessoais por meio da sublocação de uma máquina alugada. Ele arriscou perder uma posição importante dentro do canteiro e da subempreiteira. Por sorte, nessa ocasião, José conseguiu contornar a situação, sem que Oliveira soubesse do ocorrido, garantindo, assim, que a relação de confiança entre Oliveira e Everaldo fosse preservada. Em particular, José conversou com Everaldo, que reconheceu o problema que causou e desculpou-se. Ele passava por um momento de abuso no consumo de álcool e acúmulo de dívidas. A sublocação da máquina foi uma tentativa de obter uma renda extra. Após a reprimenda de José, Everaldo prometeu não voltar a abusar da confiança de Oliveira. Esse nunca chegou a descobrir o ocorrido, mas Everaldo, em demonstração de apreço pela confiança do compadre e patrão, decidiu trabalhar gratuitamente nos mutirões da casa de santo da esposa de Oliveira.
O segundo conflito que recorrentemente emergia eram os roubos. Esses são cometidos pela subempreiteira em relação à construtora, como forma de restituição de valores, em situações consideradas injustas . Um exemplo pode ser elucidativo. Quando trabalhava em outra subempreiteira antes de ser contratado por Oliveira, José ficou com o valor da rescisão do seu contrato de trabalho, apesar de ter acordado, “por baixo dos panos”, que o devolveria ao então patrão. Como nessa relação de trabalho, ele não ganhava vale-transporte e as refeições eram um mísero pão com ovo, ele se sentia explorado. Como forma de represália e de substituição dos valores que lhe eram devidos, José então descumpriu o “acordo de cavalheiros” e roubou o valor da rescisão. O roubo, nesse caso, é uma compensação de uma exploração.
Aqui é importante diferenciar tipos de roubo justificados dos não justificados. Roubo em situação de exploração não tem o mesmo sentido de roubo em situação de abuso de confiança. Ambos são apropriações, mas, em casos de exploração, os roubos são entendidos como restituições de uma injustiça anterior e, nos casos de abuso de confiança, eles são entendidos como expropriações indevidas. A responsabilização pelo roubo muda: em explorações, quem rouba é, na verdade, a vítima; e em abusos de confiança, quem rouba é mal-intencionado. Guilherme, o filho mais velho de Oliveira, roubou o pai mais de uma vez. Ele assinava mais dias nas folhas de ponto e se apropriava do pagamento. Nesse caso, o rapaz abusou da confiança para roubar o pai – incorrendo em uma dupla infração. Diante dessa situação, Oliveira desculpou o rapaz por ser ele usuário de drogas e, entendia o pai, não agir com intenção de prejudicá-lo.
O circuito das obras
É equivocado considerar que as prestações de conta feitas às construtoras sejam todas registradas e que as negociações e acordos morais sejam feitas apenas entre os trabalhadores. Com engenheiros, mestres de obras e outros subempreiteiros, Oliveira mantinha uma troca de favores e ajudas constante que criava uma série de dívidas e retribuições. A rede de favores, ajudas e trabalhos, alguns registrados e outros não, costuram o circuito das obras urbanas, nicho específico dentro do mercado da construção civil. Ainda que as associações de moradores continuem fazendo alguma intermediação entre empreiteira e moradores pleiteantes a postos de trabalho – “Quando vai chegar obra em comunidade, a primeira coisa que se faz é contatar a associação de moradores” –, conforme as obras urbanas passaram a funcionar como um mercado de trabalho, elas ganharam uma autonomia parcial. Há autonomia, pois há portas de entrada – os conhecimentos e as amizades. Para entrar em uma obra, “precisa de um QI – quem indique”.
Ao longo dos anos, conforme foi adquirindo experiência de trabalho em obras de urbanização e saneamento, Oliveira passou a conhecer os canais de circulação de oportunidades de trabalho e “apanhou conhecimento” com outros mestres de obras e engenheiros. “Urbanização e saneamento é um ramo pequeno”, o que criava vantagens e desvantagens. Caso “se queimasse” com algum engenheiro, ele poderia encontrar dificuldades no futuro para arranjar trabalho. Mas, por outro lado, se agradasse aqueles com quem trabalhava, poderia “abrir novas portas”. Aos doutores, Oliveira pagava alguns almoços; atendia pedidos para incorporar funcionários em sua equipe; emitia mais de um recibo para encobrir desvio de verba; repassava dinheiro “por fora” e fazia “obras de agrado”. Como muitos engenheiros de obra trabalham por projeto, isto é, são consultores contratados temporariamente pelas empreiteiras, eles circulam muito entre canteiros. Não raro, ao mesmo tempo, tomam conta de mais de uma obra. Fazendo-se prestativo, Oliveira garantia trabalho.
Com os subempreiteiros Oliveira fazia amizade. Entre eles, havia tanto “concorrência desleal”, como “círculo de amigos”. Em 2016, Oliveira contava com cinco subempreiteiros amigos que fizera “nas concorrências da vida”. Eles se telefonavam para buscar trecho juntos pela cidade e também usavam uns aos outros estrategicamente, para “simular concorrências de apreçamento de obras”. Como os preços dos serviços eram negociados com os engenheiros, Oliveira e seus parceiros fingiam concorrer entre si na frente do doutor. “Eu levo um preço maior, para o amigo levar [a obra]”. Quando conseguiam “obra clandestina”, como algumas feitas nas trocas de favores entre empreiteiras e políticos, os subempreiteiros “faziam sociedade” e dividiam os trechos entre si. A sociedade não era registrada, mas eram feitos acordos verbais de divisão de trabalho. Perto da entrega das obras, clandestinas ou legais, quando o engenheiro “não queria saber de quem era o homem, queria a obra”, os subempreiteiros empregavam, como clandestinos, os trabalhadores dos amigos que quisessem complementar a renda. Em outras situações, eles “trocavam homens”, incorporavam os membros da equipe de um amigo que estivesse sem obra. Nesses casos, os trabalhadores não tinham as carteiras assinadas, a não ser que fosse exigência da construtora, e “recebiam quanto o amigo pagasse”. Os subempreiteiros também “emprestavam o CNPJ” uns para os outros, caso alguém estivesse com nome sujo, sem poder emitir nota fiscal. Um subempreiteiro “assumia formalmente, com os papéis”, mas quem executava a obra era o amigo.
Não é trivial que Oliveira nomeie de formas distintas os laços sociais com engenheiros e subempreiteiros. Com os engenheiros, são inúmeras as possibilidades de trocas de favores, para acumular crédito ou privilégio e, assim, estender no tempo as relações de trabalho. Os favores permitem ainda contornar as assimetrias inerentes à relação comercial firmada entre construtoras e subempreiteiras. Aqueles engenheiros que não respeitam a administração do trabalho do subempreiteiro, ou pedem favores excessivos, extrapolam os limites da forma aceitável da relação comercial, e contra esses é preciso resistir de alguma forma: seja brigando, seja roubando, restituindo algum dinheiro de que se foi expropriado. As relações entre os subempreiteiros amigos são de ajuda e cooperação. As sociedades entre eles são formas de fechamento: é possível contar com esses amigos para conseguir trabalho. Relações pessoais ganham, assim, significado econômico.
Por trás da ilusão de ser “patrão”
A análise da prestação de contas da subempreiteira de Oliveira teve como ponto de partida o contrato de serviço. Mais do que a descrição das normas que devem ser cumpridas para garantir o fluxo de dinheiro e o ritmo do processo de trabalho, procurei atentar para os problemas que o contrato suscita e para os acordos pré-contratuais que o sustentam. Partindo então da crítica de Oliveira aos contratos, discuti três problemas: os custos da formalização, a assimetria de poder econômico entre empresas contratante e contratada e a divisão do trabalho nos canteiros de obra.
No coração desses problemas contratuais e pré-contratuais radica a questão da responsabilidade: quem responde pelo que e quando. Não é possível presumir a identidade entre pessoas jurídicas e agentes econômicos (ONTO, 2015), mas há que se investigar as relações sociais que conectam pessoas físicas e pessoas jurídicas. No que diz respeito às micro, pequenas e empresas individuais, como é o caso da subempreiteira de Oliveira, o capital é, em geral, exíguo, mas o desafio não menos importante. As dívidas acumuladas para dar conta dos custos das obras sujariam o nome da pessoa física e inviabilizariam outras contratações da pessoa jurídica, não fosse a mobilização de relações sociais extraeconômicas. Os favores e as ajudas são, como procurei descrever ao longo do artigo, fundamentais para que as jornadas sejam estendidas, o dinheiro esteja disponível e a força de trabalho seja mobilizada.
No entendimento de Oliveira, tornar-se patrão pode criar uma ilusão: a de confundir ser dono de negócio com dono de capital. Patrão “não precisa trabalhar”, pode viver do “dinheiro a mais” do trabalho dos outros. “O patrão é o dono do capital” e é ele quem manda, quem determina como e em que condições será realizado o trabalho, por quanto tempo durará o contrato, os dias de pagamento. Oliveira não é dono de capital, mas dono de negócio – precisa trabalhar para viver. Se não tomar conta do próprio negócio, volta a ser assalariado e a ter patrão. E em 2019, foi exatamente isso que aconteceu a Oliveira. Sem obras na cidade, seus amigos indicaram-no para trabalhar como empregado de uma empresa de construção pesada, terceirizada da Petrobrás. Por quase um ano, ele circulou canteiros de Itaboraí, instalando tubulação.
Como procurei demonstrar, a etnografia das prestações de contas abre a possibilidade de compreender agenciamentos econômicos contemporâneos. Analisar as práticas cotidianas permite discutir questões a) culturais, distinguindo os valores que orientam as práticas dos trabalhadores e a cultura do empreendedorismo disseminada por políticas públicas e livros de “gurus”; b) jurídicas, diferenciando as personalidades jurídicas, sujeitas a certas formas de regulação, e as relações sociais que lhes conferem agência econômica; e c) organizativas, não confundindo as formas práticas de administração do tempo, do dinheiro e dos trabalhadores com as prescrições contábeis.
Retomando as discussões da introdução deste artigo, esse recorte do objeto sociológico apresenta, ao menos, duas vantagens. Em primeiro lugar, permite discutir contradições do processo de empresariamento do trabalho por conta própria, como as regulamentações que criam terceirizações e o assalariamento alavancado por terceirizações. São inúmeras as contribuições que a sociologia do trabalho vem dando à compreensão de novas formas de trabalho (BRIDI; BRAGA; SANTANA, 2018), mas discutir as reconfigurações de atividades tradicionais oferece pontos de comparação histórica e ajuda a compreender como se (re)inventam questões do mundo do trabalho. Em 1978, Machado da Silva (2018b) analisou as práticas de trabalho e as estratégias de vida de trabalhadores das cinco ocupações mais mal remuneradas no Brasil, a saber: empregadas domésticas, camelôs, balconistas, costureiras e pedreiros. Passados cinquenta anos, eis que algumas dessas atividades continuam a figurar como importantes geradoras de trabalho para milhões de brasileiros, segundos dados do Dieese (2018). Analisar as condições e as relações de trabalho em suas versões empresariadas permitem discutir o novo-velho problema da precariedade de um mercado de trabalho que “converteu inorganicamente” o trabalho ao trabalho assalariado (MACHADO, 2018b, p. 247).Em segundo lugar, questões como a insegurança de não saber por quanto tempo terá trabalho e de não ter direitos trabalhistas, levantadas por Oliveira, tampouco são novidades criadas pelo empreendedorismo. A insegurança, assim como a flexibilidade das jornadas de trabalho – entre diárias, tarefas e empreitadas, e seus desdobramentos para o cotidiano do trabalho – foram discutidas por Machado da Silva (2018a) há mais de cinquenta anos. E, pelos efeitos inerciais que Cardoso (2013) ressalta, ei-las persistentes tanto tempo depois. O olhar longitudinal que os estudos sobre trabalho por conta própria oferecem permite problematizar tantas das promessas contemporâneas.
Referências
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Recebido em: 13/09/2021
Aceito em: 07/07/2022
1* Marcella Araujo é professora de sociologia da Universidade Federal do Rio de Janeiro e coordenadora do Urbano - Laboratório de Estudos da Cidade. E-mail: maraujoufrj@gmail.com
1 Gê e Oliveira são os protagonistas da minha tese de doutorado sobre a provisão de habitação social (ARAUJO, 2017). O trabalho de campo foi realizado entre 2014 e 2016. Gê era então agente comunitária de políticas habitacionais, e Oliveira, subempreiteiro de obras de urbanização e saneamento, segmento do ramo de obras de infraestruturas.
2 “Dono de negócio” é uma categoria usada pelo Sebrae, a partir do agrupamento de duas categorias de posições na ocupação, empregadas pelo IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística): “trabalhador por conta própria” e “empregador”. Em 2014, havia 25 milhões de “donos de negócio” no país, dos quais 85%, ou 21,2 milhões, eram trabalhadores por conta própria (SEBRAE, 2016a). Segundo a classificação do Sebrae (2016b), “empresários” são aqueles “donos de negócio” que possuem Cadastro Nacional de Pessoa Jurídica, informação coletada pela Pesquisa Nacional por Amostra Domiciliar, entre 2009 e 2014.
3 A lista das 400 atividades admitidas no sistemas pode ser conferida aqui: http://mei-microempreendedor.com.br/atividades-permitidas-lista/.
4 http://www.agenciasebrae.com.br/sites/asn/uf/NA/sebrae-e-ministerio-da-economia-articulam-parceria-para-difusao-da-cultura-empreendedora,6b5f7dc57107b610VgnVCM1000004c00210aRCRD
5 Sigo aqui a consideração de Alexandre Werneck que opta pela tradução de “linguistic device”.
6 Vale destacar que, mesmo após a defesa da tese, continuei acompanhando a vida do casal. Desde julho do ano de 2020, voltei a realizar entrevistas quinzenais com Gê, para acompanhar os desdobramentos da pandemia da covid-19 na vida cotidiana da família.
ISSN 1517-5901 (online)
POLÍTICA & TRABALHO
Revista de Ciências Sociais, nº 56, Janeiro/Junho de 2022, p. 86-101
UN JEFE EN EL TELÉFONO
El trabajo del delivery en Argentina en tiempos de virtualidades1
A BOSS ON THE PHONE
Work of the delivery in Argentine in times of virtualities
____________________________________
Osvaldo Battistini*
Resumen
Desde comienzos de la segunda década del siglo XXI, el delivery por plataformas virtuales ha atraído la mirada crítica de distintas esferas de la academia científica. El establecimiento de un alto grado de precarización, mediante el ocultamiento de la relación laboral, el sistema de control algorítmico de las tareas de los/las trabajadores/as y la modalidad de remuneración, constituyeron, entre otros, los principales ejes de interés de gran parte de dichos análisis. Sin dejar de tener en cuenta tales miradas, en base a una investigación realizada, sobre trabajadores/as de tres de estas plataformas virtuales, en la Ciudad de Buenos Aires, indagamos acerca de cuáles son las condiciones de posibilidad para que ese trabajo se haya instalado en Argentina y haya generado un número creciente de trabajadores/as contratados. Para ello, en este artículo, analizamos las características de dicho trabajo, enmarcándolas en las trayectorias de vida de los/las trabajadores/as, la situación socioeconómica en que se encuentran y las alternativas que tienen a la hora de decidir su incorporación a esta forma de trabajo.
Palabras clave: Precarización. Plataformas virtuales. Delivery. Regulación.
Abstract
Since the beginning of the second decade of the 21st century, delivery through virtual platforms has attracted the critical look of different spheres of the scientific academy. The establishment of a high degree of precariousness, through the concealment of the employment relationship, the algorithmic control system of workers’ tasks and the forms of remuneration, constituted, among others, the main axes of analysis in these studies. Taking into account such perspectives of analysis, and based on a research carried out among workers of three of these virtual platforms, in Buenos Aires city, our aim is to explore which were the conditions of possibility for this work to have been installed in Argentina and where a growing number of workers has been hired. In this article, we seek to analyse the characteristics of delivery platforms’ work, taking into account workers’ life trajectories, their socioeconomic situation and the different employment alternatives they have when they decide to enter this kind of activity.
Keywords: Precarisation. Virtual platforms. Delivery. Regulation.
Introducción
A pesar de que, en Argentina, el reparto o la venta a domicilio tiene un origen lejano en el tiempo, ya que, por ejemplo, a mediados del siglo XX, muchos productos (sobre todo comestibles) eran llevados, para su venta directa, a la puerta de los hogares, el auge actual del delivery adquiere un sentido muy diferente. El reparto a domicilio actual, en el cual miles de productos pueden llegar a nuestras casas luego de una elección personalizada y después de un breve llamado telefónico o una orden de pedido en una computadora o en un teléfono móvil, corresponde, en primer lugar, a nuestra modernidad absolutamente tecnologizada y, en segundo lugar, a las necesidades de sociedades que, cada vez más, requieren ordenar su vida a la velocidad y a los ritmos que impone ferozmente el mercado capitalista. Cuando el trabajo ocupa cada vez más tiempo útil de nuestro día y, consiguientemente, los horarios de reposo se reducen, la posibilidad de contar con acceso rápido a determinados bienes necesarios para la vida, nos evita la realización de tareas adicionales y prolonga alguno de los dos tiempos anteriores (el de trabajo o el de descanso). Así, el delivery moderno fue creciendo a la medida de las nuevas imposiciones del mercado capitalista y, gracias a las tecnologías, las empresas de plataforma se presentan como la mejor manera de responder a esas premisas.
El surgimiento de plataformas virtuales, como mecanismo disponible para la gestión tercerizada del trabajo ajeno, es parte de lo que se conoce como economía de plataformas o gig economy. Espacio donde el delivery mediante app, convive con plataformas preparadas para utilizar el trabajo de distintas personas en diferentes lugares del mundo (como trabajo colectivo o colaborativo), que realizan, al mismo tiempo, micro-tareas de muy baja calificación o, trabajadores especializados que llevan a cabo tareas mucho más calificadas, teniendo como objetivo la concreción de un proyecto común (DE STEFANO, 2016).2
En Argentina, las plataformas de delivery conviven, entre otras, con las de intermediación de servicio doméstico (Zolvers), las que conectan freelancers de diseño, traducción, etc., con empresas que requieren de sus servicios (Workana), las que están destinadas a la mediación entre profesionales de servicios con usuarios (Iguanafix), las destinadas a la búsqueda de trabajo (Freelancer), las intermediarias para alquileres u hospedajes temporarios (Airbnb), o las que conectan a choferes de automóviles con posibles usuarios (Uber; Cabify).
El reparto a domicilio, multiplicó su presencia en nuestro país a partir de 2018, con el arribo de la firma colombiana Rappi y la española Glovo, que se sumaron a la uruguaya Pedidos Ya, que ya estaba presente en varias ciudades de Argentina. Particularmente, en la Ciudad Autónoma de Buenos Aires (CABA)3, donde realizamos nuestro trabajo de campo, la actividad de estas plataformas está concentrada mayormente en el rubro gastronómico, donde, si bien muchos de esos locales ya contaban con servicios de delivery propios, las plataformas han multiplicado las posibilidades de reparto de sus productos.
Al mismo tiempo, la enorme difusión de las tecnologías informatizadas (fundamentalmente por la extensión del uso de teléfonos Smartphone) convivió con la difusión de un discurso destinado a inducir en la sociedad la utilización de mecanismos que permitan aprovechar mejor sus tiempos, con frases publicitarias como “Todo lo que quieras entregado en minutos”; “Pedí lo que quieras”; “Te hacemos la vida más fácil”; “Pedí comida a la velocidad de tu hambre”4.
Entonces, tanto el acortamiento del tiempo útil de la vida cotidiana, como la invasión tecnológica, la difusión cultural de la velocidad como premisa de comportamiento social y la expansión del consumo, contribuyeron al crecimiento de la oferta de este tipo de servicios. Pero, otro de los factores que favoreció al desarrollo de este tipo de plataformas fue el aumento del número de trabajadores/as desocupados/as y, sobre todo, el arribo de un contingente muy alto de inmigrantes jóvenes de países latinoamericanos, sobre todo procedentes de Venezuela, cuyas posibilidades de acceder a empleos de calidad era muy baja o casi inexistente.
Una de las conclusiones más extendidas, respecto al trabajo que ofrecen las plataformas de delivery, en distintas partes del mundo, se refiere al elevado grado de precarización laboral que genera este tipo de actividad, fundamentalmente a partir del ocultamiento de la relación de empleo. De todos modos, aun coincidiendo con este diagnóstico, creemos necesario contextualizar la producción de esta forma de trabajo en Argentina, para poder indagar acerca de cuáles fueron, las condiciones de posibilidad que habilitaron su instalación en el mercado y, sobre todo, el incremento exponencial en el número de trabajadores/as contratados por ellas.
En ese sentido, en este artículo, pretendemos, en primer lugar, dar cuenta de las características principales de este trabajo, su desarrollo en Argentina y, particularmente en la CABA, las relaciones que establecen los/las trabajadores/as con este trabajo, el lugar que ocupa esta actividad en sus trayectorias de vida, así como, los espacios de resistencia que ellos/as generaron. Para ello, hemos revisado la bibliografía especializada, los documentos oficiales referidos a esta problemática, la información periodística y la proveniente de las redes sociales. Asimismo, hemos realizado, entre los meses de abril y junio de 2019, en cinco barrios de CABA, 44 entrevistas a repartidores/as, observaciones en los espacios de trabajo y en sus lugares de encuentro o espera entre pedidos. Dichas entrevistas fueron desarrolladas en horarios nocturnos, con el objetivo de encontrar a los/las trabajadores/as en pleno trabajo, y guardando la proporcionalidad entre trabajadores/as de las tres empresas seleccionadas para nuestro análisis (Glovo, Rappy y Pedidos Ya). Entonces, en primer lugar, analizamos la relación entre las nuevas tecnologías, el trabajo y nuestra propia vida en la actualidad; luego indagamos acerca de las características de la relación que las plataformas de delivery establecen con los/as trabajadores/as en Argentina; en tercer lugar, revisamos la acción colectiva desarrollada por esos/as trabajadores; y finalmente cual es la perspectiva de los/las propios/as trabajadores/as respecto a su trabajo en esas empresas.
El trabajo, las nuevas tecnologías y el tiempo estallado
Desde comienzos de la segunda década del siglo XXI, gran parte de los eventos científicos destinados a analizar el futuro del trabajo derivaban en análisis, más o menos profundos, sobre el rol de las nuevas tecnologías en el mundo por venir. Así, se combinaban miradas apocalípticas acerca de ese futuro con otras, ciertamente apologéticas, acerca de los posibles beneficios de tecnologías en términos de productividad. Tal como había sucedido a mediados de nos noventa, tras la aparición del libro de J. Rifkin (1996): “El fin del trabajo”, el panorama que se presentaba era el de dos espacios absolutamente diferenciados: el de quienes podrían utilizar y aprovechar, tanto en su trabajo como en la vida cotidiana, las ventajas generadas por esas tecnologías (una minoría privilegiada), y el de quienes quedarían al margen de ellas (la mayoría desfavorecida económicamente), por lo tanto, sometidos/as a la precarización, la desocupación y la pobreza. De todos modos, aún si los nuevos debates incorporaban mayores precisiones acerca de las características de tecnologías por venir, que aquello que imaginábamos en los noventa, no se advertía que parte de dichas tecnologías ya estaba entre nosotros hacía tiempo, y que ya había logrado transformar de plano nuestras vidas. En todos los espacios de debate, una de esas tecnologías estaba permanentemente a la vista y era utilizada constantemente por los/las participantes: el Smartphone. Sin darnos cuenta, también habíamos incorporado una tecnología que había cambiado nuestro trabajo y que, en ocasiones, también utilizábamos para movilizar formas de trabajo que no necesariamente eran las nuestras.
Desde la llegada del teléfono portable a nuestras vidas siempre me pregunté ¿qué necesidad teníamos de responder inmediatamente a todas las demandas que aparecían en nuestro teléfono? Y ¿por qué razón antes que ese aparato se incorporara a nuestro cuerpo no teníamos esa necesidad?
Una de las respuestas no se relacionaba directamente con nuestras propias intenciones, sino con el uso que las mismas tecnologías estaban haciendo de la información que nosotros generábamos cuando las utilizábamos. Allí estaba la otra parte de las tecnologías, usando nuestra información para generarnos nuevos deseos. Nuestros datos alimentan una maquinaria que reproduce, cada vez a mayor velocidad, necesidades del mercado. Sistema que, rápidamente, parece poder proveernos todo lo que queramos e, inmediatamente, nos muestra todo lo que podríamos desear. La conjunción entre la sociedad de consumo y las tecnologías de la urgencia generaron, según Aubert (2003, p. 261), un individuo característico de la sociedad actual dominado/a por el deseo de satisfacción inmediata de todos sus deseos, un hombre-instantáneo, que vive al ritmo del instante presente, pasando de un deseo a otro en un permanente salto y una impaciencia crónica.
El tiempo diario parece haber estallado en miles de pedazos, escapándose de nuestro dominio y de nuestra capacidad de entender el mecanismo por el cual no podemos salir de esa lógica. Así, las tecnologías han logrado borrar, mucho más fácilmente que en desarrollos tecnológicos anteriores, las fronteras entre tiempo libre y tiempo de trabajo. Pero, el capitalismo también creó soluciones para ese problema, si los tiempos de nuestra libertad se achican, también se crearon las industrias de la comodidad, en las que todo se puede hacer, todo se puede comprar, todo se puede observar sin necesidad de desplazamientos, solventando el tiempo que ya no tenemos y la necesidad de descanso que deseamos después de un largo día de trabajo (FRAYNE, 2015, p. 190). Función que pueden cumplir las plataformas virtuales, ya sea en base a trabajos compartidos por distintos individuos en diferentes lugares del mundo, en tiempo real, lo que se conoce como “trabajo colaborativo” 5, o como sucede en el caso que nos ocupa en este artículo, poniendo el trabajo de otros a nuestro servicio. El delivery por plataformas puede generarnos la ilusión que los tiempos perdidos pueden recuperarse, llega en el tiempo preciso, bajo nuestra demanda y nos trae sólo lo que necesitamos. El delivery comandado por plataformas es el perfecto traslado de la lógica de la producción just-in-time a nuestra vida cotidiana (ABÍLIO, 2020).
El delivery de plataformas virtuales en Argentina
El reparto de productos a domicilio no es novedad en nuestro país. Ya en los años cincuenta y sesenta, los vendedores o productores de productos alimenticios, vendían dichos productos, trasladándose con sus propios vehículos hasta las puertas de casas. Más adelante, primero las heladerías y luego las pizzerías y otros restaurantes incorporaron este servicio, pero sólo para trasladar un pedido realizado previamente, en forma personal y en locales muy cercanos al domicilio de los consumidores.
Ya, en los años noventa, con el neoliberalismo en su apogeo, y gracias a la posibilidad que otorgaban los medios de comunicación para acortar nuestros tiempos de llamada telefónica y las distancias en los traslados de productos, el reparto a domicilio comenzó a ser un servicio extendido en muchos negocios de venta de comida. Fenómeno que también se propagó con la aparición de cadenas de venta de comida rápida. Entonces, si este servicio era incorporado por la gastronomía, sin dudas representaba no sólo una buena nueva para nuestra comodidad, sino también una buena noticia para al trabajo, ya que se abrían nuevas posibilidades de empleo. Pero, el neoliberalismo y la flexibilidad laboral, habían generado, en ese empleo, otro espacio de precarización. En un estudio realizado sobre cadenas de comida rápida en la CABA y en la ciudad de La Plata, pudimos comprobar el alto grado de precarización laboral de gran parte de estos/as trabajadores/as (BATTISTINI, 2009).
En nuestros tiempos, tal como decimos más arriba, el servicio de delivery se ha modificado fuertemente. Ya no es provisto por los mismos productores o vendedores, ahora se terceriza, primero en una plataforma virtual y, luego, en trabajadores/as contratados, por esta última, como “cuentapropistas” o “proveedores de servicios”.
Como sucede en otros países, en Argentina se vive actualmente un auge de las plataformas virtuales de delivery. En 2019, varias de ellas estaban instaladas en Argentina, como Rappi, Glovo, Pedidos Ya, Uber Eats, Ando y Rapy Boy, conviviendo con otras plataformas de la economía colaborativa (MADARIAGA et al., 2019). En la CABA, en 2019, estaban en funcionamiento las primeras tres y, hacia finales de ese año se incorporó Uber Eats.
La primera de dichas empresas en arribar a CABA fue Pedidos Ya, una firma de origen uruguayo, que nace en 2009 y pronto llega a la Argentina. En sus primeros tiempos, esta plataforma empleaba a todos/as sus trabajadores/as en forma estable y bajo contrato formal. Tras el arribo, en 2018, de Rappi, de origen colombiano, y de la española Glovo, la competencia con estas dos empresas, que contratan a todos sus trabajadores como cuentapropistas, derivó en el despido, por parte de la firma uruguaya, de 450 repartidores/as, lo que hacía presagiar un cambio posterior en su lógica de contratación, tal como sucedió poco tiempo después. Esta situación generó un conflicto, con ocupación, por varias semanas, de la oficina de la firma, por parte de los/las trabajadores/as6. Desde entonces, las tres empresas contratan a sus trabajadores/as como independientes, con la única exigencia del registro fiscal de los mismos en el régimen de monotributo7, desentendiéndose, de esa forma del pago de los impuestos correspondientes a la seguridad social, así como de cualquiera de los derechos que corresponden a los trabajadores asalariados, contratados bajo el régimen legal vigente. Al momento de la contratación, los/las trabajadores/as deben ser mayores de 18 años, contar con un Smartphone y su propio vehículo (bicicleta o moto) y su única obligación posterior es la participación en una charla o breve curso de formación impartido por la empresa. Desde ahí en adelante, la relación de los/las repartidores/as con la empresa es por medio de la plataforma virtual y sólo en muy pocas ocasiones en forma presencial en las únicas oficinas que, cada una de ellas, disponen en CABA. Esto último sólo sucede cuando los trabajadores tienen algún inconveniente con la plataforma, que no pueden resolver por teléfono, pero tratan de evitarlo, dada la pérdida de tiempo que les insume ese trámite, dado que esas oficinas cuentan normalmente con muy poco personal que no llega a responder, en forma eficiente el número de demandas que se les presenta. Esta es una manera que tienen las mismas plataformas para desincentivar a los/las repartidores/as de hacer reclamos presenciales y obligarlos a priorizar la comunicación telefónica, que también resulta en la devolución de mensajes ambiguos o incomprensibles por parte de la misma plataforma. Tanto la forma de contratación como la ausencia, en el territorio, de gran estructura física de las empresas son la demostración palpable acerca de la “austeridad” de estas empresas en términos de la fuerte reducción de sus activos, a lo cual se suma la fuerte precarización de los trabajadores y el aprovechamiento de determinadas coyunturas favorables para generar una enorme ganancia meramente coyuntural (SRNICEK, 2018).
Muchas de las consignas que presentan las respectivas páginas de internet de dichas plataformas dan cuenta de la relación que las mismas pretenden establecer con sus repartidores/as. Por ejemplo, para Rappi, estos/as últimos/as son “usuarios” de su app, “que se conectan para atender órdenes con el fin de generar un ingreso”, mientras los otros usuarios, los clientes, “están dispuestos a hacer un pago por conveniencia a cambio de un producto o servicio” 8. En el mismo portal de esta empresa, se convoca a los/las posibles “rapitenderos” con la consigna “¿quieres ser tu propio jefe?”. Para Glovo, por su parte, un/a repartidor/a “es uno de los tres tipos de usuarios de la plataforma”, los otros dos usuarios son los Partners y los clientes. y, en la definición de repartidor se indica que se trata de “usuarios que quieren ayudar a los demás a ahorrar tiempo y hacerles la vida un poco más fácil. Siempre tienen una sonrisa en la cara y desprenden buen rollo y alegría”9. En la misma página, Glovo ofrece a los/las trabajadores/as la posibilidad de contar con “una forma divertida de ganar dinero, descubrir tu ciudad y compartir tiempo con los demás”, además de “disfrutar de la flexibilidad de elegir” sus horas de colaboración. Es decir, en ningún momento, el trabajo es asimilado a un esfuerzo, a un horario y a alguien que dé órdenes, muy por el contrario, la empresa parece ofrecer un espacio libre para que, quienes quieran aprovecharlo, lo hagan sin ataduras y como parte de un entretenimiento divertido. Pedidos Ya, por su parte, ofrece ganar dinero “colaborando con la empresa líder de delivery en Latinoamérica”. También se refiere a esa actividad como una experiencia turística, con la consigna: “Viví al máximo la ciudad, conocé cada rincón y ¡genera experiencias increíbles!”. En esta misma página se advierte a los/las repartidores/as que “Las propinas que recibas también van directamente a tu bolsillo”, dando a entender que se trata de un ingreso complementario garantizado por ese mismo trabajo. Esto último no es novedad en el caso del trabajo de reparto en Argentina, ya que, en un estudio anterior, donde analizamos el trabajo en las empresas de venta de comidas rápidas, observamos que, mayormente, las propinas eran consideradas como parte del sueldo (BATTISTINI, 2009).
Otro de los factores, que demuestra la relación de trabajo independiente que las empresas pretenden, es el alquiler que, mayormente, deben pagar los/las trabajadores/as, por el uso de los uniformes y de la caja térmica de las empresas (LÓPEZ MOURELO; PEREYRA, 2020). Asimismo, hay que considerar que el desplazamiento de estos trabajadores/as por la ciudad sirve a las empresas como publicidad, ya que, en dichos uniformes y en la caja se destacan los colores distintivos y el logo correspondientes a cada una de ellas (MORALES MUÑOZ; ABAL MEDINA, 2020; DEL BONO, 2019).
Hasta 2019, las empresas no se responsabilizaban por el mínimo resguardo de la seguridad de los/las repartidores/as, ante muchos de los riesgos que corren los mismos en las calles de CABA (accidentes, robos con lesiones y hasta muertes)10, que se agravan por el tipo de trabajo que están obligados/as a realizar (circulando por avenidas a gran velocidad para reducir los tiempos y hacer así un mayor número de entregas, llevando pedidos a zonas peligrosas, etc.)11.
En abril de 2019, la justicia ordenó la prohibición inmediata del funcionamiento de estas empresas en la Ciudad, hasta tanto no se cumplan los requisitos legales estipulados en el Código de Tránsito y Transporte local, de acuerdo al cual, los/as repartidores/as debían circular con casco (que, hasta entonces, no sucedía, sobre todo quienes circulaban en bicicleta), con la caja porta objetos anclada en la moto o bicicleta y no atada a la espalda de los/las conductores/as y, además, todos/as ellos/as debían contar con seguro de vida y libreta sanitaria (cuando trasladen alimentos) y adecuada señalización en sus vehículos (luminosa y refractaria, para traslado nocturno). Ante el incumplimiento de los controles por parte del gobierno de la Ciudad y respondiendo a una presentación de la Asociación Sindical de Motociclistas Mensajeros y Servicios (ASIMM), en agosto del mismo año, el mismo Juez volvió a suspender la actividad de las empresas hasta que no regularicen su situación y ordenó operativos policiales para decomisar mercancías de repartidores/as que no cumplan con las medidas establecidas. También ordenó que el gobierno de la CABA clausure y/o inhabilite de oficio a estas empresas. De todos modos, a excepción de los controles policiales, cuyo cumplimiento fue parcial y momentáneo, el resto de las medidas fueron incumplidas por el gobierno de la Ciudad, que se mostraba crítico a la decisión judicial. Asimismo, las empresas apelaron la medida y recusaron al Juez.12
Conflictos y representación sindical
Así como sucedió en los años noventa con los trabajadores/as desocupados/as y precarizados/as que, contra todas las predicciones sociológicas y políticas, demostraron capacidad de organización, los/las trabajadores/as del delivery por plataformas también logran alguna forma de acción sindical. Otro factor que, seguramente, contribuye en este sentido es la relativamente fuerte cultura sindical que aún existe en Argentina.
Entonces, cuando el número de repartidores/as fue aumentando y, de ese modo, se multiplicaron los espacios de interacción, comenzaron a surgir reivindicaciones comunes y, al poco tiempo, una primera forma de organización colectiva, la APP (Asociación de Personal de Plataformas), cuya inscripción legal fue solicitada en octubre de 2018. Si bien la forma de contratación y la individualización que la empresa pretende de los/las repartidores/as no parecían propiciar alguna organización, parte de la lógica de trabajo funcionó como mecanismo de identificación para la acción común. Dado que, uno de los rubros principales de demanda de envíos a domicilio es el gastronómico, en determinados espacios (plazas, veredas de shoppings o de locales de comida rápida) se conforman grupos de trabajadores/as de delivery, donde aguardan ser convocados/as para retirar y llevar algún pedido. Se trata de espacios de encuentro donde se producen continuos intercambios entre ellos/as y que permiten el establecimiento de lazos de amistad y solidaridad (MORALES MUÑOZ; ABAL MEDINA, 2020). Allí, la lógica individualista del trabajo choca con prácticas generadas por los/las mismos/as trabajadores/as, ya que, dichos intercambios les permite generar identificaciones y ámbitos de lucha comunes contra los mecanismos de explotación que generan las plataformas.
Pero, otro de los medios de relacionamiento, que se potencia con los espacios de encuentro, es el Smartphone, que, si bien viabiliza el control algorítimico de los/las trabajadores/as, mediante el cual se los/las evalúa en forma permanente, estableciendo un sistema de premios y castigos (CINGOLANI, 2016), también es utilizado por ellos para comunicarse entre sí o participar en las redes sociales. Así se producen continuos intercambios sobre los diferentes problemas diarios que encuentran en esta actividad, así como la posible difusión de acciones gremiales.
En forma similar a una acción realizada por repartidores/as de Zaragoza (España)13, el teléfono celular y las redes sociales fueron de utilidad para la concreción de una huelga en CABA. Desde julio de 2018, varios/as trabajadores/as del delivery formaron un grupo de Whatsapp, donde intercambiaban sobre los abusos e incumplimientos de las plataformas (cambio de las condiciones establecidas en el contrato, discrecionalidades en los controles algorítmicos y en posteriores castigos, incumplimiento en el reintegro de dinero, etc.). A partir de esto, decidieron conectarse todos/as al mismo tiempo un domingo, en horario pico, y no retirar pedidos de los locales14, haciendo que se acumulen los pedidos en los locales sin que nadie los pase a buscar y, de ese modo, bloquear, momentáneamente, el funcionamiento de la app. Ese fue el primer paso para la organización que luego dio lugar a la APP.
Otra organización, la Asociación Civil de Repartidores Independientes (ACRI) nació también de demandas de los/las mismos/as trabajadores/as, en este caso debido a problemas de seguridad sufridos por varios/as de ellos/as. Se trata de una organización no conformada como sindicato sino como asociación civil, sólo nuclea a trabajadores/as de la ciudad de La Plata y, al contrario de lo que sucede con otras organizaciones, como la ASSIM o la APP, no pretende la estabilización y formalización de los/las repartidores/as, sino que, por el contario plantea fuertes disidencias respecto a esa demanda.15
La ASIMM, por su parte, tiene existencia previa al surgimiento de este tipo de trabajo en Argentina, ya que se trata de un sindicato creado en diciembre de 2018 y representaba, originalmente a los/las trabajadores/as de cadetería en motocicleta. Su principal antecedente es la participación de trabajadores/as “motoqueros” en los acontecimientos de diciembre de 2001, que terminaron con el gobierno de Fernando De la Rua. Esta organización, que está nucleada en la Confederación General del Trabajo (CGT) argumenta su legítimo derecho a representar a los/las repartidores/as de plataformas virtuales, debido a que es el único sindicato con pleno reconocimiento del Estado16.
Otro grupo de trabajadores/as de las apps está nucleado en la Agrupación de Trabajadores de Reparto (ATR), ligada al Frente de Izquierda.
A su vez, trabajadores/as de plataformas, de la ciudad de Rosario (provincia de Santa Fe) se afiliaron a la Asociación de Empleados de Comercio de esa localidad, luego de que esta última instalara, en solidaridad con los/las trabajadores/as de Pedidos Ya, una carpa sanitaria en la plaza San Martín, frente al edificio del gobierno municipal de dicha ciudad, reclamando la regularización de los mismos y su incorporación al convenio colectivo del sector comercio17.
Entonces, la acción colectiva es posible para estos/as trabajadores/as y, de hecho, el resultado de varias de ellas fue la constitución de organizaciones sindicales18. Sin embargo, la capacidad de movilización de estas organizaciones sigue siendo muy baja. Es muy probable que una acción puntual, como el bloqueo de la plataforma, acción que mencionamos más arriba, haya resultado exitosa y de impacto sobre una de las empresas, pero la realización de manifestaciones públicas o huelgas no necesariamente cuenta con la respuesta masiva de los/las trabajadores/as. Uno de los factores que atenta contra la movilización es la situación de vulnerabilidad económica en que se encuentran muchos/as trabajadores/as, debido a la cual, por lo cual evitan perder días de trabajo y arriesgarse al bloqueo de sus cuentas por medio de las apps, si éstas los/las individualizan como participantes de dichas acciones. Sin embargo, la repercusión mediática de las medidas suele ser importante, resultado que puede estar asociado a la notoriedad que adquirieron dichas empresas, sobre todo, por las condiciones de empleo y trabajo que generan en los/las repartidores/as, también muy difundidas por los mismos medios.
El mejor trabajo posible no es el mejor trabajo
Tal como observamos en otras investigaciones realizadas en Argentina (DEL BONO, 2019; LÓPEZ MOURELO; PEREYRA, 2020), la población de trabajadores/as de estas plataformas es mayormente compuesta por inmigrantes, sobre todo venezolanos. En nuestro trabajo de campo el 91 eran inmigrantes y el 85% de ellos eran venezolanos/as, mientras menos del 1% eran argentinos/as. Del total de entrevistados/as sólo seis eran mujeres, lo cual seguramente se debe al peligro que pueden correr en determinadas zonas de la Ciudad, tal como una de ellas nos advertía en la entrevista.
La mayor parte de los/as inmigrantes venezolanos/as llevaba muy poco tiempo en Argentina, al momento de nuestro trabajo de campo y habían emigrado por las condiciones económicas de su país. Gran parte de ellos/as contaba con título universitario y experiencia de trabajo en Venezuela. Los/las que habían arribado muy recientemente tenían la residencia en trámite y trabajaban en una app utilizando el ID telefónico de un familiar o amigo, también de origen venezolano. Si bien, algunos/as de los/las inmigrantes manifestaban interés por quedarse en Argentina, la mayor parte dijo tener intenciones de volver a su tierra cuando, en ella, mejore la situación. Dadas las dificultades encontradas en todo proceso de migración forzada, algunos de ellos/as tuvieron que hacerlo en soledad, dejando a sus familiares en Venezuela, lo cual les generó constantes situaciones incertidumbre y angustia. Además, tenían que separar parte de su ingreso económico para remesarlo a su país, obligándose, por ello, a trabajar más tiempo diario. Lo cual se suma a los gastos derivados de su trabajo (alquileres de indumentaria y caja, monotributo, internet, combustible para los que usan moto, mantenimiento de sus vehículos, reposición de teléfonos en casos de pérdida o robo, etc.), a los alimentarios y al pago del alquiler de su vivienda19. Cuando la familia completa pudo migrar, los dos miembros mayores de la misma ingresaron a trabajar como repartidores/as en las plataformas. Una de estas parejas había organizado un emprendimiento de venta de comida venezolana en uno de los espacios de encuentro de repartidores. La popularidad de este puesto no alcanzaba solamente a los/las repartidores/as de las apps, que se encontraban en dicho espacio, sino que incluía a los vecinos de la zona, quienes iban a comprar al puesto, atendido por la mujer, o, de lo contrario, era su marido el que llevaba la comida a su domicilio, quien trabajaba como repartidor de una app.
Otro dato relevante acerca de la composición del grupo de trabajadores y trabajadoras entrevistados/as es que se trata fundamentalmente de una población joven, cuyo promedio de edad era de 28 años, lo cual, seguramente se relaciona con el esfuerzo físico que representa diariamente este trabajo (LÓPEZ MOURELO; PEREYRA, 2020).
La mayoría de los/las argentinos entrevistados/as habían “salido” a hacer este trabajo por encontrarse en una situación de desempleo. Pero otros lo hacían para complementar sus salarios ante el desbalance que se producía entre estos últimos y la inflación creciente.
De los testimonios de los/las trabajadores/as se desprenden distintas evaluaciones respecto de su trabajo en las plataformas.
Si bien, no escatiman críticas a varias de las condiciones de contratación, de desarrollo corriente de las tareas, de las condiciones de trabajo y de los ingresos que obtienen por cada pedido entregado, también sostienen una mirada relativamente positiva sobre el hecho de contar con un ingreso económico proveniente de ese trabajo. Pero, cuando hacen referencia a que se trata de un “buen trabajo, siempre lo hacen en comparación con otros trabajos posibles. Al respecto, Valentín20, 26 años, venezolano, nos decía:
Cuando llegué trabajé en un restaurante, en la bacha, estaba en negro y estoy muy agradecido con ese señor [con el dueño del restaurante], porque no tenía precaria ni documentación ni nada y me contrató igual, pese a que corría mucho riesgo, la persona se pasó conmigo, de buena onda, nunca lo voy a olvidar…
[Luego, refiriéndose a su trabajo en un supermercado chino:] lo mejor era que quedaba frente a mi casa (…) tuve mucha suerte, entre la mierda rescataba algo.
Tal como se desprende de este último testimonio, otros trabajos posibles no parecían ser mucho mejores que el de las apps y, por el contrario, se trataba de empleos informales, con jornadas extensas y con muy malos tratos por parte de los empleadores.
(…) en los chinos me pagaban muy poco, trabajaba muchas horas y no tenía ningún tipo de beneficios, no me querían poner en blanco. Aparte que me hablaban mal, eran mal educados, entonces, no me gustó para nada y traté lo antes posible de comprarme una bici y salir de ahí, ya pues, más nunca trabajé con nadie” (María, 23 años, venezolana).
Otro trabajador, nos contaba acerca de la relación entre un trabajo donde tuvo la oportunidad de ser contratado en forma estable y el que realizaba, en ese momento en una de las apps:
En esta empresa no es que me pagan… millones, sino que me pagan un precio que otras empresas u otros trabajos no me pagan (…) En estos días tuve una entrevista, en un restaurante que se llama Tostado (…) entonces me ofrecieron el puesto de seguridad y anfitrión (…) me dijeron el sueldo de $14000, un día franco y nueve horas de trabajo por día, todo el día parado, obviamente, haciendo algo (…) y, aquí, estoy sentado con mis compañeros, ocho horas nada más, dos francos y gano $19000.- [más la propina], sin hacer poco trabajo…, sino sólo buscar en el restaurante y llevarle a la persona que pidió a su casa, más nada… no es un gran esfuerzo” (Manuel, 27 años, venezolano).
Tal como se desprende del testimonio anterior, los/las trabajadores/as del delivery ven, en este trabajo, una de las pocas posibilidades de obtener dinero en momentos en que las oportunidades para ello no abundaban. Al respecto, Ana (27 años, argentina) nos decía:
(…) es un trabajo que me da dinero, a pesar de las complicaciones, de las competencias, es el único que está dando trabajo hoy en día, las empresas de delivery son las únicas que están dando trabajo hoy en día.
Otro elemento que algunos repartidores/as valoraban de este trabajo es la relativa autonomía que les otorgaba, frente a posibles empleos similares. Mientras Ana decía que en este trabajo “podés manejar tus propios tiempos, trabajás las horas que quieras” y Manuel indicaba que “tu puedes trabajar cuando tú quieras, te conectas y te desconectas sin horario, tú mismo pones tu horario y, en Glovo hay un calendario y tú vas cazando las horas”, Arnaldo (23 años, venezolano) comparaba su trabajo actual con uno anterior, como repositor en un supermercado chino:
(…) es comparar 12 horas aproximadamente, con aquí 8 horas o, bueno, se puede decir que el horario lo maneja uno, sí, eso es lo primordial, y bueno, que también se puede sacar un poco más de dinero, todo dependiendo del día y del movimiento, como esté la plaza, por decirlo así…
En definitiva, nunca estos/as trabajadores/as se refirieron a este trabajo como el mejor trabajo que tuvieron en su vida, simplemente se trataba una de las pocas y mejores alternativas a otros trabajos peores o, directamente, a la nada, al desempleo.
Conclusiones
Desde mediados de los años setenta a la actualidad, debido a las transformaciones impulsadas, por un lado, por las políticas neoliberales y, por el otro, al impacto del cambio tecnológico, las formas del trabajo humano sufrieron grandes modificaciones. En este artículo, dimos cuenta, en primer lugar, de la influencia de las nuevas tecnologías en dichos cambios y, sobre todo, en el ordenamiento de nuestra vida cotidiana, fundamentalmente en torno al tiempo que ocupa el trabajo en nuestras vidas y la emergencia de mecanismos que nos auxilian a la hora de incrementar nuestro descanso, donde el delivery ocupa un lugar privilegiado. En Argentina, esta actividad no resulta novedosa, pero el arribo de las plataformas virtuales si implica cambios respecto a su anterior desarrollo. Si bien las tecnologías modificaron la organización del trabajo y la relación contractual (ahora ocultando la relación de empleo) la precarización de los/las repartidores/as era preexistente, ya que, para actividades similares, estos/as trabajadores/as tenían contratos informales, bajos salarios y malas condiciones de trabajo. Pero, mientras los/las trabajadores/as del reparto a domicilio anteriores, constituían el eslabón más bajo del negocio gastronómico y, prácticamente eran invisibilizados por los empleadores, hoy, las apps de delivery hacen que constituyan su principal cara publicitaria, lo cual, al mismo tiempo de expresar la relación que pretenden establecer con ellos/as, se pone de manifiesto en muchas de las consignas que aparecen en su portal de internet.
Vimos también como, más allá de la precarización laboral a que son sometidos/as, estos/as trabajadores/as lograron organizarse y manifestar, de distintas maneras, su descontento frente a las condiciones en que tienen que realizar su trabajo. Sin embargo, no todas las formas de acción colectiva desplegadas por ellos/as son eficaces, ya que cuando apelaron a formas tradicionales de movilización (huelga, manifestación callejera) no tuvieron el mismo efecto sobre las empresas que cuando utilizaron a las tecnologías para bloquear a las plataformas. Esto pone de manifiesto que, la acción de los/las trabajadores/as sigue siendo más efectiva cuando logra mellar o dificultar directamente la acumulación de capital y que, para el trabajo moderno requiere de otros mecanismos más allá de los tradicionales.
En el título de este artículo nos referimos al “jefe”, hoy invisibilizado tras la virtualidad tecnológica, pero que también logra utilizar nuestras propias necesidades para, en ocasiones, colocarnos a nosotros mismos como instrumentos de su propio mando, imponiendo los mecanismos que imponen rapidez en el trabajo y que finalmente van a servir para evaluar al mismo.
De todos modos, más allá de la precarización laboral que imponen estas plataformas y de este “patrón” oculto, es necesario prestar atención a las condiciones bajo las cuales esta actividad es posible, y en base a las cuales los/las trabajadores/as acceden a ese trabajo. Entonces, si una de las premisas para el desarrollo de estas plataformas es su austeridad y el aprovechamiento de oportunidades económicas de corto plazo, hay que considerar que, para ellos/ellas, esto último también puede representar una “oportunidad”, solo como “refugio” ante la ausencia de mejores posibilidades en el mercado de trabajo. Esto último se pone fuertemente de manifiesto en el caso de los trabajadores que migraron de su país de origen (principalmente venezolanos) y que, tras un paso por otros trabajos, mayormente en condiciones de gran precariedad, con contratos no registrados, bajos salarios, malas condiciones de trabajo, malos tratos, etc., tomaron al delivery por plataformas virtuales como la mejor alternativa posible.
Finalmente, si bien es cierto que las plataformas ofrecen condiciones precarias de trabajo, las mismas se repiten en otros trabajos posibles para estos/as mismos/as trabajadores/as. Entonces, la solución no debería pasar por regulaciones que impliquen la estabilización de los contratos, sino que las mismas deberían dirigirse a la generación de mejores alternativas de empleo para estos/as trabajadores.21 Si tal como dice Srnicek (2018, p. 83), estas plataformas no representan el futuro del trabajo y, por el contrario, “están más cercanas a desaparecer”, la preocupación regulatoria no puede enfocarse hacia el corto plazo, sino a mejorar las condiciones de trabajo en el resto de la economía, haciendo que las apps dejen de ser la mejor opción.
Referencias
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Recebido em: 10/09/2021
Aceito em: 05/07/2022
1 Una versión preliminar de este artículo fue presentada en el III Seminario Internacional: Dinámicas del mundo del trabajo en las metrópolis de Cono Sur: movilidades, coyunturas, territorios. Realizadas por el Instituto de Ciencias de la Universidad Nacional de General Sarmiento (ICI-UNGS) y el Instituto de Arquitectura y Urbanismo de la Universidad de San Pablo (USP). Buenos Aires, Argentina, 9 al 13 de marzo de 2020.
∗ Es investigador del CONICET, Profesor de Posgrado en las Facultades de Ciencias Económicas y Derecho de la Universidad de Buenos Aires, e Investigador Docente de la Universidad Nacional de General Sarmiento. Se especializa en los estudios sobre el trabajo y ha publicado numerosos artículos en revistas científicas, capítulos de libros y libros sobre distintas problemáticas referidas al trabajo. E-mail: obattistini@gmail.com
2 Cuando se establece este tipo de relación contractual, entre una empresa de plataforma virtual y personas que trabajen para hacer tareas específicas, en las que distintas personas cooperen desde diferentes lugares, conectadas mediante una aplicación, ya sea para la elaboración común de un producto o la realización de tareas similares, la relación contractual que se genera, respecto de quienes trabajan para las apps, es de trabajo independiente o por cuenta propia. En este caso, se tratará de una relación formal, si ambas partes, contratante y contratada, están registrados ante las autoridades administrativas correspondientes, en Argentina la Administración Federal de Ingresos Públicos (AFIP). Cuando el contrato no se desarrolla bajo éstas premisas puede tratarse, entonces, de una relación informal. Luego, lo que puede argumentarse es que, mediante el mecanismo del contrato independiente, las empresas eluden el establecimiento de una relación laboral asalariada con las personas que realizan alguna tarea para ellas, como ocurre en los casos del delivery o el transporte de personas en automóvil.
3 A partir del año 1994, con la reforma de la Constitución Nacional, la Ciudad de Buenos Aires adquirió el carácter de una provincia más del país y se autonomizó del gobierno nacional, del cual dependía y que estaba encargado de la designación del Intendente de la misma.
4 Frases utilizadas por las plataformas de delivery en sus publicidades.
5 Para un análisis más detallado de las características del trabajo colectivo o colaborativo o crowdwork ver De Stefano (2016); Gandini (2018).
6 Pedidos Ya: los despedidos toman la empresa y protestan frente a locales de asociadas. Diario Tiempo Argentino, 27/2/2029. https://www.tiempoar.com.ar/nota/pedidos-ya-los-despedidos-toman-la-empresa-y-protestan-frente-a-locales-de-asociadas
7 Régimen destinado al registro de trabajadores/as que realizan trabajo independiente y actúan, frente al fisco, como pequeños contribuyentes. Este régimen impone la obligación de realizar aportes jubilatorios y a la seguridad social o al sistema de obras sociales, que quedan totalmente a cargo de los/los trabajadores/as.
8 Un directivo de Rappi se refería a los/las repartidores/as de esta forma. “Por esta razón, Rappi considera que sus repartidores no son empleados”. https://www.iproup.com/startups/6083-alejandro-galvis-sebastian-ruales-rappitenderos-Rappi-considera-que-sus-repartidores-no-son-empleados
9 La inducción de la sonrisa frente al cliente ya estaba presente en la empresa Walt Mart (ABAL MEDINA, 2007).
10 Tal como lo especifica el informe de Fairwork (2022) para Argentina, la inseguridad en este trabajo tiene distintas facetas, por un lado, la que deriva de los accidentes que puedan producirse en las calles, por la circulación de los/las repartidores/as sin protección y a alta velocidad en medio del tráfico y por el peligro de ser asaltados/as por delincuentes, con posibilidades de perder el dinero correspondiente a un reparto, sus vehículos y hasta su propia vida.
11 Entre febrero y julio de 2020 se habían producido 141 accidentes viales, cuyos afectados fueron los/las repartidores/as de las app. https://aldiaargentina.microjuris.com/2019/08/20/la-seguridad-es-lo-primero-se-suspende-la-actividad-de-las-empresas-denominadas-apps-de-delivery-hasta-adoptar-las-medidas-necesarias-para-evitar-mas-accidentes-viales/
12 “La Justicia ordenó suspender las operaciones de las apps de delivery”. Diario Perfil, 2/8/2019 https://www.perfil.com/noticias/sociedad/justicia-ordeno-suspender-operaciones-app-delivery.phtml
“Apelan el fallo y recusan al juez que suspendió a Rappi, Golov y Pedidos Ya”. Diario Clarín, 5/8/2019. https://www.clarin.com/ciudades/apelan-fallo-suspendio-aplicaciones-delivery-recusaron-juez-gallardo_0_syIvk8GJt.html
13 “Repartidores de Glovo en Zaragoza ingenian una ‘huelga colaborativa’ y colapsan la app”. El Confidencial. https://www.elconfidencial.com/tecnologia/2018-09-10/glovo-paralizan-zaragoza-riders-precariedad_1613740/
14 “La fundadora del gremio de las aplicaciones, María Fierro, y el abogado laboralista Juan Manuel Ottaviano, sobre la economía de plataformas”. Diario Página ١٢, ٢١/١/٢٠١٩. https://www.pagina١٢.com.ar/١٦٩٧٦٦-las-app-del-siglo-xxi-crean-relaciones-laborales-del-siglo-x
15 Uno de los trabajadores fue herido en un intento de robo y otro fue asesinado. https://www.0221.com.ar/nota/2019-12-1-9-4-0-los-repartidores-de-la-plata-tienen-una-asociacion-para-obtener-derechos-laborales.
16 Para que un sindicato cuente con total reconocimiento estatal y pueda ejercer plenamente la representación de los/las trabajadores/as en la negociación colectiva y el conflicto, debe contar con doble personería: la correspondiente a la inscripción jurídica o simple inscripción y, la equivalente a su representatividad, es decir, la organización sindical que en su ámbito de representación cuente con el mayor número de afiliados (BATTISTINI, 2016). ASIMM disputó la representación con otra organización surgida al calor de los eventos de 2001, el Sindicato Independiente de Mensajeros y Cadetes (SIMECA), originalmente encolumnada en la Central de Trabajadores Argentinos (CTA) y que no pudo alcanzar la personería gremial (BARATTINI; PASCUAL, 2011).
17 Diario La Capital, “Instalan una carpa sanitaria para trabajadores de una app móvil”, 2/7/2020. https://www.lacapital.com.ar/la-ciudad/instalan-una-carpa-sanitaria-trabajadores-una-app-movil-n2588361.html
18 Más allá de las acciones mencionadas a lo largo de este artículo, otras acciones fueron llevadas a cabo por los/las trabajadores/as de las app virtuales de delivery: el 18 de julio de 2018, trabajadores de Rappi hicieron una huelga para protestar por modificaciones en las condiciones de contratación https://www.iprofesional.com/notas/271673-internet-salario-argentina-buenos-aires-trabajo-oficina-aplicacion-palermo-app-villa-crespo-glovo-rappi-Primera-huelga-del-delivery-online-en-la-Argentina-denuncian-cambios-unilaterales-en-las-condiciones-laborales. En mayo de 2019, trabajadores de la empresa Glovo se manifestaron en la ciudad de Córdoba para reclamar aumentos en las comisiones o pagos que recibían por su trabajo https://www.iproup.com/innovacion/4929-glovo-cordoba-emprendedor-Huelga-de-delivery-repartidores-no-trabajaran-hasta-mejorar-sus-condiciones
19 Casi todos los entrevistados extranjeros vivían en CABA, lo cual puede representar un gasto mayor en alquiler que si vivieran en el conurbano bonaerense, pero eso les permite reducir los tiempos y gastos de traslado diarios a las zonas de mayor movimiento de la Ciudad.
20 Todos los nombres de los/las trabajadores/as fueron modificados para resguardar su identidad.
21 Una alternativa podría ser la creación de plataformas virtuales gestionadas por cooperativas, con apoyo estatal y de instituciones privadas, tal como ocurre ya en algunos países. En Argentina hay experiencias incipientes, como la desarrollada en la ciudad de Rosario entre investigadores, partidos políticos y programadores para el diseño de una aplicación que absorba parte de la demanda de entregas entre privados y mejore la calidad del trabajo de los/las repartidores/as (“¿por qué no una economía popular de plataformas?”, en Revista Crisis, Gatto, E. y Hudson, JP., mayo 2020) y la implementación de una cooperativa de reparto en bicicleta, trasladando la experiencia francesa de CoopCyCle (KASPARIAN, 2022).
ISSN 1517-5901 (online)
POLÍTICA & TRABALHO
Revista de Ciências Sociais, nº 56, Janeiro/Junho de 2022, p. 102-117
THE MEANINGS OF UBERISM:
Work platforms, informality and forms of resistance
in the city of São Paulo
OS SENTIDOS DO UBERISMO:
Trabalho plataformizado, informalidade e formas de resistência
na cidade de São Paulo
____________________________________
Ruy Braga1*
Douglas Silva**
Abstract
In light of the new coronavirus pandemic, our objective is to analyse the relationship between the current wave of the “platformisation of work” and the traditional forms of being a poor and peripheral worker in São Paulo, highlighting the representations and expectations of young black and peripheral workers with regard to their future work trajectories. In addition, we will explore some of the changes in app-based delivery work routines brought about by the current pandemic. With that in mind, we will present data collected during field research we carried out between January and October 2020, based on ethnographic investigation techniques applied to a group of approximately twenty young workers who meet daily at a specific location of Avenida Paulista in the city of São Paulo – although we maintained systematic and regular contact throughout 2020 with only seven of these young men.
Keywords: Platformisation of work. New coronavirus pandemic. Informatily. On-demand workers.
Resumo
No contexto da pandemia do novo coronavírus, o objetivo do artigo consiste em analisar a relação entre a atual onda da “plataformização do trabalho” e as formas tradicionais de ser trabalhador pobre e periférico em São Paulo, destacando as representações e expectativas dos jovens trabalhadores negros e periféricos no que diz respeito ao presente e ao futuro de suas trajetórias ocupacionais. Além disso, exploraremos algumas das mudanças nas rotinas de trabalho de entrega baseadas em aplicativos trazidas pela atual pandemia. Para tanto, apresentaremos dados coletados durante a pesquisa de campo que realizamos entre janeiro e outubro de 2020, com base em técnicas de investigação etnográfica aplicadas a um grupo de vinte jovens trabalhadores que se reúnem diariamente em um local específico da Avenida Paulista na cidade de São Paulo – embora tenhamos mantido contato sistemático e regular ao longo de 2020 com apenas sete desses jovens.
Palavras-chave: Plataformização do trabalho. Pandemia do novo coronavirus. Informalidade. Trabalhadores de aplicativo.
Introduction
The new coronavirus pandemic disrupted our times and produced a serious social crisis. Its apparent meaning is the generalised fear of the imminence of death that now knows no national frontiers. However, what the pandemic signified goes far beyond that. Worldwide, the
1* Ruy Braga é professor titular do Departamento de Sociologia da Universidade de São Paulo (USP). E-mail: ruy.braga@usp.br
** Douglas Silva é bacharel em Ciências Sociais pela Universidade de São Paulo (USP). E-mail : douglas.santos.silva@usp.br.
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POLÍTICA & TRABALHO
Revista de Ciências Sociais, nº 56, Janeiro/Junho de 2022, p. 118-135
precariousness of the living and working conditions of poor workers, especially informal workers and immigrants, has revealed the most common problem of what we might call the pandemic’s class boundaries, separating protected from unprotected workers, white workers from black workers, and national workers from undocumented workers.1 Thus, a widening gap of inequality can be seen between, on the one hand, those protected professionals who can work from home offices, and, on the other, the precarious workers forced to expose themselves to the risks of infection because they depend on public transport and work side by side with their co-workers.2
The commercial production of goods and services in the current context of a health emergency has foregrounded among sociological concerns the conflicted relationship between the economic requirements of capitalist accumulation and the non-economic needs of social reproduction.3 This conflict has long been at the centre of inquiries and research on the working class. It is sufficient to mention the work of Marxist historian E. P. Thompson (2012), among many others, to grasp the importance of this theme, which has been part of our research agenda for the past 10 years. For Thompson, the historical formation of the English working class went through successive moments of construction, deconstruction and reconstruction of collective identities and organisational forms.
In the fluid process of “self-building”, backward-looking collective identities were challenged by new historical circumstances, as was the case, for instance, when egalitarian cultural traditions and authoritarian national values overlapped. The different groups that formed the subaltern classes were unevenly challenged by the normative conflict that emerged as a result of the redefinition of the borders between the national and the international, the economic and the political, the past and the future, but, above all, between who “we” and “they” are.4
In our opinion, a similar normative conflict, arising from that conflict between accumulation and reproduction and capable of challenging the boundaries that separate “us” from “them”, seems currently to be insinuating itself, driven by the global precariousness of the conditions that ensure the social reproduction of workers. Hence the importance of investigating the reconfiguration of the collective experience of the “precariat”.5 This reconfiguration is located at the intersection of the normative conflict brought about by the decline of the standard of Fordist solidarity and the strengthening of the dynamics of social dispossession that makes work precarious and threatens the reproduction of the working class itself.
In light of the above, our objective is to analyse the relationship between the current wave of the “platformisation of work” and the traditional forms of being a poor and peripheral worker in São Paulo, highlighting the representations and expectations of young black and peripheral workers with regard to their future work trajectories. In addition, we will explore some of the changes in app-based delivery work routines brought about by the current pandemic. With that in mind, we will present data collected during field research we carried out between January and October 2020, based on ethnographic investigation techniques applied to a group of approximately twenty young workers who meet daily at a specific location of Avenida Paulista in the city of São Paulo – although we maintained systematic and regular contact throughout 2020 with only seven of these young men.
The platformisation of work and the new informality
First, it is necessary to highlight the relationship that defines the current moment, that is, the relationship between, on the one hand, the increase in job insecurity associated with the dismantling of the safeguards that used to protect labour, and on the other the trend toward the “platformisation” of work associated with the transformation of the hegemonic business model of companies that, in its turn, is reconfiguring the relationship between the informal and the formal economy across the world. It is worth recalling the ILO study by Adascalitei and Morano (2015) that analysed 642 changes introduced in the labour systems of 110 countries in the period between 2008 and 2014. The authors found that, among countries that reduced labor protection, the unemployment rate increased by 3.5% on average compared to 0.3% among countries that maintained levels of worker protection. In 55 percent of cases, the objective was to reduce employment protection, something that had an impact on the entire population and produced a long-term change in the regulation of the labour market.
This is a truly global trend whose objective is to devalue the workforce by the deepening of insecurity in relation to the legal protection of labour, the dependence on technology companies, the commodification and individualisation of work, the increase in inequalities of class, gender and race, and the weakening of communities where working families live. In this sense, it is worth noting that the global rise of so-called “uberism” from the mid-2010s onwards coincided with the peak of the cycle of social upheavals led by impoverished and underemployed working youth between 2011 and 2015 (see Karatasly, Kumral and Silver, 2018).
Even if unintentionally, the global rise of the new model interacted with the cycle of revolts in a negative way: if young people demanded more social protection, they reaped more job insecurity. Here is the sociological challenge posed by this new situation: how to interpret the interaction between the increase in social unrest among young workers, on the one hand, and the sedimentation of a work regime that is refractory to traditional forms of labor protection, on the other. By uberism, we understand a regime of labour control made possible by the dynamics of dispossession of labour rights through the platformisation of work, in other words, the subsumption of workers to the logic of the algorithmic cloud monopolised by startups bankrolled by large venture investment funds such as Uber, Rappi and IFood. However, young workers do not passively interact with platforms. On the contrary, they pursue their own personal goals through the platforms and, in this sense, they co-produce their own labor subordination.
This social dynamic of co-production of the social relations of capitalist production can be considered “hegemonic” (“coercion coated in consensus” in Gramsci words) in a certain sense. Although, in general terms, we are experiencing a moment of deconstruction of bureaucratic labor protection relations characteristic of the Fordist era, and the new relations of production commodify work, while deepening the dependence of young workers on the despotic decisions of the algorithmic cloud. In short, it is a way of exploiting labour through a combination of modern digital technologies and archaic strategies, aimed at weakening labour protection and whose main exponent is Uber (for more details, see Hill, 2015).
In fact, the platformisation of work goes far beyond the type of platform represented by the passenger transport company. Advertising platforms such as Facebook and Google, cloud platforms with a strong interface with industry, such as Amazon, and spatial platforms such as Uber itself, have exponentially increased their market value, employing hundreds of thousands of workers around the world. There is, of course, a striking diversity of work characteristics behind each type of platform. The main trends identified in the literature highlight three major types of platform work: quick-work, freelance work and territorial work (for more details, see Srnicek, 2017; Huws, 2020; Grohmann, 2021; Vandaele, 2018).
The best-known company employing quick-work on a large scale is, without a doubt, Amazon Mechanical Turk (AMT), a platform where workers register to perform elementary, repetitive and fragmented tasks, without any type of truly volitional content. The tasks are often limited to “teaching” (machine learning) the algorithm to differentiate nuances related to a variety of situations, something that only a human being would be capable of doing. In a nutshell, workers perform activities that would cost the corporation more to automate if carried out by Artificial Intelligence. To put it differently, the worker devotes hours to the task of connecting codes to certain products or interpreting certain data and often is paid in cryptocurrency, which gives them access to certain goods and services that circulate and take place on the internet. The AMT platform coopts workers spread across the world, thus creating a truly global group of precarious workers subsumed by its algorithm.
The case of freelance platforms is somewhat different and is organised around the exploitation of qualified professionals rather than repetitive tasks. On the pretext of mediating between clients and professionals (thereby doing away with the actual presence of the company and allowing for more effective service), these platforms promote a dynamic of work Taylorisation that denies the worker any access to labour rights and subjects him or her to the despotism of the “clients”, who in turn are “free” not to pay the worker if they consider the work to be unsatisfactory according to their own parameters.
In 2019, we carried out exploratory research on one of these platforms, specialised in providing tools for the work of architects involved in apartment renovation projects. The professionals spent up to 14 hours a day assembling projects according to the demands of the client, who was not at this stage bound by any contract. According to reports collected in the field, only one out of every ten projects submmitted by the architects was eventually approved and paid for. After signing the contract, the architect detailed the project and passed its execution on to another team coordinated by the company, which also provided all the furniture required by the renovation, as well as the workforce employed in the renovations. In contrast to the recent past, in which an architect had some degree of autonomy and got paid as the work went along, the platformisation of his job displaced him, in professional terms, to a clearly precarious and subordinate position.
It is territorial work platforms that are best known to the public, and indeed this new platform work model has been named after one of them, Uber, even if the most visible faces of uberism include also such corporations as UberEats, Rappi and iFood. Since their employment relationship with drivers and on-demand workers is not recognised, there are no social security contributions, no labour rights or benefits, nor are these companies obliged to recognise or negotiate with trade unions. They are supposed to be tech companies, but they are in fact delivery companies.
These companies are at the forefront of a system of accumulation that feeds on the increase in the informal sector of the economy brought about by the unemployment crisis that began in 2016. According to the Locomotiva Institute, there are currently around five and a half million platform workers in Brazil. The majority of on-demand workers are male (around five percent are women), young, black, from the urban peripheries, and they represent around a quarter of the country’s self-employed workers (INSTITUTO LOCOMOTIVA, 2020). In addition to not being protected by labour and social security rights, they are subjected to long working hours, extreme pressure to increase their pace at work, a high incidence of work-related accidents, and low pay.
Although they mobilise a much larger contingent of workers than most economic sectors, application companies do not consider themselves the employers of these workers, whom they euphemistically call their “partners” – in other words, they are merely the means of promoting the encounter between, say, restaurants, couriers, and consumers. Thus, these companies seek to distance themselves from any type of employment relationship. On-demand workers are “on their own”, including with regard to providing their own working tools, such as motorcycles and bicycles. All too often, these workers go into debt to buy a motorcycle in order to be able to work.
Furthermore, despite their supposed freedom to live and move around in cities, platform workers undergo explicit forms of labour subordination through electronic control, which monitors and defines their access to the platform, their pace of work and even their movements, thereby controlling their potential earnings. They are also subject, at any moment and without any justification, to a variety of sanctions, such as stopping sending orders to them. These companies use urban equipment, the city’s streets and asphalt, everything that belongs to the community, for purposes of accumulation, with no compensation being offered to the city, or its workers and restaurants. They have specialised in a logic of accumulation by dispossession, the main purpose of which is to avoid any responsibility with regard to the protection of workers.
These characteristics of platform work, widely discussed in the relevant literature (SRNICEK, 2017; VANDAELE, 2018; HILL, 2015; HERR, 2021), illustrate the magnitude of the changes that have taken place in the world of contemporary work. However, it is important to point out that the reconfiguration of collective identities and class interests brought about by the platformisation of work is a reality that also depends on the workers themselves, as part of their collective self-rebuilding. In other words, it depends on the workers’ own experience. Thus, given the distinctive features of on-demand work, a look (even if just an exploratory one) into the praxis of these workers and their own perceptions of delivery work in a context of pandemic crisis can prove a useful way of approaching this class reconfiguration from the point of view of those below.
We first need to understand that app-based delivery has become the main gateway to employment for young people in the Brazilian labour market. However, contrary to what happened until recently with the old informal types of employment relation, which tended to precede the formalisation of a worker’s status, the new informality, which is dominated by large transnational corporations, does not have the attainment of formal employment on its horizon. Instead, the future we now see unfolding, especially for young people entering the Brazilian labour market, is one that more or less permanently reproduces the job insecurity associated with informality.6
What we are witnessing, more than anything else, is the dismantling of the promise of Brazilian salary citizenship as it was established about 70 years ago (CARDOSO, 2018). In order to problematise this process of social disintegration, we need to understand the meanings attributed by the workers themselves to their own lived praxis, bringing to the fore the tensions inherent in the relationship between precariousness and the work platform. This is especially true in the context of the current health crisis, which, in the Brazilian case, quickly turned into a socio-reproductive crisis, with 19 million workers living in a situation of chronic food insecurity (REDE BRASILEIRA de Pesquisa em Soberania e Segurança Alimentar e Nutricional, 2021).
Youth, occupational trajectories and precarious work
Young on-demand workers offer a very vivid portrait of that part of the Brazilian population that was most affected by the pandemic crisis: a predominantly young, black group from the urban peripheries.7 Within the broad spectrum formed by digital platform workers, delivery couriers – or riders – have particularities that are worth highlighting. Thus, if we consider app drivers, for example, we will notice that they are characterised by a particular age and profile and by a marked occupational trajectory. Having a driver’s license and the possibility of using a car, as well as affording the cost involved in carrying out their activity, including paying for car insurance, are all part of a profile of an adult worker who has been expelled from the formal labour market by unemployment. Thus, these workers resort to app-based jobs as an alternative source of income.
The profile of on-demand workers is different. On the one hand, it is a traditional profession in the capital of the state of São Paulo; however, as is argued by Abílio (2019), digital platforms have been displacing the established companies in the sector, whose relationship with workers was based on formal employment. Thus, a significant part of this group of workers resulted from the transformation of former formal couriers, who found themselves forced to migrate to platform work. In addition, according to data collected in the “Profile Survey of App-based Bicycle Deliverers”, carried out in 2019 by the Brazilian Association of the Bicycle Industry among 270 delivery riders of the city of São Paulo, it is possible to see a deterioration in the working conditions and remuneration of these workers (ALIANÇA BIKE, 2019).
This group is made up of young people who are faced with numerous difficulties on entering the formal labour market and whose occupational trajectories include unemployment and underemployment as a major common denominator. Aged between 18 and 22 on average, these young people are, for the most part, in their first job (26 percent). Most of them are black (with 44 percent describing themselves as dark-skinned, and 27 percent as actually black), have completed either high school (53 percent) or elementary school (40 percent), and live on the outskirts of the city of São Paulo (ALIANÇA BIKE, 2019). To sum up: the typical delivery rider is Brazilian, male, black, aged between 18 and 22, managed to finish high school, has experienced unemployment and, faced with a lack of alternatives in the job market, decided to be a delivery worker every day of the week, 9 to 10 hours a day, for an average monthly salary of 992 reais. (ALIANÇA BIKE, 2019, p. 6).
Given the characteristics of subaltern work that mark the activity of on-demand workers, often faced with their first job experience, some of the evaluative and volitional aspects involved in the subjectivity of these young workers are worth discussing. In this connection, the survey led by Aliança Bike (2019) provides us with preliminary information about the on-demand worker’s perceptions of the dilemmas and advantages of this kind of work. Thus, when asked about the “main advantages” of making deliveries (or “drops”) using a bicycle and an app, 32 percent of respondents answered “quick employment, with no selection process”; 30 percent opted for “flexible hours” and 5 percent riposted, in spontaneous response mode, that the main advantage was “not having a boss” (ALIANÇA BIKE, 2019, p. 17).
On the other hand, in relation to the problems faced in their daily activities, 40 percent of respondents mentioned the lack of traffic safety, 30 percent the lack of adequate infrastructure, 19 percent the lack of public safety and 4 percent the lack of adequate traffic signs. “Time lost between calls” (31 percent) was the most frequently cited problem, followed by “fear of being mugged” (27 percent) and “fear of being mistaken for a mugger” (21 percent) (ALIANÇA BIKE, 2019, p. 22). In other words, the fear of social violence that goes hand in hand with informal street work is prominent in these predominantly black workers’ perception of their job.
On the basis of this preliminary data, we decided to develop a case study using ethnographic research techniques in order to identify the guiding axes of the occupational experience lived by on-demand workers in the city of São Paulo. In order to do that, we explore their reflections on the relationship with digital applications in comparison with previous work experiences, in addition to seeking to discern future expectations regarding their occupational trajectories. This is an understudied area in the literature that has specialised in platform work.
In short, the work of on-demand workers brings to the fore the dilemmas of the platformisation of work and the importance of racial and generational gaps in the reconfiguration of the collective experience of these workers from the urban peripheries. Therefore, the main challenge is to understand the displacements in terms of representation of young people, looking in particular at the mismatches between the platform work and their own occupational expectations. This task goes hand in hand with the effort to grasp the current situation of informal labour in Brazil, by means of an analysis of the relationship between job precariousness and digital work platforms. To this end, during the field research carried out between January and October 2020, we maintained systematic contact with seven (out of a group of 20) young on-demand workers whose activities are concentrated in the Avenida Paulista area, the main thoroughfare in the city of São Paulo.
General profile of on-demand workers in our field research (2020)
Name |
Age |
App Company |
Education Degree |
Place of residence in the city of São Paulo |
Francisco |
26 |
IFood and Rappi |
FHS8 |
Tucuruvi |
Roberto |
24 |
IFood |
FHS |
Ipiranga |
Kleber |
19 |
IFood and Rappi |
FHS |
Taboão da Serra |
Lucas |
22 |
IFood |
FHS |
Taboão da Serra |
Higor |
17 |
IFood |
FHS |
Taboão da Serra |
Marcelo |
18 |
IFood, Rappi and Uber Eats |
FHS |
Taboão da Serra |
André |
17 |
IFood |
AHS 9 |
Taboão da Serra |
Source: Authors’ own elaboration.
The table above lists some of the on-demand workers contacted in 2020, both before the pandemic and after March 22, 2020, when a more restrictive quarantine was imposed in São Paulo. Our ethnographic approach to the work of these young men is exclusively focused on the Avenida Paulista area. The area has many restaurants in addition to commercial and residential buildings, and so the on-demand workers tend to gather in large numbers along the avenue. We observed and interviewed the workers at two in person meeting places: on the sidewalk in front of “Shopping Center 3” and at Praça Oswaldo Cruz (O.C. Square). The first location had, at least before the pandemic, one peculiarity: on this sidewalk, right on a corner, there was a municipal digital clock. The workers gathered around this clock, for there was a small opening in it, and when they unscrewed it they found out that it had an electrical socket. The Municipal Guard didn’t stop them from recharging their cell phone. Every day some of them plugged in their charger cables, and they all stayed there at “the point” – as they called the place on the sidewalk of the shopping mall –, holding their smartphones, talking and waiting for new orders.10
You could observe a certain solidarity, having partly to do with sharing the use of the street clock. This feeling was extended to the sharing of meals, cigarettes, marijuana, and tips about work. All of them participated in a WhatsApp group, knew each other by name and nickname, and went to work at the same place almost every day. It was common for groups of 20 young people to sit in this place, waiting for an order to arrive.
The fact that they wore similar clothes and used the same slang denoted a specific identity, collectively constructed from the cultural references of the city’s periphery. In general, they wore bermuda shorts and the brands of T-shirts popular among young people from the peripheries (Quiksilver, Oakley, Hang Loose, Cyclone, etc.). They always wore branded trainers and caps, and often listened to funk music on their cell phones. This pattern of behaviour is typical of young people from the peripheral neighbourhoods of São Paulo.11 Our immersion in field work allowed us to develop a fruitful connection with three young workers: Francisco, Roberto and Kleber.12 The common factor among them is that they became on-demand workers after being fired from their outsourced jobs.
With Kleber, for example, we had long conversations at “the point” that allowed us to gather abundant information about his occupational trajectory, his experience as a deliveryman and his expectations for the future.13 In 2018, he worked as a subcontractor in a metal work factory. His departure from the factory, he said, occurred at a time when he had fallen ill. When he returned to the factory after a period of medical leave, he was fired. This occurred three months before the interview and is what led him to start making deliveries. According to him, the work at the factory was heavy, because, despite his having being hired as a cleaning assistant, he “did a bit of everything”, from cleaning the floor and walls of the place to carrying heavy materials, which he considered inappropriate.
When asked to compare the factory with the delivery service, Kleber was adamant. He complained about the factory’s rigid, monotonous and predictable routine. He claimed not to see himself engaged in that kind of activity in the future. He attributed this incompatibility to the age of the workers with whom he shared his daily life, the pace of work, and occupational expectations. He also stated that as an outsourced worker he received less than as an on-demand worker. His salary at the metal work factory had been 1,200 reais, whereas in deliveries he was able to “make between 1,500 and 2,000 reais a month”, delivering orders most often by bicycle, but also by scooter or even on foot. The workday was a little longer than the 9 hours he put in at the factory, but it was tolerable.
As for the delivery work, Kleber also highlighted the physical wear and tear and the insecurity of the job. He said that, although there was exposure to traffic, rain and sun, as well as the ever-present risk of accidents, all this was made up for by the freedom to set his own schedule, take moments of rest during the workday, and be able to choose where and how to work. This is an observation that emphasizes, despite all the limitations imposed by the companies, the creative and relatively autonomous way in which young delivery workers appropriate the city and their own activity.14
At the factory, Kleber related, he was not even allowed to talk to his co-workers. If he arrived late to work, he was immediately given a warning. If he was absent due to illness, he was reprimanded by the management. He complained about authoritarian control over the workers. When faced with layoff at the factory, becoming a delivery rider emerged as a temporary activity that would bring in some income until he was able to start his own business.
It is possible to detect a degree of similarity with the case of Francisco, with whom we were in close contact in the period immediately before the pandemic. The event that led to the app-based delivery work was the loss of his outsourced job. He started making deliveries in early 2019 as a way to supplement his income, while working as a call centre operator. However, the company went out of business, and what had been a means of supplementing his income became an “emergency exit” to escape the reality of unemployment. Regarding deliveries, he pointed out that the main advantages were the ability to remain physically fit and the freedom to smoke spliffs, which he frequently did during deliveries, including while riding with other on-demand workers: “It’s to relax my nerves (…) but I don’t even get high anymore … It just relaxes me. I’ve smoked since I was 14 years old, right?” (Francisco, 26).
Making a comparison with telemarketing, he noted:
Telemarketing is difficult, you see? (…). There is no way for you not to get tired, because there are services where you use your mind. For example, in telemarketing I used my mind a lot. I came home tired, stressed, my mind tired, you see? Here in the app I tire my body, bro, but that’s all. I have a peaceful head and stuff. Super peaceful, you see? (...). Tomorrow, if I want to I will wake up in the morning and go. And it’s not slave work, you see? Look, I’m making about 2,000 reais, give or take. (...). So bro, look, a guy who makes 2,000 reais pedaling and resting, doing everything I’m doing, even taking time off every second … Then there’s this guy who works like Monday to Saturday, six hours a day, and earns 1,200 reais. That was me in telemarketing… (Francisco, 26).
Francisco’s daily working hours used to vary. During one of our interviews, in early August 2020, he described his daily work in detail. In short, he turned on the application at five in the afternoon, when, according to him, the “rush hour” of orders begins, and turned it off at eleven at night, after his last drop. On that day, his income was just over 50 reais. The young man claimed to work between 6 and 9 hours a day. However, he pointed out that this was due to his experience as a deliveryman. When he started working exclusively in deliveries, he usually worked 12 hours without interruption, owing to the interval between one order and the next. Over time, Francisco learned the best times and routes, which increased his efficiency, and so reduced the number of hours spent cycling the streets. Thus, his experience taught him to manage his routine, working through the most advantageous hours and days to work. According to him, he was so pleased that his biggest dream was to be able to purchase a motorcycle in order to increase the pace of deliveries: “(…) when I have my own motorcycle, then it’s something else, bro. Then, yes, it will be a whole new ball game” (Francisco, 26).
The opinions collected in the interviews with the two young workers about the relationship between formal employment and informal delivery work show a change in the expectations of young people in relation to their first job. Both highlighted greater flexibility, the feeling of freedom and, in the case of app-based work, the absence of despotic control. In addition to the increase in income, this is a discursive elaboration based on their past experience as outsourced workers submitted to managerial despotism and operating outside active trade union representation.
Thus, for example, Higor, a 17-year-old man interviewed at Largo da Batata on September 2020, said there were two main reasons why he began to make deliveries:
I started here as soon as I finished the [young apprentice] contract with the [outsourced] company in February. I hadn’t even made any friends at the company. So I was at home doing nothing, and I’m a person who, like, can’t stand still, you know, you always have to be doing something, because otherwise I’m going to go crazy. Then I said bro, you can make some money on them deliveries: I’m going out into the street to make the deliveries and see what happens. Then, given that I was underage when I first started, I used someone else’s [app ID] account, you know, legal age and all that, and always doing everything right, so as not to get the guy in trouble, or myself for that matter. Although it’s like ‘Ah you can’t’, but you have to do it, right? It’s life. And so that’s the only way to use the account, using somebody else’s name. (…). But it wasn’t out of necessity, no. (…). At home, everyone works, and I’m doing this to work also, so I don’t have to depend on them. (...). It’s to buy my things, for my independence. (Higor, 17 years old).
Similar reasons were given by Marcelo, an 18-year-old interviewed at Largo da Batata at approximately the same time. He had been working with digital apps since he was 17 years old and also needed to use the registration data of an adult family member.15 When asked about his contribution to the family budget, he pointed out that, in the event of his becoming inactive, “everyone will pitch in”, that is, his role in the household budget was ancillary. Thus, his motivation to continue making deliveries consisted, above all, in the possibility of “(…) buying my stuff, to buy this or that, so that’s it, bro” (Marcelo, 18).
Regarding the future, making enough to purchase a motorcycle is often referred to as a “dream” and is a sign of progress for bicyclists, a way to move up to “a higher position”, as was reported by Abílio when he interviewed a young deliveryman from the city of Tiradentes region (ABÍLIO, 2020a, p. 589). The desire to progress in the app-based delivery sector is apparent in our interview with Francisco, quoted above. This is also the case with André, a 17-year old young man now entering the labour market that we interviewed in October 2020 at Largo da Batata, who, due to his age, also uses the registration information of a third party. Asked about his reasons for starting to work with these apps, he expressed his desire to buy a motorcycle: “I started because I have goals to accomplish, right? Like buying myself a motorcycle, move up a little in life, because work opportunities are getting difficult nowadays, right?” (André, 17).
Also worth mentioning is the case of Lucas, a 22-year-old black man who, in August 2020, had been making deliveries through James Delivery and IFood apps for eight months. Before that, he had worked as a waiter with a formal contract in a restaurant in the Itaim Bibi neighbourhood of São Paulo and made deliveries as a way to supplement his salary, which, according to him, was “(…) very low and barely enough to cover basics”. When the restaurant closed because of the pandemic, the young man made delivery his main activity. At that time, Lucas had managed to buy a used motorcycle and was waiting to get his license to start making motorcycle deliveries:
I always worked in the restaurant business, right? But then, my prospects with the deliveries seem so good, that I’m going to start investing. So I already have a motorcycle at home, which I bought myself, but I’m waiting to get my [driver’s] license. (Lucas, 22).
What changed during the quarantine? The scoring system and “#BrequeDosApps”
With the arrival of the pandemic, you could see a sharp increase in the number of on-demand workers on the streets. The Shopping Center 3 “point” was always crowded. According to our interviewees, there was, at least at the beginning of the pandemic, an increase in the income of couriers, especially – given the increased demand for supermarket home deliveries – among those who worked with the Rappi app.16 However, among those who usually worked with the IFood app, there was a drop in income, given the fact that this app is geared toward the meal delivery sector.
In April 2020, we stepped up our presence both at Praça Oswaldo Cruz and Shopping Center 3. At Praça Oswaldo Cruz, the benches had been turned into resting places for the on-demand workers. Many would take out their lunch boxes and, for that short period only, turn off their cell phones, because, as many of them reported, refusing orders while online causes applications to block them temporarily. Some time in the first weeks of April, a deliveryman arrived at the square, got off his bike and sat down on the flowerbed with the others. He said that until that moment he had made close to 100 reais in deliveries. He added: “(...) I’m going to rest a little longer here and wait to complete the other 100 reais. (...). Rappi doesn’t stop, bro. (...). I was talking to a friend who told me that he had just reached the weekly goal of 300 reais in just one day.” Everyone in the circle started laughing, because they “made this amount in just one weekend”. The delivery man who told the story complained that he had spent 70 reais on the bicycle that week. The pedal had broken off, and he had also bought a mudguard.
From what we could conclude from the interviews, a 20 reais grocery delivery is considered to be good. In addition, there are tips, which seem to be common. In this regard, the young couriers showed that there are different strategies for getting tips. Many claimed that wearing a mask, something relatively new in April 2020, increased tips. Others said that what counts most when it comes to tipping is being nice and friendly towards the customer: “Whenever I exchange ideas with a customer, he adds more [to the amount of the delivery].”
In relation to the two main applications, Rappi and IFood, many on-demand workers mentioned a drop in orders for meal delivery during the quarantine: “We’re not getting anything, it’s difficult for those who are only working with IFood”. Roberto, 24, said that the number of delivery people working with Rappi had increased a lot, due to supermarket purchases, but for those using IFood and Uber Eats the situation had quickly deteriorated. He himself, who only worked with IFood, had to register with Rappi. However, approval “had not been given yet and was taking longer than usual”. When we spoke with Roberto again, in mid-June 2020, about the variation in earnings during the pandemic, he told us about differences in how each app pays and how they manage the deliveries. Comparing IFood and Rappi, he pointed out that Rappi pays the deliverers better:
Rappi pays well, and the mileage is low, you know? And IFood, man, it’s 5.90, 6.90, 7.90 reais, you know? And [this] for you to do 3.2km, 4km. And I accept, you know, I don’t make a fuss. Like I used to, being choosy. That’s because I kept choosing Rappi’s, huh, bro, saying it was only 1.8km... [...] Rappi, bro, is 5.9 reais for 500 meters... 7 reais for 1 km. In other words, 3 rides with Rappi took me as long as a single one with iFood, got it? (Roberto, 24 years old).
But, despite the higher average pay per mileage, after the early phase of the pandemic, back in April, Rappi introduced a scoring system that ranks on-demand workers in the app itself. According to Roberto, the scoring system was first set up to distribute the best journeys in the best locations among those who have the best scores, that is, those who have done more of the “worst” races, which are the most poorly paid and involve the longest distances. Grocery purchases are usually the ones that pay the best rates. However, with the scoring system, these orders only go to the deliverers with the highest score. Despite the scoring system, several reports from deliverers showed that there was no dissatisfaction with Rappi, because the score was relatively easy to achieve. For Francisco, for example,
(...) I needed to reach 57,000 points to work at Paulista. But it’s quick, real quick. One drop would be, say, 5,000 points, you know? Then I got me like 8 drops or 7 drops and it goes up 37 thou, you know? These drops are quick. You’ve made 10 drops, it’s going to be a nice total. (…). But they allowed me to work the hours I wanted. Like yesterday night I was working for IFood only, so I called to check on Rappi. So that at half past six they opened Rappi, that’s the peak hour, just to make a couple of drops. At seven-thirty they closed the schedule thing again. (Francisco, 27 years old).
This comment shows the way in which Rappi’s scoring system operates in accordance with the delivery demand of each region, thus conditioning both the volume of work and the average income of couriers. This characteristic of the delivery system had already been pointed out by the research report of the Interdisciplinary Labor Reform Studies and Monitoring Network (ABÍLIO et al., 2020), in the context of the fluctuations of on-demand workers’s income during the pandemic. The responses to 252 online questionnaires addressed to riders (bicycle and motorcycle couriers) from 26 Brazilian cities in the São Paulo, Belo Horizonte, Recife and Curitiba regions showed that during the pandemic there was a decrease in income for those on-demand workers who put in up to 9 hours of work a day. However, those who worked more than 12 hours a day had an increase of around 30 percent. In other words, the scoring systems punished those who worked less while rewarding those who worked more.
The changes brought about by the pandemic were not limited to the new scoring system. Unexpectedly, on the 1st and 25th of July, 2020, the delivery riders surprised many press analysts by holding two nationwide protests, known as “#BrequeDosApps” (literally, “app break”). Although mobilisations of on-demand workers are frequent in countries like Spain and Colombia, these were Brazil’s first national mobilisations. In about 10 Brazilian capitals, deliverers gathered in streets, squares and avenues, blocking roads in order to call public attention to the main item in their agenda: readjusting the rates paid by the app companies.
The success of the July 1 mobilisation – the July 26 protest was significantly smaller… – can be gauged by the fact that precarious workers, who had hitherto been largely invisible in the urban setting, despite their garish jackets and backpacks, attracted press attention and forced the app companies to respond to their claims. As to its impact in terms of the volume of deliveries, there are indications of a degree of awareness on the part of consumers that was reflected in a decrease in the number of orders throughout that day.
It is worth pointing out that these two mobilisations were carried out by the on-demand workers themselves, without any centralised coordination, and that they were felt all across the country. They were driven by informal networks, often formed in spite of the opposition of trade union leaders. It is no coincidence that one of the first discussions in the sector’s WhatsApp chat groups was to decide what to call the July 1 movement: “strike” (based on traditional forms of trade union mobilisation)? or “break” (signifying the blocking of deliveries)? The second option prevailed.
Many young riders who had been unable to participate actively in the movement on the days in question, due to travel difficulties or the specific locations where it took place, showed support to the movement’s aims. This was the case with our interviewees, who, although they were not able to join the “motorcycle rally” of couriers from different parts of São Paulo, expressed support for the movement’s main demand: to readjust rates. In the course of our conversations, however, they showed no interest in joining the sector’s trade unions or the social movements that emerged during the bikers’ mobilisations:
I don’t even know about any trade union, I have to do my gig” (Kleber); “I don’t have time for that” (Higor); “I’d rather ride than mess with politics” (André); “I went there, in front of MASP [São Paulo Museum of Art], because the ‘bros’ want an [rate] increase, ‘cause it’s low, but I don’t want to participate [in the Movement of anti-Fascist delivery workers] because it is takes too much of your time (Marcelo).
Final considerations
In summary, even when successful, such mobilisations show the political fragility inherent in the current moment of reconfiguration of collective identities and class interests. There is, in fact, a recurrent pattern in the mobilisations of the global precariat: enthusiasm for direct mobilisation, combined with apathy towards participation in collective organisations. After all, this is a collective experience that is still being formed and still under discussion, in the process of shaping and being shaped by neoliberal hegemony. Markedly inorganic in nature, the mobilisation of riders seems to be evolving in the midst of a language that often swings between the confidence that comes from direct action and the disbelief that progress may result in any kind of long-lasting victory.
It could hardly be any different: such an incipient and fragile political culture will never be able to thrive except within borders erected on the collapse of trust in traditional forms of class solidarity. Our field research will hopefully contribute to a better understanding of this fragility. Our premise is that the field organised according to the traditional forms of Fordist solidarity – trade union action in particular – and the relationship of these precarious workers to the sphere of labour rights have grown weaker over the last two decades as a result both of outsourcing and unemployment, to the point of being reduced to zero among younger workers.
From then on, a whole period began, marked by a normative conflict in which the old rules of labor protection were being deconstructed and no longer attract young workers and a new normativity has not yet been conquered. A social dynamic marked by the fragmentation of the initiatives and efforts of young workers is interrupted by outbreaks of rebellion with little organizational results. Legitimate aspirations for freedom during the workday clash with a greater dependence on despotic decisions made by algorithmic clouds. And this is all happening at a time marked by high rates of unemployment and underemployment of work, which deepens the feeling that there are no alternatives to platformization. Accumulation, social reproduction, subordination, revolt and aspirations for self-determination collide in an unstable equilibrium.
In short, the class self-rebuilding that is currently underway is still at an embryonic stage, which is why relatively successful protests such as “#BrequeDosApps” are incapable of reversing today’s lack of representation among delivery workers. This is a challenge that only a new coalition, one involving trade unions, urban social movements, public authorities, the labour courts, consumers and the workers themselves will be in a position to address in a positive way. The deepening of inequalities brought about by the current pandemic makes this task more urgent than ever.
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Recebido em: 17/11/2021
Aceito em : 21/01/2022
1 When we look at the structures of production of goods and services in most countries in the global North, we become aware of the way in which health systems and food production networks depend on immigrant workers. According to some recent surveys, a quarter of hospital workers and a fifth of health and social care staff in the UK, for example, were born abroad (KOTECHA, 2019; NUFFIELD TRUST, 2019). In the United States, immigrant farm workers were considered “essential” during the pandemic, despite the fact that the vast majority are undocumented, that is, eligible for deportation by the immigration authorities (JORDAN, 2020).
2 This situation of great risk to the health of subaltern workers can readily be found both in the global North and the global South. Contrary to what is commonly said about the risk posed by the pandemic being universal, workers are by no means all “in the same boat”. Furthermore, the effects of the pandemic on the working poor go far beyond workplace-related health risks, extending to the dilemmas associated with unemployment and uncertainty about labour income.
3 For the purposes of this article, we understand “social reproduction” as the ability of working families to ensure food, clothing, housing, health care and education.
4 If the trends related to the increase in social inequalities remain stable, as the data on income concentration in different national contexts during the pandemic suggest, the social crisis generated by the current pandemic will certainly fuse even more features of the “self-building” of the new working classes with aspects related to the “dismantling” of the old-fashioned Fordist classes. In the midst of this process of class “self-rebuilding” on a global scale, we will surely witness a strengthening of social movements willing both to challenge and defend the borders that separate the “we” and the “they”.
5 By “precariat” we mean that section of the subaltern classes formed by the amalgamation of the latent, flowing or stagnant populations of the working class, plus those middle sectors who are in the process of proletarianisation, notably the social groups formed by young people in more or less permanent transit between the increase in economic exploitation and the threat of social exclusion. For more details, see Braga (2012).
6 After all, at a time when “random insertion” (GUIMARÃES, 2006) in the labour market has become the rule for young people threatened by the unemployment crisis, the experience of holding a minimally stable job, one capable of ensuring a standard of social integration, seems unimaginable to the working poor. For more details, see also Martins (1997 and 2001). This framework helps us to understand why app-based work has become part of the common vocabulary of the media, an essential service for certain strata of the urban population, and part of the survival grammar of the popular classes living on the margins of the labour market.
7 According to the Continuous National Household Sample Survey (continuous PNAD) for the third quarter of 2020 – the period in which the field research that underlies this chapter was carried out –, while the general unemployment rate among the Economically Active Population (EAP) was 14.6 percent, in the case of the 18-24 year-old group it was as high as 31.4 percent (IBGE, 2020).
8 Finished high school.
9 Attended high school.
10 On such in-person meeting places see, for example, Woodcock, 2021.
11 The fact that researcher Douglas Silva is young, black and from a peripheral area has obviously made it easier to have access to the group of on-demand workers, to the point that he was mistakenly believed to be one of the young workers, at least at the beginning of the field research. Whenever that happened, he mentioned the research project, which was generally well accepted by the group.
12 Respondents’ names have been replaced with pseudonyms.
13 When we first met Kleber, in January 2020, he was 19 years old and had been delivering for the IFood and Rappi apps for just under a year.
14 In this sense, as Herr accurately underlines: “Bicycle couriers appropriate the city in a spontaneous and creative manner. Similar to Burawoy’s (1979) workplace games, couriers play with urban spaces (KIDDER 2009). Going from A to B using a bicycle in a space that is designed for motor vehicles fosters the couriers’ tacit knowledge. This tacit knowledge not only includes a mental map of the city, with bypasses, fastest routes and so forth, but also the handling of the bicycle in the city traffic. This affects the individual’s construction of autonomy and thereby impacts how workers perceive their work relationship . They might feel autonomous in their performance, even though they are controlled and poorly paid . We can assume a similar social dynamic in platform food-delivery” (HERR, 2021, p. 43-44).
15 It is worth mentioning the curious fact that, in his family, “Everyone works like this, with an app, bro. My brother grinds away with a motorcycle app, my dad is an app driver too. [...] And my mother works as a cleaning lady at a gym.” (Marcelo, 18).
16 When the app-based deliveryman is paid to go to the supermarket, make a purchase and deliver it to the customer’s home, he gets a better pay.
Artigos
SUBJETIVIDADE EMPREENDEDORA ENTRE FOTÓGRAFOS
E PRODUTORES DE VÍDEO BRASILEIROS
IMPACTADOS PELA COVID-19:
uma abordagem exploratória
ENTREPRENEURIAL SUBJECTIVITY AMONG
BRAZILIAN PHOTOGRAPHERS AND VIDEOMAKERS
IN THE COVID-19 PANDEMIC:
an exploratory approach
____________________________________
Cristina T. Marins1*
Victoria Perfeito**
Heitor M. Guimarães***
Gabriela V. G. Serafim****
Resumo
Neste artigo, examinamos os efeitos da crise instaurada pela pandemia da covid-19 sobre o padrão ideológico de profissionais diretamente impactados por ela. A pesquisa focaliza fotógrafos e produtores de vídeo profissionais que atuam no setor de eventos sociais, um dos mais afetados pelas medidas de isolamento social que visavam a mitigar as altas taxas de contágio no Brasil. Nossa análise é baseada em dados etnográficos construídos em dois períodos distintos (2016-2018; 2020-2021) e foi orientada pela seguinte pergunta: como se manifesta a subjetividade empreendedora entre esses profissionais antes e durante a pandemia do coronavírus? O trabalho de campo sugere que, assim como no período que antecedeu a pandemia, predominam no universo estudado elementos reveladores de uma vigorosa subjetividade neoliberal, em especial, entre profissionais que combinam atividades em ritos sociais e atuação como coaches, palestrantes, mentores. Em face da crise, fotógrafos e produtores de vídeo brasileiros apostam no esforço individual para superação das dificuldades econômicas, dedicando empenho à construção de suas marcas através de plataformas digitais.
Palavras-chave: Subjetividade empreendedora. Neoliberalismo. Economia de plataforma. Plataformas de redes sociais.
Abstract
In this article we examine patterns in entrepreneurial subjectivity among workers who have been drastically affected by the coronavirus pandemic. The research focuses on photographers and video producers working in the social events sector. Our analysis relies on ethnographic data constructed in two research cycles (2016-2018; 2020-2021). The main purpose of the research has been to understand how neoliberal subjectivity is manifested among photographers and video producers before and during the coronavirus pandemic. Our analysis to this point suggests that elements revealing a vigorous neoliberal subjectivity among workers remained in the field, especially among those who combine professional activities in social rituals to those of coaches, speakers and mentors. In response to the crisis, workers focused on individual effort to overcome economic struggle, devoting substantial resources to building their brands through digital media platforms.
Keywords: Entrepreneurial subjectivity. Neoliberalism. Platform economy. Social Media Platforms.
1∗ Pesquisadora de pós-doutorado na Universidade Federal do Rio de Janeiro. Doutora pelo Programa de Pós-Graduação em Antropologia da Universidade Federal Fluminense. E-mail: ctmarins@gmail.com
**Mestranda em Antropologia Social pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Graduada em Sociologia pela Universidade Federal Fluminense. E-mail: victoriaperfeito1@gmail.com
*** Graduando em Ciências Sociais pela Universidade Federal Fluminense. E-mail: heitormartinsguimaraes@gmail.com
**** Graduanda em Antropologia pela Universidade Federal Fluminense. E-mail: gabvalle@icloud.com
ISSN 1517-5901 (online)
POLÍTICA & TRABALHO
Revista de Ciências Sociais, nº 56, Janeiro/Junho de 2022, p. 137-154
Introdução
Em coletiva de imprensa no dia 11 de março de 2020, o diretor geral da Organização Mundial de Saúde (OMS), Tedros Adhanom, caracterizava como pandemia a SARS-CoV-2, popularmente conhecida como covid-191. Apenas três meses mais tarde, o documento “Global Economic Prospects”, publicado pelo Banco Mundial, projetava para 2020 a mais profunda recessão desde a Segunda Guerra Mundial, sendo a situação particularmente preocupante para os países gravemente atingidos pela pandemia. Esse era o caso do Brasil que, no início de dezembro de 2020, contabilizava mais de 6 milhões de casos da doença e 170 mil óbitos confirmados, segundo dados do Ministério da Saúde2. Como demonstra Bridi (2020), os efeitos da pandemia sobre o mercado de trabalho brasileiro foram devastadores, com aumento nas taxas de desocupação e subutilização da força de trabalho, além de expressiva piora dos postos de trabalho entre os ocupados informais.
A pesquisa que dá origem a este artigo trata de um universo profissional profundamente afetado pelas medidas de isolamento social que visavam a mitigar as altas taxas de contágio no Brasil. Ela foi realizada entre fotógrafos e produtores de vídeo atuantes no mercado de eventos sociais – celebrações de casamentos, batizados, aniversários e outros ritos marcadores dos ciclos da vida, como definiu Azevedo (2004) – ou, ainda, os que se dedicam à atividade conhecida como “ensaios”: sessões fotográficas que retratam famílias ou indivíduos, em segmentos como fotografia de recém-nascidos, famílias e gestantes. Embora faltem dados precisos sobre os efeitos da crise da covid-19 nesse universo, sabemos que os cancelamentos dos eventos e o temor de contágio produziram adiamentos e suspensão de contratos já firmados entre clientes e profissionais, além da queda brusca na procura por novos serviços. Em suma, a pandemia causou acentuado declínio na renda dos trabalhadores, bem como elevado grau de incerteza em relação ao futuro de suas atividades profissionais.
Neste artigo, examinamos os efeitos da crise instaurada pela pandemia da covid-19 sobre a subjetividade política de profissionais diretamente impactados por ela que, nos anos anteriores, se apropriaram de “parâmetros nitidamente importados do imaginário neoliberal” (LIMA, 2008, p. 8). A noção de neoliberalismo é compreendida aqui como um conjunto de discursos, práticas e aparatos que determinam novas formas de governo (FOUCAULT, 2004), em acordo com o princípio universal da competição. Seguindo a proposta de Dardot e Laval (2014), entendemos o neoliberalismo como produtor de relações sociais, modos de vida e subjetividades, como uma realidade totalizante que integra todas as dimensões da existência humana. Do ponto de vista empírico, conforme exploraremos mais adiante, são componentes da subjetividade neoliberal: 1. A naturalização da ideia de que cabe ao indivíduo a acumulação de reservas privadas que o assegurem de possíveis riscos e fatalidades; 2. A rejeição sistemática ao papel do Estado, considerando-o um entrave aos negócios e 3. A crença generalizada de que o êxito profissional é produto de certas qualidades individuais, que está ao alcance de todos dispostos ao trabalho duro e que, em grande medida, independe das condições do mercado. Partindo dessa perspectiva – e considerando que elementos da subjetividade neoliberal discutidos na literatura foram verificados em pesquisa empírica anterior (MARINS, 2018) – nos perguntamos se a crise instaurada pela pandemia da covid-19 teria alterado o padrão ideológico preponderante no campo de investigação até então. Com esse intuito, lançamos mão de dados de campo construídos em dois momentos distintos, sendo o segundo já sob vigência da pandemia. Assim, observamos discursos e práticas de fotógrafos e produtores de vídeo em pesquisa etnográfica realizada ao longo de quatro anos, dividida em dois momentos (2016-2018 e 2020-2021).
O primeiro ciclo de pesquisa originou tese de doutorado sobre o trabalho de fotógrafos, enquanto o segundo é produto de esforço coletivo, realizado entre o final de 2020 e março de 2021. Cada uma das etapas da pesquisa se valeu de técnicas que observaram distintas condições de investigação. Entre os anos de 2016 e 2018, o trabalho de campo se desenrolou, concomitantemente, por meio do uso de ferramentas digitais e atividades presenciais. Ele envolveu múltiplos deslocamentos da pesquisadora que realizou entrevistas, fez observação participante ao lado de fotógrafos em eventos sociais, congressos, premiações, palestras e cursos em diversas partes do Brasil. Também foi realizado um acompanhamento sistemático de interlocutores através de plataformas de redes sociais, bem como a observação de grupos o-line, podcasts, lives e reportagens. A experiência prévia da utilização de tecnologias de interação digital foi oportuna em 2020, considerando as restrições impostas pela pandemia da covid-19. Reativamos, assim, o campo de pesquisa on-line para nos debruçarmos sobre o vasto conteúdo voltado a fotógrafos e produtores de vídeo veiculado em sites, grupos de discussão, plataformas de vídeo, redes sociais e congressos organizados no formato remoto. Nos dois ciclos de pesquisa, especial atenção foi dedicada aos profissionais que de alguma forma participam de circuitos (MAGNANI, 2014) de exposição pública das imagens que produzem3. Tomamos o cuidado de ouvir também fotógrafos e produtores de vídeo que não costumam frequentar eventos profissionais e que não possuem notoriedade entre os pares. No primeiro ciclo da pesquisa, isso foi feito a partir de conversas informais e de dez entrevistas presenciais registradas com o auxílio de um gravador. No segundo ciclo da pesquisa, entrevistamos dezesseis profissionais utilizando aplicativos de videochamadas. Os trechos das entrevistas que constam neste artigo são transcrições exatas das falas de nossos interlocutores. Um balanço mais detalhado sobre potencialidades, impasses e limitações da pesquisa de campo on-line entre fotógrafos que atuam em ritos sociais foi apresentado em Marins (2020).
Os leitores notarão que ao longo do texto nos referimos aos fotógrafos e produtores de vídeo utilizando categorias diversas. Os termos “empreendedores individuais”, “microempreendedores” e “microempresários” aparecem em referência a situações pontuais nas quais nossos interlocutores discutiam questões burocráticas da profissão. Embora essas sejam categorias nativas, cabe ressaltar que no cotidiano da pesquisa tais categorias eram raramente acionadas, ao contrário do termo “empreendedor”, categoria nativa recorrente no campo. Optamos por nos referir aos fotógrafos e produtores de vídeo ora como “profissionais”, ora como “trabalhadores”, em parte, a fim de conferir maior fluidez ao texto. Contudo, a categoria analítica “trabalhador(a)”, amplamente utilizada por nós, carrega uma conotação especial e não se relaciona diretamente ao modo de produção típico de sociedades industriais, como poderiam supor leitores familiarizados com estudos clássicos sobre o trabalho que serviram de alicerce para as ciências sociais modernas (KESKÜLA, 2018). Ao invés disso, nos referimos aos fotógrafos e produtores de vídeo enquadrados na pesquisa como “trabalhadores” levando em conta a tradição de estudos antropológicos que compreende trabalho como fenômeno abrangente, que pode incluir, além do emprego assalariado, também outras formas de trabalho (inclusive não remuneradas, domésticas ou inseridas em sistemas de produção diversos)4. Já a noção de “carreira” segue o enquadramento conceitual sugerido por Hughes (2003), que a define como o curso de uma pessoa pela vida, especialmente aquela fração na qual ela trabalha.
Se, no período que antecedeu a pandemia, elementos reveladores de uma vigorosa subjetividade neoliberal eram abundantes no campo de pesquisa, não encontramos sinais de reversão desse padrão ideológico durante a pandemia. Até este ponto da pesquisa, os trabalhadores observados não parecem questionar o modelo de trabalho autônomo desprovido de proteções trabalhistas, mas apostam no esforço individual para superação da crise, dedicando empenho à construção de suas marcas através de plataformas digitais. A fim de apresentar os resultados da pesquisa, dividimos este artigo em quatro seções. Na primeira delas, realizamos um breve balanço das transformações recentes no campo de atuação dos fotógrafos e produtores de vídeos investigados. Em seguida, resumimos como manifestações de uma subjetividade empreendedora se apresentavam no campo antes da covid-19. Na terceira seção, procuramos entender como essa subjetividade se atualizou em face da pandemia para, no capítulo de conclusão do texto, nos debruçarmos sobre a aposta dos trabalhadores nas plataformas de redes sociais como caminho de superação da crise.
Transformações recentes no campo profissional
O campo de atuação dos fotógrafos e produtores de vídeo se transformou profundamente a partir da passagem da tecnologia de imagem analógica para a digital. Se antes as imagens de um determinado evento eram acessadas, via de regra, por quem dele participava (profissionais e contratantes, notadamente), com a disseminação da fotografia e vídeos digitais e com a popularização dos diversos meios de divulgação on-line (tais como blogs, websites e redes sociais), o produto do trabalho de fotógrafos e produtores de vídeo obteve, como nunca antes, uma dimensão pública. Como consequência desse processo, esses profissionais ganharam acesso às imagens produzidas por colegas, o que lhes facultou o engajamento em redes de profissionais até então inexistentes.
Ao final da primeira década do século XXI, emergiram espaços de socialização profissional geridos por empresas privadas especializadas, na época, em comercializar material educacional (tais como livros e revistas dedicados a técnicas fotográficas). Surgia, assim, um calendário de congressos, seminários, encontros nacionais e internacionais, dos mais variados portes, voltados tanto aos profissionais já experientes como aos ingressantes no setor. Também naquela época, proliferavam blogs, websites e alguns cursos que disseminavam além das técnicas fotográficas, estratégias de gestão e promoção dos negócios. No início da década de 2010, grupos empresariais especializados em comercializar produtos e oferecer serviços a fotógrafos e produtores de vídeo se consolidaram. Nos anos seguintes, floresceram plataformas de ensino on-line, concursos nacionais e internacionais e eventos de grande porte – alguns deles, realizados anualmente com a presença de alguns milhares de participantes.
O aprendizado profissional, antes realizado a partir de uma combinação de formação em escolas de fotografia e de um processo de aprendizado que Guedes (2004) denominou “mexer”5, passou a ocorrer em espaços de socialização profissional organizados por empresas com força de venda e estratégias de divulgação enérgicas. Como desdobramento, a formação técnica do profissional que antecedia o ingresso na carreira e era aperfeiçoada com os anos de prática, deu lugar a uma dinâmica de autoaprimoramento dos trabalhadores em regime permanente. Estudar, aprender novas técnicas, frequentar congressos, acompanhar o trabalho de profissionais mais experientes, consumir produções artísticas variadas com o intuito de “desenvolver bagagem visual” foram algumas das atividades transformadas em imperativo para os profissionais atuantes no mercado de fotos e vídeos sociais. Mais do que isso, a evolução profissional – categoria investida de carga simbólica positiva – passou a pressupor, implicitamente, uma escolha moral. O sujeito que não perseguisse a evolução se tornaria fadado ao insucesso, por “se acomodar” ou “optar pelo caminho mais fácil”. Como na crítica feita por Byung-Chul Han (2017), a busca pelo aprimoramento pessoal e as práticas de automonitoramento ganharam contornos religiosos (MARINS, 2018).
Tanto os novos eventos, com seus cursos e palestras, quanto os concursos de vídeo e fotografia cada vez mais numerosos, reconfiguraram a hierarquia da profissão, criando as figuras de profissionais destacados. Tratados de mestres, referências, top, fodas, picas, os profissionais que acumularam grande prestígio no circuito profissional investigado passaram a desempenhar novos papéis de coaches, palestrantes, mentores. Nos últimos anos, alguns deles viajaram pelo país fazendo palestras e ministrando cursos e workshops nos quais apresentavam receitas prescritivas de sucesso6. As vantagens das quais desfrutavam os profissionais que ocupavam posição de destaque no universo dos fotógrafos e produtores de vídeo eram vastamente ostentadas em suas redes sociais. Essas passaram a ser criteriosamente organizadas para atrair uma clientela de profissionais ansiosos para alcançar eles mesmos seus resultados triunfantes: o trabalho nos eventos sociais era assim retratado como atividade dinâmica, divertida, fonte de realização pessoal e prosperidade financeira.
Ao passo que os rendimentos de profissionais destacados escalaram substancialmente na década de 2010, o mercado de fotografia e produção de vídeo ligado a eventos sociais conheceu um efeito concentrador. Os profissionais bem-sucedidos em utilizar ferramentas de marketing digital para promover seu trabalho capturaram frações de mercados consumidores antes disputados por poucos fotógrafos de atuação local. O contraste entre os discursos de interlocutores atuantes há mais de duas décadas e os daqueles que ingressaram na carreira poucos anos antes evidenciam esse fenômeno. Com efeito, na pesquisa de campo era possível acessar numerosos relatos de jovens profissionais que contavam ter consolidado suas carreiras em poucos meses recorrendo a estratégias de divulgação no Facebook e no Instagram. Já profissionais que atuavam no segmento há décadas descreveram um mercado de atuação profissional menos rentável e com competição cada vez mais acirrada.
Em entrevista concedida em 2016, seu Pedro7, fotógrafo e proprietário de um estúdio de fotografia desde a década de 1970, especializado em registrar casamentos, festas de quinze anos e bodas, indicava que as dificuldades não só diziam respeito a um mercado que viu o número de prestadores de serviço explodir nos últimos anos, mas que também passou a fazer novas exigências dos profissionais. Segundo ele, a cobertura fotográfica de festas que duravam algumas poucas horas há algumas décadas, agora exigia uma jornada de trabalho consideravelmente mais extensa. Sem as limitações impostas pelos rolos dos filmes, passavam a ser registrados agora os inúmeros elementos rituais que, nos últimos anos, passaram a compor os eventos sociais. Como ponderava seu Pedro, “hoje em dia, tem que fotografar cada detalhezinho”.
A passagem da fotografia analógica para a digital, bem como as novas plataformas digitais de redes sociais, acabou por ampliar a carga de trabalho dos fotógrafos, pavimentando o caminho para que os profissionais se tornassem também um potencial mercado consumidor. O mercado de bens e serviços ofertados a fotógrafos e produtores de vídeo era particularmente visível nos eventos que reuniam esses profissionais, fossem eles presenciais ou on-line. Neles, era comum que houvesse um amplo espaço de comercialização de todo tipo de artefatos: de equipamento de iluminação e álbuns especialmente confeccionados para servir de mostruário até penduricalhos ofertados como “o diferencial para clientes” tais como pen-drives, sacolas personalizadas, itens decorativos e apetrechos a serem utilizados nos ensaios fotográficos. Nos últimos anos, em especial com a ampla difusão das plataformas de redes sociais, a indistinção entre trabalho e consumo ficou ainda mais inequívoca – tema que voltaremos a abordar mais adiante.
Subjetividade neoliberal entre fotógrafos e produtores de vídeo
Hoje, fotógrafos e produtores de vídeo que atuam em eventos sociais formam uma força de trabalho pulverizada e heterogênea. Os profissionais estão distribuídos por todo país, atuando tanto em pequenas cidades quanto em grandes centros urbanos. Do ponto de vista formal, muitos são registrados como empreendedores individuais (MEI)8, mas é possível encontrar alguns pequenos empresários e outros tantos que atuam como prestadores de serviços a outros profissionais sendo remunerados por serviço prestado (freelas). É comum que esses trabalhadores contem com o auxílio informal de seus familiares e não é de todo raro que a atividade seja realizada de maneira circunstancial ou combinada a outras ocupações. A remuneração obtida pelos trabalhadores varia muito e já no primeiro estágio da pesquisa, realizada antes da pandemia, foi constatado que parte deles não alcançava o valor do salário mínimo nacional, ao passo que outros afirmavam receber até dezenas de milhares de reais por um único contrato de prestação de serviço9.
A despeito da heterogeneidade que marca o campo de estudo, era evidente, ao final da década de 2010, que os trabalhadores compartilhavam de valores associados a uma subjetividade neoliberal. O trabalho de campo apontava para certa naturalização da ideia de que cabia a cada indivíduo correr atrás de renda suficiente para assegurar-se, ele mesmo, de possíveis riscos e fatalidades a partir de reservas privadas (FOUCAULT, 2004). Uma das inúmeras pistas neste sentido foi a fala de Henrique, fotógrafo mineiro de 41 anos e grande destaque nacional, durante um debate realizado em 2017 para plateia de cerca de quinhentos profissionais:
Eu acho que a gente tem que pensar que nosso povo não tem essa cultura da poupança, de guardar recursos nas épocas de vacas gordas pra investir (…). Eu sei que é difícil, mas são pequenas decisões do dia a dia que vão formatar o que vai acontecer com a gente daqui dez anos. Aí é um pouco questão da disciplina, dessa visão a longo prazo.
No mesmo espírito, Luciana, fotógrafa de 26 anos, especializada em registrar eventos sociais e ensaios em uma cidade de médio porte do estado do Rio de Janeiro junto com seu marido, assim descreveu sua preocupação com a aposentadoria em entrevista:
O nosso plano é ter um plano de aposentadoria do tipo construir umas quitinetes, ter uns aluguéis como segurança e tal, até porque o nosso pique de trabalho nos eventos é muito forte, então a gente sabe que quando tiver uma idade mais pra frente, a gente não vai dar conta como a gente dá hoje (...). Então a gente tem esse plano de ter alguma coisa confortável, de conseguir ter uma renda.
Ao longo de toda a pesquisa, observar os trabalhadores vincularem o desempenho de suas atividades profissionais ao Estado ou a alguma instância específica dele era situação raríssima, com exceção de uma ou outra discussão travada no Facebook em torno de questões burocráticas. Em um desses casos, um profissional consultava os colegas alegando que precisava emitir notas fiscais e, portanto, precisava avaliar a possibilidade de “abrir empresa no MEI”. As respostas à questão davam a entender que boa parte dos profissionais ali atuavam formalmente como microempreendedores e outros poucos como microempresários. Lamentava-se, no entanto, a necessidade de pagamento de impostos e de ter que “lidar com a papelada”. No comentário que reproduzo a seguir, o fotógrafo, que interagia com os colegas em um grupo do Facebook, argumentava em favor da informalidade:
Mas te falar. Tive MEI pra nunca mais. (…) Hoje nem CNPJ tenho mais. Hoje minhas contas são poupança. (…) Hoje estou acamado, vou passar 90 dias deitado devido acidente de moto. Eu te indico: trabalhe para você. Não para os outros. Eu trabalhei pra sustentar governo e banco. Hoje parado, graças a Deus, tenho dinheiro guardado para manter a minha empresa e minha casa por esses 90 dias.
Além da previdência concebida como tema do âmbito individual/familiar, outras proteções próprias do mercado de trabalho formal soavam distantes das aspirações de fotógrafos e produtores de vídeo. Enquanto muitos deles jamais tiveram acesso à proteção de leis trabalhistas e previdenciárias, outros tantos sugeriam que a ausência de proteções não constituía propriamente uma preocupação por sentirem-se recompensados por uma remuneração condizente com suas aspirações materiais (ou pela perspectiva de obtê-la), pela possibilidade de definirem seus próprios horários, por escaparem do tédio do trabalho repetitivo e da figura autoritária de um patrão. Não menos importante, fotógrafos e produtores de vídeo recorrentemente destacavam os aspectos não diretamente ligados às condições materiais de sua profissão: noções como “reconhecimento” e “realização pessoal” ganhavam centralidade em seus discursos, fossem eles públicos (como em vídeos veiculados em redes sociais e palestras) ou em depoimentos e conversas informais travadas em particular com a etnógrafa.
De modo geral, nossos interlocutores nutriam uma atitude de rejeição em relação ao papel do Estado, considerado um entrave aos negócios, notadamente, por recolher impostos e fazer exigências burocráticas sem lhes oferecer em troca, segundo eles, qualquer contrapartida. Por outro lado, a falta da relação com o sistema público de seguridade exigia deles um senso de responsabilidade inquebrantável e os temores dos profissionais de verem suas carreiras ruírem subitamente se faziam visíveis com frequência. Havia, por exemplo, um consenso geral em torno dos cartões de memória que guardavam os registros de um evento. Segundo os profissionais, caso esses objetos fossem perdidos, por descuido ou acidente, suas carreiras estariam imediatamente liquidadas. Doenças que impossibilitassem os trabalhadores de comparecer a um compromisso profissional eram igualmente temidas, como indicaram Bárbara e seu companheiro, Roberto, em conversa sobre o registro de celebrações de casamentos:
Bárbara: Na minha cabeça [eu faltaria] só se eu estivesse morrendo. Eu já fui trabalhar, por exemplo, com uma crise renal.
(...)
Roberto: Friamente, dá pra acontecer? Dá pra acontecer! Mas é um suicídio profissional. Um compromisso nesse nível, não comparecer é um suicídio profissional.
Bárbara: Esse é um peso muito grande do trabalho.
Roberto: Além de ter um prejuízo financeiro enorme, é um suicídio profissional. Não dá pra ser encarado como uma possibilidade.
Entre fotógrafos e produtores de vídeo, a categoria responsabilidade era acionada a todo tempo como valor imprescindível para a permanência no mercado. Naquele universo, responsabilidade não implicava apenas que indivíduos respondessem pelos efeitos dos próprios atos, mas que se antecipassem aos imponderáveis e superassem situações adversas a partir do trabalho árduo e do sacrifício (BATAILLE, 2013), colocando em jogo o que Prandi (1978, p. 61) chamou de “ideologia do esforço próprio e da virtude do trabalho”.
Responsabilidade, disciplina e visão de longo prazo constituíam alguns dos predicados necessários para que os profissionais obtivessem êxito em sua carreira, segundo eles próprios. Em especial, o primeiro ciclo do trabalho de campo, encerrado em 2018, revelava uma crença generalizada de que, se praticadas com afinco, tais qualidades garantiriam ao indivíduo a realização de seu projeto de superação das condições originais de vida (VELHO, 1987). Assim, os profissionais julgavam-se capazes de atravessar eventuais intempéries de mercado, atribuindo o sucesso (ou fracasso) a si mesmos e, no máximo, às suas famílias. As condições sociais ou a conjuntura econômica, por outro lado, ficavam quase sempre fora de seus discursos sobre suas carreiras. Quando então a crise da pandemia da covid-19 irrompeu, nos perguntamos se esse padrão havia sido de alguma forma alterado.
Aposta dobrada
No primeiro ciclo de realização da pesquisa, entre os anos de 2016 e 2018, queixar-se das dificuldades era prática que se chocava com as representações idealizadas dos “fotógrafos de sucesso”, que atribuíam suas conquistas profissionais a sua própria resiliência. “Reclamar do mercado” era ato relegado aos desprovidos de “força de vontade”, “coragem para arriscar”, “visão de negócios” e “persistência”. O profissional virtuoso, segundo a lógica hegemônica do campo, era aquele que, à despeito das intempéries do mercado, mantinha-se firme em seus propósitos e encontrava soluções criativas para prosperar, “saindo de sua zona de conforto”.
Contudo, em 2020, o cenário para os negócios de fotógrafos e produtores de vídeo atuantes em eventos sociais se deteriorou de forma dramática. Com a pandemia da covid-19, contratos já firmados precisaram ser revistos, eventos foram suspensos ou sofreram adiamentos consecutivos. A queda brusca nos agendamentos de novos serviços deixou os profissionais sem perspectivas de recuperação de seus rendimentos. Esta situação fez com que nos questionássemos sobre possíveis mudanças no modo de abordar aspectos conjunturais. Num cenário tão desfavorável, imaginávamos, seria improvável que os trabalhadores prosseguissem atribuindo sucessos e malogros a condutas individuais. Foi, portanto, com certa surpresa que, ao retomarmos um novo ciclo de trabalho de campo em novembro de 2020, encontramos discursos bastante semelhantes àqueles propalados no período anterior à pandemia.
Em entrevista realizada em 2021, Michele, fotógrafa de casamentos há dez anos, evocava a ideia de “visão a longo prazo” e “responsabilidade”. Ela contava, deixando transparecer certo orgulho, que não precisou do auxílio emergencial concedido pelo governo federal:
... eu consegui, graças a Deus eu tenho uma organização financeira muito boa, então desde antes da pandemia eu sempre tive uma verba separada para os custos e os custos do casamento. Eu não posso receber o dinheiro adiantado do casamento, gastar ele e viver de giro.
Já a palestra de abertura de uma versão on-line do congresso Wedding Brasil, em novembro de 2020, é reveladora da persistência de um discurso que apregoa a superação da crise a partir do esforço individual. Na apresentação, intitulada “Pensa e faz comigo: 2020 ainda não acabou, você pode fazer a diferença”, Otávio, palestrante de 28 anos, que diz fotografar casamentos desde os 16, enunciava:
O ano de 2020 não terminou ainda, e o que ele tem pra frente, até dezembro, até o Réveillon depende só de você, se vai ser massa ou se vai ser pior, depende só de você. O ano tá longe de terminar, ainda dá tempo de fazer muita coisa. (...) Eu vim pra fazer acontecer mais uma vez esse ano, assim espero, como eu espero que tu possa fazer isso a partir de agora. (...) Chega de pensar. (...) Não importa o que, mas faça. (...) O que muda entre nós todos, os problemas são os mesmos, é a forma de lidar com eles.
As sugestões apresentadas por Otávio apontavam para a diversificação dos serviços oferecidos pelos fotógrafos e a formulação de campanhas promocionais a fim de atrair novos clientes. Outros palestrantes que passaram por aquele evento fizeram o mesmo, como o produtor de vídeos Lorenzo, que aconselhou que os espectadores construíssem um novo portfólio voltado a comércios locais: “Seguramente, aí onde você vive, há uma pessoa que tenha um hotel, uma pessoa que tenha um grande restaurante...”. Não obstante, a maior parte dos palestrantes imprimia a suas falas um tom otimista de expectativa de superação da crise com o fim da pandemia supostamente próximo. Era sugerido, assim, que o ano seguinte seria de retorno às atividades nos eventos sociais, de mercado aquecido, repleto de oportunidades ao alcance daqueles que tivessem se preparado para aproveitá-las. A chamada para um dos eventos on-line do qual participamos como espectadores deixava nítida esta sugestão: “16 especialistas se reúnem pra te ensinar como se destacar no mercado, vender mais, dominar novas técnicas e adotar um estilo próprio para fazer 2021 ser o melhor ano da sua carreira”.
Naqueles espaços de formação e sociabilidade profissional, emergia com frequência, ora implícita, ora explícita, a proposição de estratégias para compensar o ano difícil e conseguir “aproveitar todas as oportunidades” que viriam em breve. Esse discurso convergia com a ponderação feita por Andreza, fotógrafa há quinze anos que, há cinco, abriu em sociedade com o marido: uma empresa especializada em eventos sociais:
Esse momento de pandemia também é um momento que, pra mim, (...) tem algumas pessoas que não estão trabalhando, mas estão mostrando que estão fazendo alguma coisa, tipo, não sumiram, e tem outras pessoas que sumiram e só estão reclamando. Só que, quando essa pandemia acabar, (...) as festas vão voltar com força, tudo vai voltar e, quando voltar, vai ser algo, assim, muito hard! Então, eu acho que todo mundo tem que tá muito preparado porque vai dar um boom! (...) E quem tiver realmente trabalhando nesse momento, as cartas serão dadas, são essas pessoas que vão conseguir lugares massa. (...). Então, assim, quando esse momento, e esse futuro está muito próximo, eu acredito muito, as cartas serão dadas e todo mundo, as pessoas que estão entrando agora, as pessoas que já estão há um tempo no mercado, estarão todos no mesmo patamar. Só que, mais uma vez, só vai sobreviver quem estiver estruturado.
A chave do sucesso, segundo nossos interlocutores, estaria na capacidade de inovação constante, na habilidade de enxergar problemas e solucioná-los, na resiliência em face às dificuldades. Autonomia, criatividade e inovação, atreladas à ideia do “fazer”, eram os elementos constitutivos de um universo no qual o constante aprimoramento de si separava profissionais de sucesso daqueles que permaneciam em sua “zona de conforto” (PALERMO; VENTRICE, 2020). A crise da pandemia era pensada, então, como um momento capaz de filtrar os profissionais “preparados”, como sugeriu Lavínia, destacada profissional no segmento de fotografias de recém-nascidos:
Esse período que veio, ele veio para mostrar para a gente, para fazer um filtro, para fazer uma peneira. Quem tá preparado vai passar por isso e vai se tornar mais forte. Quem não tá, vai quebrar, ou já quebrou, ou vai ficar tão machucado, vamos dizer assim, que vai colocar a prova se é isso mesmo que quer fazer da vida, ou não.
Passíveis de “quebrar” ou “se tornar mais forte”, fotógrafos e produtores de vídeo se concebiam como indivíduos empreendedores (ROSE, 1996, p. 154) que buscam maximizar seu próprio capital humano, projetar suas vidas em torno de objetivos profissionais e mergulhar num processo constante de autoaprimoramento. Como prescrevia Júnior aos espectadores de sua palestra, numa notável demonstração da indistinção entre tempo de trabalho e não trabalho: “é preciso estar sempre atento... até na fila da padaria ou do supermercado, é importante puxar assunto com as pessoas já que nunca se sabe de onde vêm as oportunidades”.
Numa conjuntura em que a oferta de prestadores de serviço disputava um mercado consumidor quase inexistente, a concorrência era saudada como um estímulo ao desenvolvimento – “quando tem concorrência as empresas evoluem mais rápido”, como dizia Yuri em janeiro de 2021, quando prometia ensinar aos espectadores como conquistar “vendas turbinadas”. E, a despeito do contexto de crise econômica instaurada pela pandemia, o palestrante defendia ainda a manutenção de um caráter aspiracional, num “apelo aos desejos dos indivíduos de fazer parte de um espaço material e simbólico” (BANDINELLI, 2019, p. 5, tradução nossa)10:
Elevem o padrão de vocês. Queiram mais, queiram o melhor. A vida vai passar e o tempo cobra todo mundo. Não queiram chegar daqui a 15, 20 anos e pensar “puta, eu podia ter pensado diferente lá atrás”. Pensem agora, corram atrás agora. Aproveitem o tempo, não existe idade para nada. O momento é sempre o agora. Queiram mais, queiram o melhor. Queiram a melhor casa, o melhor carro, o melhor equipamento sim. Mas pensem como empresa, eu acredito que a melhor maneira de conseguirmos as coisas é assim.
A tônica dos eventos observados – com os efeitos negativos da pandemia sobre os negócios minimizados, enquanto as “oportunidades” supostamente emergentes eram enfatizadas – não destoava da atitude nas redes sociais de profissionais que ocupavam posição de destaque naquele universo. Com efeito, Fernando Castiel e Júlio Carlé, ambos fotógrafos atuantes em eventos sociais que, nos últimos anos, se tornaram conhecidos ministrando cursos, palestras e workshops pelo país, mantiveram suas redes sociais ativas, raramente fazendo menções à emergência sanitária. Com uma média de três a quatro postagens diárias, os fotógrafos lançavam cursos e tutorias focados em modular a visão de mundo dos participantes (“mindset”) a fim de “conquistar uma vida em abundância”. Em um dos posts, Júlio divulgava videoaulas disponíveis no YouTube, com o texto “Chega de mimimi! Esteja preparado para quando essa fase passar. Pós pandemia você vai voar ou se arrastar?”. Fernando anunciava seu curso “Do Zero ao infinito” com a pergunta: “Quando foi que você desistiu?”. Em seguida, prometia: “Você pode muito mais! No desafio DO ZERO AO INFINITO eu vou lhe entregar 14 chaves para a prosperidade em todos os sentidos!”.
Nas redes sociais e nos eventos, mais uma vez os discursos reiteravam a ideia de que oportunidades de crescimento estariam ao alcance de todos aqueles dispostos ao trabalho duro. Embora a existência de obstáculos não fosse propriamente negada, queixar-se das dificuldades permanecia sendo atitude condenada (“a gente não pode perder tempo se lamentando”, nas palavras de um produtor de vídeo), mesmo que os eventos, de onde provinha a maior parte dos rendimentos dos profissionais, seguissem suspensos em decorrência da pandemia. Mais uma vez, a reputação dos profissionais de destaque baseada na resiliência era acionada e o “profissional de sucesso” era aquele forjado numa lógica de superação das condições adversas.
A comparação entre os dois períodos de pesquisa revelou, contudo, um deslocamento do ideário sobre o sucesso. Se antes era propalada a ideia de que, para ser bem-sucedido, um profissional deveria ser bem capacitado tecnicamente ao mesmo tempo que reunia determinadas qualificações morais11, em 2020, fortalecia-se um discurso que apontava para o domínio de ferramentas digitais como aspecto fundamental para a sobrevivência dos profissionais no mercado. A solução para a crise, nossos interlocutores sinalizavam, viria da internet – em especial das plataformas digitais de redes sociais.
As redes sociais como panaceia
“Só mais uma crise”. Foi assim que Rodrigo, produtor de vídeo que se apresenta no Instagram como “empreendedor e palestrante de marketing e negócios para o mercado de eventos”, se referiu à covid-19 em janeiro de 2021. Segundo sua lógica, os desafios impostos pela pandemia não eram maiores do que aqueles trazidos pela “revolução da internet”. Por isso, “fazer marketing no ambiente digital” e “criar conteúdos” que fossem capazes de despertar o interesse do público para então alavancar as vendas seriam atividades incontornáveis para fotógrafos e produtores de vídeo do segmento social. Operar nas redes sociais, para Rodrigo, era uma espécie de condição sine qua non para qualquer um que pretendesse “sobreviver no mercado”. Em tom bastante semelhante, o fotógrafo Cristiano alertava: “se você não está fazendo marketing e mídia, você está ficando para trás na revolução da internet”. Na mesma direção, Vera, fotógrafa especializada em registro de casamentos, declarava aos espectadores que o Instagram era o novo cartão de visitas e que, sem presença nas redes sociais, não era mais possível seguir exercendo a profissão. Na palestra seguinte, Alexandre resumia: “Ou você cai para o on-line ou você tá fora”.
A conversa com Ana Paula, fotógrafa que atua há dez anos no segmento de fotografias de casamento, é reveladora de que o reconhecimento das redes sociais como elemento imprescindível para a sobrevivência no mercado pode ser acompanhado de certa resignação. Em entrevista, ela relatou como foi uma das precursoras no uso do Facebook para atrair clientes e, posteriormente, buscou cursos para lidar melhor com as plataformas:
Agora é o Instagram e eu precisava investir nele pra continuar prospectando clientes novos (...) essa sensação é horrível, porque a gente ficou escravo das redes mesmo. Porque se você não publica, você não é visto. E quem não é visto não é lembrado. E aí cada vez mais você vai se tornando um escravo da ferramenta, porque por exemplo, cada ferramenta nova que o Instagram disponibiliza se você não usa aquela ferramenta você vai caindo no algoritmo da rede, e você vai deixando de ser visto (...). Aí eu vou lidando com a rede dessa forma, eu faço o que precisa ser feito, por mais que eu não goste, eu tenho que publicar, eu tenho que de vez em quando mostrar os bastidores, porque as pessoas gostam…
Mais do que uma obrigação para que os profissionais sobrevivessem no mercado, plataformas de redes sociais eram apontadas como salvação num contexto de crise. A fim de “se reinventar”, como diversas vezes os profissionais apontavam, era nas redes sociais, sobretudo no Instagram, que se encontrava “o segredo do sucesso”. Diversas palestras assistidas pelos pesquisadores no fim de 2020 expressavam essa ideia já no título: “Marketing Digital para alavancar sua carreira”, “Métodos e técnicas para manter clientes engajados”, “Conteúdo para Instagram: nunca mais fique sem ideias”. A palestra denominada “Mídias $ociai$ para atingir seu público alvo”, por exemplo, apresentava “técnicas infalíveis” para conquistar novos clientes e tratava da importância de “gerar tráfego” e “engajar”.
Muito embora o fenômeno do uso profissional das redes sociais – em especial como ferramenta de divulgação dos fotógrafos e produtores de vídeo – já se fizesse presente no campo de pesquisa em anos anteriores, no último ciclo de trabalho de campo esse fenômeno se tornara inequivocamente mais difundido. As redes sociais agora haviam ganhado centralidade no exercício da profissão que exigia dos trabalhadores um cuidadoso planejamento de suas redes on-line. Para além das atividades que já realizavam, os trabalhadores passaram a dedicar esforço crescente ao gerenciamento de suas reputações e imagens nas redes sociais digitais. Ganhava importância o trabalho de self-branding (ARVIDSSON; GANDINI; BANDINELLI, 2016), invisível no sentido de não ser diretamente remunerado e, em muitos casos, sequer identificado como trabalho.
O ciclo mais recente da pesquisa de campo, realizado durante um período de crise que acarretou aumento exponencial do uso de tecnologias (VARGO et al., 2021), também identificou o desdobramento de dois processos já em curso em etapas anteriores da pesquisa. O primeiro deles diz respeito à crescente indistinção entre trabalho e consumo, algo já registrado em outros campos de atuação profissional (ABÍLIO, 2014). No caso do nosso universo de pesquisa, pareceu evidente a ampla aceitação de que, a fim de sobreviver no mercado, trabalhadores precisariam atuar como consumidores nas plataformas digitais de redes sociais, fosse através do uso regular e intensivo das plataformas, fosse pela contratação de serviços de impulsionamento a fim de ganhar acesso a audiências maiores12.
O segundo processo que pareceu intensificado nessa etapa está diretamente relacionado ao primeiro e diz respeito ao gradual apagamento das fronteiras que demarcam vida profissional e pessoal. Ainda que esse ponto também já tenha sido registrado anteriormente, a novidade aqui é o modo como os profissionais exacerbam a produção e divulgação de imagens de seus familiares como estratégia para atrair potenciais clientes através das redes sociais. A exibição feita pelo fotógrafo Yuri, na qual um post contendo a imagem de sua pequena filha era acompanhada da defesa de que fotos do bebê geram “engajamento instantâneo” e “conexão com futuros clientes”, nos fornecia uma pista nessa direção. Contudo, nenhuma fala explicitava tão bem a crescente indistinção entre esfera pública (do trabalho) e privada (do não-trabalho) efetivada por meio de novas tecnologias (ABÍLIO, 2014, p. 141) quanto a da fotógrafa Vera. Ao indicar em sua palestra os caminhos para se destacar neste “salve-se quem puder que virou o Instagram”, disse:
Não, as pessoas não querem ver apenas vocês. Querem ver você, seu esposo, sua esposa, seus filhos, sua família, o pessoal do escritório, o pessoal da rua (...). As pessoas perguntam, interagem... Então, galera, sim: virou uma novela da vida real. A nossa vida, o nosso trabalho virou uma novela.
Se era verdade de que a vida de fotógrafos e produtores de vídeo agora era “uma novela”, como constatou Vera, muito do que observamos nas palestras transmitidas on-line – e também nas reações dos espectadores que acompanhamos nas redes sociais – apontava para uma conversão dos profissionais em “produtores de conteúdo” (CRAIG, 2019). Compreender a arquitetura das plataformas digitais e dos modos de funcionamento de seus algoritmos para planejar e construir suas marcas tornara-se a atividade urgente dos profissionais.
Como resposta às pressões econômicas, fotógrafos e produtores de vídeo, assim como outros trabalhadores que atuam na assim chamada indústria criativa (ARRIAGADA; IBÁÑEZ, 2020; ARVIDSSON; GANDINI; BANDINELLI, 2016; BANDINELLI, 2019; MACKENZIE; MCKINLAY, 2020) experimentaram mudanças significativas na relação entre tempo de trabalho e não-trabalho, moldada por um ambiente de intensa competição e ecossistemas em constante mutação tecnológica, social e comercial. Assim, os profissionais observados em campo pareciam adaptar suas novas rotinas ao ritmo de trabalho estabelecido pelas mídias digitais das quais se tornavam cada vez mais dependentes. Enquanto o universo pesquisado aderia a um modelo de negócios próprio de uma economia de plataformas (SRNICECK, 2016), o trabalho de campo também revelava um elevado grau de ambiguidade e contradição na subjetividade dos profissionais. Se por um lado, as redes sociais eram marcadas por uma lógica hiperindividualista que inseria os trabalhadores numa constante disputa por atenção (o “salve-se quem puder que virou o Instagram”), por outro lado, aquelas mesmas plataformas pareciam ser encaradas por eles como o espaço de encontro e renovação de suas aspirações materiais, profissionais e de vida (SORIANO, 2021).
Considerações finais
O trabalho de fotógrafos e produtores de vídeos sociais não costuma ser prontamente associado ao fenômeno de transformações do mundo do trabalho próprio do século XXI. No entanto, nas últimas duas décadas, tem sido profundamente reconfigurado pelo desenvolvimento de tecnologias digitais. Nesse período, o produto do trabalho de fotógrafos e produtores de vídeo obteve dimensão pública, o desenvolvimento das habilidades dos trabalhadores em regime permanente se tornou um imperativo e novas hierarquias foram formadas. Na segunda década do século XXI, a mediação das plataformas das redes sociais no setor foi ampliada e as rotinas de trabalho passaram a ser marcadas por um intenso esforço de gestão de suas reputações através de plataformas digitais. Ideias de sucesso foram transformadas e as fronteiras que separam trabalho de consumo e vida profissional de vida pessoal foram gradualmente diluídas – movimentos acelerados sensivelmente no último ano.
Em termos de subjetividade política, o trabalho de campo sugeriu que embora os fotógrafos e produtores de vídeo formassem uma força de trabalho pulverizada e heterogênea, valores associados a uma lógica neoliberal eram hegemônicos no universo investigado. De modo geral, nossos interlocutores nutriam uma atitude de rejeição em relação ao papel do Estado, naturalizavam a ideia de que cabia a cada indivíduo assegurar-se de possíveis riscos e fatalidades a partir de reservas privadas, além de considerarem que valores como responsabilidade, disciplina e visão de longo prazo seriam capazes de erguer carreiras bem-sucedidas. Fotógrafos e produtores de vídeo se concebiam como indivíduos empreendedores que buscam maximizar seu próprio capital humano, projetar suas vidas em torno de objetivos profissionais e mergulhar num processo constante de autoaprimoramento.
A pesquisa realizada entre o fim de 2020 e início de 2021 demonstrou que no lugar de evidenciar a ausência de redes de proteção social dos trabalhadores, a pandemia parece ter reforçado a noção de responsabilidade individual. O trabalho de campo sugeriu ainda que, diante da crise instaurada pela covid-19 e dos drásticos prejuízos sofridos pelos trabalhadores, o modelo de trabalho autônomo desprovido de proteções trabalhistas não era questionado nos espaços de intercâmbio profissional e de construção de reputação observados. Ao invés disso, era verificada uma aposta dobrada no esforço individual para superação da crise. A confiança agora era depositada no potencial que as plataformas digitais de redes sociais teriam em reerguer os negócios perdidos no ano da pandemia.
Como abordado na introdução deste artigo, em especial no último ciclo da pesquisa, tomamos como foco eventos on-line, bem como as interações dos profissionais em plataformas digitais de redes sociais. Além de esse caminho de pesquisa ter sido o viável num contexto em que o deslocamento dos pesquisadores e interações face a face eram desaconselhadas, ele também nos permitiu acessar os discursos que, conforme constatado em ciclo anterior da pesquisa, tornaram-se dominantes em um campo profissional crescentemente mediado por plataformas digitais. Ainda que no primeiro ciclo da pesquisa tenha sido constatada uma continuidade entre o padrão de subjetividade empreendedora observado nos palcos e palestras e no cotidiano dos profissionais que não ocupavam posições de destaque naquele universo profissional, é importante salientar que a estratégia de investigação adotada até aqui não permitiu a convivência entre pesquisadores e interlocutores nos moldes de pesquisas etnográficas tradicionais. Assim, reconhecemos a importância de, num período esperado de maior segurança sanitária, reativar o trabalho de campo presencial para uma avaliação mais acurada da cartografia desse campo profissional. Do mesmo modo, permanece um desafio de pesquisa compreender as mudanças e permanências do padrão ideológico em outros segmentos profissionais desprovidos de proteções trabalhistas para que tenhamos um quadro mais expandido da subjetividade política entre essas camadas de trabalhadores, hoje majoritárias e em expansão, no Brasil e no mundo.
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Recebido em: 12/05/2021
Aceito em: 11/01/2022
1https://www.who.int/director-general/speeches/detail/who-director-general-s-opening-remarks-at-the-media-briefing-on-covid-19---11-march-2020. Acesso em: 09 dez. 2020.
2 Dados divulgados no site <https://covid.saude.gov.br/>. Acesso em: 12 dez. 2020.
3 Um importante eixo desses circuitos é o evento intitulado Wedding Brasil (WB). Realizado anualmente na cidade de São Paulo, entre os anos de 2009 e 2019 pelo Grupo Photos, o WB se consolidou no país como o maior congresso da área. Pelo grande peso e repercussão que alcançou no campo estudado, boa parte do segundo ciclo de pesquisa que serve de base para este artigo foi realizada em torno do WB, que, em 2020, sofreu adiamentos consecutivos em virtude da covid-19, mas, se desdobrou em diversos eventos on-line com a participação de fotógrafos e produtores de vídeo especializados em registrar eventos sociais. Para uma reflexão mais detida sobre o WB e a escolha do circuito para pesquisa etnográfica costurada pelo universo on-line, ver Marins (2018, 2020).
4 Ver, por exemplo, a forma como Malinowski, em sua etnografia pioneira, aborda o tema ao analisar o trabalho de jardinagem entre os trobriandeses. Tecendo uma crítica à noção de Homo economicus, o autor chama a atenção para um tipo de trabalho que não é primariamente motivado por desejos materiais, “mas por um conjunto muito complexo de forças tradicionais (...) [O homem trobriandês quer] alcançar distinção social como um bom jardineiro e um bom trabalhador em geral” (MALINOWSKI, 2002, p. 47, tradução nossa).
5 Isto é, observar o que os experientes fazem (“aprender vendo”) para, posteriormente, pôr em prática de modo incipiente e, por fim, tornar-se ele mesmo uma pessoa experiente (GUEDES, 2004, p. 189).
6 Por terem ganhado notoriedade entre os pares elaborando narrativas positivas sobre suas próprias trajetórias – e por monetizarem essas narrativas – pode-se dizer que emergia aqui uma categoria chamada por Soriano e Panaligan (2019) de skill makers.
7 Os nomes dos interlocutores utilizados neste artigo são fictícios.
8 A sigla MEI corresponde ao termo “microempreendedor individual”. Segundo informações acessadas no site do governo federal http://www.portaldoempreendedor.gov.br, pode ser considerado MEI o pequeno empresário que tenha faturamento limitado a R$ 81.000,00 por ano; que não participe como sócio, administrador ou titular de outra empresa; e que contrate no máximo um empregado.
9 Dados de uma sondagem recente realizada por empresas atuantes no setor fotográfico corroboram com a constatação de desigualdade entre os fotógrafos profissionais. Segundo o Anuário da Fotografia, elaborada com dados de 2019 e 2020, 57,2% dos serviços fotográficos prestados custavam entre R$100 e R$1000, enquanto os serviços com valor acima R$10.000 correspondiam a 0,7% do total. Dados completos disponíveis em: https://www.anuariodafotografia.com.br/inicio#download (Acesso em: 05 fev. 2021).
10 Do original: “The ‘community’ of coworking is thus distinguished by a prominent aspirational character: it appeals to individuals’ desire to be part of a material and symbolic space”. (BANDINELLI, 2019, p. 5).
11 Por exemplo, os interlocutores da pesquisa falavam com eloquência sobre a importância de “ter humildade” ou “valorizar a família” para uma carreira de sucesso. Esta discussão encontra-se detalhada em Marins (2018).
12 Em sua palestra, o fotógrafo Miguel, de 25 anos de idade, ponderou sobre essa segunda modalidade de consumo-trabalho ao compartilhar com o público uma tabela de custos. Ele chamava a atenção dos profissionais que optassem por contratar esses serviços nas redes sociais, alertando que “não adianta tu imaginar que colocar 20, 30 reais no Instagram vai te dar algum retorno”. Ele contava ainda que, até pouco tempo, gastava entre 2000 e 2500 reais por mês em anúncios no Facebook e Instagram.
POR UM FIO:
o trabalho precário do setor têxtil em imagens
BY A THREAD:
the textile sector precarious work in images
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Aline Gama de Almeida1*
Resumo
O artigo faz uma análise da representação do trabalhador têxtil ao longo dos anos a partir da produção de quatro filmes documentários. Em um intervalo de cerca de quarenta anos, os filmes escolhidos refazem uma perspectiva histórica das dinâmicas da produção têxtil desde o trabalho de colheita do algodão, passando pela criação da sulanca e o jeans, e terminando na finalização das roupas e na sua comercialização em grandes feiras. Entrelaçadas a essa produção, estão histórias de vidas que costuram condições precárias de existência e trabalho e podem contribuir para a discussão sobre as condições econômicas, políticas, sociais e ambientais do semiárido brasileiro.
Palavras-chave
Trabalho precário. Família. Semiárido brasileiro. Antropologia Visual.
Abstract
The article analyzes the textile worker representation over the years based on four documentary films production. In a forty years interval, the chosen films remake a historical perspective of the textile production dynamics from the harvesting cotton work, through the sulanca creation and jeans, ending in the clothes finalization and their commercialization in street markets. Interwoven with this production there are life stories that sew precarious conditions of existence and work that could contribute to the discussion over the economic, political, social and environmental conditions of the Brazilian Semiarid.
Keywords:
Precarious work. Family. Brazilian semiarid. Visual Anthropology.
Introdução
O interesse do cinema pelo mundo do trabalho surge nos primeiros filmes dos irmãos Auguste Lumière e Louis Lumière. “La sortie de l’usine”, ou A saída da fábrica, de 1895, é considerado o primeiro filme da história do cinema. Nele, os trabalhadores desempenham os seus próprios papéis para a câmera que ficou apenas na porta da fábrica. Em pouco tempo, esse mundo seria penetrado por Louis Lumière que começou “a filmar os gestos do trabalho em vários de seus filmes” (COLLAS, 2004, p.18).
Desde então, a relação entre o mundo do trabalho e o cinema nos apresenta caminhos interessantes para discutir o lugar do trabalho na vida das pessoas. Os gestos tornam a ganhar destaque em tom de crítica no clássico Tempos Modernos, de Charles Chaplin, em 1936, e essa
1* Vice-coordenadora do Grupo de Pesquisa Imagens, Narrativas e Práticas Sociais (Inarra/CNPq-UERJ) e professora do Departamento de Antropologia da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ). E-mail: aline.almeida@uerj.br
ISSN 1517-5901 (online)
POLÍTICA & TRABALHO
Revista de Ciências Sociais, nº 56, Janeiro/Junho de 2022, p. 155-170
relação perpassa outros filmes ao longo da história do cinema. Para o texto que segue, vale ressaltar a filmografia do cineasta britânico, Ken Loach, dedicado quase que exclusivamente as questões e as transformações do trabalho desde as últimas décadas do século XX. Com especial atenção para o premiado filme “Eu, Daniel Blake”, de 2016 e o atual “Você não estava aqui”, de 2019, em que Loach trata da inserção das novas tecnologias nas relações sociais e no controle sobre o precariado.
No semiárido brasileiro, são as condições precárias do trabalho têxtil, que transformou “a pacata cidade de Toritama” e impulsionou as filmagens de Marcelo Gomes para o documentário intitulado Estou me Guardando para Quando o Carnaval Chegar1, de 2019. Lançado no cinema nacional, o filme, que ganhou destaque na mídia com resenhas e entrevistas, será analisado ao longo do artigo com mais três filmes que apresentam diferentes abordagens e épocas do trabalho têxtil no Nordeste, principalmente, no semiárido2.
A atual Toritama é resultado de pelo menos duas histórias reveladas no filme. A primeira é a do diretor que retorna à cidade após quarenta anos e resolve filmar o que encontra, ansiando por reencontrar a Toritama que conheceu na infância. A segunda é o cotidiano das pessoas da cidade ou que foram morar nela, cuja existência passou a ser dedicada à fabricação de jeans.
Tal dedicação faz parte do desenvolvimento da produção têxtil presente em cidades do interior do Nordeste desde meados do século XIX e fundamenta a escolha dos demais filmes que compõem a pesquisa. Essa pretende discutir como as representações do sofrimento da população do Nordeste são renovadas em torno do trabalho no setor têxtil, envolvendo questões da migração e da constituição e manutenção da família.
Trata-se, então, de uma análise do trabalho no setor têxtil do semiárido que mesmo quando mudam as cores e as texturas dos fios apresentam variações com pontos comuns do que Guy Standing (2014, p. 23) vai definir por precariado: “um neologismo que combina o adjetivo “precário” e o substantivo relacionado “proletariado”, oriundo da precarização social. Essa precarização será uma perspectiva que amplia o olhar para a análise dos documentários sem, entretanto, abordar todas as dimensões em torno do conceito. De acordo com Standing (2014), o precariado é oriundo de um duplo processo que é a precarização econômica resultante da precarização salarial e da flexibilização das estruturas produtivas da Europa no início dos anos 2000, somada à institucionalização da instabilidade no emprego pela transformação do sistema legislativo do trabalho e da proteção social.
Para compreendermos como isso pode ser percebido no setor têxtil no Nordeste, somam-se ao filme já citado, os documentários3: O que eu conto do sertão é isso4, de Roberto Novaes, de 1978; Sulanca5, de Katia Mesel, de 1986; e Tecido Memória6, de José Sérgio Leite Lopes, Celso Brandão e Rosilene Alvim, de 2008.
Os três filmes, assim como o que se passa na cidade de Toritama, têm como principal forma de registro entrevistas com trabalhadores, comerciantes e donos de fábricas do setor têxtil. Tal registro aparece como estratégia da produção de documentários brasileiros dos anos de 1990 e é criticado por ser a repetição de um sistema banalizado pelo jornalismo televisivo. Nele, segundo Lins e Mesquita (2008), temos a dominância do verbalizável em detrimento da observação em planos abertos das situações reais e da interação dos personagens tão caras à clássica etnografia presente no trabalho antropológico. No entanto, a entrevista constitui-se um dos recursos fundamentais da antropologia para esclarecer questões observadas no campo e esse conjunto de filmes permite a percepção de todas as etapas da produção têxtil bem como suas transformações ao longo do século XX. Essas envolvem tanto o início com o plantio do algodão, até a finalização do processo de produção com a utilização dos retalhos e sobras para confecção de estofados e roupas de baixo custo.
O plantio é tema do primeiro filme intitulado O que eu conto do sertão é isso que tem seu argumento baseado em uma pesquisa acadêmica assim como toda filmografia de Roberto Novaes. Gravado no final da década de 1970, o filme apresenta depoimentos de agricultores, de um sindicalista e um latifundiário sobre o fenômeno da migração da produção algodoeira. A pesquisa constatou que os trabalhadores foram expulsos dos grandes latifúndios do sertão paraibano para a periferia das cidades da região em decorrência da modernização e desestruturação da relação de parceria entre latifundiários e trabalhadores.
O segundo filme, intitulado, Sulanca, da cineasta Katia Mesel, tem como foco a vida das costureiras de sulanca na cidade de Santa Cruz do Capibaribe, que fica no interior de Pernambuco. As entrevistas apresentam a história da criação de um tipo de vestuário, nomeado localmente como sulanca. Esse consiste em roupas de baixa qualidade ou feitas de retalhos. Também apresenta a importância da Feira da Sulanca que se insere em um circuito de feiras da região que acontecem em diferentes dias nas cidades de Caruaru e Toritama. Mostra ainda as estratégias que as pessoas traçam para inserir a produção da sulanca em suas vidas como mais uma possibilidade de ganhar dinheiro e autonomia em comparação ao trabalho na agricultura e na indústria têxtil.
O terceiro, Tecido Memória, de José Sérgio Leite Lopes, Celso Brandão e Rosilene Alvim, parte das pesquisas acadêmicas realizadas por José Sérgio Leite Lopes e Rosilene Alvim, na década de 1970 e 1980 com trabalhadores das fábricas têxteis das cidades de Paulista, Escada, Camaragibe e Moreno, localizadas em Pernambuco. Diferente dos outros filmes, as entrevistas desse documentário foram realizadas décadas depois com os trabalhadores já aposentados e têm como marca as lembranças da época em que as fábricas funcionavam. Essas são articuladas na edição a partir não só da história relatada pelos ex-trabalhadores que marcam a importância da memória do trabalho, mas de arquivos como fotografias, jornais, músicas e filmes.
Em função da predominância de entrevistas, no artigo não se apresenta as imagens dos filmes analisados, pois metodologicamente não se trata de uma análise da fotografia do filme. Deste modo, ao longo do texto não se ressaltará quadros do filme em detrimento ao conjunto do conteúdo de áudio e imagem (VANOYE; GOLIOT-LÉTÉ, 2009). As partes destacadas no texto serão apresentadas pela marcação de tempo e trechos de falas.
O trabalhador nordestino será analisado a partir da teoria de padrões culturais no sentido dado pela antropologia americana. Essa também se apropria da produção audiovisual como um campo etnográfico, o que possibilita tratar desses documentários que constroem e reconstroem os modos de ver o trabalho têxtil no semiárido a partir de um olhar antropológico (HIKIJI, 1998; MEAD, MÉTRAUX, 1953). Esse olhar permite mergulhar na produção audiovisual, assim como o antropólogo participa da vida do grupo estudado. É através desse que acompanhamos as mudanças do modo de produção e a tecnologia, as relações sociais e suas assimetrias, os conflitos e as permanências da vida do trabalhador.
Somam-se aos padrões culturais, os estudos sobre identidade regional e regionalismo no Brasil que mostram que as regiões e suas identidades são construções socio-históricas, bem como as identidades nacionais (OLIVEN, 1992). São apreendidas como invenções de intelectuais, artistas, profissionais liberais e burocratas, mas permeiam as representações sociais e o senso comum.
No caso do trabalhador do semiárido brasileiro, a reflexão que Campbell (2017, 2019) faz da travessia de quatro jangadeiros cearenses de Fortaleza ao Rio de Janeiro oferece aspectos interessantes para análise dos filmes. Ele sugere que a história dos jangadeiros inspira características identitárias do trabalhador sertanejo. Jerônimo André de Souza (Mestre Jerônimo), Manuel Olimpio Meira (Jacaré), Manuel Pereira da Silva (Manuel Preto) e Raimundo Correia Lima (Tatá) saíram do sertão para trabalhar no litoral, mas a atividade de pesca na época não era reconhecida pela justiça do trabalho. Então, resolveram ir até a capital do país de jangada, atravessando quilômetros do litoral brasileiro para persuadir o regime estadonovista a reconhecer o trabalho dos pescadores e regular a profissão dentro dos novos programas sociais e leis trabalhistas.
A travessia que ganhou a atenção dos jornalistas e da população teve repercussão internacional e despertou o interesse do cineasta Orson Welles na década de 1940, que resolveu filmá-la. Com isso, Campbell (2017, 2019) argumenta que o protesto dos pescadores teria marcado o imaginário a partir dos relatos dos jornalistas. Eles “invocaram as noções do cearense como um sofredor resistente para enfatizar a natureza estoica dos pescadores” (CAMPBELL, 2019, p. 122), bem como a busca por reconhecimento e direitos aliada à bravura e à força moldadas pela sobrevivência aos longos períodos de seca.
Junta-se a história dos quatro pescadores à narrativa fundadora do regionalismo sertanejo presente no livro “Os Sertões” (2000), de Euclides da Cunha. Grande parte dos intelectuais brasileiros do início do século XX leu a obra, que foi considerada por muito tempo o livro “número um” do Brasil, com mais de 30 edições em português que se sucederam desde a primeira, em 1902, pela Editora Laemmert.
O livro “Os Sertões” foi responsável pela Guerra de Canudos não ter caído no esquecimento na história da Primeira República, como também pela construção de representações sobre o Brasil. Entre essas representações, está a do sertanejo que “de acordo com as circunstâncias oscilaria da fragilidade à força, da monstruosidade ao caráter heroico” (LIMA, 2009, p.109). As condições geográficas presentes na obra seguem o esquema positivista das últimas décadas do século XIX e início do XX que propunha a trilogia – meio, raça, circunstâncias – para a interpretação de fatos históricos. Tais condições impactaram o argumento sobre o isolamento do sertanejo como fator crucial para explicar o antagonismo entre litoral e sertão visto como contraponto entre a sociedade moderna e a sociedade tradicional ao longo do século XX.
Assim, essas construções identitárias do homem do sertão guiam o objetivo principal do texto que é analisar a representação do trabalhador nos documentários diante do debate sobre a política de convivência com o semiárido brasileiro. Essa, segundo Malvezzi (2007, p. 11-12), parte de uma ideia inspirada em outras populações que vivem no gelo, no deserto e em ilhas distantes, que supostamente viveriam bem a partir do desenvolvimento de “culturas de convivência adequadas ao ambiente, adaptaram-se a ele e tornaram viável a vida”.
De acordo com o autor, no semiárido brasileiro não existia uma solução adequada e o ser humano permaneceu sujeito às variações climáticas da região. “O segredo da convivência está em compreender como o clima funciona e adequar-se a ele. Não se trata mais de “acabar com a seca”, mas de adaptar-se de forma inteligente” (MALVEZZI, 2007, p.12). A convivência aparece para discutir o uso político da seca, designado como “indústria da seca”, e o imaginário que reforçou a submissão, o paternalismo e o controle das decisões por determinados grupos (SANTOS et al. 2016, p. 7). Desse modo, são necessários diálogos e ações que possam interferir de forma democrática para que a vida humana possa se adaptar.
No entanto, supõe-se que mesmo com o trabalho de intelectuais, sindicatos e associações da sociedade civil, essa adaptação dos trabalhadores do setor têxtil ao semiárido passa pela manutenção de representações sociais e culturais historicamente associadas à região, como a exploração de mão de obra, o trabalho duro e a baixa remuneração. Para analisar como o trabalho – um dos aspectos da “adaptação” – é representado ao longo dos filmes, a pesquisa trata de temas como família, identidade, os espaços da casa e do trabalho relacionados ao território. É a partir da migração do trabalho rural ao urbano que começamos a análise da produção têxtil.
Por um fio...
Do trabalho rural ao urbano
“Vim morar na cidade porque no Sertão a situação não dá” (1m55s-2m01s), afirma enfaticamente a entrevistada que abre o filme de Roberto Novaes, O que eu conto do Sertão é isso. O relato inicia os argumentos sobre as relações de trabalho que expulsaram o trabalhador da produção de algodão localizada na área rural da Paraíba em busca de melhores condições de vida. O proprietário de terra oferecia ao homem do campo moradia e trabalhos precários sem equipamento de proteção e sem a possibilidade de crescimento, o que beneficiava o proprietário em vários aspectos (17m07s-20m04s).
Como o filme mostra, a migração registrada na década de 1970 para a cidade é impulsionada pelo interesse na criação de gado em detrimento da agricultura familiar e da produção de algodão que tinham ganhos partilhados entre proprietários e agricultores. De acordo com Gonçalves Junior (2011), autores clássicos mostram aspectos da vida sertaneja e do valor social da pecuária bovina, cujos reflexos atravessaram o tempo. Essa constituiu-se como um importante mecanismo de ascensão social para aqueles que, embora homens livres numa sociedade escravocrata, eram despossuídos de bens, e permaneceu no imaginário social com a figura do vaqueiro. Por outro lado, restava às pessoas pobres migrar para as cidades ou orbitar a atividade da pecuária, dedicando-se a trabalhos eventuais ligados a ela e à agricultura, sofrendo com a fome e a falta de água nos períodos de longa estiagem.
Um outro processo de migração anterior também é rememorado nos relatos do recrutador da fábrica Paulista, Inácio, e do trabalhador João Francisco no filme Tecido Memória. De acordo com João Francisco, os capangas dos Lundgren foram conversar com o avô dele, dizendo que tinha trabalho e casa para todos. O avô alegou que tinha muita coisa plantada, mas eles ofereceram espaço para plantar, emprego para todos a partir dos dez anos de idade e as 20 pessoas (18 filhos mais os pais) chegaram em Paulista entre 1905 e 1906 (7m38s-8m44s).
Nesses anos, a Companhia Têxtil de Paulista (CTP) passava por uma fase de expansão e confrontou-se com o problema da falta de mão de obra. Começou a construir uma vila para atrair operários qualificados de Recife e trabalhadores do interior. A empresa, recém-adquirida pela família Lundgren, contava, também, com a migração espontânea e irregular das famílias cuja sobrevivência estava ameaçada nas regiões açucareiras e algodoeiras do estado de Pernambuco (ALVIM; LEITE LOPES, 1990).
Mesmo com a promessa dos Lundgren de melhoria de vida, Dona Rosália e Isabel relembram as condições precárias, como a ausência de equipamento para proteger da fuligem do algodão (45m10s-45m30s) e a extensa jornada que interferia na escola (21m15s-21m40s). Esses aspectos são análogos aos analisados por Lira et al. (2020) e Lira, Gurgel e Amaral (2020) como uma violação ao fundo de consumo e vida dos trabalhadores das atuais Toritama e Santa Cruz.
De acordo com Andrade (2020), precisamos compreender que a migração, além de um processo de êxodo rural e transformação em trabalhadores urbanos, consiste em um mecanismo de manutenção de formas de vida das famílias camponesas. Também devemos considerar a perspectiva dos atores sociais que tornam possíveis as mobilidades, indo além das abordagens “estruturais” que descrevem apenas os processos de desenvolvimento regional e inter-regional. Algo que se encontra também na percepção de Campbell (2019, 2017) sobre a bravura e a força que impelem três homens do interior do Ceará a irem para o litoral para trabalhar na pesca e depois a atravessarem o país em busca por reconhecimento e direitos.
Junta-se às práticas migratórias, a combinação de atividades agrícolas com as não agrícolas como um aspecto vital para compreender a relação entre trabalho e território para os camponeses do semiárido brasileiro. Nos filmes Sulanca e Estou me guardando para quando o carnaval chegar, a inserção no ambiente doméstico da produção de restos de tecidos das fábricas em Santa Cruz do Capibaribe e de jeans em Toritama foram a solução encontrada para inicialmente sobreviver ao longos períodos de seca. Com o tempo, essas produções passaram a fundamentar a vida dessas cidades, consideradas “cidade-empresas” (LEITE LOPES; ALVIM, 2009) que compõem o Polo Têxtil7.
Como relatam os entrevistados: a sulanca é a razão da nossa economia, invejada por todos. Santa Cruz está dando a volta por cima em uma terra semiárida onde a agricultura não ajuda, a pecuária não dá e com a criatividade e a coragem do nosso povo estamos hoje numa boa nesse Nordeste brasileiro” (12m16s-12m31s – parte 3). “O principal daqui de Toritama é o jeans. Se o jeans acabar, 99% de Toritama se acaba.” (55m20s).
Essas produções têxteis foram inseridas na costura de vestuário que “compreendia parte das tarefas domésticas de mulheres, donas de casa” (ESPÍRITO SANTO, 2013, p. 306) das famílias nordestinas que já produziam as próprias roupas. Com o crescimento comercial, a costura deixa de ser para uso próprio ou para um ganho extra à agricultura e se transforma na principal fonte de renda das famílias do Polo Têxtil de Pernambuco. Essas chegam a ter falta de mão de obra, como mostram os atuais entrevistados de Toritama e as imagens das placas “Precisa-se costureiras” (4m22s – parte 2) do filme Sulanca de 1986.
Também nele um empresário reclama a escassez de mão de obra em função da facilidade de financiamento de máquinas de costura. Conta que desloca a produção para outras cidades que ficam a 40 e 60 km de Santa Cruz e em sítios para atingir a meta dos 30 mil calções. Em uma cena do filme sobre Toritama, o dono da facção8 afirma que o empregado dele é procurado por ser bom trabalhador e reforça a necessidade de mão de obra que parece atravessar não só essas cidades, mas os quarenta anos entre o primeiro documentário e o último.
A carência de mão de obra suprida pela área rural da cidade é apresentada em uma cena do documentário de Katia Mesel com uma costureira em meio a arbustos. Nesses espaços rurais e periféricos das cidades, a costura transforma-se em uma opção de ocupação para as mulheres com impacto na economia e nas relações familiares.
Já o filme Estou me guardando para quando carnaval chegar, ao tratar da zona rural de Toritama, mostra que no sítio de Dona Adalgisa a criação de galinha foi substituída pelas máquinas de costura. O galinheiro passou a ser usado como depósito de tecidos e “apenas uma galinha de estimação permanece no lugar e o nome dela é Sara Jane” (34m41s) que tem um ninho com restos de jeans. Como afirma o narrador e a sequência de imagens de gaiolas que se fecha com um homem trabalhando no jeans, “O mundo rural é engolido por um mundo novo. O mundo industrial que só se expande.”
Essa valorização da vida rural voltada para a agricultura também aparece no documentário O que eu conto do sertão é isso, filmado na década de 1970. O agricultor compara a vida na cidade e os riscos inerentes a ela (31m25s-32m04s). No entanto, a inserção da produção têxtil nas cidades do interior do Nordeste transformou a necessidade de sobreviver às secas. Nessas e em seus arredores, a vida de centenas de trabalhadores passou a não mais depender das condições ambientais semiáridas, mas do fluxo do mercado e da economia nacional.
A origem
A primeira inserção do trabalho têxtil na região nordeste do Brasil é tratada em Tecido Memória pelos entrevistados que rememoram o recrutamento das famílias para as fábricas do setor em Pernambuco no início do século XX, mas a produção familiar de décadas depois é lembrada no filme Sulanca, de Katia Mesel e é discutida na análise de Wecisley Espírito Santo (2013). Nela, as versões sobre o início da sulanca relatadas pelos diferentes interlocutores da etnografia parecem constituir um “mito de origem” que assume um tom heroico por ter transformado a vida social da região. Essa constituição também aparece no documentário de Katia Mesel quando uma senhora que afirma ser a primeira sulanqueira conta que aos 11 anos de idade começou a fazer cobertas para vender.
Do mesmo modo que na etnografia de Espírito Santo (2013), os relatos ao longo do filme mostram uma imprecisão a respeito do surgimento da sulanca que varia entre as décadas de 1950 e 1960. Essas versões disputam estrategicamente o “enquadramento da memória” (POLLAK, 1992, p. 7) social para se tornar oficial a partir de argumentos mobilizados sob a forma de uma “memória coletiva” (HALBWACHS, 1990) que tenta se legitimar.
Nesse processo de legitimação se forma a “memória oficial que uma sociedade majoritária ou o Estado desejam passar e impor” (POLLAK, 1989, p. 9), como na fala sobre a sulanca de Santa Cruz ser “a razão da nossa economia, invejada por todos” ou de “Toritama ser a capital do Jeans”. São afirmações que apagam as resistências da sociedade civil ou dos trabalhadores explorados que tornaram possível a produção têxtil. Isso reforça, como nos mitos que são compartilhados publicamente, os valores e os significados da produção para os trabalhadores têxteis dessas cidades.
De acordo com Lima (1999), a flexibilidade da produção foi possibilitada pela abertura com pouco capital de unidades produtivas compostas de um único trabalhador ou familiares reunidos na mesma casa. A partir de financiamentos, como os mencionados no filme Sulanca, para compra de máquinas, o trabalho domiciliar começou a se instituir na produção de partes da roupa ou no acabamento de peças.
Apesar do direcionamento da maioria da população para o investimento na costura, os depoimentos de três entrevistados negam essa importância. Dois desses depoimentos são de Toritama. Dona Adalgisa, que nasceu e cresceu na zona rural de Toritama, quando questionada sobre o porquê de não trabalhar no jeans, afirma de forma orgulhosa: “Eu não. Deus me livre. Eu sou agricultora.” (34m08s) Já o guardador de rebanhos, Canário, reflete sobre o trabalho com jeans: “Antigamente, a gente vivia assim mais de agricultura. Criar o gado, ovelha, cabra. Ai, depois do jeans mudou muito as coisas porque o pessoal hoje em dia procura investir mais em ganhar muito.” (40m08s-41m14s).
Também é interessante notar que nos primeiros trinta minutos dos oitenta e cinco do filme Estou me guardando para quando o carnaval chegar nenhum dos trabalhadores têxteis entrevistados são nomeados. O primeiro nome enunciado ocorre quando o narrador vai até a zona rural e conhece Seu João que “é a única pessoa em Toritama que ainda tem tempo para olhar para o céu e esperar a chegada da chuva” (31m50s). Essa marca de iniciar a nomear os entrevistados pelo agricultor, apresentada pela narração e edição do filme, pode ser um anseio do realizador em encontrar o modo de vida de Toritama de 40 anos atrás. Talvez, uma forma de reforçar a condição dos trabalhadores têxteis como unidades desvalorizadas ou substituíveis dentro do ciclo produtivo do jeans ou da sulanca e valorizar os agricultores.
O enaltecimento dos valores do homem do campo pode se vincular à produção e à vida em família que se assentam na produção têxtil com novos formatos. Esses ocorrem igualmente com o fechamento das fábricas, o desemprego e a flexibilização dos contratos de trabalho, narrados pelos entrevistados de Tecido Memória.
Anos depois, os trabalhadores oriundos do processo de flexibilização dos contratos de trabalho constituiriam parte da categoria de uma geração mais velha de ex-trabalhadores formais que por falta de alternativa formariam o precariado do semiárido brasileiro, comparável à análise que Standing (2014) faz da Europa. A outra categoria é a de jovens que têm o precariado como primeiro emprego ou possibilidade de renda em meio à rotina diária, como no caso das mulheres donas de casa. Então, diferente do risco que poderia ocorrer com a saída da esfera familiar rural e “aprender o que é ruim” ou “vagabundar”, os três documentários mostram a participação das diferentes gerações na divisão do trabalho têxtil como um valor.
O trabalho em família
Nas lembranças de Tecido Memória, as fábricas de Paulista contavam com o trabalho de crianças acima de dez anos de idade que realizavam atividades na esfoliadeira mais de doze horas por dia. Já na feira do filme Sulanca, elas aparecem carregando mercadorias em carrinhos de mão. Essa participação na feira é tratada por uma mãe que diz não ter argumentos para forçar a filha a estudar porque os ganhos da filha com a sulanca são maiores do que os de pessoas com nível superior. Uma questão que também é reforçada pela representante de uma escola: “O maior problema das escolas de Santa Cruz é o problema de falta de professores porque os professores preferem fazer sulanca do que ensinar e a frequência dos alunos nas aulas.” (0m31s-0m55s - parte 3).
Essa utilização do trabalho de crianças e adolescentes, no entanto, é vista como algo formador e como a possibilidade de reprodução familiar que protege do crime e da marginalidade, do “que é ruim” da vida na cidade. Para os entrevistados da fábrica de Paulista, o trabalho durante a infância que compõe as suas histórias de vida não é visto como algo inteiramente negativo por estarem imbuídos de “uma ideologia na qual o trabalho faz parte de sua própria identidade social” (ALVIM, 2001, p. 217). O trabalho infantil e as extensas jornadas que recebem um tom crítico da narração de Marcelo Gomes, em Estou me guardando para quando o carnaval chegar, tendem a desconsiderar os pontos de vistas dos próprios trabalhadores. Uma das costureiras de Toritama, ao falar do valor e da intensidade do trabalho regulado pelos tipos e quantidades de peças, argumenta:
Quem pensa que a vida da gente é ruim está enganado porque não é todo mundo que tem o privilégio de ter saúde, trabalhar, ganhar seu dinheiro e chegar sábado e domingo ter uma feira dentro de casa. Muita gente que eu vejo passar aí na televisão, da África morrendo de fome. Os países aí fora em guerra e aqui onde a gente mora não tem isso. Isso é uma vida ruim? Não é nada. Ruim é para quem morre. (20m57s-21m50s)
Essa autoexploração experimentada como algo positivo pelos trabalhadores têxteis do jeans e da sulanca pode ser percebida como parte de uma estratégia da economia familiar (ESPÍRITO SANTO, 2013, p. 121), mas principalmente como reprodução do imaginário sobre o trabalhador nordestino associado à força e à bravura, como defende Campbell (2017, 2019).
Contudo, a avaliação positiva surge como no relato acima em comparação com situações de maior escassez e também em contraste com as histórias familiares e de vidas que se depararam com longos períodos de sede e fome. Para superá-las, a estratégia é ter a participação dos diferentes membros na produção e comercialização de vestuário. Essa é apresentada na fala de dois casais sobre a divisão do trabalho nas Feiras da Sulanca em Santa Cruz do Capibaribe e em Caruaru, realizada pelos homens, enquanto as mulheres gerenciam a atividade das costureiras e a confecção das roupas. Uma delas insere o trabalho doméstico nessa divisão como uma questão de gênero:
Acho que o problema daqui é o homem não se sentir...A atividade doméstica não é só da mulher. A mulher, além de trabalhar fora, ser empresária, dirigir uma confecção, ainda chega em casa e não tem doméstica. (5m31s-06m14s – parte 2)
Segundo os documentários, a comercialização do jeans e da sulanca perpassa uma jornada que é de produção e reprodução familiar, que começa por volta de seis e sete horas da manhã e vai até dez da noite junto aos dias de feira nas cidades do polo têxtil. “Para quem não conhece, isso aqui é rojão” (55m26s), afirma a entrevistada de Toritama que comparou a vida dela com os países em guerra. Uma afirmação que também reelabora a força e o caráter heroico do sertão euclidiano. Ao mesmo tempo, essa afirmação é seguida pelas imagens do cansaço que mostram pessoas dormindo (55m58s) em meio às mercadorias da feira. Algo também presente na feira do filme Sulanca (8m14s-8m42 - parte 3), gravado cerca de quarenta anos antes. Uma força que encontra meios de subsistência para manutenção de modos de vida.
Um outro aspecto da divisão do trabalho é revelado pelas imagens de Toritama que mostram crianças, jovens e velhos em meio à produção de jeans. Os primeiros circulam, tentam brincar com os artefatos da costura e são retirados: “João Antônio, vai brincar em outro setor. Vá! Ai, não! Já foi? Tchau!” (22m04), comanda uma mãe. Os segundos trabalham em uma facção, ouvindo música alta e dançando (42m58). Os últimos, a geração mais velha, aparecem em uma sequência de imagens (45m03s até 45m52s) ao lado de crianças trabalhando na última fase da produção, a limpeza do jeans na calçada, que quarenta anos atrás na memória do narrador “era o lugar de se colocar a cadeira de balanço para esperar o tempo passar. Aqui, na terra do jeans, calçada é o lugar aonde se passa o tempo trabalhando.”
Essa presença e participação das diferentes gerações no trabalho têxtil que se realiza em ambiente doméstico, apresentada nos documentários, é discutida pelos interlocutores do campo etnográfico de Espírito Santo (2013, 2015). Esses mostram uma diferença entre o trabalho com e para a família. O primeiro constitui-se em arranjos produtivos que se fundamentam em uma oposição entre os da família e os de fora.
Em Estou me guardando para quando o carnaval chegar, além de uma busca de autonomia e liberdade pelo trabalho por conta própria, evita-se problemas com o patrão por parte dos empregados de ter que cumprir um horário e ganhar um mesmo salário independentemente da quantidade de trabalho. Da mesma forma, evita-se a justiça trabalhista por parte dos donos de fabricos e facções. Trabalhar com a família seria uma defesa contra o trabalho formal, como o do filme Tecido Memória. Nele, os trabalhadores contam as lutas por direitos e, nesse contexto, foram classificados como os que gostam de botar questão (LEITE LOPES, 1988).
Portanto, o pertencimento ao grupo familiar frequentemente constitui uma condição de possibilidade para trabalhar junto com a família ou até um dever e obrigatoriedade no sentido do binômio ajuda/exploração familiar (ESPÍRITO SANTO, 2013). Essa constitui não só uma herança da vida rural, mas uma percepção também de que a vida de cada um dos membros da família pertence um ao outro. Como discutidas por Carsten (2004) e Sahlins (2013), são vidas intrínsecas ou apreendidas em momentos limites numa “mutualidade de ser”. Essa mutualidade seria sentida por efeitos enigmáticos dos laços de parentesco que ocorrem quando uma pessoa sofre o que acontece com outra em momentos de doença e morte, no caso do Nordeste, muitas vezes ocasionadas pela fome e sede.
Um outra condição de possibilidade de trabalho com a família é aberta para aqueles que se consideram da família como vizinhos e amigos, diferentemente daqueles que são considerados os de fora e percebidos como potencialmente perigosos ou em que não se pode confiar. Essa distribuição social do trabalho na vizinhança institui “relações multiplex”, que incluem aspectos de parentesco, família, vizinhança, amizade, afinidade, por vezes, religião e, evidentemente, trabalho (ESPÍRITO SANTO, 2020).
O trabalho para a família também significa que os rendimentos financeiros proporcionados pelo trabalho devem deixar algo de valor patrimonial. Diferente do investimento na própria empresa ou em ganhos imateriais, o objetivo é proporcionar algo perene como um terreno ou uma casa que garanta estabilidade no futuro, o que contrasta com a tendência idealizada de expansão da empresa com a contratação de profissionais e reinvestimento dos lucros.
Essas dinâmicas familiares, no entanto, não são peculiares do semiárido. A discussão apresentada em alguns artigos da revista Entrepreneurship Theory and Practice, de 2003, mostra que a as relações familiares, e a variável família, precisam ser inseridas nas análises das grandes empresas (DYER JR, 2003) que também apresentam problemas semelhantes aos da produção de sulanca e jeans. Entre elas, a manutenção de pessoas da família pouco capacitadas em relação aos profissionais do mercado (DYER JR, 2003), bem como as obrigações e deveres instituídos como fundamento moral para os membros familiares em relação ao demais profissionais da empresa, que seguem a lógica amoral dos mercados (STEWART, 2003, p.385).
No entanto, nos documentários essa lógica amoral é apropriada pelas famílias de trabalhadores do setor têxtil que adaptam a reciprocidade a curto prazo dos mercados formais para a ordem moral do parentesco como no relato em que a costureira de Toritama chama o genro de “cobrinha”, mas logo depois diz que ele é “trabalhador demais” (8m20s). Essa ordem moral em que a reciprocidade é a longo prazo também aparece na etnografia de Espírito Santo (2013) uma vez que se pensa em uma produção do trabalho com e para a família que resulte em bens e desenvolvimento para seus membros.
A discussão ressalta ainda que a inclusão do parentesco espiritual (não consanguíneos ou vicinais) na produção familiar é uma estratégia para a formação de pequenas empresas no setor informal das áreas pobres do mundo. Essa dinâmica de sistemas de parentesco, incluindo as formas espirituais de afiliação e negócios, – especialmente no setor informal – foi moldada por forças macroestruturais, como a pobreza e o desemprego. Esses negócios oferecem teoricamente benefícios para ambos – custos trabalhistas e proteção social – no nível do grupo familiar estendido como única forma para obter algum tipo de trabalho e renda (PEREDO, 2003).
Considerar a variável família também significa incorporar nas análises o trabalho de manutenção e cuidado na esfera familiar em sua maioria feito por mulheres. Como enfatiza a recente literatura sobre o tema (LEÃO et al., 2020; BRIGUGLIO et al., 2020), os cuidados com a casa e a alimentação são invisibilizados, mas mantêm a possibilidade da vida e da reprodução social. Esses são pontuados apenas pela empresária da sulanca de Santa Cruz do Capibaribe, citada acima, que indaga a participação do companheiro também nas atividades da casa.
Assim, a solução encontrada pelos trabalhadores do semiárido para se “adaptar” e “conviver”, como preconiza a política de convivência com o semiárido brasileiro (MALVEZZI, 2007), se insere em representações sociais associadas à região. Nela, os aspectos precários do trabalho, como a falta de segurança e os direitos trabalhistas de descanso, lazer e férias remuneradas, exigem a força e a resistência que moldam o imaginário sobre o trabalhador nordestino (CAMPBELL, 2017, 2019) e encontraram meios de reprodução para se manterem ao longo dos anos.
Considerações
Da mesma forma que as pontas de linhas do final da costura são aparadas ou reutilizadas no processo de produção têxtil, as considerações do artigo servem para delimitar a finalização da pesquisa sobre o trabalho precário nessa produção audiovisual. Essas também são orientadas pelos padrões de continuidade da produção local analisadas ao longo do artigo que não esgotam a complexidade da manutenção da exploração e a precariedade do trabalho no Nordeste, em especial do setor têxtil, mas almeja contribuir para a reflexão sobre as condições em que esse se construiu como uma saída para a “indústria da seca”.
O setor analisado através dos quatro documentários, que têm a família como unidade de produção ou fornecedora de mão de obra, ganha contornos diferenciados ao longo do século XX: primeiro as grandes fábricas de tecelagem que tiveram entre dez e quinze mil trabalhadores formais e mais de oito mil trabalhadores informais. Depois a sulanca “inventada” de acordo com as várias versões do “mito de origem”, dos diferentes interlocutores do documentário e do campo etnográfico de Espírito Santo (2013), que incorpora a lógica do sistema capitalista de produção. Nessa, a reutilização de materiais descartados da produção industrial é transformada pela população pobre em um novo ciclo produtivo como um mecanismo de manutenção da circulação de objetos, das formas de vida e das condições sociais e históricas de precariedade que a criaram.
A chegada a esse ciclo das peças de jeans, que corresponde a vinte por cento da produção do jeans nacional com a fabricação de vinte milhões de peças anuais por mais de 100 mil pessoas, reafirma as condições de exploração. Um aspecto relevante para o futuro é a análise continuada dos problemas sociais e de saúde dos trabalhadores dessa produção que contemple o desenvolvimento das gerações mais novas, que participam das feiras, da limpeza do jeans ou acompanham a produção familiar sem equipamento de proteção, e as consequências nos mais velhos que seguem como força de trabalho ativa.
Na análise da saúde do trabalhador na região do Polo Têxtil, Lira et al. (2020) e Lira, Gurgel e Amaral (2020) constatam uma superexploração da força de trabalho expressa pela intensificação e extensão das horas trabalhadas, pautadas pela quantidade de peças encomendadas. O desgaste dos trabalhadores, percebido a partir dos relatos de dores leves, pode atingir tanto a capacidade biológica e psíquica, mas nem sempre resulta de imediato no aparecimento de uma patologia. O pagamento por peça, que molda a velocidade e o prolongamento da jornada, pode ser comparado ao de corte de cana que resultou em casos de morte por exaustão. Esse associado à falta dos equipamentos de proteção, manutenção das máquinas e desproteção social e trabalhista, tende a violar o fundo de vida dos trabalhadores e esgotar a força de trabalho precocemente.
A avaliação permanente das condições sociais da produção do Polo de Confecções do Agreste Pernambucano pode evitar problemas futuros para a população e para região como um todo, antecipando e protegendo a população da necessidade de migração para cidades ou para o sul do país, bem como da associação do sofrimento às formas de vida e trabalho. Tal sofrimento, assim como os danos físicos, não são ocorrências involuntárias, mas historicamente construídas. Vale lembrar que a fome e a sede causadas pelos longos períodos de estiagem associadas “à indústria da seca” são formas de atribuir à natureza problemas políticos, sociais e culturais (MALVEZZI, 2007).
Algumas ações de melhoria das condições de trabalho realizadas pelas associações das feiras são apresentadas nos resultados da pesquisa de Espírito Santo (٢٠١٣), mas a análise dos quatro documentários permite perceber que padrões e modos de vida associados à resistência e ao sofrimento persistem ao longo de diferentes gerações de trabalhadores do interior do Nordeste. Segundo Leite (2020), essa capacidade de articulação de trabalhadores fortalece o reconhecimento e a identificação enquanto pessoas que vivem do trabalho e possuem interesses comuns, principalmente, as ações contra a precarização do trabalho, que se transformou em precariedade da vida.
Esse conjunto de documentários realizados em diferentes cidades e épocas por diferentes diretores apresentam questões sociais, culturais e econômicas do trabalho têxtil que revelam aspectos interessantes da precarização do trabalho relacionado às representações sociais sobre o Nordeste. Ao documentarem o trabalho desse setor, os filmes não mostram a estética da seca e da aridez do sertão nordestino em imagens que costumamos ver na grande mídia seja em ficções, telenovelas e cinema, seja em documentário ou jornalismo, mas reelabora esse estigma nas expressões humanas acerca do trabalho. Nesse sentido, a política de convivência de adaptação ao ambiente semiárido converte-se em uma adequação da solução vinda do setor têxtil que viabiliza a continuidade de formas de vida precárias, submissas e exploradas.
As caveiras de animais, o solo seco, os galhos desfolhados da vegetação, a família de retirantes caminhando à beira da estrada ou em meio à caatinga não estão nessa produção audiovisual, mas sim o trabalho contínuo de 14 horas de jornada, de luta contra a fome e escassez inerentes à vida no semiárido. Com isso, fica em aberto a discussão sobre os interesses econômicos e políticos que estão por detrás das representações sociais que exaltam a força, o heroísmo e a resistência associadas ao Nordeste, em especial, à região semiárida brasileira mantenedoras de modos de vida.
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Recebido em: 10/05/2021
Aceito em: 22/09/2021
1 Disponibilizo os links dos filmes no Youtube conforme os apresento. O documentário de Marcelo Gomes é pago no Youtube, mas também está na Netflix: https://www.netflix.com/watch/81180842?trackId=13752289&tctx=0%2C0%2C65cf305f-dc61-42c3-8689-1546004c92df-37579801%2Cc9ba5625a95c7d7b64cd980574ef1f0399bdc62d%3A3c03655e88ed8166f826b76026d474bc690d80ed%2C%2C. No Youtube: https://www.youtube.com/watch?v=vpd1H_GdOqk
2 A pesquisa, financiada pelo Programa de Capacitação Institucional do CNPq (PCI-CNPq), foi parte do plano de trabalho Imagens do Semiárido: produção, recepção e difusão que contemplou pesquisas, eventos e ações para o Instituto Nacional do Semiárido.
3 Os títulos dos filmes estarão em negrito.
4 Link de O que eu conto do sertão é isso: https://www.youtube.com/watch?v=M2L3iUeW0LA&t=8s
5 Links de Sulanca são, parte 1: https://www.youtube.com/watch?v=VJgPRQ4UVmM; parte 2: https://www.youtube.com/watch?v=LzOzj7pIYyY; parte 3: https://www.youtube.com/watch?v=efNV4E6WVHY
6 Link de Tecido Memória: https://www.youtube.com/watch?v=MRsQU4Pt-QI
7 Os nomes “Polo da Moda de Pernambuco” ou “Polo de Confecções do Agreste Pernambucano” substituiu “Feiras da Sulanca” realizadas em Santa Cruz do Capibaribe, Toritama e Caruaru como resultado de ações por parte do empresariado local para se dissociar da “sulanca” que remete à baixa qualidade. Procurava-se, com isso, passar uma imagem de modernidade (ANDRADE, 2020, p. 53).
8 A facção é uma unidade de produção com uma ou mais máquinas de costura que trabalha com detalhes da peça para os fabricos e confecções que são unidades maiores (ESPÍRITO SANTO, 2020, p. 87).
A DESIGUALDADE SALARIAL NA PERSPECTIVA
DOS DIREITOS HUMANOS:
a questão do gênero em pauta
WAGE INEQUALITY FROM
A HUMAN RIGHTS PERSPECTIVE:
the matter of gender in issue
_____________________________________
Ianne Paulo Macedo1*
Ana Hilda Lima do Vale**
Resumo
A disparidade salarial e a segregação ocupacional são fenômenos característicos das relações de gênero na história da sociedade brasileira e do mundo. Dessa forma, o estudo versa sobre a problematização do seguinte questionamento: o que explica a permanência da disparidade salarial e da segregação ocupacional feminina na sociedade brasileira, apesar dos avanços constitucionais? Para responder, foi utilizado como recurso metodológico a abordagem dedutiva, com base na pesquisa bibliográfica, usando como base os princípios resguardados pelos direitos humanos e a discussão sociológica sobre gênero. Por sua vez, o objetivo geral foi analisar os problemas enfrentados pelas mulheres no mercado de trabalho que buscam muitas vezes, através desse, uma forma de empoderamento e autonomia. Portanto, o artigo é de grande relevância por possibilitar debates sobre o tema, além de contribuir com a literatura sobre gênero e direitos humanos, bem como no fomento da criação de políticas públicas e projetos de monitoramento que visem a promover ao menos a equidade para que outrora seja conquistada a efetividade.
Palavras-chave: Direitos Humanos. Desigualdade Salarial. Mulher. Trabalho.
Abstract
Wage disparity and occupational segregation are characteristic phenomena of gender relations in the history of Brazilian society and the world. Thus, the study deals with the questioning of the following question: what explains the permanence of the wage disparity and female occupational segregation in Brazilian society, despite the constitutional advances? In order to answer, the deductive approach was used as a methodological resource, based on bibliographic research, based on the principles protected by Human Rights and the sociological discussion on gender. In turn, the overall objective was to analyze the problems faced by women in the labor market who often seek, through it, a form of empowerment and autonomy. Therefore, the article is of great relevance for allowing debates on the theme, in addition to contributing to the literature on gender and human rights, as well as in promoting the creation of public policies and monitoring projects, which aim to promote at least equity so that once effectiveness is achieved.
Keywords: Human rights. Wage Inequality. Woman. Job.
1*Professora e pesquisadora. Doutoranda em Sociologia pela Universidade Estadual do Ceará, mestra em Antropologia e graduada em Ciências Sociais pela Universidade Federal do Piauí. E-mail: iannemcd@gmail.com
** Pesquisadora e socióloga. Mestra em Sociologia e graduada em Ciências Sociais pela UFPI. E-mail: anahilda.l.vale@gmail.com
ISSN 1517-5901 (online)
POLÍTICA & TRABALHO
Revista de Ciências Sociais, nº 56, Janeiro/Junho de 2022, p. 171-184
Introdução
O artigo em questão versa sobre a temática da desigualdade salarial, especificamente entre homens e mulheres, visto que, mesmo diante dos inúmeros direitos que as mulheres já conquistaram ao longo das décadas, desde as primeiras manifestações de emancipação do direito ao voto e ao emprego remunerado, do início do século XX até os dias de hoje, ainda existe a desvalorização da mulher no que se refere ao mercado de trabalho.
Portanto, ao analisar a divisão sexual do trabalho e a questão da discriminação da mulher, deve-se considerar a polarização existente no mercado de trabalho nacional que se revela na segmentação dos vínculos empregatícios em termos de nível de produtividade e nível de remuneração.
Nesse segmento, historicamente existe uma desigualdade de gênero que se expressa no salário médio contratual, e que, mesmo com os reajustes ocorridos ao longo dos anos, essa disparidade persiste em tempos atuais, com base nos dados da Relação Anual de Informações Sociais (RAIS)1 do Ministério do Trabalho e Emprego.
Ainda com base nos dados da RAIS, a diferença entre a remuneração recebida pelos homens e a recebida pelas mulheres diminuiu levemente na década passada: em dezembro de 2003, o salário médio das mulheres correspondia a 80,3% do salário médio dos homens, enquanto em dezembro de 2009 essa proporção correspondia a 83,3%. No fim de 2015, as mulheres ganhavam, em média, 16,1% menos do que os homens (R$ 2.292,70 contra R$ 2.734,00). Destaca-se, contudo, que o diferencial era ainda mais elevado nos estabelecimentos industriais (onde as mulheres ocupavam 30,6% dos postos de trabalho): elas recebiam apenas 66,1% da remuneração média dos homens em 2015 (INSTITUTO ETHOS, 2015).
Da mesma forma, com relação ao ano de 2015, apenas 28,2% dentre as quinhentas maiores empresas operando no Brasil (das quais 60% tinham mais de mil funcionários) adotavam alguma política para promover a igualdade de oportunidades para homens e mulheres, tais como: programa especial para contratação de mulheres, metas de participação feminina em cargos de direção e gerência, qualificação para exercer cargos de direção e gerência, redução da desigualdade salarial e conciliação entre trabalho e família. Em relação à presença de mulheres em níveis hierárquicos, 35,1% das empresas tinham medidas destinadas à gerência e 31,6% para o quadro executivo, mas parcela bem menor (13,7% e 12%, respectivamente) tinha uma política perene e com metas definidas para esses cargos (INSTITUTO ETHOS, 2015).
Acrescenta-se a essas informações os dados divulgados de uma pesquisa realizada pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística do Brasil (IBGE) 2, no ano de 2019, na qual foi constatado que as mulheres brasileiras ganham menos do que os homens em todas as ocupações selecionadas na pesquisa. Mesmo com uma queda na desigualdade salarial entre 2012 e 2018, as trabalhadoras do sexo feminino ganham em média 20,5% menos que os homens no país.
Para complementar esses dados, o órgão internacional do Fórum Econômico Mundial (WEF, na sigla em inglês) emitiu um relatório com base em pesquisas realizadas também em 2019 e anos anteriores, no qual apontou que o mundo avançou pouco na igualdade de gênero e que menos mulheres têm entrado no mercado de trabalho3. Além disso, a participação delas na política e em cargos privados sêniores ainda é inferior à masculina, em setores emergentes de tecnologia, como o de Inteligência Artificial, ainda é irrisória. Diante dessa realidade, as conclusões do relatório traçaram um panorama pouco animador da igualdade de gêneros em 149 países, sob os aspectos políticos, econômicos, educacionais e de saúde.
Por sua vez, o Brasil não está bem-posicionado no ranking do relatório: caiu cinco posições, para a 95ª, porque “o abismo entre gêneros está em seu maior nível desde 2011”, diz o WEF. Os motivos são vários para justificar as persistentes disparidades em participação e oportunidades econômicas, mas, sobretudo, o peso maior para os impasses que inviabilizam a ascensão das mulheres está relacionado à demanda familiar e à dupla jornada que a mulher enfrenta. Logo, as hipóteses levantadas consideram que esses fatores podem comprometer a efetividade, o desempenho e a assiduidade.
Diante do exposto, o artigo almeja problematizar o seguinte questionamento norteador do estudo: quais são os impasses construídos de modo sociocultural que justificam a desigualdade salarial de gênero? Desse modo, de forma a atender à pergunta central do estudo, a hipótese trabalhada foi a de que é necessário a criação e monitoramento de políticas públicas que objetivam apoiar a superação desse problema. Com isso, é possível encontrar recursos que viabilizam a produção de informação e análise quanto às razões que são mantidas nas disparidades salariais entre homens e mulheres, considerando que a maior parte da população é composta por mulheres que participam ativamente da economia.
À vista disso, o objetivo primário busca analisar o problema da desigualdade salarial de gênero em face das condições e principais problemas enfrentados pelas mulheres no mercado de trabalho.
Posteriormente, como objetivos secundários, há primeiramente o interesse em discutir o problema da desigualdade de gênero sob a perspectiva da Declaração Universal dos Direitos Humanos, com a finalidade de apresentar as legislações e todo o aparato legal que transversa essa discussão, bem como as políticas públicas e sociais que resguardam (ou deveriam) a igualdade de direitos de todos sem nenhuma discriminação. Posteriormente, foi pretendido explanar sobre os percalços vivenciados pelas mulheres, no que concerne a sua entrada e ascensão no campo de trabalho que ainda é tão dominado pela massa estereotipada masculina.
Assim, na busca de compreender sobre a temática apresentada, este estudo teve como base de análise o método dedutivo, realizado a partir de pesquisas bibliográficas. Para Gil (2008), a pesquisa bibliográfica permite investigar de modo amplo os fenômenos “utilizando-se das contribuições de diversos autores sobre determinado assunto”, através de fontes como livros, revistas acadêmicas, artigos, websites, dentre outros (GIL, 2008, p. 51). Posto isso, a pesquisa é de produção qualitativa, cuja investigação concentra-se nos aspectos descritivos da temática.
Destarte, o estudo foi estruturado da seguinte forma: no primeiro tópico, intitulado “Direitos Humanos e Igualdade de Gênero”, será discutida a fundamentação legal sobre o tema pesquisado. Já no segundo tópico, “Impasses socioculturais enfrentados pelas mulheres no mercado de trabalho”, são abordados os principais problemas vivenciados pelas mulheres e as convenções que buscam legitimar a desigualdade salarial.
Portanto, a relevância deste artigo se apresenta na possibilidade de contribuir com a produção bibliográfica sobre o problema da desigualdade salarial entre os gêneros, além de fomentar a criação de políticas públicas e projetos de monitoramento que visam a promover a equidade e para que outrora seja conquistada a tão sonhada igualdade.
Direitos Humanos e Igualdade de Gênero: os embates da efetividade normativa
Em tempos de informações líquidas, parafraseando Bauman (2003), ao evidenciar a velocidade das transformações de valores, conceitos e informações na vida do ser humano moderno, atualmente se torna até um tanto quanto arriscado a tentativa de falar sobre os direitos humanos, especialmente no Brasil. Isso porque tal discussão remete imediatamente a uma infinidade de problemáticas, principalmente de cunho partidário, nas quais há a associação direta aos discursos e comportamentos políticos e ideológicos.
Diante dessa realidade, faz-se necessário lembrar que historicamente os direitos humanos como parte dos direitos inerentes (básicos) ao ser humano, assegurando o respeito, a dignidade e a liberdade de todos, surgiu ainda no século XVIII durante o período da Revolução Francesa.
Posteriormente, em 1791, com a redação da Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, se consolidou a base para a Declaração Universal dos Direitos Humanos em 1948 pela ONU (Organizações das Nações Unidas), no qual atualmente 196 países são signatários.
Entretanto, antes mesmo desse momento, Kant, quando escreveu em 1795 a obra “A paz perpétua”, registrou que seria importante que as grandes potências mundiais se unissem para criar um organismo internacional em prol da paz, o que nos remete à própria ONU. Ressalta-se que a ONU foi criada após o término da II Guerra Mundial, tendo como objetivo principal garantir a paz no mundo através do bom relacionamento entre os países.
Contudo, embora não tenha atingido seus objetivos em alguns casos, a instituição apresenta fundamental importância na tentativa de amenizar as desigualdades sociais no mundo, que estão para além das questões econômicas, ou seja, inclui-se o enfretamento ao racismo, patriarcado e homofobia, assim como de apoio às causas indígenas e às relações de igualdade e equidade de gênero em geral.
Para adentrar na discussão de gênero e na desigualdade salarial entre homens e mulheres, é necessário relembrar o processo de desenvolvimento do capitalismo, que ganhou força no século XIX e refletiu diretamente na mão de obra feminina. A expansão econômica e tecnológica fez com que boa parte da mão de obra se transferisse para as fábricas. Ainda assim, a perspectiva de efetividade dos direitos, tanto políticos, econômicos e sociais, como o das mulheres, engatinhou lentamente.
A exploração do trabalho feminino permaneceu por um longo tempo. Eram comuns as jornadas entre 14 e 18 horas e diferenças salariais acentuadas. A justificativa baseava-se no fato de o homem trabalhar e sustentar a mulher. Logo, não havia necessidade de a mulher ganhar um salário equivalente, ou superior ao do homem.
Posteriormente, em virtude das guerras que ocorreram na primeira metade do século XX, muitas mulheres assumiram as empresas e negócios de suas famílias, além da posição do homem na condução do lar. Isso aconteceu, em grande medida, não apenas durante os anos de conflito, mas também posteriormente em razão do grande número de mortes e de acidentes que deixavam os homens inaptos para o trabalho.
Entretanto, Soihet (1997) tem uma análise mais otimista sobre esse momento:
Em 1920, dá os seus primeiros passos um movimento de mulheres proeminentes, literatas, vinculadas à elite, com educação superior que queriam emancipação econômica, intelectual e política. Estas conseguiram vitórias em terrenos como o trabalho feminino, a saúde, educação e direitos políticos, garantindo a cidadania para a mulher. (SOIHET, 1997, p. 178).
Apesar de a autora identificar “ganhos de terreno para as mulheres” (SOIEHETE, 1997, p. 179), vale lembrar que mesmo após os processos de avanços e conquistas, desde a Primeira Onda Feminista no século XIX – na qual as mulheres foram reivindicar os seus direitos nas ruas dos EUA e do Reino Unido, insatisfeitas com o seu estado de submissão e opressão – até os dias de hoje ainda são tipificados os papéis e funções que são considerados para os homens e para as mulheres, endossando a posse de cargos na hierarquia mais elevada aos homens (nos cargos de chefia), em detrimento da concentração de mulheres ocupando os segmentos mais baixos.
No cenário de reivindicações no âmbito internacional outro marco histórico aconteceu no ano de 1979, no qual, por pressão dos movimentos feministas de diversos países, foi adotada na Convenção das Nações Unidas a pauta da Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra as Mulheres. Essa ação representou um grande momento na definição internacional dos direitos humanos das mulheres, confirmando um compromisso assumido na Primeira Conferência Mundial da Mulher, que aconteceu no México, no ano de 1975.
Segundo a autora Barsted (2001) na respectiva conferência foram discutidos assuntos relativos às áreas de trabalho, saúde, educação, direitos civis e políticos, estereótipos sexuais, prostituição e família. Essa Convenção foi o primeiro instrumento internacional de direitos humanos especificamente voltados para a proteção das mulheres.
A necessidade de proteção do trabalho feminino também ganhou alcance e viabilizou a criação de acordos que buscaram regulamentar a atividade laborativa. Nesse interim, efeitos imediatos foram percebidos na legislação trabalhista brasileira, principalmente no que diz respeito ao capítulo “do trabalho da mulher” presente na Consolidação das Leis Trabalhistas (CLT) (BRASIL, 2018).
No Brasil, o grande marco dos avanços dos direitos das mulheres aconteceu no ano de 1988, com a nova Constituição Federal brasileira, em seu artigo 5º, que consagrou a igualdade de todos perante a lei e, explicitamente no artigo 226, §5°, reconheceu a igualdade entre homens e mulheres na família, incorporando integralmente, portanto, em nossa legislação, os compromissos internacionalmente assumidos.
No período de 2004 a 2014, o mercado de trabalho brasileiro registrou algumas mudanças estruturais como o aumento da taxa de formalização e beneficiou, em especial, as mulheres. Nesse contexto positivo, as mulheres lograram diversos avanços em sua inserção no mercado de trabalho. A recuperação da atividade econômica favoreceu a incorporação de mulheres que se encontravam fora do mercado de trabalho, de maneira que a população economicamente ativa (PEA) feminina teve um incremento de 5,1 milhões de pessoas, ou um aumento percentual de 18,2%, o qual foi relativamente maior que o aumento da PEA masculina (14,5%). Dessa maneira, houve uma pequena ampliação da proporção que as mulheres representam na PEA total, evoluindo de 43,4% em 2004 para 44,1% em 2014 (COTRIM; TEIXEIRA; PRONI, 2020).
Apesar disso, a igualdade formal ainda custa, pois se perpetua uma diferença enorme no salário, nas participações sociais, nos cargos de trabalhos e, sobretudo, na ocupação de cargos de chefias, ou de alto escalão, ocasionando a segregação da divisão sexual do trabalho por atribuições do senso comum.
Com a industrialização, inerente à divisão social do trabalho, a divisão sexual configurou-se em novas definições e funções sociais. Diante disso, de acordo com Hirata e Kergoat (2007) existem duas teorias principais sobre a divisão sexual do trabalho nos estudos sociológicos atualmente. A primeira das teorias fundamenta-se na existência de uma complementaridade entre os papéis atribuídos aos homens e os papéis atribuídos às mulheres.
Segundo os autores Thomé e Schwarz (2015):
Essa teoria parte do princípio da existência de uma natureza feminina e uma natureza masculina e que a divisão sexual do trabalho foi efetuada de forma natural, interacional e sem antagonismos. No entanto, segundo a teoria da dominação, as desigualdades entre homens e mulheres são fundamentadas, basicamente, na divisão sexual do trabalho, entre trabalho produtivo e trabalho reprodutivo. (THOMÉ; SCHWARZ, 2015, p. 189).
As mulheres, por exemplo, precisam conciliar maternidade, casamento e o trabalho dentro e fora de casa. À vista disso, parte do processo de trabalho, aquele considerado produtivo, passou a ser assalariado. Já o trabalho reprodutivo foi definido como não trabalho, os quais se materializam em: “Não trabalho: doméstico, reprodutivo, gratuito, privado e feminino; Trabalho: industrial, produtivo, remunerado, público e masculino.” (YANNOULAS, 2011, p. 276).
Portanto, é necessário comentar que a licença-maternidade ainda tem um custo muito alto na carreira das mulheres. Em países nos quais não existe uma forte licença-maternidade muitas mães, mesmo que sejam muito qualificadas no mercado de trabalho, acabam abdicando por algum tempo de suas carreiras, quando não as abandonando.
Por outro lado, em países com forte licença-maternidade, mas com fraca ou quase inexistente licença paternidade, mulheres acabam sendo preteridas em detrimento de seus colegas do sexo masculino. Isso ocorre, em parte, devido ao fato de que o risco financeiro de se contratar ou promover um homem seja menor. Na Islândia, por exemplo, país que ocupa o primeiro lugar no Global Gender Gap Index de ٢٠١74, a licença-maternidade e paternidade é de nove meses, dos quais três meses são para a mãe, três para o pai e mais três que são alocados da forma que os pais preferirem.
Segundo as informações do Global Gender Gap Index de 2017, existe a estimativa de que ainda levará 217 anos para que ocorra uma paridade de remuneração entre os diferentes gêneros. Dessa forma, mesmo que as mulheres apresentem competência na profissão escolhida, elas enfrentam muito mais preconceitos e barreiras que os homens para ingressarem no mercado de trabalho e serem devidamente remuneradas. Em face dessa realidade, é possível inferir que ainda é baixo o número de mulheres que conseguem ocupar cargos de alta gestão em empresas.
Retornando com a discussão sobre o trabalho doméstico, conforme propõe Silvia Federici (2018) no debate do seu livro intitulado “O ponto zero da revolução”, o conceito de trabalho doméstico abrange não apenas atividades como lavar roupa e cozinhar, mas também o suporte emocional e sexo. Segundo a teoria dessa autora, foi dada a responsabilidade para as mulheres na sociedade capitalista de cuidar do corpo e da mente dos trabalhadores após o expediente e prepará-los para o retorno ao trabalho dia após dia, embora não sejam remuneradas por isso.
Essa responsabilidade, no entanto, veio sem nenhum reconhecimento financeiro e a partir da atribuição sociocultural desse trabalho à natureza feminina. Federici (2018) acredita que a desvalorização do trabalho doméstico e a da posição da mulher na sociedade são partes de um mesmo fenômeno, que podemos vincular às próprias questões que vão pesar na desigualdade salarial entre homens e mulheres, ao passo que lutar por salários no trabalho doméstico, na visão de Federici (2018), é tornar visível a exploração que as mulheres sofrem. Por essa razão, seria o primeiro passo para a revolução, como sugere no título da sua obra mencionada anteriormente.
Frisamos assim que o problema central da divisão sexual do trabalho é que essa segmentação não se dá de forma complementar entre trabalho de homem e de mulher, mas expressa em uma relação de poder, de dominação dos homens sobre as mulheres, pois se dá numa forma segregada e hierarquizada, consolidando o patriarcado.
Não obstante, é oportuno comentar ainda que é pela manutenção do patriarcado que dentro da própria casa muitas mulheres são vítimas de violências ou de abuso sexual. De tal forma, essa sociedade patriarcal sempre subestimou e subjugou as mulheres, em um recorte histórico, seja diacrônico, seja sincrônico, o que nos leva à mesma conclusão.
Engels (MARX; ENGELS, 1972), um dos principais autores marxistas, ao discutir a categoria do gênero no capitalismo, também identificou situações de desigualdade em relação às mulheres. A saber, Engels (MARX; ENGELS, 1972) deu ênfase à situação da supressão das mulheres da economia de mercado, como causa de sua subordinação no capitalismo, nas palavras do autor: “já podemos ver a partir disto que, emancipar a mulher e fazer dela igual ao homem é e permanece sendo uma impossibilidade enquanto as mulheres ficarem fora do trabalho social produtivo” (MARX; ENGELS, 1972, p. 221).
Dito isso, é necessário retornarmos com as considerações de Federici (2018) para a compreensão política imposta pelo patriarcado, pois é necessário empenho para desenvolver um olhar sensível ao papel das mulheres na sociedade capitalista, não apenas destacando a importância do pagamento pelo serviço doméstico, mas também nos reflexos desse para a vida e o poder social das mulheres, ou seja, “o salário para o trabalho doméstico não é apenas uma perspectiva revolucionária, mas a única perspectiva revolucionária do ponto de vista feminista” (FREDERICI, 2018, p. 41).
Apesar da entrada das mulheres no mercado de trabalho e em atividades que se inserem em processos que resultam em mercadorias ou produtos, aquelas atividades relacionadas aos aspectos reprodutivos continuaram sendo suas tarefas majoritárias, principalmente nos espaços privados ou domésticos, quando passaram então a acumularem duas ou mais jornadas diárias de trabalho, sendo uma fora de casa e outra em seu domicílio.
Por essa razão é tão importante construir a possibilidade de realização dos direitos humanos, pois isso significa avançar passos efetivos ao acirramento das condições históricas que poderão ampliar as perspectivas de igualdade de gênero; haja vista que endossar os esforços à luta dos trabalhadores significa ampliar as possibilidades de direitos igualitários, independentemente de sua orientação de gênero, pois, no mundo do capital, os direitos constituem-se em campo contraditório essencial de avanços e recuos, em vista à construção política de mudanças históricas.
Desafios enfrentados pelas mulheres no mercado de trabalho
Com base nos estudos sobre as discussões que envolvem as desigualdades de gênero salarial, é possível inferir que existem fatores históricos que são responsáveis pela permanência dessa situação no contexto atual. Sobre isso, Durkheim (1999), em seu estudo sobre a função social do trabalho, apontou que algumas sociedades foram estabelecendo papéis e funções diferenciados para o homem e para a mulher, de forma que essa organização estrutura também o funcionamento da sociedade.
Para Teixeira (2008), a segregação profissional por gênero refere-se à desigualdade na distribuição de homens e mulheres nas diferentes categorias profissionais. É um conceito usado para demonstrar que homens e mulheres têm empregos diferentes (TEIXEIRA, 2008, p. 39).
Teixeira (2008) elucida ainda que Marx e Engels não reconheciam o trabalho doméstico como trabalho que gera valor. É, inclusive, dessa tradição de “trabalho produtivo” e “trabalho improdutivo”, formulada por Marx, que surge a noção do trabalho doméstico como improdutivo, hierarquicamente inferior ao produtivo, da qual deriva a divisão do trabalho das mulheres (TEIXEIRA, 2008, p. 35).
Na incumbência das mulheres, foram elencados os fatores biológicos para julgar a capacidade laboral, como por exemplo, no caso de gravidez, observada por muitos empresários como uma despesa futura, ou mesmo motivos de faltas e negligência com a produtividade do trabalho. Com isso, percebemos também que os papéis femininos no tocante à identidade são tenuamente construídos através do tempo, por meio de uma repetição incorporada através de gestos, movimentos e estilos (BUTLER, 2003, p. 200).
À vista disso, acionamos a análise de Moraes (2000) sobre a situação da mulher na reflexão marxista:
No tocante à questão da mulher, a perspectiva marxista assume uma dimensão de crítica radical ao pensamento conservador. Em A origem da família, da propriedade privada e do Estado a condição social da mulher ganha um relevo especial, pois a instauração da propriedade privada e a subordinação das mulheres aos homens são dois fatos simultâneos, marco inicial das lutas de classes. Nesse sentido, o marxismo abriu as portas para o tema da opressão específica (MORAES, 2000, p. 89).
Destarte, Butler (2003) admite tais questões ao mencionar que “o gênero é o mecanismo pelo quais as noções de masculino e feminino são produzidas e naturalizadas, mas ele poderia ser muito bem o dispositivo pelo qual estes termos são descontruídos e desnaturalizados” (BUTLER, 2003, p. 59), inclusive para rever os papéis tipificados como femininos e masculinos dentro da lógica do mercado de trabalho.
Assim, Fônseca et al. (2016) ao citar Margareth Rago (1997) comenta que a desvalorização do trabalho feminino – no contexto da consolidação da divisão sexual do trabalho – se deu por conta dos espaços ocupados pelas mulheres (FÔNSECA et al., 2016). Em face à menção de Margareth Rago (1997), destaca-se o comentário da autora:
O campo de atuação da mulher fora do lar circunscreveu-se ao de ajudante, assistente, ou seja, a uma função de subordinação a um chefe masculino em atividades que as colocaram desde sempre à margem de qualquer processo decisório. No caso da operária, mesmo num ramo onde sua participação era enorme, como o têxtil, as alternativas de ocupação para os homens eram maiores. Enquanto eles estavam presentes em quase todas as atividades ocupadas pelas mulheres, como a costura de sacos ou nas maçaroqueiras, vários trabalhos eram interditados a elas, principalmente os cargos de chefia (RAGO, 1997, p. 65).
Apesar de que no concernente à legislação, tais fatores não podem e não devem ser utilizados como motivos de demissão e desvalorização, assim como advertem as autoras Patrícia Freitas e Suzéte Reis (2015):
Na legislação infraconstitucional, principalmente CLT, temos elencadas diversas políticas de não descriminalização, como por exemplo, a vedação de fazer constar em anúncios de emprego, certos critérios discriminatórios, onde muitas vezes faziam constar estereótipos de funcionárias que queriam contratar e, onde muitas vezes exigiam exame negativo de gravidez para que a mulher pudesse vir a ser contratada. (FREITAS; REIS, 2015, p.7).
Diante do exposto, vale lembrar que a igualdade de tratamento entre mulheres e homens é um direito humano fundamental inviolável, pois os fundamentos desta afirmação podem ser extraídos, notadamente, no inciso I do artigo 5º da Constituição Federal (BRASIL, 1988).
Com efeito, a discriminação na contratação de mulheres em consequência dos estereótipos, como sugerido por Bourdieu (2007), foi estruturada no componente histórico sobre o imaginário do que é ser feminino e, por estar enraizado nos grupos sociais, foi transmitido por gerações, ratificando a ideia de que os processos culturais também são padrões naturalizados do que se entende, convencionalmente, por papel do homem e função da mulher na sociedade.
Assim, conforme Bourdieau (2007), o imperativo machista da divisão sexual do trabalho, evidenciado na construção histórica do mundo feminino, estabeleceu um caráter de invisibilidade da participação da mulher nas atividades produtivas, considerando que, nessa visão, a mulher nasceu exclusivamente para o trabalho doméstico e para a reprodução.
Indiscutivelmente, as mulheres conseguiram progressos tremendos na maior parte do mundo para alcançarem igualdade perante a lei, desde a época das sufragistas e desde que a Declaração Universal dos Direitos Humanos foi adotada, em 1948. Ainda assim, segundo dados do Centro de Informação das Nações Unidas no Brasil5, no ano de 2018, quatro países ainda possuem leis impedindo que mulheres trabalhem em cargos específicos, cinquenta e nove não possuem leis contra assédios sexuais no ambiente de trabalho e em dezoito países os maridos podem legalmente impedir que suas esposas trabalhem.
A historicidade do machismo, ainda muito presente, rege como função natural da mulher o de cuidadora do lar e o homem provedor da família, inclusive, pode ser pensado como algo que provoca o sistema laboral de forma que coloca apenas a mulher como a responsável pelo lar e suas atribuições.
Por essa razão, defendemos que “a conciliação entre o trabalho e a vida familiar deve ser vista como um tema não apenas das mulheres, mas sim de homens e mulheres” (CAMARANO, 2009, p. 21). Em contrapartida, para Araújo et al. (2004), “quando as mulheres chefes de família afirmam que são pais e mães reforçam a ideia de que a função de prover é masculina e a de cuidar é feminina, o que leva à desvalorização da força de trabalho da mulher” (ARAÚJO et al., 2004, p. 12).
Todavia, para Saffioti (1979) para a elevação social da mulher:
É preciso que a sociedade se empenhe na eliminação de uma mentalidade habituada a promover a inferiorização de fato da mulher. Esta complexa tarefa não é trabalho de uma geração, mas de várias e, em parte, resulta da homogeneização do grau de desenvolvimento econômico e sociocultural. (SAFFIOTI, 1979, p. 83).
Desse modo, pode-se observar que são muitos os argumentos utilizados para distinguir o modo de inserção laboral entre homens e mulheres, estereotipados por um contexto socio-histórico, do qual impõe barreiras na atuação da mulher fora do lar, como esclarece a autora Laís Abramo (2010):
A produção da tensão entre o trabalho e a vida familiar se dá em várias dimensões que devem ser consideradas e analisadas de forma integrada. Em primeiro lugar, trata-se sem dúvida de um tema estrutural, relacionado a uma ordem de gênero que é constitutiva da sociedade e da organização produtiva e do mercado de trabalho e que, apesar de todas as mudanças culturais ocorridas nas últimas décadas, continua atribuindo às mulheres a responsabilidade primordial pelas funções de cuidado exercidas no âmbito doméstico e privado. (ABRAMO, 2010, p. 19).
É preciso ressaltar que para a compreensão dos fundamentos que estão na base das discriminações contra as mulheres, os estudos de gênero deram uma grande contribuição (BARSTED, 2001). Igualmente, o conceito de gênero, que tem sido utilizado politicamente pelos movimentos feministas, contrapôs a perspectiva de uma natureza feminina, que, por si só, explicaria a subordinação das mulheres (BARSTED, 2001).
Portanto, conforme Leila Barsted (2001), a discussão sobre a subordinação das mulheres não deve ser ancorada nas diferenças físicas ou biológicas que confirmam uma anatomia de mulher ou de homem, como insistiam aqueles que afirmavam a existência de uma natureza masculina superior e de uma natureza feminina incompleta, frágil e, portanto, inferior (BARSTED, 2001).
Teixeira (2008) citando Rathbone (1917) explica:
O principal obstáculo para a igualdade salarial é precisamente o pressuposto, aceito socialmente, de que os homens são os encarregados do salário familiar. Sendo assim, se as mulheres ocuparem os postos de trabalho considerados masculinos, estarão contribuindo para reduzir o salário familiar. A autora defende, então, um sistema de pagamento público com caráter familiar para as mulheres. (TEIXEIRA, 2008, p. 38).
Em síntese, foi possível compreender que alguns impasses apresentados às mulheres na sociedade contemporânea têm como base argumentos circunstanciais, visto que a obrigação das tarefas domésticas para as mulheres, apesar de ser culturalmente atribuído como algo feminino, são convenções que não se sustentam atualmente diante do empoderamento e da autonomia feminina em variados âmbitos. A construção desse papel social, assim imposto às mulheres, é também atribuição do gênero masculino, que, em sua maioria, é oriundo de famílias matriarcais, e não somente patriarcais.
Considerações finais
Inquestionavelmente, reconhecemos que os direitos humanos, em tese, devem ser aplicados para todos os humanos, independente da orientação de gênero. Assim, desenvolvem um importantíssimo papel no processo de empoderamento e têm se mostrado eficazes na promoção de melhoria de vida para as mulheres, que figuravam sua vontade em serem reconhecidas e amparadas como sujeitos de direitos.
No entanto, com base nas análises aqui expostas, percebe-se que a mulher ainda não conseguiu sua emancipação na sociedade pela inserção no mercado de trabalho. Pelo contrário, é justamente no campo do trabalho que as diferenças são exteriorizadas e trazem a dúvida sobre a efetividade dos direitos humanos e as conquistas que ainda devem ser alcançadas, uma vez que ainda é preciso desconstruir padrões históricos e ideológicos que mantiveram a mulher submissa e alijada de reconhecer-se como sujeito de direitos, capaz de interferir politicamente na sociedade.
Apesar disso, à medida que as mulheres vão ocupando seus espaços dentro das sociedades, passam também a serem reconhecidas como verdadeiros agentes de transformação, e, com isso, é claro, passam a existir os ganhos sociais.
Assim, para que existam mudanças é necessário que haja comprometimento do Estado, para oferecer conhecimento aos mecanismos nacionais e internacionais de proteção aos direitos humanos, além de cumprir com o seu papel na consolidação da equidade de gênero.
Fica claro, portanto, que não basta apenas uma Lei como o Artigo 5° para acabar com a desigualdade de gênero no Brasil. É preciso que as empresas e corporações agreguem à política de suas instituições que as mulheres são iguais aos homens, e, portanto, trabalhem pela equidade salarial. Outro fator seria a criação de campanhas e propagandas midiáticas do governo como forma de conscientizar esse processo de mudança social.
Além disso, é fundamental que a sociedade, como um todo, abrace a causa da mudança, de forma que os cidadãos também tenham sua colaboração nesse processo, ao buscarem conhecer e debater o conteúdo dos tratados e convenções assinados e, particularmente, atuar de forma a influenciar o Estado a adotar posições mais avançadas no que se refere, principalmente, ao respeito aos direitos humanos e ao desenvolvimento econômico e social baseado em critérios de equidade.
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Recebido em: 04/06/2021
Aceito em: 24/08/2021
1 Disponível em: <https://agenciabrasil.ebc.com.br/geral/noticia/2019-03/pesquisa-do-ibge-mostra-que-mulher-ganha-menos-em-todas-ocupacoes>. Acesso em: 20 jan. 2021.
2 Disponível em: <https://agenciabrasil.ebc.com.br/geral/noticia/2019-03/pesquisa-do-ibge-mostra-que-mulher-ganha-menos-em-todas-ocupacoes> Acesso em: 20 jan. 2021.
3 Disponível em: < https://www.bbc.com/portuguese/brasil-46655125> Acesso em: 22 jan. 2021.
4 Disponível em: https://www.weforum.org/reports/the-global-gender-gap-report-2017 Acesso em: 14 de fev. 2021.
5 Disponível em https://unicrio.org.br/artigo-7-direito-a-igualdade-perante-a-lei/. Acesso em: 14 de jan. de 2021.
AGENTES COMUNITÁRIOS DE SAÚDE
E O CUIDADO SITUADO DO USUÁRIO
DE CRACK EM SALVADOR (BA)
COMMUNITY HEALTH AGENTS AND THE SITUATED
CARING FOR THE MALE CRACK USER
IN SALVADOR, BAHIA, BRAZIL
____________________________________
Fátima Regina Gomes Tavares1*
Talita Nunes Costa**
Resumo
Este trabalho busca compreender, a partir de uma abordagem etnográfica, as práticas de cuidado de Agentes Comunitários de Saúde (ACS) voltadas para homens adultos, moradores de um bairro central de Salvador (BA), cadastrados na Unidade de Saúde, que consomem crack e não vivem em situação de rua. A pesquisa foi realizada entre junho de 2015 e setembro de 2016, em uma unidade de Estratégia de Saúde da Família em Salvador (BA). A abordagem do ACS dirigida a esse público associa diferentes formas de aproximação, sendo que sua particularidade consiste na intensificação de características observadas na atenção dirigida para os homens em geral (não consumidores dessa droga). As estratégias são ancoradas na sabedoria prática do ACS, advindas de sua estreita relação com os sujeitos nesse território. O estudo evidenciou que o ACS oferece um cuidado situado, diferenciando-se dos pressupostos e ações de cuidado segundo o paradigma da Redução de Danos, que apresenta limitações para o contexto empírico desse profissional. Contrastar o agenciamento do cuidado operado por agentes comunitários à ótica da Redução de Danos indica a percepção de que são modos distintos e complementares de garantir a atenção em saúde.
Palavras-Chave: Estratégia de Saúde da Família. Agente Comunitário de Saúde. Redução de Danos. Saúde do Homem.
Abstract
This paper aims to discuss, from an ethnographical perspective, the healthcare provided by Community Health Workers, commonly known as ACS (Agente Comunitário de Saúde in Portuguese), to no homeless adult male crack users living in a socio and economically vulnerable neighborhood in the city of Salvador, Bahia, Brazil, registered at the local Health Unit. The research was conducted from June 2015 to September 2016 in the local Family Health Strategy unit. ACS combines different approaches when dealing with this public. Such strategies have the same characteristics as the healthcare given by the ACS to men that don’t use this psychoactive substance, but in a more intensive way, which makes them unique. The ACS approach is based on “practical wisdom” built by the ACS on their daily field experience. The research showed that the ACS offers a “situated caring” to male crack users. The ACS approach is not the same as the practices based on the Harm Reduction Paradigm, which are limited considering the empirical context of the ACS’ work. The contrast between the health assistance given by ACS and the one from the Perspective of Harm Reduction indicates that they are complementary strategies for supplying healthcare to people.
Keywords: Family Health Strategy. Community Health workers. Harm Reduction. Men’s Health.
1*Doutora em Antropologia pelo Instituto de Filosofia e Ciências Sociais da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Professora no Programa de Pós-Graduação em Antropologia da Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas da Universidade Federal da Bahia (UFBA). E-mail: fattavares@ufba.br
** Psicóloga. Mestre em Antropologia pela Universidade Federal da Bahia (UFBA) e doutoranda em Antropologia da UFBA. E-mail: talitanc@yahoo.com.br
ISSN 1517-5901 (online)
POLÍTICA & TRABALHO
Revista de Ciências Sociais, nº 56, Janeiro/Junho de 2022, p. 185-204
Introdução
Etnografias em serviços de saúde no âmbito do Sistema Único de Saúde (SUS) nos permitem conhecer a polissemia de concepções, valores e práticas relacionadas às experiências de saúde-doença e às noções de cuidado. Contribuem para compreendermos as relações entre políticas públicas e seus modelos de atenção, além dos fazeres dos profissionais e usuários dos serviços. A própria noção de serviço de saúde revela-se heterogênea. Os estudos evidenciam os movimentos de interação, consensos, tensões e ambiguidades subjacentes à “normatização e uniformização do atendimento segundo diretrizes do SUS” (FERREIRA; FLEISCHER, 2014, p. 8), caracterizando-se duplamente como “etnografias no SUS e [...] do SUS” (FERREIRA; FLEISCHER, 2014, p.16).
Segundo Teixeira, Engstrom e Ribeiro (2017, p. 326), pesquisas e práticas brasileiras e internacionais sobre as especificidades do uso de crack e outras drogas, publicadas entre 2010 e 2016, sustentam perspectivas distintas: a “guerra às drogas”, o “modelo da doença”, o “modelo de atenção psicossocial”, a “abordagem da Redução de Danos” e a descriminalização atrelada à legalização das drogas. Entre outros aspectos, os autores referem o cuidado do usuário relegado às áreas social e de segurança pública, carecendo de articulação com as esferas da educação, trabalho e saúde. As discussões sobre o tema na saúde pública e em torno da não criminalização dos usuários têm se fortalecido. A baixa cobertura mediada por políticas de atenção à saúde deve-se às dificuldades de acesso aos serviços e ao estigma atribuído por profissionais de saúde a esse público (mesmo ao caracterizar-se por perfis, padrões de consumo e graus de vulnerabilidade social distintos). Facilitar o acesso do usuário de crack aos serviços do SUS visa a diminuir sua estigmatização e reduzir-lhe os riscos e danos sociais e de saúde. Mas o que a etnografia pode revelar são os desafios cotidianos que estão em curso para a implementação dessas políticas.
Este trabalho apresenta os resultados de uma etnografia1 realizada entre junho de 2015 e setembro de 2016 em uma unidade da Estratégia de Saúde da Família (ESF) e seu território de abrangência, em Salvador (BA), com Agentes Comunitários/as de Saúde (popularmente conhecidos no município como “agentes de saúde” ou “ACS”) no cuidado cotidiano de homens adultos que moram no bairro, são cadastrados na ESF, usam crack, não vivem em situação de rua2 e podem (ou não) ter envolvimento com o tráfico de drogas. A participação dos usuários de crack – denominação utilizada para se referir a esses sujeitos, o que não significa reduzi-los à prática de consumo dessa substância psicoativa (SPA) – estava prevista inicialmente na pesquisa, porém, os ACS se opuseram, em parte tratando essa recusa como medida de segurança, em parte pelo fato dos usuários serem menores de idade, do sexo feminino ou estarem em situação de rua.
Acompanhar os ACS possibilitou compreender as diferentes estratégias empregadas na assistência a esse público por meio de “abordagens”3 diretas, indiretas e de evitação. Considerando essas modalidades, sugerimos que a abordagem do usuário de crack4 pelo ACS não destoa do cuidado dirigido aos demais homens da comunidade nas dependências da Unidade de Saúde e fora dela, mas imprime uma agudização do cuidado, no sentido da intensificação dos protocolos e dos desafios cotidianos. Veremos também que a abordagem direta, indireta e a evitação configuram modalidades de vínculo acionadas pelo agente de saúde para garantir sua segurança física e a de seus familiares e o cuidado do usuário de crack no seu entorno, no bairro. Essas estratégias refletem orientações mais amplas da ESF e o exercício do cuidado fundamentado na sabedoria prática desenvolvida por ACS ao se relacionarem com o usuário de crack no território.
Essas formas de vínculo do ACS se diferenciam dos pressupostos e práticas da Redução de Danos (RD), paradigma que, à época da pesquisa, norteava as políticas públicas de assistência à saúde de usuários de SPA e orientava o funcionamento das Unidades Básicas de Saúde (UBS). O contraste entre a sabedoria prática do ACS e a RD evidencia dissonâncias entre essas formas de cuidado, bem como os limites das premissas e práticas da RD diante dos dilemas enfrentados por ACS.
Este trabalho não pretende adotar uma dessas concepções sobre o cuidado como parâmetro de avaliação para a outra, mas reconhecer as especificidades dessas práticas de atenção em saúde. Buscamos reafirmar a importância de sua complementariedade para garantir uma assistência qualificada e reiterar a indissociabilidade das práticas dos seus referenciais teóricos e contextos de atuação dos respectivos profissionais.
As diferenças entre formas plurais de cuidado aludem à complexidade da relação entre saúde, cultura e sociedade. A população assistida pela ESF apresenta certa homogeneidade do ponto de vista sociológico, ao residir na mesma área de abrangência da equipe de saúde. Porém, o agente de saúde precisa lidar com o fato de que hábitos e técnicas de atenção e cuidado com a saúde são mediados por sistemas culturais distintos daqueles que subsidiam o sistema biomédico e o treinamento de profissionais de saúde (LANGDON; WIIK, 2010).
Assim, a atuação do agente de saúde é marcada por “dilemas da prática cotidiana”. Por um lado, as orientações da ESF que recorta territórios e planifica práticas. Por outro, as redes intersticiais que fazem do território das equipes de saúde espaços de multiplicidades (TAVARES; CAROSO; SANTANA, 2015, p. 490).
O objetivo desse artigo é contextualizar as três modalidades de cuidado utilizadas por ACS de uma ESF soteropolitana para lidar com moradores homens adultos consumidores de crack: a abordagem direta, indireta e a evitação. Em seguida, buscamos contrastá-las com a atenção em saúde dos demais moradores homens e com o cuidado de usuários de SPA segundo a perspetiva da RD.
Primeiramente, apresentamos a ESF e o agente comunitário de saúde, situando-o neste contexto. Sumarizamos as premissas da RD, comparando-as com os princípios da Política Nacional de Atenção Básica (PNAB); e exemplificamos como a prática em RD pode operar no cotidiano de uma Unidade de Saúde por meio da parceria entre a ESF pesquisada e um Programa de RD. Em seguida, caracterizamos o cenário da ESF em Salvador (BA) à época da pesquisa, o campo de pesquisa e a etnografia realizada. Posteriormente, descrevemos os desafios enfrentados pelo ACS para garantir o “cuidado situado” de usuários de crack e as modalidades de abordagem desse público, contrastando-as com a atenção em saúde oferecida para os demais homens do bairro. Por fim, contrapomos o contexto empírico da abordagem de usuários de crack por ACS e o aporte teórico-técnico da RD, destacando diferenças e complementariedades entre essas formas de cuidado.
A ESF e o Agente Comunitário de Saúde
A Atenção Primária à Saúde define a ESF como prioritária para expandir e consolidar a Atenção Básica. A ESF foi idealizada como uma modalidade de serviço municipal, público, gratuito, de caráter ambulatorial, desenvolvido nos “postos de saúde” (denominação popular local atribuída à Unidade de Saúde) e norteada por uma lógica distinta do modelo assistencial centrado na doença e na medicalização (BRASIL, 1997; TRAD; BASTOS, 1998).
As diretrizes do serviço pressupõem atender às necessidades de saúde numa perspectiva integral e prestar assistência continuada à população, em sua área de abrangência, antes que os problemas de saúde surjam ou se acentuem (BRASIL, 2001). Isto deve ocorrer por meio da realização de ações de promoção, proteção, diagnóstico precoce, tratamento, reabilitação da saúde e prevenção de agravos (BRASIL, 2012), com base nas prioridades epidemiológicas locais (TRAD; BASTOS, 1998).
A equipe de trabalho da ESF deve reunir de quatro a seis ACS, um médico generalista, um enfermeiro, um auxiliar de enfermagem, um cirurgião-dentista, um Técnico em Saúde Bucal e um Auxiliar de Consultório Dentário. Os profissionais devem conhecer os fatores determinantes do processo saúde-doença que definem a qualidade de vida da comunidade para organizar seu plano de ação (BRASIL, 2001; SANTOS et al., 2011). Devem realizar busca ativa, comunicar doenças e agravos de notificação compulsória e reportar outros agravos e situações de importância local (BRASIL, 2012).
Um dos pilares técnicos e políticos da implementação da ESF é a interação entre serviço de saúde e população (BRASIL, 2001; TRAD; BASTOS, 1998). A inserção na comunidade é feita principalmente através do ACS, que reúne informações sobre os moradores da área de abrangência da equipe, necessárias para o planejamento, organização e realização das ações. Sua atuação se baseia no estabelecimento do vínculo com a população, sendo eminentemente extramuros. É planejada, organizada e executada sobretudo a partir do modo pelo qual esse profissional se relaciona com o território (BRASIL, 2002).
Porém, as demandas e problemas diversificados existentes na prática contrastam com a “formatação” universalizante das políticas públicas de saúde, cuja filosofia associa saúde e cidadania, prezando pelo acesso de camadas pauperizadas da população aos meios de promoção da saúde (NUNES et al., 2002). Por um lado, a ESF “territorializa” as redes biomédicas de cuidado, por outro, “convive” com redes intersticiais, pautadas em formas de viver que se tensionam, se complementam, limitam, potencializam e transformam o trabalho das equipes de saúde, atravessando e transgredindo a territorialização promovida pela ESF (BONET; TAVARES, 2007; BONET et al., 2009). No cuidado em saúde de homens usuários de crack, os ACS têm de lidar com redes de perigo, como o tráfico de drogas e a violência comumente associada àquele, juntamente com redes de cuidado envolvendo a vizinhança, os parentes, as religiões, os Programas de Redução de Danos (PRD).
A Redução de Danos na ESF
A RD considera o uso de drogas lícitas e ilícitas uma prática social complexa, atrelada aos demais aspectos da vida do sujeito e seu contexto social e também um problema de saúde pública. A RD admite variações nas formas e padrões de consumo e busca contemplar os diferentes estilos de vida, necessidades, desejos e limites dos usuários, o que remete à defesa dos Direitos Humanos e ao respeito às diferenças (CONTE et al., 2004). A opção pelo uso das SPA é respeitada, assim como se reconhece que há pessoas que não querem ou não podem interrompê-lo (BRASIL, 2001).
As intervenções em RD visam a respeitar e valorizar o sujeito e seu conhecimento sobre seu uso de drogas (MACRAE; GORGULHO, 2003), adequar as modalidades de atendimento ao perfil da população-alvo, articular diversas áreas de conhecimento (psicologia, direito etc.) e saberes (saber popular, biomédico etc.) e realizar ações transversais e multisetoriais para diminuir os prejuízos sociais e de saúde decorrentes (in)diretamente do uso/abuso de SPA, sem, necessariamente, interromper o consumo dessas substâncias (ANDRADE, 2004). Propõe-se um cuidado assentado no vínculo com o sujeito e na escuta, o que permite conhecer a função desempenhada pelo uso de uma SPA (ou várias, simultaneamente) em sua vida. Os objetivos são estimular o protagonismo do sujeito e de sua rede social na promoção do autocuidado e facilitar seu acesso a informações, bens e serviços de saúde (CONTE et al., 2004).
As ações em RD incluem entrega de preservativos e insumos para uso seguro de SPA (swabs, seringas estéreis, cachimbos de acrílico ou madeira), realização de oficinas educativas, orientações sobre prevenção de infecções sexualmente transmissíveis (IST), encaminhamento para serviços públicos de saúde etc., considerando os distintos perfis das populações de usuários, os recursos técnicos disponíveis e outros fatores. As atividades são realizadas sobretudo em contextos de vulnerabilidade social, de forma regular ou eventual, por vezes resultando da parceria entre Programas de RD e escolas, postos de saúde, abrigos, albergues ou serviços em saúde mental. Por isso, o público-alvo é variado. O trabalho é desenvolvido por redutores de danos e outros profissionais vinculados a Organizações Não Governamentais, serviços de extensão de universidades ou por meio de dispositivos públicos, como o Centro de Atenção Psicossocial Álcool e outras Drogas (CAPS AD) e o Consultório na Rua. Os saberes e tecnologias da RD podem ser estendidos a outros contextos, a exemplo da clínica psicológica, prática médica, segurança no trânsito e trabalho comunitário em geral. Os resultados do trabalho em RD incluem diminuição efetiva da transmissão de doenças infectocontagiosas devido à mudança de hábitos dos usuários e fortalecimento de sua reinserção social, cidadania, protagonismo e autonomia (ANDRADE, 2011; CONTE et al., 2004).
Com base nessas considerações, compreendemos que não há uma área de conhecimento, cenário de atuação, instituição, categoria profissional ou função ideais para pôr em prática o arcabouço teórico-metodológico da RD junto a consumidores de SPA lícitas e ilícitas. Assim, seria possível garantir o cuidado em saúde apoiado na RD para pessoas que usam drogas no âmbito da ESF, ainda que em condições limitadas e distintas de profissionais dedicados especificamente a esse trabalho, a exemplo do redutor de danos.
A assistência ao usuário de SPA orientada por princípios e diretrizes da RD consolida-se no Brasil paulatinamente através da articulação entre as políticas de atenção voltadas a esse público e as políticas de saúde mental (BRASIL, 2011). A Reforma Psiquiátrica ocorrida a partir do fim da década de 1970 e a criação do SUS em meio à Reforma Sanitária contribuíram para problematizar paradigmas e práticas em saúde mental. Isso resultou na desconstrução do discurso moralizante e preconceituoso predominante até o momento sobre o uso de drogas e o usuário (CONTE et al., 2004). Além disso, foram enfatizadas as consequências sanitárias e sociais resultantes do consumo prejudicial de drogas, especialmente as ilícitas5 (BRASIL, 2010a).
A partir de 2001, as transformações no modo de conceber e lidar com o uso de drogas e os usuários culminaram na proposição progressiva de políticas públicas destinadas a contornar os problemas enfrentados na assistência social e em saúde, oferecidas para esse público (TOTUGUI et al., 2010 apud BRASIL, 2010a). O atendimento disponível na Atenção Primária à Saúde precisou ajustar-se a essa mudança, pois os serviços situados nesse nível de atenção, a exemplo da ESF, funcionam como “porta de entrada” do acesso às Redes de Atenção à Saúde (RAS) (BRASIL, 2001), resultantes da articulação entre os serviços multidisciplinares em saúde e saúde mental no território (BRASIL, 2012).
A Política Nacional de Atenção Básica cita a Redução de Danos à saúde entre os fundamentos e diretrizes dos serviços da Atenção Primária, além de incluir as equipes de Consultório na Rua para garantir o cuidado de pessoas em situação de rua. Os princípios e diretrizes da PNAB alinham-se ao paradigma da RD. Ambos preconizam a atenção em saúde articulada no território. O cuidado, humanizado e continuado, deve se basear no vínculo com o sujeito, buscando compreendê-lo em sua singularidade e em seu contexto sociocultural, acolhendo suas demandas e necessidades de saúde por meio de ações transversais e interdisciplinares. O incentivo ao autocuidado alia saúde física, mental e cidadania, consoante os princípios de integralidade, equidade, universalidade, participação e controle social (BRASIL, 2012; CONTE et al., 2004). Porém, a PNAB refere as SPA ilícitas de modo indiferenciado (“drogas”), não detalha as atribuições dos técnicos voltadas ao uso seguro de SPA legais e ilegais, além de limitar as ações de prevenção do consumo de drogas ao público escolar envolvido no Programa Saúde na Escola (PSE) (BRASIL, 2012).
A articulação entre Programas de RD e Unidades Básicas de Saúde (com ou sem ESF) visa a introduzir ações de RD na rotina do ACS por meio da sensibilização e capacitação de agentes de saúde e enfermeiros para o trabalho de prevenção de IST/AIDS e uso seguro de SPA lícitas e ilícitas. A parceria viabiliza modelos em RD complementares aos PRD já estabelecidos e fortalece o trabalho em rede (CONTE et al., 2004).
Na ESF pesquisada, há cerca de uma década, foi realizado um treinamento similar sobre RD, promovido por um serviço de extensão permanente da Faculdade de Medicina da UFBA. Além da capacitação teórica, foram realizadas abordagens práticas supervisionadas junto a usuários de drogas ilegais em outro bairro da cidade para que a iniciativa fosse reproduzida na localidade. No entanto, os ACS recusaram-se a replicar esse trabalho no bairro temendo despertar a desconfiança dos usuários, serem confundidos com “olheiros”6 e sofrerem represálias de traficantes ou serem demandados por usuários a trocarem seringas fora do expediente de trabalho. Os ACS optaram por abordar indiretamente o assunto através da realização de uma caminhada pelo bairro com entrega de panfletos educativos e preservativos. Em paralelo, discutiram temas transversais na escola local inserida no Programa Saúde na Escola e no Grupo de Adolescentes organizado na ESF. Posteriormente, foi criado o Grupo de Tabagismo na Unidade de Saúde.
A ESF em Salvador e a pesquisa com ACS
A ESF foi implantada em Salvador (BA) em 2002 (SALVADOR, 2014) oito anos após o Ministério da Saúde estabelecê-la como estratégia central para garantir a assistência em saúde no âmbito da Atenção Primária nos municípios brasileiros (SALVADOR, 2018a). No quadriênio 2014- 2017, período durante o qual a pesquisa foi realizada, houve a expansão de alguns serviços da Rede de Atenção Básica na cidade, com o crescimento de Unidades de Atenção Primária à Saúde e de equipamentos de ESF, enquanto as Unidades Básicas sem Saúde da Família diminuíram (SALVADOR, 2014, 2018a). O total de equipes de Saúde da Família implantadas e a cobertura da Atenção Primária à Saúde no município cresceram, cobrindo 45,7% da população da capital (SALVADOR, 2018a).
Entre 2014 e 2017, a quantidade de equipes do Núcleo de Apoio à Saúde da Família atuantes no município, correspondentes à modalidade NASF I (SALVADOR, 2018a), cresceu, porém, permaneceram restritas a seis dos doze Distritos Sanitários (DS) existentes (SALVADOR, 2104, 2018a). O número de Equipes de Saúde da Família que prestavam apoio matricial diminuiu, correspondendo a 36% das equipes de Atenção Básica e a 10,5% de cobertura da população total soteropolitana em 2017 (SALVADOR, 2018a).
Apesar da expansão, os serviços de saúde apresentaram diversos problemas relacionados à prestação de serviço, infraestrutura, organização e gestão. Em 2014, alguns desses entraves consistiram na baixa cobertura do sistema, estrutura física precária e inadequada, insuficiência de rede especializada e de referência, além da alta rotatividade, insuficiência e qualificação precária dos Recursos Humanos. Outras limitações identificadas foram o baixo acesso e continuidade do cuidado de pessoas com transtorno mental, o atendimento deficiente no que se refere às questões étnico-raciais e de gênero e a articulação precária entre os diferentes níveis de cuidado do sistema de saúde (SALVADOR, 2014). Ao final do quadriênio, esses problemas perduravam e as barreiras apontadas no funcionamento dos serviços não destoavam dos problemas identificados entre os equipamentos de saúde localizados no DS ao qual pertence a ESF onde a pesquisa foi realizada (SALVADOR, 2018a, 2018b).
Em relação ao uso de drogas7, em 2014, a quase totalidade dos DS apresentou aumento do uso abusivo e precoce de SPA lícitas (álcool, cigarro) e ilícitas (maconha, cocaína, crack, cola, loló, lança perfume, ecstasy), além da falta de serviços voltados à prevenção do consumo e à valorização dos usuários. No município, havia um CAPS AD e um CAPS AD modalidade III para assistir as pessoas com sofrimento psíquico decorrente do uso/abuso de SPA (SALVADOR, 2014). A partir de 2015, o consumo crescente de SPA disseminado em onze DS envolveu principalmente crianças, jovens e adultos do sexo masculino (SALVADOR, 2018b).
A ESF onde foi realizada a pesquisa funciona como posto de saúde há mais de 30 anos e é uma instituição docente assistencial8, ao articular o ensino em saúde à prática em um serviço do SUS. Em 2004, ocasião em que os ACS ingressaram no serviço, a Unidade foi adaptada à Estratégia de Saúde da Família. Essa ESF pertence a um DS que abrange “bairros tradicionais [...] (e) grandes conglomerados urbanos [...]; concentra o metro quadrado mais caro da cidade e parte da classe média alta de Salvador”, e abriga quatro UBS, seis ESF, dois CAPS, quatro Unidades Especializadas e duas Unidades de Pronto-Atendimento (SALVADOR, 2018b, p.12-14).
À época da pesquisa, a população adscrita da Unidade distribuía-se em 17 microáreas —unidades geográficas definidas que correspondem ao território de atuação sob responsabilidade de cada ACS (BRASIL, 2012). Embora as microáreas pertençam ao mesmo bairro, apresentam grande heterogeneidade. Algumas situam-se em áreas limpas e arborizadas. As ruas amplas, iluminadas e pavimentadas permitem visualizar claramente veículos e pessoas que transitam por esses locais. Há saneamento básico e serviço regular de coleta de lixo. A maior parte das residências situa-se em edifícios bem estruturados. Os moradores são majoritariamente brancos, com grau de escolaridade mais elevado e desfrutam de uma condição socioeconômica confortável. Muitas pessoas têm acesso a planos de saúde privados, o que lhes permite prescindir de muitos serviços oferecidos na ESF. Outras microáreas caracterizam-se por vielas e becos tortuosos, enladeirados e estreitos. O acesso de veículos é restrito à via principal. Em muitos trechos, só é possível a passagem de uma pessoa por vez. A iluminação, a ventilação e a limpeza desses locais são deficientes. A distribuição espacial das residências, em sua maioria precárias, não obedece a um padrão regular. Predominam moradores negros, com baixo grau de escolaridade, que dependem significativamente da assistência oferecida por serviços públicos para cuidarem da saúde, embora ocasionalmente utilizem instituições particulares para realizarem algum procedimento (por exemplo, exames laboratoriais simples). Em alguns desses locais, há ainda pontos de tráfico de drogas.
O bairro onde se localiza a ESF é próximo de áreas públicas destinadas à prática esportiva e/ou lazer, locais que reúnem serviços diversos e vias que oferecem acesso para outros territórios da cidade. Trata-se de um bairro populoso, embora o aumento populacional não tenha sido acompanhado por melhorias na infraestrutura e mobilidade urbana na mesma proporção. O bairro reúne uma quantidade significativa de idosos/as e é considerado “boêmio”, como destaca uma interlocutora. O crescimento do número de bares e casas de show contrasta com a escassez de alguns serviços necessários para a população (por exemplo, farmácias). Habitado majoritariamente por pessoas de baixa renda, observa-se uma abundância de “puxadinhos” (construções de alvenaria irregulares, sobrepostas e/ou estendidas) que reúnem diferentes gerações familiares, compartilhando espaços e casas.
É perceptível a preocupação dos moradores com o aumento da violência relacionada principalmente ao comércio ilegal de drogas. Segundo os ACS, o tráfico e o uso de SPA ilícitas não são característicos de todo território. Mesmo assim, são considerados um problema para moradores e trabalhadores da saúde. Em certos locais, é possível observar a predominância de homens em cenas de uso e comércio ilegal de drogas. Especificamente nos depoimentos dos agentes de saúde, a relação entre uso/venda de drogas e violência é generalizada. Essa associação resulta de diversas situações nas quais vivenciam uma sensação de falta de segurança ou quando consideram que há risco para as suas vidas, para os demais habitantes do bairro ou para outros trabalhadores da saúde.
A pesquisa consistiu no acompanhamento da atuação dos ACS e outros profissionais de saúde nas dependências da ESF e em seu território de abrangência. As informações foram coletadas por meio de observação participante registrada em diário de campo, conversas informais com os agentes comunitários pertencentes às três equipes de trabalho existentes e entrevistas qualitativas semiestruturadas com cinco agentes de saúde e os três enfermeiros responsáveis por essas equipes. Os critérios de inclusão utilizados para garantir a participação dos profissionais de saúde foram a maioridade, a despeito do gênero e o vínculo com a referida ESF. A análise correspondeu à elaboração de categorias empíricas a partir do teor dos seus depoimentos.
As falas de enfermeiros e ACS complementaram-se, evidenciando o cotidiano desses profissionais e contribuindo para compreender o trabalho em saúde desenvolvido na ESF. Os agentes comunitários compunham um grupo predominantemente feminino (quinze mulheres e dois homens) e heterogêneo na idade (30 a 60 anos). A quase totalidade trabalhava há mais de uma década na Unidade de Saúde. Todos finalizaram o ensino médio (requisito obrigatório para a função) e a maioria havia concluído ou cursava o nível superior em diversas áreas de formação.
O acompanhamento do trabalho dos profissionais variou ao longo da pesquisa. Na Unidade de Saúde, a observação participante envolveu os dezessete ACS que trabalhavam à época no serviço. Porém, cinco deles demonstraram-se avessos à possibilidade de serem acompanhados em sua rotina nas microáreas. Nesses casos, o trabalho de campo limitou-se a observá-los interagindo com os demais profissionais nas dependências da ESF e durante as atividades externas promovidas pelas equipes.
Embora temerosos, durante o trabalho de campo os ACS relataram não ter sofrido agressão física (bem como seus colegas de trabalho ou familiares), mas os eventos descritos por nossos interlocutores evidenciaram vulnerabilidade. Vários sentiram-se inseguros, testemunharam alguma situação de violência ou sofreram ameaças física ou psicológica. As situações que geraram essa insegurança foram a disputa por pontos de venda de drogas (o que implica tiroteios e homicídios), acertos de dívidas não pagas entre traficantes e usuários (o que resulta habitualmente em assassinatos), ações truculentas da polícia para tentar coibir o tráfico e o consumo de drogas, assaltos (praticados por usuários e não usuários) e o crescimento do consumo de SPA, sobretudo por jovens (o que remete ao aumento da circulação, no bairro, de pessoas oriundas de outras localidades).
Desafios do cuidado de usuários de crack
As estratégias de cuidado elaboradas por ACS relacionam-se à proposição de condições e/ou alternativas pelos próprios sujeitos-alvo da assistência. Na prática, a territorialização oficial da ESF coexiste com as dificuldades no cotidiano do trabalho em saúde, exigindo, especialmente do ACS, que desenvolva formas de lidar com inúmeros desafios. Isso inclui lidar com “fatores de risco” à sua integridade e que lhe escapam do controle.
As condições adversas do trabalho dos ACS estão dadas de partida, já que existe maior risco social nas comunidades nas quais são implantadas as ESF (LANCMAN et al., 2009), com a percepção da violência presente no trabalho a céu aberto, gerando sentimentos de angústia e adoecimento (SOUZA; FREITAS, 2011). O sofrimento implicado no trabalho manifesta-se por meio de formas difusas de mal-estar e da busca por assistência profissional, reconhecimento e escuta. As estratégias defensivas individuais e coletivas dos ACS são diversas: fazer piada, cometer “contravenções”9, tornar-se insensível ou negar a situação adversa, entre outras. Elas os auxiliam a rever conflitos e a superar dificuldades enfrentadas no trabalho, preservando um equilíbrio emocional (SÁ, 2009). Os “mecanismos defensivos” implicam cuidado de si e afetam a forma como se processa o cuidado cotidiano nas áreas de circulação dos agentes de saúde (SOUZA; FREITAS, 2011).
As distintas formas de relação estabelecidas por ACS para assegurarem a atenção em saúde aos usuários de crack e aos demais moradores nas microáreas onde existe tráfico de drogas nos permitem afirmar que os agentes de saúde conciliam três estratégias: a abordagem direta, indireta e a evitação. Considerando os desafios do trabalho dos ACS, as “abordagens” e evitações são formas práticas de estabelecer vínculos e, ao mesmo tempo, garantir sua integridade física e emocional.
Na abordagem direta, temos as seguintes possibilidades: a) “distinção” profissional. Durante a abordagem, o ACS explicita que possui uma posição diferenciada no território e busca exclusivamente garantir o cuidado com a saúde do homem que trafica e/ou consome SPA. Essa atitude é estendida a estudantes, estagiários e outros profissionais de saúde que acompanham o ACS na microárea, aos quais é solicitado trajar jaleco como medida de segurança; b) compartilhamento de informações. ACS compartilham percepções e dificuldades ao lidarem com usuários que integram (ou não) as redes locais de tráfico de drogas. Além disso, trocam informações sobre a viabilidade de realizar o trabalho na área; c) negociação para circular no território. Essa estratégia é necessária para desenvolver ações educativas, principalmente nas microáreas onde há pontos de venda de drogas. O propósito é contornar a desconfiança do tráfico, que exige controle e vigilância extremos sobre a circulação de pessoas no local; d) adequação da oferta de atendimento na ESF. Essa medida é utilizada sobretudo para tratar “alguém perigoso, que não pode demorar na Unidade”, como explicou a interlocutora Lia (para proteção dos interlocutores, utilizaremos nomes fictícios), informando ao ACS os dias e horários em que a equipe pode ir ao seu encontro (em sua casa ou outro local indicado por ele), ao invés de ser atendido na ESF.
Na abordagem indireta, observa-se: a) a prática da sensibilização de outrem. O ACS busca uma pessoa próxima ao usuário e/ou traficante (por exemplo, cônjuge, familiar etc.) na tentativa de fazê-lo comparecer à ESF para realizar uma consulta médica, participar de ações educativas etc. O objetivo é contornar a suspeita de que o convite possa significar uma “armação” como definiu a ACS Mara. Nessa mesma linha de sensibilização indireta, desenvolvem-se ações lúdico-educativas de prevenção, promoção e atenção à saúde sobre o uso de drogas com crianças e adolescentes que convivem com os usuários adultos (por exemplo, filhos, irmãos, vizinhos etc.); b) suspensão provisória da circulação. Eventualmente, traficantes impõem a profissionais/estagiários que não circulem ou não realizem ações em determinados locais no bairro, em prol da segurança de moradores e trabalhadores da saúde.
Por fim, a terceira estratégia, a evitação. Ao tratar com indivíduos muito hostis, perigosos ou situações arriscadas, o ACS costuma abster-se da abordagem do usuário ou traficante.
A interação entre a maioria dos ACS e usuários de crack nas microáreas é muito discreta, se comparada ao contato com os demais moradores homens não usuários de crack. Intencionalmente, restringe-se a cumprimentos eventuais por ambas as partes. Conforme explica uma das interlocutoras, o agente de saúde “passa reto”, sobretudo diante de um usuário vinculado ao tráfico. A abordagem direta ao usuário em campo, especialmente um traficante ou pessoas próximas a pontos de venda de drogas, é adaptada com o propósito de não interferir no tráfico. Isto ocorre por meio do ajuste das estratégias habituais de aproximação, como aponta a ACS Ruth:
É uma área muito arriscada, de uso de droga. […] Você tem que saber como […] chegar, como […] agir, como […] ver e não interferir no trabalho deles.
Nossos interlocutores sentem-se mais à vontade para abordar o uso de drogas em espaços institucionais, como a ESF ou a escola, ao invés do trabalho face a face, a céu aberto, nas ruas ou durante as visitas domiciliares, como esclarece a mesma ACS:
É complicado você parar numa roda de conversa deles [usuários] e pedir […] que diminua, mostrando o risco que é. [...] Isso seria [...] dentro de uma Unidade, numa escola [...], você falar de droga, mas com vídeo, com brincadeiras [...]. Dessa maneira, é possível. Mas na área onde você trabalha, é impossível você fazer esse trabalho. (ACS Ruth)
Evitar o contato com o morador do bairro que usa crack é uma estratégia do ACS para se proteger ou quando se sente impotente para agir. Mas se trata de uma modalidade de vínculo, ao invés de sua ruptura. Com base em Bonet (2014), é possível afirmar que mesmo a abordagem indireta e a evitação (como adotar postura indiferente durante o encontro na microárea, não realizar uma abordagem ou visita domiciliar, recorrer à sensibilização indireta etc.) representam modos de cuidado do usuário de crack no seu entorno, no bairro. São formas de relação que não o singularizam, pois são empregues por ACS igualmente diante de pessoas com perfil distinto (sabidamente perigosas ou violentas). Neste sentido, correspondem a modos de autocuidado no entorno.
Quando um usuário de crack chega ao posto de saúde, a circulação no espaço e a oferta de serviços médico-ambulatoriais ocorre similarmente aos homens não usuários. O cuidado dirigido para esse público e os demais homens da comunidade possuem diversos aspectos em comum: a) o vínculo entre ACS, moradores do bairro e o território; b) o caráter ambíguo, multideterminado e multifuncional da atuação do ACS; c) a distância entre a assistência definida por políticas públicas e o trabalho cotidiano do agente de saúde; d) a atuação em parceria com outras instituições da RAS; e) o enfrentamento de situações de risco, sobretudo associado ao trabalho a céu aberto etc.
O atendimento do usuário de crack na ESF se diferencia devido à adoção de procedimentos adicionais, como o uso de medidas profiláticas para identificar IST e a troca discreta de informações entre os profissionais sobre seus hábitos de consumo para evitar que lhe sejam feitas questões constrangedoras ou que o desestimulem a colaborar. Entretanto, isto não o particulariza. A diferença na abordagem ao usuário de crack consiste na agudização das características comuns à abordagem de homens não consumidores, isto é, os recursos utilizados são similares ao cuidado dos homens em geral. As abordagens se diferenciam por sua “intensidade”.
Dessa forma, sugerimos que mesmo com algumas diferenças no cuidado, a tímida presença do usuário de crack na ESF não o diferencia dos demais moradores homens do bairro, haja vista a resistência masculina, relatada pelo ACS, em buscar e/ou aderir ao serviço – aspecto referido na literatura e observado igualmente durante a pesquisa. O estigma associado ao consumidor de drogas ilegais, especialmente o crack, apenas acentua a lacuna já existente entre o serviço de saúde e o público masculino. A motivação do usuário de crack para buscar a Unidade também não o particulariza, visto que esses homens recorriam à ESF em busca de assistência pontual, breve e sem relação direta com o uso dessa SPA.
Com base no estudo de Ayres (2005, p. 103), é possível afirmar que o uso de SPA e o envolvimento com o tráfico de drogas conformam modos de “ser-no-mundo”, de forma similar à experiência de saúde-doença. Assim, o ACS necessita utilizar tecnologias de cuidado com os homens, tanto com aqueles que traficam e/ou consomem drogas ilegais quanto com homens que não se encaixam nesses perfis, recorrendo a uma sabedoria prática ao atuar no bairro.
O conceito de “sabedoria prática” (GADAMER, 1991 apud AYRES, 2005, p. 103) refere-se a um juízo prático, acionado no momento assistencial. Ele visa ao diálogo o mais simétrico possível entre as pessoas envolvidas, preservando suas subjetividades e a troca de saberes não técnicos entre si. Esse conhecimento se distingue dos modos de fazer a priori e universais, característicos das técnicas científicas. É um saber conduzir a si mesmo que emerge da prática, ao mesmo tempo que se direciona para ela. Isso requer selecionar, acionar, combinar e ajustar objetos, procedimentos e tecnologias pertinentes à situação. A sabedoria prática não resulta em produtos, tampouco em procedimentos sistemáticos, transmissíveis ou generalizados (AYRES, 2004, 2005).
As estratégias dos ACS para garantir a assistência em saúde a usuários de crack e/ou traficantes aludem às ambiguidades do cuidado. Aspectos como a sensação de incapacidade e limitação para realizar seu trabalho, a distância entre as condições ideais e concretas de sua atuação, o temor diante da exposição a riscos, o sofrimento psíquico resultante do envolvimento com situações de violência etc. mesclam-se ao compromisso do ACS de assegurar o cuidado do usuário e, simultaneamente, preservar a si mesmo. Entretanto, sua experiência prática contrapõe-se ao sentimento ou ideia de imobilização.
Assim, a abordagem direta, indireta e a evitação refletem o exercício do cuidado fundamentado na estreita relação sujeito-território e na sabedoria prática do agente de saúde. Remetem, portanto, à noção de “cuidado situado”. O processo saúde-doença se constitui na interação entre aspectos biológicos, econômicos, culturais e sociais característicos da realidade vivida pelo sujeito. Ou seja, origina-se na relação dinâmica do sujeito no mundo. Nesta perspectiva, o sujeito é agente social, ao invés de apenas um “destinatário das políticas” e deve ser considerado em contexto. Na condição de usuário do sistema de saúde, ele exercita um modo particular de utilizar e circular pelos serviços. Assim, é preciso reconhecer que o sujeito interfere nos processos e nos resultados do cuidado tanto quanto gestores e profissionais de saúde e, juntamente com eles, compõe um “feixe de relações”. O cuidado situado implica uma análise centrada na circunstância: a “situação-centrada” (BONET et al., 2009, p. 243-245). A ênfase é dada à configuração relacional, responsável por fazer emergir os sujeitos (usuários, ACS, gestores etc.) e suas ações. As formas de operar o cuidado dos ACS evidenciam o encontro terapêutico entre o profissional de saúde e o sujeito-alvo do cuidado como um “espaço entre” – o encontro entre “dois discursos, [...] duas percepções do corpo, […] duas visões de mundo […]”. Ele possui o potencial de negociação e criatividade, sendo forjado a partir do contexto no qual o cuidado de si é operado (BONET; TAVARES, 2007, p. 266-267).
O Agente de Saúde, a Redução de Danos e o cuidado de usuários de crack
Compreender a relação entre o ACS e o sujeito-alvo do cuidado como um “espaço entre” possui um importante desdobramento: o corpo deixa de ser encarado como um “corpo-objeto” e adquire um novo estatuto: “corpo-sujeito”. O corpo não é considerado algo externo a nós ou algo que nos pertence. Ele condiciona nossa experiência pessoal, nossa forma de estar no mundo e nosso modo de se relacionar com a realidade (BONET; TAVARES, 2007, p. 274).
As práticas de RD reafirmam uma concepção de saúde que integra saúde física, mental e cidadania, além de conciliarem aspectos cognitivos a afetivos, resultantes da experiência do “estar junto”. Propõem, portanto, uma abordagem ética e subjetivante, o que favorece o exercício da cidadania e a humanização da formação, prática e gestão em saúde (CONTE et al., 2004). O estabelecimento da RD como diretriz da assistência à pessoa que usa drogas (i)lícitas na Atenção Básica implica a proposição e desenvolvimento de ações preventivas e terapêuticas integrais e intersetoriais, adaptadas às diferentes drogas, formas e contextos de uso, visando a favorecer a adesão dos usuários ao serviço e fortalecer seu vínculo com a equipe de saúde (BRASIL, 2003).
Entretanto, ao atuar, o ACS depara-se com condições desfavoráveis que lhe impossibilitam de pôr em prática o aporte teórico-técnico da RD em diferentes situações. Neste sentido, a assistência oferecida pelo ACS, através da ESF, para moradores adultos do sexo masculino que consomem crack é multideterminada e revela-se ambígua.
Os mecanismos elaborados por ACS para garantirem o cuidado desse público refletem seu empenho em ajustar a assistência às práticas, valores, dinâmica e realidade de vida dos usuários, sobretudo daqueles envolvidos diretamente com o tráfico de drogas. Ou seja, o ACS lida, simultaneamente, com as contingências do meio, o zelo pela saúde do outro e o cuidado consigo.
Na perspectiva de Bonet (2014), o cuidado oferecido por ACS para usuários de crack se traduz em modalidades de relação no território, com base em sua percepção-ação. Trata-se, portanto, de relação situacional. A esquiva ou invisibilidade do sujeito em seu contexto é um modo de assegurar a assistência. Contudo, sob a ótica da RD, essa prática pode ser considerada problemática.
Sugerimos que a evitação revela um ruído/ponto de atrito. O SUS pressupõe o diálogo entre as diretrizes e práticas da Atenção Básica, Saúde Mental e Redução de Danos para garantir o cuidado do usuário de SPA no território (MACERATA, 2014). A oferta de cuidado na RD prevê aproximar-se, vincular-se, dialogar com o usuário. Porém, a rotina dos ACS evidenciou que a atenção em saúde do homem que consome crack (envolvido ou não com o tráfico de drogas) inclui não o abordar. Andrade (2011) e Quinderé (2013) referem igualmente a recusa como medida de segurança por profissionais de saúde ao lidarem com usuários de SPA ilegais e/ou traficantes. Situações que justificariam a evitação apontam para a impossibilidade de replicarmos plenamente as premissas e práticas da RD no contexto empírico da abordagem do usuário de crack por ACS, pois não dão conta dos dilemas enfrentados por agentes de saúde.
As intervenções e a busca ativa realizada por redutores de danos nos territórios enfatizam a resolutividade de demandas sociais e de saúde especialmente relacionadas ao consumo de SPA. As ações conferem centralidade ao usuário que mora, frequenta ou circula eventualmente nesses locais, embora dialogue com seus pares e sua rede social. O ACS necessita lidar com uma gama ampla de necessidades e demandas de saúde, além de cuidar de todos os membros das famílias residentes na microárea. Redutores e ACS abordam a adoção de cuidados com a saúde e atuam a céu aberto ou no espaço institucional. Ambos enfrentam dificuldades comuns, a exemplo da violência atrelada ao tráfico de drogas. Porém, o ACS necessita desempenhar tarefas, apropriar-se de saberes e estabelecer articulações no bairro que extrapolam significativamente o âmbito do uso de SPA. Assim, embora a ESF e a RD apresentem alguns aspectos comuns referentes aos seus princípios, objetivos, fazeres e contexto de atuação dos profissionais, os ACS enfrentam impasses no cuidado de homens adultos usuários de crack que ultrapassam a resolutividade apoiada em premissas e ações da RD.
Contrapor o agenciamento do cuidado segundo a ótica da RD e da ESF evidencia maneiras distintas, porém complementares, na atenção à saúde. Não se trata de apontar um desses paradigmas como referência e empregá-lo como métrica para julgar o outro. Considerá-los em seus respectivos referenciais teóricos e contextos de atuação não nos obriga a abrir mão das respectivas contribuições no âmbito da ESF.
Considerações finais
Vimos neste artigo que a assistência em saúde oferecida pelo ACS envolve desafios cotidianos, por vezes não previstos nas orientações “oficiais” da ESF. As redes intersticiais de cuidado que configuram a dinâmica do seu trabalho implicam estratégias atreladas a situações de risco, vivenciadas por esses profissionais. A aproximação direta, indireta e a evitação são estratégias elaboradas pelo ACS, com base nas particularidades que caracterizam o consumo e/ou o tráfico de drogas ilícitas no território, para garantir a atenção em saúde de homens adultos que moram no bairro, são cadastrados na ESF, não estão em situação de rua, usam crack e podem ou não estarem envolvidos com o tráfico de drogas. As três estratégias apontadas acima sugerem um cuidado situado, forjado no encontro terapêutico entre o profissional de saúde e o sujeito-alvo da assistência. Em paralelo, o ACS esforça-se por garantir o autocuidado, zelando por sua segurança e a de seus familiares. Ou seja, a atenção ao usuário de crack em seu entorno leva em conta o autocuidado do ACS no entorno.
As modalidades de vínculo do agente comunitário com o consumidor de crack ou traficante caracterizam-se pela agudização dos desafios e de aspectos tipicamente observados no atendimento em saúde de homens não usuários dessa SPA, resultando do diálogo entre a sabedoria prática do ACS e as diretrizes da ESF. Podemos sugerir, seguindo Tavares, Caroso e Santana (2015, p. 490), que se “[...] tratam de desacordos mais amplos das intenções ‘civilizatórias’ de transformação dos ‘modos de vida’ das populações atendidas”.
Nas dependências da Unidade de Saúde, a atenção em saúde prestada ao homem que consome crack difere do cuidado oferecido para não usuários por incluir procedimentos profiláticos adicionais. O preconceito associado ao uso dessa SPA apenas acentua a resistência masculina em recorrer ao cuidado oferecido na ESF, habitualmente manifestada por usuários e não usuários de drogas ilícitas10.
A abordagem do usuário de crack pelo ACS apresenta elementos comuns e divergentes ao cuidado apoiado em premissas e práticas da Redução de Danos. À época da realização da pesquisa, a Política Nacional sobre Drogas vigente estabelecia as estratégias e ações da RD como diretrizes para a “intervenção preventiva, assistencial, de promoção da saúde e dos direitos humanos” (BRASIL, 2010b, p.16), o que incluía a assistência em saúde de usuários de SPA na Atenção Básica.
Porém, o paradigma da RD revelou algumas limitações para instrumentalizar o ACS a enfrentar dilemas inerentes a seu trabalho. A sabedoria prática do ACS e a RD evidenciam formas de cuidado ancoradas em referenciais teóricos distintos, dizem respeito a contextos de atuação específicos e devem ser consideradas com base em suas particularidades. Embora sejam singulares, são suplementares e contribuem conjuntamente para oferecer o cuidado em saúde qualificado para a população.
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Recebido em: 29/10/2020
Aceito em: 10/01/2022
1 A pesquisa foi aprovada pelo Comitê de Ética em Pesquisa da Escola de Enfermagem da Universidade Federal da Bahia (CEPEE-UFBA) através do parecer consubstanciado n° 1.309.326, foi financiada pela Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado da Bahia (FAPESB) e subsidiou a elaboração de uma dissertação de mestrado que discutiu a atenção em saúde oferecida por ACS para moradores do bairro do sexo masculino, adultos, consumidores de crack (associado ou não a outras drogas).
2 A ESF pesquisada não consiste em um equipamento assistencial direcionado à população em situação de rua (PSR), embora existam no país equipes de Saúde da Família específicas para este público (REIS JUNIOR, 2011).
3 Neste trabalho, empregamos como sinônimos os vocábulos “abordagem” e “aproximação”, no sentido do senso comum, para nos referirmos às três diferentes estratégias – direta, indireta e evitação – que correspondem às modalidades de vínculo estabelecidas por ACS junto a usuários de crack observadas durante a pesquisa.
4 Os homens adultos moradores do bairro, cadastrados na ESF, que usam crack, não vivem em situação de rua e podem ou não ter envolvimento com o tráfico de drogas são referidos sucintamente no artigo como “usuários de crack”.
5 Posteriormente, houve um retrocesso no processo histórico brasileiro de abordagem e assistência social e de saúde à pessoa que usa SPA. Em abril de 2019, foi aprovada uma nova Política Nacional sobre Drogas que passou a ser coordenada e implementada conjuntamente por secretarias do Ministério da Cidadania e do Ministério da Justiça e Segurança Pública (BRASIL, 2019b). A nova política abdicou da perspectiva e das estratégias de RD nas “ações de tratamento, acolhimento, recuperação, apoio [...] e reinserção social” e enfatizou a abstinência. Além disso, priorizou o tratamento, acolhimento e recuperação do “dependente químico” por meio do fortalecimento e expansão de comunidades terapêuticas (BRASIL, 2019a, item 5.1.2).
6 Gíria local citada por uma ACS para se referir a pessoas vinculadas a um determinado grupo do tráfico de drogas que repassam informações sobre a dinâmica do tráfico ou do local dominado por outro grupo.
7 O detalhamento dos problemas relacionados ao consumo de SPA e assistência aos usuários é apresentado apenas a partir do Plano Municipal de Saúde do quadriênio posterior (2018-2021).
8 A Unidade Docente Assistencial visa a aproximar a formação universitária em saúde e os serviços que compõem o sistema de saúde, integrando objetivos pedagógicos à realidade e às necessidades locais, no âmbito do SUS (ALBIERO; FREITAS, 2017). A integração ensino-serviço está prevista na Política Nacional de Educação Permanente em Saúde (PNEPS) (BRASIL, 2004) e busca qualificar as práticas de cuidado, a formação do discente e a atuação do profissional do serviço (ALBIERO; FREITAS, 2017). Em Salvador (BA), as instituições de ensino estabelecem convênios com as unidades de saúde para que estudantes realizem visitas técnicas, pesquisas, ações coletivas etc., além de atuarem no Programa de Educação para o Trabalho em Saúde (PET-SAÚDE), no Projeto de Vivência e Estágio na Realidade do SUS (VER-SUS) e em Programas de Residência Médica.
9 Sá (٢٠٠٩, p. 658) utiliza o termo “transgressões” para se referir às adaptações que profissionais realizam na rotina de trabalho ou no modo de organizá-lo, recorrendo a “jeitinhos” ou “quebra-galhos”. Durante o trabalho de campo realizado em 25/08/21, uma interlocutora agente de saúde citou o “jeitinho” para descrever uma situação na qual burlou uma norma durante determinado período para desempenhar sua função, porém sem causar prejuízo a outrem.
10 O campo empírico da pesquisa não incluiu instituições e programas orientados pela RD direcionados estritamente à atenção de pessoas que consomem SPA lícitas e ilícitas. As reflexões sobre RD aqui apresentadas basearam-se no conteúdo de políticas públicas. A ausência de dados sobre as instituições de RD não oferece contraponto necessário para problematizarmos os critérios de contratação dos ACS. Essa é uma possibilidade a ser explorada em nova pesquisa etnográfica.
“ENQUANTO CONTINUAREM MISTURANDO RACISMO
COM POLÍCIA, NUNCA VAI DAR CERTO”1:
Uma discussão sobre branquitude no contexto brasileiro
“AS LONG AS THEY CONTINUE TO MIX RACISM
WITH THE POLICE, IT WILL NEVER WORK”:
A discussion on whiteness in the Brazilian context
____________________________________
Mari Fagundes*
Paula Henning**
Resumo
O presente artigo traz para o debate, no campo da teoria social, as relações raciais na atualidade. Assim, por meio da mobilização de conceitos como branquitude, racismo estrutural e necropolítica, dispara-se o pensamento a partir de dois casos midiáticos recentes, visando a problematizar como as vidas negras importam em território nacional. Trata-se de uma revisão de parte da literatura pertinente a respeito das relações raciais no nosso cotidiano social, objetivando questionar as estratégias mortíferas no campo da segurança pública, quando marcadores como raça, geração e gênero se entrecruzam.
Palavras-chave: Branquitude. Racismo Estrutural. Segurança Pública. Necropolítica.
Abstract
This article brings to the debate, in the field of social theory, the race relations in the present. Thus, through the mobilization of concepts such as whiteness, structural racism and necropolitics, the thought is triggered from two recent media cases, aiming to problematize how black lives matter in national territory. It is a literary review about race relations in our everyday social life, aiming to question the deadly strategies in the field of public security, when markers such as race, generation and gender intertwine.
Keywords: Whiteness. Structural Racism. Public Security. Necropolitics.
Introdução
As redes sociais reverberaram um profícuo debate sobre relações raciais no Brasil nos meses de maio e junho de 2020, especialmente, após a morte do americano George Floyd, por um policial, em Minneapolis, Minnesota, nos Estados Unidos, em 25 de maio de 2020. A partir da viralização de um vídeo que registrou o fato – a vítima, um homem negro, algemado e o policial, branco, com o joelho apertando seu pescoço até a morte – hashtags passaram a ser disparadas pelo mundo todo, denunciando o racismo e apontando a brutalidade policial em atuações, especialmente, que ocasionam a morte de cidadãos.
As hashtags #VidasNegrasImportam e #BlackLivesMatter reverberaram pelas mídias em diversas formas, desde “correntes” até legendas em diferentes imagens que passaram a compor as redes de computador. No Brasil, mais precisamente, os meios de comunicação tradicionais, como a televisão, pautaram essa discussão de forma enfática enquanto os protestos nos Estados Unidos tomavam significativa proporção. Lá, prédios e viaturas policiais foram incendiados, manifestantes tomaram as ruas, visando a sinalizar a relevância do debate e seu rastro histórico2.
Aqui, o caso americano também tomou potência e buscaremos problematizar esse ponto. Chamou atenção, por exemplo, algumas discussões sobre racismo que foram elaboradas por alguns veículos de comunicação em massa, tendo uma bancada com jornalistas eminentemente brancos, como foi o caso do jornal “Em Pauta”, apresentado na Globo News (G1, 2020). Após uma hashtag viralizar no Twitter, o “Em Pauta” do dia 03 de junho de 2020, teve seu apresentador e comentaristas modificados: sua bancada foi composta por jornalistas negras – cinco mulheres negras e um homem negro3. O apresentador responsável pelo “Em Pauta”, Marcelo Cosme, um homem branco, iniciou o programa destacando que, no dia anterior, o racismo havia sido discutido apenas por profissionais brancos, embora fossem todos de “alto nível profissional”.
Sinalizou que a Globo valoriza a “diversidade”, mas que por “razões históricas e estruturais de nossa sociedade” os e as colegas jornalistas negros e negras, na Rede Globo, ainda não são tantos quanto desejado. Apontando o tuite de Irlan Simões com a foto dos jornalistas do dia 02 de julho daquele ano – todos brancos – com a legenda “Rapaziada... a pauta era o racismo”, destacou que o “Em Pauta” havia “entendido o recado” (G1, 2020). Com isso, o programa chamou as e os profissionais negros e negras, antes referidos, para a apresentação da edição do dia 03, além de anunciar que as repórteres negras Zileide Silva e Flávia Oliveira passariam a fazer parte de forma permanente das edições do programa.
Além desse caso, uma live produzida pelo Instituto de Estudos Comparados em Administração Institucional de Conflitos (InEAC), no dia 21 de julho de 2020, abordando as polícias militares e os protestos antirracistas, tomou significativo vulto nas mídias sociais para uma discussão acadêmica (INEAC, 2020). A live era mediada pela pesquisadora e oficial da reserva da Brigada Militar do Rio Grande do Sul (BM/RS), Marlene Spaniol, e o debate foi efetuado pelas professoras pesquisadoras Jacqueline Sinhoretto e Jacqueline Muniz. Um time de mulheres nacional e internacionalmente reconhecidas no campo da segurança pública, especialmente pela atuação em pesquisas envolvendo as instituições militares e práticas racistas desenvolvidas pela instituição.
Trazemos essa live para a discussão, pois além de alcançar, no dia 23 de julho de 2020, 60.161 visualizações, 679 likes e 28 mil deslikes, foi “invadida” pelos mais diversos comentários de ódio, xingamentos misóginos e machistas, propagandas eleitoreiras adeptas à direita conservadora e, como enuncia o título deste texto, comentários contrários às discussões sobre racismo e polícia. Outro ponto que sobressaltou aos olhos, foram comentários apontando a impossibilidade de algumas polícias estaduais serem perpetuadoras do racismo, visto seu efetivo ser majoritariamente negro ou ainda, o enaltecimento das forças policiais com a frase “Força e Honra!”.
Começamos este texto trazendo esses dois exemplos recentes nas mídias como disparadores do pensamento, a fim de elaborarmos algumas problematizações sobre branquitude e privilégios no Brasil. A live aponta para as dificuldades encontradas no campo da segurança pública quando a instituição Polícia Militar é questionada sobre seu funcionamento e, especialmente, quando o racismo está atrelado a sua atuação (RAMOS, 2015; MUNIZ, 1999; FAGUNDES, 2021). O exemplo do telejornal “Em Pauta”, por sua vez, aponta para os silenciamentos da mídia quanto ao protagonismo da população negra nos meios de telecomunicação (SOVIK, 2009), enquanto agentes produtores de reportagens frente às câmeras e não como atores dos boletins policiais, como é comum no retrato da juventude negra brasileira.
Importante pontuar que, em governos de extrema direita, há um maior estímulo para que enunciações como “bandido bom é bandido morto”, “direitos humanos para humanos direitos” sejam proferidas de forma autorizada. Aliás, não são poucos os casos em que os próprios governantes comemoram o extermínio de certas vidas4. Aqui se percebe o quanto a “invisibilidade interessada” da raça branca sustenta essas manifestações (SCHUCMAN, 2012), visto que o “bandido” recorrentemente tem cor, sexo e idade pré-definidos.
Essa temática é debatida por nós no bojo de um trabalho maior, desenvolvido no âmbito de uma tese de doutorado, no Programa de Pós-Graduação em Sociologia da Universidade Federal da Paraíba (PPGS/UFPB), em que discutimos a Polícia Militar da Paraíba (PMPB), uma política pública desenvolvida em âmbito estadual – o Programa Paraíba Unida Pela Paz (PPUPP) –, e as políticas de morte desenvolvidas no campo da segurança pública trazendo, com isso, o debate sobre relações raciais.
Para este texto, enfrentando nosso local de fala enquanto pesquisadoras brancas (RIBEIRO, 2017), abordaremos o racismo e sua relação com o campo policial, agenciando o conceito de branquitude (SILVA, 2017), visando a problematizar o privilégio branco na formação social brasileira (SCHUCMAN, 2012) e a sua potência na/para a perpetuação das desigualdades (BENTO, 2002). Para isso, efetuamos uma problematização teórica sobre o referido conceito, abordando, conjuntamente, os conceitos de racismo estrutural (ALMEIDA, 2019) e sistema de segurança pública (MUNIZ, 1999), fundamentando nossa escrita em autores e autoras do campo da sociologia da violência e do campo das relações raciais.
No decorrer do texto apresentaremos algumas indagações, pois nosso propósito com esta escrita não é a formulação de respostas, mas a mobilização do pensamento, questionando alguns constructos sociais que tomaram potência de verdade em nossa sociedade. Desde já, efetuaremos uma primeira indagação, a qual seguirá como fio condutor desta escrita: como as vidas negras importam em solo brasileiro? É para esse diálogo, discutindo os dois exemplos acima referidos, que convidamos a leitora e o leitor a adentrar no texto e tecer conosco alguns questionamentos.
Relações raciais no Brasil: privilégio branco e os efeitos da branquitude
As relações raciais há muito são foco de estudos nas Ciências Sociais brasileiras. Antes disso, Medicina e Direito eram campos em que essa temática reverberava, buscando-se analisar a/o negra/o como objeto de pesquisa, seja pela crença lombrosiana da degenerescência e criminalidade nata, seja pela necessidade da criação de dispositivos penais que abordassem essa população de forma diferenciada, seja, ainda, como infantil, predadores sexuais, preguiçosos entre tantos outros marcadores pejorativos (CORRÊA, 2001; BENTO, 2002).
Como pontuou Guerreiro Ramos (1981), embora a partir da década de 1930 as discussões científicas sobre as relações raciais tenham ultrapassado a ideia de degenerescência, o negro permaneceu como “tema” das análises acadêmicas sobre as relações raciais. Ainda com Florestan Fernandes (1978) e o desmantelamento da ideia de democracia racial, construída por Gilberto Freyre (2003), se constata que a discussão sobre o local de fala branco, enquanto raça5 privilegiada, seguiu sendo silenciado (BENTO, 2002). Os estudos desenvolvidos pelo Projeto Unesco, no Brasil, foram fundamentais para que se apontasse as relações conflituosas entre brancos e negros no país, além de denunciar o caráter dissimulado dessas relações, negando, além do mito da democracia racial6, o de cordialidade brasileira7 (CARDOSO, 2008).
Por outro lado, como nos aponta Maria Aparecida Silva Bento (2002), a problematização dos intelectuais da época sobre o espaço de privilégio ocupado e exercido por eles não foi objeto de suas discussões. Pontuou-se que a ascensão de classe seria o elemento “emancipatório” do negro brasileiro. Classe e raça foram e são marcadores que geram debates quando se aborda a força do racismo local. Nas discussões mais rasas, aponta-se a meritocracia como instrumento que possibilitaria a todas e todos a chegada em uma mesma posição. Aliada a isso, a igualdade formal, ou seja, a prevista em lei, robustece a isenção do debate sobre o papel do branco na produção das desigualdades atuais8. Ou, ainda, a ideia de que o racismo é estrutural e, portanto, isentaria os sujeitos, individualmente, do enfretamento ao debate (ALMEIDA, 2019).
Uma outra enunciação ainda fortemente destacada, quando se reconhece a desigualdade racial brasileira, é de que ela seria um legado da escravidão, o que isentaria, mais uma vez, a discussão sobre as ações contra a discriminação racial e desobrigaria, também, questionar o privilégio branco (BENTO, 2002). Pois bem, nosso objetivo com esta escrita é o enfrentamento desse marcador, problematizando o nosso local de fala, ao mesmo tempo em que reforçamos a pergunta acima referida, qual seja: como as vidas negras importam em solo brasileiro?
Maria Aparecida Silva Bento é uma das intelectuais que, após Guerreiro Ramos, resgatou o debate sobre branquitude no meio acadêmico brasileiro9. Por meio da Psicologia Social, levantou a problematização sobre o “pacto narcísico” existente entre a população branca, onde nós, enquanto sujeitos brancos, reconhecemos a desigualdade racial, mas não a enfrentamos como produtora de nossos privilégios. Sinaliza a autora:
[...] Eles [brancos] reconhecem as desigualdades raciais, só que não associam essas desigualdades raciais à discriminação e isto é um dos primeiros sintomas da branquitude. Há desigualdades raciais? Há! Há uma carência negra? Há! Isso tem alguma coisa a ver com o branco? Não! É porque o negro foi escravo, ou seja, é legado inerte de um passado no qual os brancos parecem ter estado ausentes. (BENTO, 2002, p. 27, grifo da autora).
Conforme nos destaca Bento, esses privilégios foram sendo construídos por meio da invenção de subjetividades, apontando ideários de beleza, símbolos estimados como representantes da cultura brasileira, até a formulação de instituições, legislações etc., que direcionavam a construção do negro como o “outro”, até o extermínio cotidiano dessa população, como nos é familiar na atualidade. Essa construção, permeada por interesses políticos e pela expropriação oriunda da exploração colonial, acentuou e legitimou a ocupação de espaços de privilégios já no Brasil Colônia e segue com seu rastro mortífero na atualidade. Como destacaremos abaixo, esse caráter mortífero se fortalece pelas ações de terror molecular que tem como elemento final a retirada da vida, mas isso não significa sua ação mais perversa (MBEMBE, 2017).
Logo, quando abordamos marcadores e conceitos como raça, racismo e branquitude, os empregamos como elementos políticos e não como caracteres de ordem essencialista, biologizante. Como destaca Antônio Sérgio Guimarães (2005, p. 11), o termo raça no Brasil, tem “uma realidade social plena”, nomeá-lo enquanto tal se torna um importante instrumento na busca por justiça social. Nomear o branco enquanto raça, por sua vez, nos possibilita problematizar a ideia de universalidade e neutralidade que essa posição de sujeito gerou e gera historicamente em solo brasileiro.
Desse modo, como nos coloca Priscila Silva (2017, p. 23), “[...] a branquitude é assim entendida como resultado da relação colonial que legou determinada configuração às subjetividades de indivíduos e orientou lugares sociais para brancos e não brancos”. Logo, a construção da branquitude enquanto um local de privilégio emerge nos países colonizados, por meio das ações que construíram – e seguem construindo – um ideário de civilização. No nosso caso, além dos processos de colonização, o processo escravocrata, e a expropriação simbólica e material daí decorrente, fortaleceram ainda mais as posições de privilégio, especialmente pela inexistência de políticas reparatórias pós-abolição. Partindo da perspectiva de que o poder não se detém, mas se exerce10 (FOUCAULT, 1997), cabe sinalizar que esse local de privilégio não foi e não é mantido sem fissuras e disputas (GONZALEZ; HASENBALG, 1982).
Entretanto, a construção do branco como uma identidade neutra, possibilitou e potencializou o exercício desigual de poder, justamente pelas apropriações antes referidas. Desse modo, como pontua Priscila Silva (2017), a potência das problematizações sobre a branquitude não se restringe à dualidade brancos versus negros, mas permeia os efeitos causados por ações como a do branqueamento, a construção de ideia de democracia racial, a não conflitividade do povo brasileiro, a produção estética da população, etc. Isso atinge institucionalmente as relações sociais, assim como as produções individuais e a construção dos sujeitos enquanto tal.
Pensar na perspectiva da neutralidade racial branca ou na sua invisibilidade (CARDOSO, 2008), nos permite problematizar o caráter furtivo desse posicionamento, isto é, poder escolher quando se entender enquanto raça e quando se isentar dessa discussão, visto seu local de privilégio. Lia Schucman (2012), ao entrevistar sujeitos brancos nas mais diversas posições de classe em São Paulo, em sua tese de doutorado, enfatiza que nós enquanto sujeitos brancos somos produtores ativos das desigualdades raciais, porque ocupamos, historicamente, posições mais altas na sociedade brasileira e porque a crença na democracia racial ainda é fortemente defendida em território nacional.
Essa crença se une à igualdade formal, como pontuado anteriormente, e toma vazão institucionalmente quando nos situamos em um sistema democrático e é neste ponto que cabe trazermos para o debate o conceito de racismo estrutural (ALMEIDA, 2019). Antônio Sérgio Guimarães (2005) já havia nos alertado para o racismo institucional. Esse que alicerça as instituições brasileiras e que (re)produz práticas discriminatórias em decisões judiciais, na legislação que é construída, nas abordagens escolares, ou nos sujeitos que vão ou não ser escolhidos para atuar em determinado cargo de comando, por exemplo.
Há relações de poder, portanto, que favorecem/prejudicam os sujeitos que, historicamente, ocupam certas posições (ALMEIDA, 2019). Exemplo mais comum disso são homens brancos heterossexuais que compõem as nossas Casas Legislativas. Se voltarmos à imagem descrita do programa “Em Pauta”, produzido no dia 02 de junho – uma bancada composta apenas por homens brancos e mulheres brancas na discussão sobre racismo – também observamos essa posição de privilégio que se apresenta como neutra e, por isso, “capaz”/autorizada a discutir as relações raciais em posição de interesse, ao passo que segue marcando espaços do “um” e do “outro”, sem questionar seu próprio local de fala (SOVIK, 2009; RIBEIRO, 2017).
Silvio Almeida (2019)11, entretanto, vai pontuar que o racismo além de adentrar as instituições, moldar subjetividades, sugerir padrões de consumo e a construção de um modelo “civilizatório”, se compõe estruturalmente. Nessa senda, o racismo não se estabelece como algo anormal ou patológico em uma dada sociedade, mas como “normal”. É nesse sentido que as relações econômicas, políticas e culturais de uma certa comunidade são tecidas e podemos trazer essas discussões para o contexto brasileiro, como estamos enfatizando. Nas palavras do autor:
[...] o racismo é uma decorrência da própria estrutura social, ou seja, do modo “normal” com que se constituem as relações políticas, econômicas, jurídicas e até familiares, não sendo uma patologia social e nem um desarranjo institucional. O racismo é estrutural. Comportamentos individuais e processos institucionais são derivados de uma sociedade cujo racismo é regra e não exceção. O racismo é parte de um processo social que ocorre “pelas costas dos indivíduos e lhes parece legado pela tradição”. Nesse caso, além de medidas que coíbam o racismo individual e institucionalmente, torna-se imperativo refletir sobre mudanças profundas nas relações sociais, políticas e econômicas (ALMEIDA, 2019, p. 33, grifo do autor).
É nesse sentido que podemos retomar o desenvolvido por Priscila Silva (2017) quando refere sobre o atuar processual da branquitude na mantença do seu local de privilégio, ou ainda, como pontua Lia Schucman (2012), sobre as diferentes organizações dos sujeitos brancos no âmbito do constructo branquitude. A branquitude não é uma identidade social homogênea e sem disputas, porém isso não significa que nas posições em que os sujeitos ocupam não sigam exercendo privilégio. O racismo, por se encontrar imiscuído nas relações sociais, faz com que os privilégios as permeiem da mesma forma. Com isso, “os sujeitos brancos estão conscientes ou inconscientemente exercendo-o em seu cotidiano por meio de pequenas técnicas, procedimentos, fenômenos e mecanismos que constituem efeitos específicos e locais de desigualdades raciais” (SCHUCMAN, 2012, p. 23).
Feitos esses apontamentos, direcionamos nossos olhares ao campo da segurança pública e, mais precisamente, para as ações policiais e alguns dados publicizados pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública (FBSP) no Anuário de Segurança Pública de 2020 (FBSP, 2020), isso para que voltemos à frase que deu origem a parte do título desta proposta – “Enquanto continuarem misturando racismo com polícia, nunca vai dar certo” – e para que seja possível questionar sobre o local das mortes que incomodam a mídia no cenário brasileiro, as aproximações com as instituições responsáveis pelo atuar preventivo/repressivo, como é o caso da polícia, e como os privilégios brancos seguem atribuindo vantagens a essa identidade racial.
Segurança Pública e Branquitude: Vidas Negras importam?
Nas primeiras páginas desta escrita, sinalizamos o quanto as mídias no último ano – especialmente nos meses de junho e julho de 2020 – têm trazido ao debate a relevância da discussão sobre relações raciais, tomando as hashtags #VidasNegrasImportam e #BlackLivesMatter para sinalizar a importância das vidas negras. Enquanto essas hashtags permeavam as mídias sociais, houve aproximações com casos semelhantes em solo brasileiro.
Jovens negros mortos em ações policiais não são raridade no Brasil. Nomear cada uma das mortes que reverberam nas mídias sociais já bastaria para ocupar o espaço deste artigo. Além dessas, há as cifras ocultas, isto é, aquelas que não são registradas em boletins de ocorrência policial. São os ditos “corpos desaparecidos”. Buscando ser sucintas, trouxemos as informações do Fórum Brasileiro de Segurança Pública (FBSP) sobre letalidade policial e, especialmente, a cor, faixa etária e gênero dessas mortes.
Fonte: FBSP – Infográfico – Anuário de Segurança Pública, 2019
O infográfico criado pelo FBSP (2019) para discutir a mortalidade da população negra nos mostra o quanto, no Brasil, o marcador raça é um elemento definidor na gestão da vida e da morte. Voltando nossos olhos para a letalidade policial, é possível extrair do infográfico que 75,4% das pessoas mortas em intervenções policiais, entre os anos de 2017 e 2018, eram negras. Além disso, quando cruzamos os marcadores raça e juventudes, as chances de um jovem negro ser alvo da letalidade é 2,7 vezes maior do que a de um jovem branco. Essas diferenças seguem sendo acentuadas se olharmos a categoria gênero.
As relações raciais perpassam as instituições e o cotidiano social, como referimos. Isso não é diferente nas polícias. Aliás, se acentua tendo em vista os resquícios militarizados da polícia brasileira12, assim como os pressupostos que justificaram a sua criação, como aborda Jacqueline Muniz (1999), direcionados para os “insubordinados”, esses com cor previamente definida. Além disso, como destaca a autora, a necessidade de ir “(im)pondo ordem na casa” também aconteceu intramuros (MUNIZ, 1999, p. 55), tendo a hierarquia como ideia basilar da formação policial, ou como diriam os sujeitos que comentavam a live aqui referida: “Força e Honra!”.
Em nossa recente formação democrática, a instituição Polícia Militar passou por algumas reformas, embora o caráter “humanizador” dessa instituição tenha sido pautado mais detidamente apenas a partir dos anos 2000 (BRASIL, 2012), criando-se uma Matriz Nacional Curricular para a formação dos agentes de segurança pública (BRASIL, 2014) e cursos de especialização promovidos pela Secretaria Nacional de Segurança Pública (Senasp). Além dessas ações, a instituição do Programa Nacional de Segurança Pública com Cidadania (Pronasci) também gerou modificações conjunturais, enfatizando a necessidade de uma segurança pública atenta aos preceitos dos direitos humanos e da cidadania (MADEIRA; RODRIGUES, 2015).
Isso nos faz perceber que mesmo com a promulgação da Constituição Federal de 1988 (CF/88), a polícia enquanto instituição não passou por nenhuma reforma significativa em seu bojo antes dos anos 2000, permanecendo seu caráter militar e, mesmo com a promulgação do referido diploma, segue sendo uma força auxiliar do Exército brasileiro, como prevê o artigo 144, §6º, CF/88 (BRASIL, 1988). Isso nos mostra o duplo caráter que atravessa a instituição em comento, visto que à medida que é responsável pela prevenção de crimes e construção da paz junto à comunidade, tem como alvo o “inimigo” interno. Isto é, o mesmo cidadão que deve ser protegido e agente ativo na construção da segurança pública figura como o seu principal suspeito, seu principal inimigo (MUNIZ, 1999).
A criação desse “sujeito criminal” (MISSE, 2014) atravessa as questões históricas que estamos abordando ao longo deste texto. Maria Carolina Schlittler (2016) aponta que a construção do “tirocínio” policial, isto é, o saber construído “na rua” pelos agentes policiais – elemento sistematicamente ressaltado nos comentários do chat da live “Polícia pra quê?”, sugerindo que as pesquisadoras não conheciam a “realidade” policial ou a “realidade” de certos bairros e que, portanto, a abordagem feita em suas falas se dirigia a um mundo “paralelo” ao da realidade policial – é fundamentado em pressupostos que envolvem, especialmente, a raça e caracteres que remetem à cultura afro-brasileira. Nas palavras da autora:
A análise das características do tirocínio policial evidencia que, ao identificar como suspeitas características que correspondem a signos da cultura negra jovem e marcadores de pertença territorial e de classe, o policiamento ostensivo tem como foco a vigilância de jovens negros e pobres. Entretanto, esta característica do tirocínio passa despercebida pelos policiais, porque dentre este grupo profissional a raça não é vista como um elemento organizador do mundo social. Os policiais visualizam que existem grupos mais assujeitados criminalmente do que outros, porém, sob o ponto de vista deles, esta clivagem não é produto de uma hierarquia racial. (SCHLITTLER, 2016, p. 69-70, grifo da autora).
A autora salienta que essas ações não são percebidas pelos agentes e que, segundo a fala dos policiais por ela entrevistados, o “tirocínio” se forjaria no cotidiano das ruas. Isso ratifica a ideia de que raça e polícia não devem ser articuladas, como sustentado nos comentários da live citada, ou ainda, que uma discussão sobre o “como” da atuação policial gere 28 mil deslikes. Retomando a nossa discussão sobre racismo estrutural e a mantença dos privilégios da branquitude na contemporaneidade, se o racismo é algo “normal” em nossa sociedade, as práticas sociais que geram as mortes antes referidas ou que desqualificam símbolos e simbologias de uma dada raça, atrelados a sua cultura, portanto, podem não emergir como um problema nas ações da segurança pública.
Apontamos a segurança pública de forma ampla, visto que os órgãos de fiscalização e investigação também são responsáveis pelo extermínio da população negra no Brasil e a consequente permanência dos privilégios brancos (SINHORETTO; MORAIS, 2017). Isso porque são os processos históricos, como pontuou Priscila Silva (2017), que se articulam na/para eleição do sujeito criminoso e, além disso, para as dinâmicas que alimentam as disputas raciais e a mantença de privilégios da raça branca. Achille Mbembe (2017) destaca que nas democracias liberais, especialmente as que passaram pelos processos de colonização, apartheid e/ou escravidão, normalizaram-se as práticas de exceção.
Seguindo o diálogo com o autor (MBEMBE, 2017, p. 15), há um terror de “essência molecular e pretensamente defensivo”, em que se turva, justifica e autoriza a morte: turva as relações entre a lei, a norma, a obediência, o excesso. Nesse sentido, a morte de George Floyd ou das 75,4% pessoas negras mortas pela polícia no Brasil podem ser pensadas nesse processo “turvo” entre a aplicação da lei e o processo de extermínio. Coisas que, dentro de uma formalidade jurídica, parecem tão distantes, mas que na análise socio-histórica se encontram geminadas. Como pontuou Silvio Almeida (2019, p. 74), “a guerra tem regras, na guerra há limites” e em um tempo em que, a princípio, a regra é “fazer viver”, “o racismo, é a condição de aceitabilidade de tirar a vida numa sociedade de normalização” (FOUCAULT, 2005, p. 306).
A ideia de invisibilidade da raça branca não significa que ela não se reconheça enquanto detentora de privilégios, “mas sim que ela é vista por uns e não por outros, e, dependendo dos interesses, ela é anunciada ou tornada invisível” (SCHUCMAN, 2012, p. 24). Assim, podemos dizer que o não enfrentamento da Polícia Militar quanto à produção da morte em suas ações encaminha-se para a ideia de invisibilidade interessada. Lembrando que esse interesse também se dirige aos demais agentes do sistema de segurança pública quando não fiscalizam, investigam e não adotam posições enfáticas sobre os números alarmantes de extermínio que nos assolam.
Neste ponto, voltemos à discussão do telejornal “Em Pauta”. Embora o “recado” tenha sido entendido pela emissora e o programa tenha modificado seu quadro de repórteres para os comentários sobre o assassinato de George Floyd, a discussão principal era essa morte e não as cometidas diariamente no cenário brasileiro, como destacaram as próprias repórteres que compunham o programa no dia 03 de julho de 2020. As revoltas, os protestos, as vidas negras que importam seriam as americanas? Seriam aquelas que ocasionam a queima de prédios e viaturas policiais? Aquelas que reverberam nas mídias sociais? Poderíamos dizer que a “cordialidade brasileira”, aquela da qual seguidamente ouvimos enunciações de orgulho, soma-se à invisibilidade interessada, cultivada pela branquitude, e toma posições materiais, como o assentimento de que a chance de um jovem negro morrer seja 2,7 vezes maior do que a de um jovem branco? Como as vidas negras importam no Brasil? No relato individual de cada jornalista? Em um tuite que retira a credibilidade comercial, especialmente, de um jornal?
O Movimento Negro Unificado há muito aponta para o genocídio da população negra e jovem negra em solo brasileiro (RAMOS, 2015). Há embates diários na luta pela construção de políticas públicas e de legislações que assegurem e reconheçam, minimamente, a história da população negra, seus símbolos e simbologias institucionalmente (ALMEIDA, 2019). Por outro lado, a ocupação desses espaços não é sinônimo de ações antirracistas. O reconhecimento da diversidade não ocasiona, automaticamente, a incorporação de ações que a respeitem, especialmente sem atentar aos privilégios brancos. Como sinaliza Silvio Almeida (2019, p. 116), a “[...] diversidade não basta, é preciso igualdade. Não existe nem nunca existirá respeito às diferenças em um mundo em que pessoas morrem de fome ou são assassinadas pela cor da pele”.
E é ao lado do extermínio da população negra que atua a discricionariedade policial. O que Jacqueline Muniz apontava em sua fala na live aqui citada era justamente a inexistência de limites no atuar policial brasileiro. Sua comparação com o efetivo policial em Minneapolis e as ações policiais daquele contexto seria incomparável com o contexto brasileiro. Por outro lado, o que a pesquisadora enfatizou foram princípios básicos como proporcionalidade e razoabilidade no uso da força e demais ações da instituição, em Minneapolis, que são públicas, que podem ser consultadas, que são padronizadas e, justamente por isso, podem ser acompanhadas pela população. O que diverge muito do caso brasileiro, especialmente porque são “turvos” os processos de tomada de decisão das forças policiais. Destaca em sua fala: “aqui tudo é segredo, tudo é iniciático, para ser manobrado conforme a ocasião” (INEAC, 2020).
Esse posicionamento da autora dialoga com uma das teses levantadas em sua pesquisa de doutorado, qual seja, a alta discricionaridade dos agentes policiais no atuar cotidiano (MUNIZ, 1999). As regras disciplinares profundamente cobradas na caserna e exigidas no trato hierárquico afetam sobremaneira o procedimento adotado nas ruas. A mesma cobrança que é efetuada intramuros tende a ser reproduzida fora deles, o que gera um descompasso expressivo, visto que as normas militares não fazem parte do “ensinamento” social. Entretanto, o efeito que isso pode gerar àqueles que desrespeitam uma abordagem policial, pode significar um tiro na nuca13 ou ser pisado no pescoço por intervir em uma ação policial “de rotina”14, por exemplo.
Significa dizer que o ato discricionário, isto é, a possibilidade de ter um dado posicionamento em uma abordagem específica reverbera, recorrentemente, no autoritarismo, especialmente porque não há regras claras para/no procedimento policial, tampouco normas que fiscalizem esse atuar. Nas palavras da autora:
[...] A transferência individual, silenciosa e ressentida, para as ruas, dos princípios e normas que regulam as suas vidas na caserna, como a uniformidade de conduta, a obediência cega, etc., não só amplia as oportunidades de encontros violentos com a população, como também compromete o indispensável profissionalismo na administração da autoridade policial no contato com os cidadãos. Nas ruas, não são poucas as situações preventivas e dissuasivas, de baixo potencial ofensivo e quase sempre invisíveis, que acabam envolvendo o emprego desnecessário da força e terminam sendo interpretadas pelos PMs como “desacato à autoridade policial” (MUNIZ, 1999, p. 148, grifo da autora).
“Governar pelo terror”, destaca Mbembe (2017, p. 61), e é nesse sentido que aproximamos nossas lentes da instituição Polícia Militar na democracia brasileira. Sabemos que há exceções nessa atuação, mas a regra são os efeitos de inimizade que se constroem nesse atuar arbitrário e no terror de caráter molecular. São as práticas necropolíticas e, como acentua Mbembe, o racismo é o seu motor. Logo, sua associação com os privilégios brancos fica cada vez mais acentuada. Desse modo, não há como pensar a instituição Polícia Militar sem associá-la ao racismo, aos efeitos do privilégio branco e a (re)produção da morte em solo brasileiro. Como destacamos, isso não diz respeito unicamente à PM, mas aos processos estruturais que nos constituem enquanto sujeitos pertencentes a um dado contexto socio-histórico. Nos diz respeito enquanto pesquisadores, especialmente a partir do nosso local de fala.
Por outro lado, nos isentar e isentar a instituição em comento desse enfrentamento torna o debate ainda mais problemático e necessário. Um outro ponto a ser destacado diz respeito ao distanciamento existente entre oficiais e praças no âmbito da polícia, pois tem sido apontado como uma circunstância que inibe mudanças concretas no trato policial. Estudiosos apontam que oficiais, os quais exercem postos de comando e, frequentemente, não participam do atuar “nas ruas”, são os sujeitos que passam mais seguidamente por cursos de formação e tomam as decisões burocráticas (CRUZ, ٢٠١٣; VASCONCELOS, ٢٠١٩). Os praças e seus superiores imediatos – cabos e primeiro-tenentes – são os que “tiram polícia” e que, portanto, sabem da “realidade”, conhecem “as ruas”.
Essa ideia de que prática e teoria são coisas diversas dificulta ainda mais as aproximações com o debate racial e, especialmente, a posição de privilégio que a raça branca exerce. Um dos exemplos que demonstra isso é o argumento de que as tropas policiais são formadas por sujeitos negros e, por isso, não se poderia falar em racismo ou práticas discriminatórias. É nesse sentido, mais uma vez, que apontamos para a importância da discussão sobre racismo estrutural e os locais de privilégio que daí derivam para a raça branca.
Essa segmentação – isto é, como se o que é ensinado nos cursos de formação e o policiamento ostensivo fossem “mundos” separados –, tem muito mais a nos dizer sobre aquilo que vale a pena ser estimulado no atuar policial do que propriamente uma ideia do que está oculto no currículo policial ou, ainda, como a adoção de preceitos humanísticos são inseridos nesse contexto. Poderíamos indagar se as discussões sobre direitos humanos, relações étnico-raciais, polícia comunitária, uso moderado da força são ensinamentos intramuros, elementos discutidos pelo alto comando, enquanto a discricionariedade e a produtividade são as ações mais exigidas no atuar das ruas. Cabe destacar, entretanto, que isso não se trata da prática e da teoria, do “isso” ou “aquilo”. Trata-se, sim, de escolhas, estímulos e exigências institucionais.
Nossa pergunta sobre “como as vidas negras importam?” se dá, porque indagamo-nos se será preciso mais mortes negras no contexto americano para que debates, bancadas jornalísticas, hashtags e outras tantas manifestações sejam desencadeadas no cotidiano brasileiro. Poderíamos dizer, dialogando com Mbembe (2017), que se criou um “hábito de perda” para que os extermínios de Agathas15 e João Pedros16 não gerem debates tão significativos capazes de inundar nossas redes e nossas instituições democráticas.
Como o racismo pode não ter nada a ver com a instituição Polícia Militar quando dados nacionais nos mostram que a letalidade policial tem raça, gênero e faixa etária definidas? Como não falar em privilégio branco quando sabemos que nossos filhos/as, irmãs/ãos etc., vão ser representados enquanto raça branca nos currículos escolares (SCHUCMAN, 2012), sem precisar de uma legislação que determine tal postura? Ou ainda, quando ligamos nossas TV’s e, nós brancos, somos representados por meio de diversos profissionais que atuam nesses veículos, em posição de protagonismo, especialmente, sem precisar de alguma justificativa (SOVIK, 2009), já que somos considerados norma, considerados neutros, universais? É com essas indagações que nos direcionamos para o encerramento deste texto, visando a destacar a importância de pensarmos – e agirmos – sobre as relações de poder que nos tornam sujeitos, os arranjos potentes que ainda vigem em nossa sociedade e que estabelecem posições de maior ou menor condições de seu exercício e o quanto a raça é um desses elementos no presente.
Considerações finais
Ao longo deste texto buscamos discutir, conceitualmente, os privilégios da branquitude e suas ramificações no contexto brasileiro, problematizando, mais precisamente, o sistema de segurança pública por meio da instituição Polícia Militar. Considerando como disparadores do nosso pensamento dois casos práticos que tinham como objeto de discussão as relações raciais – o telejornal “Em Pauta” e a live “Polícia Pra quê?” – trouxemos para o debate conceitos como branquitude, necropolítica e sistema de segurança pública, tendo como pergunta norteadora: “como as vidas negras importam?”.
Sem pretensão de esgotar a temática, tampouco trazermos respostas para essa indagação e tantas outras que elaboramos no decorrer do texto, visamos a mobilizar o pensamento e a causar alguns deslocamentos nas discussões sobre a polícia no Brasil e sua ligação com as relações raciais em território nacional. Para tanto, agenciamos também o conceito de racismo estrutural, o qual compõe as relações sociais, assim como as instituições e contribui para a construção do caráter de normalidade do racismo na atualidade.
Apontamos que a ideia de invisibilidade dos privilégios brancos, na esteira de Maria Aparecida Bento (2002) e Lia Schucman (2012), são furtivos, isso porque podem ser reconhecidos ou silenciados, dependendo da posição que os sujeitos desejam tomar, o que ratifica o status do privilégio branco. Nesse sentido, podemos mirar a instituição Polícia Militar, especialmente, quando seus agentes apontam para a inexistência ou a impossibilidade de associar racismo com suas práticas, posto que esse caráter furtivo da branquitude permeia as ações individuais, podendo encontrar respaldo no mito da democracia racial, ainda latente em solo brasileiro, ou na justificativa da igualdade formal que sustentam as democracias modernas.
Destacamos com Achille Mbembe (2017) que há muito os efeitos de “terror molecular” deixaram de ser exceção em solo brasileiro. Com os dados do Fórum de Segurança Pública e com algumas reportagens citadas ao longo do texto, sinalizamos a proximidade da Polícia Militar com o extermínio da população negra no Brasil. Pontuamos que há diferenças entre os Estados, mas isso não obsta a discussão frente à instituição de forma ampla. Além disso, enfatizamos que esse extermínio é chancelado por outras instituições do campo da segurança pública, posto que, não havendo fiscalização, controle e publicidade das práticas policiais, há um assentimento quanto às práticas necropolíticas.
Por fim, sinalizamos que os privilégios da branquitude metamorfoseiam-se ao longo da nossa construção social. Estão nas instituições, nas práticas diárias, neste texto. Entretanto, acreditamos que enfrentar este debate no nosso cotidiano, apontar para as nossas práticas mortíferas do dia a dia, para o nanorracismo que constrói subjetividades e silencia saberes também seja uma maneira de construir pontilhados na formação de subjetividades antirracistas. Como destacou Silvio Almeida em uma das lives que participou enquanto debatedor, se o normal pré-pandemia é composto pelo racismo, nós não desejamos voltar ao normal.
Referências
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Recebido em: 08/03/2021
Aceito em: 14/02/2022
1 A frase que dá título a este texto foi extraída da live “Polícia pra quê? Protestos antirracistas e o fim do monopólio policial” produzida pelo Instituto de Estudos Comparados em Administração Institucional de Conflitos (InEAC), no dia 21 de julho de 2020. Trata-se de um debate elaborado por pesquisadoras de renomado conhecimento do campo da segurança pública e que sofreu um significativo impacto por grupos de policiais militares em ações de “deslike”. Para conferir a live completa, acessar: https://www.youtube.com/watch?v=Vv7m15-9YHs.
* Professora do Centro de Ciências Socio-Organizacionais da Universidade Federal de Pelotas (CCSO/UFPel). Integrante do Grupo de Estudos Educação, Cultura, Ambiente e Filosofia (GEECAF/FURG). E-mail: maricris.ff@hotmail.com.
** Professora titular e pesquisadora do Instituto de Educação e dos Programas de Pós-Graduação em Educação Ambiental e Educação em Ciências da Universidade Federal do Rio Grande (FURG). Líder do Grupo de Estudos Educação, Cultura, Ambiente e Filosofia (GEECAF/FURG). Bolsista Produtividade Nível 2 CNPQ. E-mail: paula.c.henning@gmail.com.
2 Merece destaque as duras críticas de integrantes dos Panteras Negras a movimentos como #VidadesNegrasImportam e #BlackLivesMatter. São críticas que atentam às formas como esses movimentos são apoiados por grandes empresas, “esquecendo” as relações de produção capitalistas inerentes à sociedade norte-americana. A mídia brasileira vem dando visibilidade a movimentos como esses, entretanto, é importante destacar que também há cooptação por parte dessas empresas. Por outro lado, cabe frisar na esteira de Winnie Bueno, na live “Branquitude e Fronteiras do Antirracismo”, que as discussões sobre relações raciais, branquitude e racismo há muito são elaboradas no contexto brasileiro. Logo, as mudanças que vêm acontecendo não derivam de articulações de um ano, mas de décadas de mobilizações do movimento negro. Para consultar o debate completo sobre Branquitude e Fronteiras do Antirracismo, acessar: https://www.youtube.com/watch?v=z9-flXfsSg8&t=1724s.
3 Compuseram a bancada do referido Jornal: Maju Coutinho, Aline Midlej, Flávia Oliveira, Lilian Ribeiro, Zileide Silva e Heraldo Pereira.
4 Um exemplo disso foi a comemoração do governador do Rio de Janeiro, Wilson Witzel, celebrando publicamente a morte de um sequestrador, alvo de atiradores de elite da polícia carioca. Para mais informações, consulte: https://catracalivre.com.br/cidadania/witzel-comemora-morte-de-sequestrador-na-ponte-rio-niteroi/.
5 As discussões sobre relações raciais e a importância de apontar o marcador raça como um elemento político está cada vez mais evidenciada nas pesquisas contemporâneas. Ainda assim, cabe destacar que ao longo deste texto utilizaremos o marcador raça em um sentido político, entendendo-o como um constructo social. Nessa passada, como enfatiza Lourenço Cardoso (2008, p. 31), “[...] Até o momento, não prescindo do conceito raça, porque estou convencido de que ele é necessário para caminhar em direção à supressão do racismo na sociedade brasileira” e, assim sendo, como efetua o autor, não utilizaremos esse conceito entre aspas visto que as palavras não são apenas palavras, mas ferramentas, estratégias para lutar contra certas opressões e marcar posições de sujeitos.
6 O conceito “democracia racial” ficou conhecido, historicamente, como cunhado por Gilberto Freyre. Destaca Guimarães (2002), entretanto, que outros estudiosos da época também contribuíram para a disseminação dos efeitos desse conceito que se tornou uma ideologia. A democracia racial serviu para constituir no imaginário social e científico durante décadas – e que ainda causa efeitos (HASENBALG, 1996) – a inexistência do racismo no contexto brasileiro. Com o desenvolvimento das pesquisas a partir do Projeto Unesco (MAIO, 1999) e, antes disso, com as denúncias da Frente Negra Brasileira, a designação da democracia racial como mito passou a ser cada vez mais enfatizada. Porém, cabe frisar o disposto por Antonio Sérgio Guimarães (٢٠٠٢, p. ١٩) “Morta a democracia racial, ela continua viva enquanto mito, seja no sentido de falsa ideologia, seja no sentido de ideal que orienta a ação concreta dos atores sociais, seja como chave interpretativa da cultura, seja como fato histórico. Enquanto mito continuará viva ainda por muito tempo como representação do que, no Brasil, são as relações entre negros e brancos, ou melhor, entre as raças sociais – as cores – que compõem a nação”.
7 Sérgio Buarque de Holanda cunhou o conceito de “Homem Cordial” e foi a partir dessa teorização que a cordialidade brasileira passou a ser desenvolvida como uma forma característica do brasileiro, em que as relações seriam baseadas muito mais em uma perspectiva de intimidade, rejeitando convenções e formalidades (SOUZA, 2007).
8 Não pretendemos adentrar aqui nas discussões sobre interseccionalidade, pois extrapolaria nossa intenção com este texto, mas apontamos para a importância de compreender as intersecções entre raça, classe, gênero, faixa etária, entre outros elementos, como pontos imprescindíveis para que se chegue a uma discussão séria sobre justiça social na atualidade.
9 Sinalizamos que o debate sobre branquitude foi mobilizado pelo movimento negro americano e as pesquisas a respeito do tema estão mais consolidadas nos Estados Unidos. Munidas desses referenciais, da construção teórica de Guerreiro Ramos, do Movimento Negro Unificado brasileiro e das pesquisas elaboradas em grupo de pesquisa com sindicatos dos trabalhadores, é que a autora em comento embasa seu debate atual.
10 O conceito de poder em Foucault esparra-se ao longo de sua obra, especialmente nos escritos da década de 1970. O tomamos no nível discursivo, entendendo que ele se estabelece na produção discursiva entre saberes e poderes que se embatem e se enfrentam cotidianamente. Interessa, aqui, compreender que o poder se produz em relação, em ato, entre indivíduos (FOUCAULT, 1995). Nesse sentido, o poder é mirado como um exercício, nas relações que se estabelecem entre os sujeitos. Trata-se de compreender que as lutas são sim assimétricas, mas que envolvem também os processos de resistência. Quando abordamos as discussões sobre relações raciais e miramos, mais precisamente, as lutas contra o racismo, identificamos lutas assimétricas, mas ainda assim pulsantes nos mais diferentes períodos da nossa composição social, como nos colocam Lélia Gonzalez e Carlos Hasenbalg (1982), ao abordarem os movimentos de luta durante o período ditatorial (1964-1985), ou, ainda, as ações desenvolvidas pelo Teatro Experimental do Negro no decorrer da década de 1940. Há aqui, correlações de poder e, por isso mesmo, resistências.
11 Importante destacar que Silvio Almeida, ao trazer para o debate as discussões sobre racismo estrutural, nos alerta que não se trata de um conceito cunhado por ele, visto que outros pensadores e pensadoras já abordaram essa temática. Além disso, cabe sinalizar a crítica proferida por Jessé Souza (2021) em relação a sua discussão sobre racismo estrutural a qual, inclusive, discordamos. Almeida (2019), ao longo do debate elaborado em sua obra, sinaliza, insistentemente, as diferentes linhas que se articularam e se articulam para fazer com que o racismo tenha se tornado algo “normal” em nossa sociedade. Logo, não se trata de algo que “surgiu do nada” (SOUZA, 2021, p. 47), mas jogos de forças ora mais aparentes, ora mais dissimulados, mas nem por isso menos perversos. O diálogo que pretendemos travar neste texto não tem como propósito “explicar” o “surgimento” do racismo, como se propõe Jessé Souza, mas, sim, destacar o quanto há “metamorfoses” do racismo (MBEMBE, 2017) ao longo da nossa composição enquanto sociedade e sujeitos. Isso não se dirige à composição de um “vazio discursivo” – até porque, por meio das teorizações que alicerçam nossa escrita, entendemos que o discurso constitui sujeitos, práticas, etc. – visa, sim, demonstrar o quanto não há uma gênese do racismo, algo que possa ser explicado com base em “um” fenômeno, tampouco pode ser confundido com a categoria “classe social”. É possível, sim, que haja a intersecção entre diferentes marcadores sociais da diferença, os quais asseveram ainda mais a condição de certos sujeitos sociais, mas adentrar na discussão sobre interseccionalidade fugiria do propósito deste artigo. Por fim, cabe frisarmos que quando trazemos para o debate o conceito de racismo estrutural, não visamos encontrar “uma estrutura”, tampouco justificar que sendo estrutural o racismo, não deveríamos nos responsabilizar por ele. Pelo contrário, ao apontarmos para as diferentes tecituras que se articulam para a sua atualização no presente, pretendemos mobilizar o pensamento e nossas práticas para enfrentarmos a complexidade desse debate e entendemos que a escrita também é um instrumento de resistência e construção de outros possíveis.
12 É importante destacar que cada Estado da federação terá sua especificidade na formação policial. Logo, as taxas de letalidade policial podem variar de região para região. Isso não obsta a discussão sobre as relações raciais no âmbito das instituições, especialmente, quando os cursos de formação policial atribuem baixíssima carga horária direcionada a essa temática. Para um olhar mais detido sobre a Matriz Nacional Curricular para formação dos agentes de segurança pública, consultar Fagundes e Medeiros (2021).
13 No dia 20 de julho de 2020, um jovem de 16 anos foi morto com um tiro na nuca, após um policial penal (cargo correspondente a agente penitenciário) mirar em um grupo que, segundo a reportagem do jornal “Brasil de Fato”, atirava pedras na casa do agente. A mesma reportagem aponta que o jovem foi chamado de “neguinho” pelo policial, que portava arma de propriedade do sistema prisional e estava alcoolizado. Mais informações, vide: https://www.brasildefato.com.br/2020/07/22/policial-penal-que-matou-adolescente-de-montes-claros-mg-e-solto.
14 Em São Paulo, poucos dias após a morte de George Floyd, um policial pisou no pescoço de uma mulher negra imobilizada no chão. Segundo a reportagem da Folha de São Paulo, a ação do militar se deu porque a vítima havia solicitado para que o agente não seguisse agredindo um homem que já estava imobilizado na abordagem policial. Mais informações, vide: https://www1.folha.uol.com.br/cotidiano/2020/07/policial-pisa-no-pescoco-de-mulher-negra-e-arrasta-a-vitima-na-zona-sul-de-sp.shtml.
15 Ágatha Felix foi baleada, por policiais, no Complexo do Alemão. A menina de 8 anos foi atingida com um tiro de fuzil nas costas, quando estava dentro de uma Kombi, com a mãe. Mais informações, vide: https://g١.globo.com/rj/rio-de-janeiro/noticia/٢٠١٩/١١/١٩/policia-civil-afirma-que-nao-havia-tiroteio-na-hora-que-menina-agatha-foi-morta.ghtml. Acesso em: ٢٧ jul. 2020.
16 O caso João Pedro repercutiu em nível nacional por se tratar de um jovem negro, de 14 anos, morto dentro de casa, em São Gonçalo/RJ, por policiais em uma operação em uma favela local. Além do ocorrido, os familiares demoraram 17 horas para encontrar o corpo do adolescente, o qual havia sido retirado do local pelos policiais e levado para o IML sem qualquer acompanhamento da família. Mais informações, vide: https://g1.globo.com/jornal-nacional/noticia/2020/05/19/policia-abre-inquerito-para-investigar-morte-de-jovem-de-14-anos-em-operacao-policial-no-rj.ghtml. Acesso em: 27 jul. 2020.
ISSN 1517-5901 (online)
POLÍTICA & TRABALHO
Revista de Ciências Sociais, nº 56, Janeiro/Junho de 2022, p. 205-222
UM LEGADO DE SANÇÕES E CONFRONTAÇÃO:
as relações entre Cuba e EUA durante a administração Trump
A LEGACY OF SANCTIONS AND CONFRONTATION:
relations between Cuba and the USA during the Trump administration
____________________________________
Marcos Antonio da Silva*
Resumo
O presente trabalho analisa a dinâmica das relações bilaterais entre Cuba e EUA, durante a administração Trump, discutindo a mudança da política de aproximação, promovida por Obama, para o distanciamento e o retorno à lógica do conflito, típica da Guerra Fria. Neste sentido, discute o processo de retomada dos laços diplomáticos e analisa as principais iniciativas que conduziram a uma política de aproximação e cooperação, durante a gestão de Obama, que permitiu a superação de décadas de conflito e desconfiança recíproca, apresentando tal legado e debatendo os desafios e limites que impediram uma normalização efetiva das relações entre os países. Em seguida, analisa a mudança de estratégia adotada pela administração Trump, alinhada à sua política externa e a retomada do papel hegemônico dos EUA na região, que promoveu o retrocesso desse processo, retomando a lógica do conflito e da confrontação através de uma série de iniciativas que procuraram afetar a economia cubana, aprofundando o embargo econômico e isolando o regime cubano para determinar mudanças na ilha caribenha.
Palavras-Chaves: Cuba. EUA. Relações Diplomáticas. Conflito.
Abstract
This paper analyzes the dynamics of bilateral relations between Cuba and the United States, during the Trump administration, discussing the change in the policy of approximation, promoted by Obama, to the distancing and the return to the logic of conflict, typical of the Cold War. In this sense, it discusses the process of resuming diplomatic ties and analyzes the main initiatives that led to a policy of rapprochement and cooperation, during the Obama administration, which allowed overcoming decades of conflict and mutual mistrust, presenting this legacy and debating the challenges and limits that prevented an effective normalization of relations between countries. Then, it analyzes the change in strategy adopted by the Trump administration, in line with its foreign policy and the resumption of the hegemonic role of the USA in the region, which promoted the regression of this process, resuming the logic of conflict and confrontation through a series of initiatives who sought to affect the Cuban economy, deepening the economic embargo, and isolating the Cuban regime to determine changes on the Caribbean island.
Keywords: Cuba. USA. Diplomatic Relations. Conflict.
Introdução1
Ao longo de toda sua história contemporânea, e mais intensamente desde sua Revolução (1959), a dinâmica das relações entre Cuba e EUA impactou, de uma ou outra forma, a organização e as estruturas políticas, econômicas, sociais e culturais da ilha caribenha e impactou, também, boa parte das relações bilaterais e regionais na América Latina. Tal relação, dinâmica e intensa, oscilou entre a proximidade e a interferência, da independência até a ditadura de Batista, e o distanciamento e o conflito, no contexto da Guerra Fria, derivadas das mudanças estruturais promovidas pelo processo revolucionário cubano e seus laços com o bloco soviético, incidindo sua inserção internacional e regional. Tal dinâmica conflitiva perdurou até o século XXI, tornando-se uma das principais heranças da Guerra Fria no continente, impedindo a normalização efetiva das relações entre os países.
Neste sentido, o anúncio da retomada dos laços diplomáticos entre EUA e Cuba, em 2014, por Barack Obama e Raúl Castro, marcou uma virada histórica nas relações conflitivas entre os dois países, procurando modificar essa lógica e superar uma das principais heranças da Guerra Fria na América Latina. Isso gerou uma ampla expectativa sobre a continuidade e o aprofundamento de tais laços, já que inúmeros elementos, de parte a parte, indicavam um longo e tortuoso caminho para uma normalização efetiva das relações que dependia, em grande medida, da superação de inúmeros entraves históricos e legais e da dinâmica política interna de cada país.
Porém, tais expectativas logo se esvaneceram com a eleição de Donald Trump nos EUA que, ainda em campanha, já havia prometido rever o legado de Barack Obama, tanto na política doméstica como na esfera internacional, principalmente, a política de aproximação e normalização adotada em relação a Cuba. Isso era possível porque boa parte das medidas adotadas por Obama eram reversíveis, inclusive o embargo econômico2, e a normalização efetiva das relações dependia do aval do congresso estadunidense, dominado por republicanos, conforme previa a lei Helms-Burton do final do século XX.
Desta forma, este trabalho procura discutir como se desenvolveu a dinâmica das relações entre Cuba e EUA durante a gestão Trump, indicando que esse procurou reverter a política de seu antecessor, retomando a lógica da Guerra Fria, promovendo uma série de medidas conflitivas e aprofundando o embargo econômico como estratégia para promover a asfixia econômica da ilha, através de diretivas presidenciais e da implementação de artigos da lei mencionada. Tais medidas impactaram profundamente a ilha, embora não tenham alcançado os objetivos almejados.
Para tanto, o trabalho está estruturado da seguinte forma, além desta introdução e da conclusão, há uma primeira seção que analisa o processo de aproximação entre Cuba e EUA, apontando-o como resultado de uma série de convergências entre B. Obama e Raúl Castro e discute o legado de Obama, apresentado as principais iniciativas e os limites de tal processo. Em seguida, há outro tópico que discute a política de D. Trump em relação à ilha, analisando sua lógica e dinâmica, fundamentada na retórica do confronto, e repassa as principais medidas que conduziram à retomada da lógica conflitiva, típica da Guerra Fria, em relação à Cuba e à política regional.
Uma normalização intermitente? Inciativas e limites do legado de Obama.
Como aponta Silva (2017), o processo de reaproximação e normalização das relações entre Cuba e EUA, impulsionado pelo reatamento dos laços diplomáticos, anunciado em 2014, procurava superar uma das principais heranças da Guerra Fria na região. Esse processo pode ser compreendido como resultado da convergência de interesses que orientam a atuação dos grupos e setores que controlavam a política de cada país, a partir da liderança de Raúl Castro, no caso cubano, e de Barack Obama, como presidente estadunidense, indicando a tentativa de construção de um novo arranjo regional, com ênfase no diálogo e na cooperação, embora tenha sido motivado por diferentes razões.
Neste sentido, como indicam diversos analistas, ao se aproximar de Cuba, Obama realizou uma mudança profunda na política estadunidense para Cuba, superando a lógica da Guerra Fria, que havia norteado tal política por décadas, e que havia sido intensificada, mesmo após o fim do bloco soviético, através do embargo econômico como estratégia para forçar uma transição política no país.
Desta forma, ao longo dos anos 1990, foram promulgadas duas leis que procuravam aprofundar as dificuldades econômicas da ilha, partindo do pressuposto de que isso minaria o consenso e o apoio social ao regime cubano. Sendo assim, em 1992 foi promulgada, dentro do marco do Cuba Democracy Act, a lei Torriceli que proibia as subsidiárias de empresas norte-americanas no exterior de comercializarem com Cuba, estabelecendo severas punições para comerciantes que negociassem e para países que fornecessem subsídios para a ilha e limitando o número de autorizações para turistas dos EUA viajarem à Cuba (AYERBE, 2004).
Tais medidas foram aprofundadas quando, em 1996, o presidente Clinton sancionou a lei Helms-Burton, aprovada pelo congresso estadunidense, que em suas quatro seções procurava ampliar as iniciativas e os efeitos do embargo.
Essa normativa possuía uma primeira seção que regulamentava o embargo, tornando-o lei, e proibia o presidente dos EUA de normalizar as relações com Cuba ou formular qualquer política sem a aprovação do congresso – o que impactou diretamente a atuação de Obama – e, finalmente, estabelecia que os diretores americanos de instituições financeiras internacionais não aceitassem Cuba como membro e não concedessem a aprovação de empréstimos para o país. A segunda seção enumerava os requisitos e fatores, a combinação de restrições e incentivos a serem empregados para avaliar se e quando ocorresse uma transição à democracia no país. Na terceira seção, concedia-se aos cidadãos e empresas norte-americanos o direito de processar, nos EUA, aqueles que utilizaram propriedades nacionalizadas pelo governo cubano no início da revolução. E, por fim, a quarta seção impedia a entrada nos EUA de executivos de alto escalão e de acionistas majoritários, e suas famílias, das companhias que possuíssem negócios com Cuba e estavam instaladas em imóveis que haviam pertencido a empresas norte-americanas (AYERBE, 2004).
Devido à reação da comunidade internacional, nem todas as cláusulas entraram imediatamente em vigor, embora a lei tenha orientado, desde então, a política estadunidense para a ilha, variando a intensidade do distanciamento e o conflito conforme a orientação dos governos, em cada país, ou os temas envolvidos e que incidiam sobre a relação bilateral ou sobre a conjuntura mundial e regional.
Diante disso, o anúncio da retomada dos laços diplomáticos e, a partir disso, o processo de reaproximação, conduzido por B. Obama e Raúl Castro, parecia indicar a superação de décadas de conflito e desconfiança e, principalmente, a possibilidade de um novo marco nas relações bilaterais e regionais, reafirmando a hegemonia estadunidense nas condições do século XXI3.
Tal processo era derivado da constatação de uma convergência, multidimensional, de interesses entre as lideranças de cada país. Tais interesses envolviam, segundo Morgenfeld (2014), motivações geopolíticas, pois Obama pretendia recuperar a histórica posição hegemônica norte-americana na região e eliminar focos de resistências às políticas do país, o que, no caso cubano, tratava-se de aprofundar o processo de reinserção regional. Em seguida, estariam as motivações econômicas, pois enquanto os EUA pretendem acessar mercados e impulsionar sua atuação econômica regional, inclusive diante da ascensão da China ou de líderes regionais como o Brasil, para Cuba tratava-se de passar a ter acesso a mercado e capitais, bem como eliminar os efeitos nocivos do embargo econômico.
Além disso, como mencionado anteriormente, o ciclo eleitoral norte-americano contribuiu para essa iniciativa, como uma tentativa de obter o apoio hispânico, já almejado com a legislação migratória. Por fim, fatores de ordem geracional (de caráter pessoal e ideológico) parecem ter influenciado a tentativa de Obama, evidenciada em seus discursos, de superar uma política arraigada e sem efeitos, típica da Guerra Fria, impulsionando um aggiornamento da agenda norte-americana para o país e a região, enquanto, para Raúl Castro, tal processo indica a possibilidade de conduzir e influenciar os rumos dessa aproximação, adotando um pragmatismo diferente de seu irmão, mas sem rupturas (MORGENFELD, 2014)4.
Sendo assim, no caso estadunidense tal gesto pode ser compreendido como uma tentativa de superação de uma política ineficiente e, principalmente, na tentativa de construção de um legado, diante da proximidade de fim do mandato presidencial, pois, como apontam Pecequilo e Forner:
[...] a retomada das relações diplomáticas com Cuba no fim de 2014 faz parte do processo mais amplo de ofensivas políticas globais, regionais e internas do governo Obama (por isso a sua classificação intermestics). Em termos globais e regionais, o processo detém duas dimensões: a do descongelamento das interações com nações ditas “inimigas” (párias, rogué states no original), buscando cooptá-las para afastá-las de parcerias com outras potências e enfraquecendo seu discurso de autonomia. A ação em Cuba muito se assemelha à negociação com o Irã para a interrupção de seu programa nuclear e permite um reposicionamento estratégico dos EUA. A segunda dimensão refere-se a incentivar ofensivas políticas positivas em questões controversas, colocando em xeque críticos das posições norte-americanas, esvaziando iniciativas de outras potências. […]. a questão cubana possui dimensões de contenção e cooptação de grupos de interesse, visando ao fortalecimento do Partido Democrata, com foco nas eleições presidenciais de 2016 (PECEQUILO; FORNER, 2015, p. 31-32).
Desta forma, pode-se observar que, em 2014, Obama havia desenvolvido uma política de reaproximação, convergente com a agenda cubana, que se fundamentava em três eixos centrais: 1) reestabelecimento das relações diplomáticas; 2) revisão da manutenção de Cuba na lista de “países patrocinadores de terrorismo”; e 3) incremento do comércio, do trânsito de pessoas e de intercâmbio de informações entre os países.
A partir disso, pode-se afirmar que B. Obama procurou construir um legado que se inicia com a retomada dos laços diplomáticos, rompidos desde os anos 1960, com o desenvolvimento de uma política amistosa, como a retirada de Cuba da lista mencionada acima e, principalmente, com a elaboração ou o aprofundamento de políticas e iniciativas de cooperação entre os dois países, envolvendo diversos mecanismos e distintas áreas de interesse comum (migração, educação, tecnologia, tráfico de drogas, ...). Além disso, tal legado procurou intensificar o turismo, também orientado para a retomada dos laços familiares, e o intercâmbio científico e comercial entre as nações5.
Finalmente, ao revisar uma política que recebia fortes críticas da comunidade internacional, a atuação de Obama contribuía para uma projeção positiva da imagem internacional dos EUA, principalmente, no âmbito regional, pois, como aponta López-Levy:
A argumentação fundamental de Obama baseou-se no marco das dinâmicas regionais e globais, de forma que a retirada das sanções funcionou como um caso de teste: uma medida de soft power que visava a transformar a imagem dos Estados Unidos na América Latina e no mundo (LÓPEZ-LEVY, 2019, p. 3, tradução nossa).
Esse processo teve, como ponto culminante, a histórica visita de B. Obama a Havana, em março de 2016, a primeira em décadas de um mandatário estadunidense, com uma significativa comitiva composta por jornalistas e empresários. Em discurso no grande Teatro de Havana, Obama disse: “Por que agora? E por que agora? E há uma resposta simples: o que os Estados Unidos estavam fazendo não funcionava. Temos que ter a coragem de reconhecer a verdade: uma política de isolamento pensada para a Guerra Fria não faz sentido no século XXI, o embargo prejudicava os cubanos em vez de ajudá-los” (OBAMA, 2016, tradução nossa).
Dessa forma, o processo de reaproximação entre Cuba e EUA, além possuir uma evidente importância histórica e geopolítica, também contribuía para o incremento das relações econômicas, pois, como aponta Romero:
Para se ter uma ideia do que representa: I) 284 mil americanos e 329 mil cubano-americanos viajaram a Cuba em 2016, o que implicou um aumento de 34% dos viajantes que se deslocaram dos Estados Unidos para Cuba, no que diz respeito ao período anterior; II) a partir de setembro de 2016, começaram os voos diretos, com tarifas mais baixas e com maior previsibilidade no serviço, e somente entre setembro e dezembro de 2016, dez aeroportos cubanos receberam 1.833 voos diretos de oito empresas americanas; III) 223.000 cubanos também viajaram aos Estados Unidos para visitar suas famílias ou por outros motivos e voltaram à ilha; IV) quatro empresas de cruzeiros têm autorizações concedidas para viajar a diferentes portos cubanos; V) boa parte dos passageiros que se dirigiram à Cuba puderam utilizar os serviços de roaming que já possuem as principais operadoras de telefonia dos Estados Unidos; VI) em 2016, 229 delegações empresariais dos Estados Unidos com 2.428 membros visitaram Cuba; e VII) 23 acordos comerciais haviam sido concluídos em meados de janeiro de 2017 e vários outros estavam em fase de conclusão. (ROMERO, 2017, p. 95, tradução nossa).
Como se pode observar, tal reaproximação fomentou as relações econômicas e forneceu um impulso importante para a economia cubana, pois contribuiu para a dinamização de alguns setores dessa, principalmente o turismo, os investimentos e a remessa de divisas, apontando para o início de um ciclo virtuoso que, no entanto, necessitava superar uma série de obstáculos para a normalização efetiva das relações, incluindo uma série de temas relevantes que, na verdade, representavam desafios significativos para sua continuidade (VALDÉZ PAZ, 2016; ROMERO, 2017).
Tais desafios, como aponta Alzugaray (2017), representavam importantes demandas da parte cubana, algumas dessas superando o desejo e escopo da ação presidencial limitada pelo congresso estadunidense, o que indicava o caráter intermitente de tal processo de reaproximação, pois isso implicaria a superação de demandas que:
Esta visão contradiz não só as posições oficiais do governo cubano, mas a crescente percepção em amplos setores da sociedade de que é preciso trabalhar por uma relação normal que estimule a solução de problemas fundamentais nas relações: o bloqueio econômico, financeiro e comercial; a ocupação, contra a vontade cubana, do território onde está localizada a Base Naval de Guantánamo; políticas subversivas como a manutenção da Rádio e TV Martí; a Lei de Ajuste Cubana que incentiva a emigração e fuga de cérebros; e a compensação pelos danos causados à nação pelas políticas agressivas dos EUA são dificuldades para a normalização e indicam a possibilidade de retrocesso (ALZUGARAY, 2017, p. 216, tradução nossa).
Desta forma, apesar da convergência política e dos avanços significativos, a continuidade e o aprofundamento de tal processo estavam associados a diversos fatores e a superação crescente das demandas de cada parte, o que, no entanto, dependia da dinâmica política interna e, no caso estadunidense, a eleição de D. Trump, em 2017, provocou uma revisão de tal política e um retorno à lógica conflitiva das décadas anteriores.
A reversão de um legado ou uma nova Guerra Fria? Trump e a retomada da lógica do conflito nas relações entre EUA e Cuba
A ascensão de D. Trump, em 2017, à presidência da maior potência global provocou inúmeras expectativas e temores derivados, em grande medida, pela forma como ocorreu tal eleição e pelo estilo e promessas do novo presidente6, em que se combinavam elementos associados a um conservadorismo fundamentalista com uma perspectiva populista e nacionalista com a crítica à globalização e às instituições multilaterais. Neste sentido, sua atuação política indicava uma reviravolta doméstica, modificando a forma tradicional da ação política e o poder dos maiores partidos, e no plano internacional, revisando certos elementos da política externa estadunidense contemporânea, alicerçada no slogan de “America first”, procurando resgatar uma projeção internacional dos EUA e retomar o papel de protagonismo do país como superpotência, através do unilateralismo, na política internacional e regional7 (VINHA, 2018; HERNÁNDEZ MARTÍNEZ, 2018; ALZUGARAY, 2017).
Além disso, a retórica e a utilização intensiva das novas formas de comunicação associadas a uma linguagem direta e às ameaças e mudanças repentinas de comportamento apontaram uma nova era, instável e incerta, na dinâmica política internacional, com ações imprevisíveis e forte instabilidade em inúmeros aspectos do sistema internacional que foram se confirmando ao longo de seu mandato (CASTORENA; GUADÁSEGUI; MORGENFELD, 2018; FERNÁNDEZ TABÍO, 2019).
Esses elementos foram consolidados no informe sobre a “Estratégia de Segurança Nacional dos EUA”, publicado em 2017, e que orientou a estratégia internacional do governo Trump, que indicava que o país havia entrado em uma “nova era de rivalidade” na qual sua liderança estaria ameaçada por Rússia e China e identificava quatro pilares ou interesses nacionais vitais que o país iria desenvolver nos anos seguintes: “proteger o povo, a pátria e o estilo de vida norte-americano; promover a prosperidade do país; preservar a paz, mediante o uso da força; e, finalmente, impulsionar a influência norte-americana em todo globo” (UNITED STATES OF AMERICA, 2017).
No caso regional, como demonstram Castonena, Guadásegui e Morgenfeld (2018) e López-Levy (2019), dentre outros, a administração Trump procurou promover uma reatualização da Doutrina Monroe, tendo em vista as disputas com Rússia e China, desenvolvendo uma série de iniciativas bilaterais que priorizaram temas de interesse estadunidense (migração, comércio, acordos militares etc.) que foram potencializados pelos aliados tradicionais dos EUA na região (Colômbia, por exemplo) e, principalmente, pela ascensão de governos conservadores em diversos países (Brasil, Argentina e Chile, dentre outros), que convergiram para tal política, e na reversão da política de aproximação à Cuba, desenvolvida por Obama, reforçando a tentativa de isolamento regional e asfixia econômica da ilha.
A partir disso, torna-se mais evidente a atuação dos EUA em relação à América Latina, pois como aponta López-Levy:
Além disso, o que Bolton enunciou – dando força ao slogan de Trump: “Make America Great Again” – foi uma posição mais intervencionista dos Estados Unidos em relação ao hemisfério, que incluiu a reiteração da Doutrina Monroe e a ativação de uma mini-Guerra Fria contra a “Troika da tirania” na qual agrupou Venezuela, Nicarágua e Cuba. O discurso de Bolton articulou uma política em relação a Cuba nas antípodas daquela anunciada há muito tempo por Trump (anti-intervencionista, farto de promessas de promoção democrática e aberto a acordos de negociação). Ao retomar a Doutrina Monroe e a imagem de “quintal” dos Estados Unidos, Bolton voltou a apresentar Cuba como um fator de desestabilização regional, ligado à ideologia socialista e às pressões migratórias que ameaçam a “identidade americana” (LÓPEZ-LEVY, 2019, p. 7, tradução nossa).
Em relação à Cuba, deve-se observar que, ainda em campanha, Trump criticava a postura de Obama, condenando o regime cubano e indicando que, se eleito, iria rever tal política para, segundo ele, libertar o povo cubano, garantindo o apoio de cubano-americanos em diversos colégios eleitorais, principalmente na Flórida (TRUMP, 2016; ROMERO, 2017; FERNÁNDEZ TABÍO, 2019).
Neste sentido, condizente com sua política de revisão do legado de Obama e de desenvolvimento de uma estratégia de distanciamento e confronto que buscava asfixiar economicamente e, com isso, determinar mudanças na ilha caribenha, Trump irá adotar, ao longo de seu mandato, aproximadamente 240 medidas que afetaram, de uma ou outra forma, diversas dimensões das relações bilaterais ou que procuraram atingir a economia e o governo cubano ou seus parceiros comerciais e potenciais aliados ou investidores (RODRÍGUEZ RODRÍGUEZ, 2021).
Quando assumiu, Trump, assessorado por uma equipe opositora ao regime, procurou desenvolver uma série de medidas para reverter o legado de Obama, que foram sendo ampliadas ao longo do mandato, como aponta Guillén Ayala:
A política de Trump em relação à Cuba foi apoiada e aconselhada por uma equipe de oposição ao regime cubano, formada pelos setores mais conservadores da política estadunidense e cubano-americana pertencentes ao Executivo e ao Legislativo, como o Vice-Presidente Mike Pence, Secretário de Estado Mike Pompeo, Mauricio Claver-Carone e John Bolton do Conselho de Segurança Nacional, os senadores Marco Rubio, Ted Cruz e Richard Lynn Scott se destacam no Congresso, além do ex-deputado Carlos Luis Curbelo. Além disso, é preciso lembrar que o presidente dos Estados Unidos iniciou seu governo com um Congresso de maioria republicana. Por fim, há o apoio de grupos de pressão anticubanos e da comunidade cubano-americana. Todos os aliados tradicionais dos republicanos que apoiaram a política de isolamento em relação à Cuba desde o seu início (GUILLÉN AYALA, 2017, p. 1, tradução nossa).
Sendo assim, procurou reverter, desde o início de seu governo, as políticas implementadas por B. Obama adotando, em nome do povo cubano, uma estratégia unilateral que recuperava a lógica do período da Guerra Fria, denominada de “um regresso ao passado” por Fernández Tabío (2019) ou de “retorno ao conflito” segundo López-Levy (2019), procurando minar a economia cubana, atingindo atores políticos e econômicos relevantes, como as forças armadas, ou setores fundamentais dessa, como o turismo, o investimento e acesso a capitais e o comércio internacional.
Desta forma, sua primeira iniciativa importante, anunciada em 16 de junho de 2017 na simbólica Miami, indicava os contornos da nova política de Trump para a ilha e incluía as seguintes medidas: 1) a proibição das relações econômicas, comerciais e financeiras das companhias estadunidenses com empresas cubanas relacionadas com o Ministério das Forças Armadas (FAR) e o Ministério do Interior; 2) a proibição das viagens individuais de cidadãos estadunidenses na categoria de intercâmbios “povo a povo” e uma maior vigilância sobre os demais viajantes; 3) a revisão da política de vistos para assegurar uma maior efetividade dos programas de apoio, por parte dos EUA que, de acordo com as autoridades cubanas, tem como propósito essencial subverter a ordem institucional cubana; 4) a anulação da Diretiva Presidencial, emitida por B. Obama em outubro de 2016, que conduzia a paulatina normalização das relações bilaterais8 (ROMERO, 2017; FERNÁNDEZ TABÍO, 2019; NÉMETH LESZNOVA, 2019; ROGRÍGUEZ RODRÍGUEZ, 2021).
Essas medidas evidenciam a adoção de uma política que, em substituição à anterior, promoveu uma reversão do processo de aproximação, indicando que a nova estratégia tentaria promover o isolamento cubano e, principalmente, desenvolver iniciativas que pudessem afetar diretamente a economia cubana, para gerar insatisfação e, assim, promover a transição política na ilha caribenha, inclusive cancelando o acordo de reestabelecimento de relações diplomáticas, assinado por Obama em 2014.
No ano seguinte, Trump, seguindo recomendações de Bolton e Marco Rubio (senador republicano e crítico do governo cubano), procurou aprofundar esse processo de endurecimento em relação à Cuba, indicando a adoção de medidas envolvendo, pelo menos, quatro dimensões: redução ao mínimo o diálogo e a cooperação diplomática; construção de canais de contato com opositores do governo, que passaram a ser privilegiados; construção de uma narrativa que responsabiliza e atribui à Cuba os conflitos com Venezuela e Nicarágua; e, finalmente, uma tentativa de cooptar Canadá e União Europeia para as posições estadunidenses em relação à Cuba (LÓPEZ-LEVY, 2019, p. 7-8).
A partir disso, o presidente estadunidense ameaçou, já em 2018, incluir Cuba na lista dos “países patrocinadores de terrorismo” devido, em grande medida, ao seu apoio ao presidente da Venezuela, o que só foi concretizado depois de sua derrota eleitoral e há poucos dias de encerrar seu mandato presidencial, em janeiro de 2021, e que, devido à falta de fundamentação ou provas consistentes que justificassem tal inclusão, foi percebido pela comunidade internacional como uma forma de dificultar a revisão de suas iniciativas e qualquer processo de reaproximação por parte de seu sucessor.
Naquele mesmo ano, procurando dificultar o acesso a vistos por parte dos cubanos, Trump ordenou o fechamento, alegando supostos ataques sônicos aos diplomatas estadunidenses9, do Escritório Local de Serviços de Cidadania e Migração da Embaixada dos Estados Unidos em Cuba, transferindo parte dos serviços para o México, aumentando os custos para essa solicitação, e impôs a redução de pessoal nas missões diplomáticas em Washington e Havana.
Em 2019, o Departamento de Tesouro e o Departamento de Comércio dos EUA, orientados por Trump, emitiram resoluções eliminando as licenças gerais de viagens educativas grupais “pueblo a pueblo” e passaram a negar as licenças para aeronaves não comerciais e embarcações de passageiros e recreativas, incluindo os cruzeiros, impactando o número de viajantes à ilha caribenha e afetando o turismo e, consequentemente, boa parte da economia cubana (NÉMETH LESZNOVA, 2019; RODRÍGUEZ RODRÍGUEZ, 2021).
Esse processo, de asfixiamento econômico, também foi aprofundado com a aplicação de uma série de ameaças e multas para inúmeras companhias comerciais e financeiras, inclusive bancos, que realizavam negócios com companhias cubanas, indicando que: “O cerco financeiro à Cuba, portanto, se intensificou no último ano em função dos mecanismos de vigilância e controle exercidos pelos Estados Unidos sobre a atividade bancária internacional e pelas multas milionárias que foram impostas a bancos estrangeiros nos últimos anos” (NÉMETH LESZNOVA, 2019, p. 21, tradução nossa).
O ápice desse processo de distanciamento e implementação de uma lógica do conflito ocorre quando, no começo de 2019 e novamente na Flórida, Trump acusa o regime cubano de contribuir para o caos na Venezuela, devido ao apoio a Nicolás Maduro, e de enviar armas para a Coréia do Norte, anunciando que iria aprofundar sua política contra a ilha. Para tanto, iniciou a revisão dos capítulos III e IV da Lei Helms-Burton10, reduzindo o prazo de suspensão para 45 dias e, logo depois, aprovou sua entrada em vigor, em 2 de maio de 2019, como aponta Guillén Ayala (2019).
Dessa forma, a aplicação de tais artigos permite a qualquer pessoa com negócios em Cuba reconsiderar se não traficava com propriedades estadunidenses confiscadas e possibilitava aos seus cidadãos ingressar com demandas, em tribunais estadunidenses, contra empresas ou grupos que comerciavam em tais propriedades ou que mantivessem relações comerciais que usufruíssem disso, afetando profundamente diversos setores da economia cubana, principalmente o turismo, conforme apontam Mesa-Lago (2019), Fernández Tabío (2019), López-Levy (2019) e Rodríguez Rodríguez (2021).
Além disso, o Departamento de Estado dos EUA elaborou uma lista de mais de duzentas empresas relacionadas com o governo cubano e que poderiam ser demandadas, em tribunais estadunidenses, por essa legislação, embora tenha excluído algumas empresas de outros países. De toda forma, isso levou a rede hoteleira Marriot a ser obrigada a abandonar suas atividades na ilha, no início de 2020, assim como o Apple Leisure Group, que também se retirou, apesar da crítica generalizada na comunidade internacional contra a aplicação dessa lei.
Naquele mesmo ano, a operadora Western Union também deixou de operar no país, devido às sanções do governo Trump, afetando as transações comerciais e, principalmente, o envio de remessas de migrantes cubanos à ilha caribenha e infligindo outro golpe a sua economia.
Todas essas medidas afetaram, de uma ou outra forma, os principais setores da frágil economia cubana, provocando perdas significativas, embora não tenham atingido os objetivos almejados, devido ao apoio de países como Rússia e China, além de um processo de retomada de laços com a UE e boa parte da comunidade internacional, que procura alternativas à aplicação da lei mencionada11. Além disso, essas medidas não conduziram à transição almejada e parecem reforçar, assim como na Guerra Fria, o apoio à liderança cubana que tem conseguido realizar uma outra transição, de atualização do modelo e de cunho geracional, e as iniciativas para a superação do isolamento internacional proposto pelos EUA.
Neste sentido, ao realizar um balanço das sanções econômicas da era Trump contra Cuba, Rodríguez Rodríguez aponta que
El sistema de sanciones económicas coercitivas unilaterales de Estados Unidos contra Cuba es el más abarcador que se ha impuesto a nación alguna en época reciente y el más duradero en el tiempo. Mucho más porque el bloqueo económico, comercial y financiero no es un cuerpo único de medidas tomadas en un momento determinado. Por el contrario, es un complejo sistema de leyes, acciones ejecutivas y políticas específicas, producidas, modificadas y aplicadas a lo largo de seis décadas, que afecta a todos los aspectos de la vida social y económica de Cuba y que, por su extraterritorialidad, tiene un alcance global (RODRÍGUEZ RODRÍGUEZ, 2021, p. 530).
Por fim, como já mencionamos, depois de sua derrota eleitoral e a poucos dias de deixar a Casa Branca, Trump incluiu, sem razões consistentes, Cuba na lista de países patrocinadores de terrorismo, dificultando qualquer política de revisão de suas medidas, de forma imediata, e adiando, dessa forma, a possiblidade de retomada rápida de medidas econômicas e comerciais que conduzam a um processo de reaproximação entre os países, indicada por Joe Biden, ainda que de forma tímida, e esperada pelo governo cubano, até a retirada oficial da ilha de tal lista.
De toda forma, convergimos com González Morales (2021) que – ao discutir os fatores determinantes, os atores-chave e os possíveis cenários para compreender a dinâmica da política dos EUA para Cuba – indica que algumas premissas são fundamentais para sua análise, como o fato de que tal política é expressão de um conflito histórico assimétrico, de que a essência dessa é a de mudar o sistema político e socioeconômico cubano, de indicarem relações complexas, voláteis e permeadas de profundas diferenças, de que a dicotomia confrontação-diálogo/cooperação está sempre presente e, por fim, de que ambos os países compartilham interesses mútuos e ameaças que afetam a segurança nacional e tudo isso será fundamental neste novo momento.
A partir disso, como assinala o autor, é possível indicar que o alcance e o conteúdo da política de Biden à Cuba dependerá dos seguintes fatores e atores: a visão estratégica do governo estadunidense sobre como Cuba poderá afetar seus interesses de política exterior e segurança nacional; da posição, em relação à Cuba, dos seus principais assessores e altos funcionários; do nível de prioridade desse tema na agenda governamental; da capacidade de influência e interferência da direita cubano-americana ou mesmo democrata sobre o tema; do papel e mobilização dos setores norte-americanos e da comunidade cubana favorável ao melhoramento das relações e da evolução do situação interno em Cuba e de sua projeção internacional e da dinâmica regional, considerando a inserção e os interesses cubanos e estadunidenses (GONZÁLEZ MORALES, 2021, p. 72-78).
De toda forma, os sinais emitidos pelo novo governo estadunidense, e a recepção por parte da liderança cubana, parecem indicar que, apesar das dificuldades, há condições e interesses para uma reaproximação e uma nova dinâmica nas relações entre Cuba e EUA. Apesar disto, até o momento, não há sinais e nem avanços consistentes para a superação da lógica conflitiva e unilateral, típica da Guerra Fria, e da herança de Trump, indicando a manutenção de tal política ou uma retomada que, caso ocorra, tende a ser lenta e gradual.
Conclusão
Este trabalho procurou discutir a dinâmica das relações entre Cuba e EUA durante a administração de D. Trump, considerando sua política de reversão do legado de Obama e de desenvolvimento de uma estratégia de distanciamento e conflito, inserida nos marcos de sua política externa, unilateral e de inserção global e regional.
Para tanto, procurou demonstrar que, depois de décadas de distanciamento e conflito, o processo de reaproximação, a partir das iniciativas de Barack Obama e Raúl Castro, oficializadas em 2014, marcou uma virada história nas relações entre os países, gerando inúmeras expectativas, impulsionado por uma convergência de interesses que indicavam a possiblidade de desenvolvimento de uma relação baseada no diálogo e na cooperação, apesar do longo caminho e da necessidade de superação de uma série de entraves e demandas para a normalização efetiva da relação entre esses países.
De toda forma, tal ação foi um dos importantes legados de B. Obama que realizou avanços significativos, como a retomada das relações diplomáticas, a exclusão de Cuba da lista de países terroristas e, principalmente, a ampliação dos contatos, a colaboração em distintos temas e o intercâmbio comercial, além da intensificação do turismo. No entanto, tais medidas, apesar de importantes, eram insuficientes para permitir a normalização efetiva das relações, pois mantinha-se uma série de entraves e demandas de parte a parte, em que se destacava o embargo comercial dos EUA à Cuba, que só poderiam ser superados com a autorização do congresso norte-americano. Em suma, esse processo de reaproximação e, de certa forma, o legado de Obama, não era irreversível.
Neste sentido, a ascensão de D. Trump à presidência estadunidense provocou seu congelamento e, principalmente, a reversão de tal política e a retomada da lógica conflitiva, nos moldes da Guerra Fria, que havia conduzido essa relação nas décadas anteriores, em sintonia com a política externa unilateral desenvolvida por sua administração em relação a determinadas nações e temas globais e regionais (migração, meio ambiente, cooperação etc.).
Dessa forma, Trump promoveu uma série de medidas políticas e diplomáticas, cerca de 240, para isolar e asfixiar economicamente a ilha caribenha, destacando-se a revogação da diretiva presidencial promulgada por Obama e, principalmente, vetos às relações comerciais e à aplicação de vários capítulos da Lei Helms-Burton, que proibiam qualquer tipo de relação comercial em propriedades expropriadas, no início da Revolução, e permitem a possibilidade de instauração de processos, em solo norte-americano, contra companhias estadunidenses ou internacionais, infligindo severos impactos à economia cubana, principalmente em relação ao turismo e ao envio de remessas.
Apesar disso, com a eleição de Joe Biden e as primeiras indicações de seu governo em relação ao tema, assim como a reação do governo cubano, é possível apontar que determinados fatores e atores, como discutimos acima, serão fundamentais para as premissas estruturais de tal relação e da herança de Trump mas, até o momento, não ocorreram sinais ou avanços significativos que possam apontar para a superação do legado de distanciamento e conflito, e a retomada de um processo de aproximação e diálogo que permita a normalização efetiva das relações entre Cuba e EUA, superando, finalmente, uma das principais heranças da Guerra Fria na América Latina.
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Recebido em: 24/05/2021
Aceito em: 25/11/2021
1* Doutor em Estudos sobre a Integração da América Latina (Prolam/USP). Professor do Programa de Pós-graduação em Sociologia (PPGS) e do curso de Ciências Sociais da Universidade Federal da Grande Dourados (UFGD). Foi membro do Laboratório Interdisciplinar de Estudos sobre a América Latina (Lial). E-mail: marcossilva@ufgd.edu.br
1 Uma versão deste trabalho foi apresentada no IX Seminário Nacional de Sociologia e Política, em 2020, organizado pela Universidade Federal do Paraná (UFPR).
2 Neste sentido, vale ressaltar que, para o governo cubano, o embargo econômico é, sem dúvida, o principal obstáculo para a normalização das relações e o desenvolvimento de uma relação respeitosa entre os dois países. Neste sentido, Raúl Castro reafirmou perante Obama, em sua visita à ilha: “El embargo es el obstáculo más importante para nuestro desarrollo económico y el bienestar del pueblo cubano” (OBAMA, 2016).
3 Neste sentido, afirma López-Levy: “Él [Obama] reemplazó una estrategia imperial coercitiva por otra de corte hegemónico y persuasiva. Al hacer eso puso la política estadounidense hacia Cuba sobre bases racionales y en un sendero en el que los dos países pueden ganhar” (LÓPEZ-LEVY, 2019, p. 4).
4 Além disto, como aponta López Segrera, há dois fatores fundamentais: a percepção de que a ascensão de Raúl Castro não afetaria a estabilidade do regime cubano e a crescente opinião, entre a classe política estadunidense e outros setores, da falência da estratégia tradicional (LÓPEZ SEGRERA, 2015).
5 Como destacam Fernández e Romero Wimer, pode-se observar o incremento do interesse de investimentos estadunidenses e do turismo para Cuba diante de tal política, antes do giro promovido por D. Trump, pois: “Asimismo, el restablecimiento de las relaciones diplomáticas entre Cuba y los EEUU también incentivo el ingreso de turistas estadounidenses y el desarrollo de planes de inversión de capitales de este origen. Por ejemplo, las compañías hoteleras Marriot y Apple Leisure Group han mostrado interés en invertir en el país. En este sentido, existen influyentes intelectuales que promueven este tipo de negocios de manera abierta. No obstante, la política exterior estadounidense hacia Cuba tuvo un giro notório con el cambio de la administración de Barack Obama a Donald Trump. Mientras, en 2014 Obama consiguió un histórico acercamiento, Trump durante 2017 endureció las medidas contra las visitas turísticas de estadounidenses y estableció restricciones a las inversiones y al comercio con la isla” (FERNÁNDEZ; ROMERO WIMER, 2018, p. 62).
6 Neste sentido, Vinha aponta que: “Contudo, não obstante os inúmeros apelos à reforma das instituições políticas americanas ao longo das últimas décadas, a eleição de Trump leva o autor a equacionar a sua conveniência na atual conjuntura política. A eleição de Trump resulta fundamentalmente das disfunções das instituições políticas. Os mecanismos de bloqueio institucional consagrados na Constituição, associados à polarização e fragmentação partidária, catalisaram um sentimento generalizado de descontentamento político que permitiu que Trump lançasse uma tomada hostil do Partido Republicano e conquistasse a presidência americana” (VINHA, 2018, p. 27).
7 Para Alzugaray: “Nada ilustra mejor esta proyección que el conocido lema de su campaña electoral: “Let’s make America great again.” Como se ha señalado en un texto de obligada consulta para entender mejor este tema: “La esencia de la visión de Trump sobre el mundo es la revitalización de la grandeza nacional estadounidense. Quiere que Estados Unidos vuelva a ser trascendental. ‘Norteamericanismo’, dice, ‘no globalismo será nuestro credo’. Ello significa que bajo Trump, Washington actuará hacia el mundo con un unilateralismo rampante que ya ha tomado la forma del uso desembozado de la fuerza militar, como lo hizo en Siria; de la amenaza del uso de la misma, como lo ha hecho en Corea del Norte; y del abandono del llamado orden mundial liberal que tuvo en Barack Obama su máximo exponente” (ALZUGARAY, 2017, p. 218).
8 Neste sentido, Rodríguez Rodrígues afirma que: “En relación con Cuba, en junio de 2017, Trump anunció en Miami que el objetivo de su política era “entorpecer la actividad económica del ejército cubano para instar al gobierno de Cuba a proporcionar una mayor libertad económica y política al pueblo de Cuba”. Por consiguiente, según su retórica, sus medidas económicas coercitivas unilaterales solamente iban dirigidas a penalizar al Gobierno y a las Fuerzas Armadas y no al pueblo cubano” (RODRÍGUEZ RODRÍGUEZ, 2021, p. 518-519).
9 Até o momento, nenhum estudo comprovou algum fundamento em tal alegação e Gonzáles Morales aponta que: “Con relación a los alegados incidentes acústicos, el pasado 2 de febrero trascendió el contenido del informe elaborado por el Centro de Prevención y Control de Enfermedades de Estados Unidos (CDC, por sus siglas en inglés) que realizó una investigación epidemiológica durante dos años y no pudo determinar ni la causa ni la naturaleza de los daños reportados por los diplomáticos estadounidenses (Kornbluh, 2021). Estos resultados evidenciaron una vez más que no existen pruebas científicas sobre su ocurrencia. (...) Estos elementos indican que prevalecieron motivaciones políticas al emplear los supuestos hechos como pretexto para dañar sensiblemente las relaciones bilaterales y, en especial, los espacios y mecanismos de diálogo. Las investigaciones efectuadas durante los últimos cuatro años por las instituciones estadounidenses especializadas, incluyendo el FBI, no han arrojado ningún resultado que vincule a Cuba con el llamado “síndrome de La Habana” (GONZÁLEZ MORALES, 2021, p. 70-71).
10 Guillén Ayala aponta que: “A la luz del discurso de «beneficiar» al pueblo cubano, Trump no esconde el deseo eterno de Estados Unidos de lograr la transición política en Cuba, por lo que busca impedir que el régimen, que posee gran participación en la economía y la industria turística de ese país, siga beneficiándose de la apertura. Para ello, revisó y puso en vigor los títulos III y IV de la Ley de Libertad y Solidaridad Democrática Cubana (Ley Helms-Burton) de 1996, suspendidos hasta ahora cada 6 meses por todos los mandatarios estadounidenses debido a los conflictos que estas normas propician en el ámbito de las relaciones con terceros países” (GUILLÉN AYALA, 2019, p. 1).
11 Segundo Németh Lesnova: “La promulgación de la aplicación del Título III de la Ley Helms-Burton condujo a la aprobación de “legislaciones antídotos” diseñadas por terceros como México, Canadá y la Unión Europea, para protegerse ante las afectaciones causadas por la aplicación de esta normativa. Esta última – actualmente, primer socio económico de Cuba– aprobó un “Estatuto de Bloqueo” que prohíbe la ejecución dentro de su territorio de sentencias judiciales de Estados Unidos relacionadas con el Título III de la Ley Helms- Burton” (NÉMETH LESZNOVA, 2019, p. 23).
ISSN 1517-5901 (online)
POLÍTICA & TRABALHO
Revista de Ciências Sociais, nº 56, Janeiro/Junho de 2022, p. 223-238
Resenha
AS LÓGICAS SOCIAIS DO GOSTO
THE SOCIAL LOGIC OF TASTE
____________________________________
Luana Lopes1*
Camila Bourguignon de Lima**
PULICI, Caroline; FERNANDES, Dmitri Cerboni (org.). As lógicas sociais do gosto. São Paulo: Editora Unifesp, 2019. 328 p.
Resumo
O gosto está no cerne das práticas culturais que estruturam a vida social. Segundo essa perspectiva, o livro organizado por Carolina Pulici e Dmitri Fernandes apresenta ao longo de oito capítulos de autoria de pesquisadores nacionais e internacionais as correspondências estruturais entre os consumidores culturais e seus gostos. Publicado em 2019 pela editora Unifesp, os capítulos podem ser considerados referências teóricas no debate sociológico sobre o espaço das posições sociais e o espaço dos estilos de vida, a partir de fundamentação empírica na gênese social do gosto. Vale ressaltar que as contribuições dialogam com a teoria bourdieusiana visando pôr a prova o arsenal teórico-conceitual em uma realidade distinta do país originário da teoria, que é o caso do Brasil.
Palavras-chave: Sociologia do gosto. Distinção social. Estetização do gosto. Hierarquia social.
Abstract
Taste is at the heartwood of the cultural practices that structure social life. According to this perspective, the book organized by Carolina Pulici and Dmitri Fernandes presents over eight chapters by national and international researchers the structural correspondences between cultural consumers and their tastes. Published in 2019 by the publishing company Unifesp, the chapters can be considered theoretical references in the sociological debate on the space of social positions and the space of lifestyles, based on an empirical foundation in the social genesis of taste. It is worth mentioning that the contributions dialogue with Bourdieusian theory aiming to test the theoretical-conceptual arsenal in a reality different from the country originating from the theory, which is the case of Brazil.
Keywords: Sociology of taste. Social distinction. Aestheticization of taste. Social hierarchy.
Não discutir ou questionar o gosto é algo visto quase como uma regra de etiqueta socialmente compreendida pelos sujeitos e embasada pelo princípio de que “gosto não se discute”. Isso porque, o gosto é considerado uma elaboração exclusivamente individual e, deste modo, questionar o gosto de alguém por algo soa presunçoso.
Em As lógicas sociais do gosto (2019), livro organizado por Carolina Pulici e Dmitri Fernandes, apresenta uma coletânea de estudos que explora uma agenda de pesquisas no contexto nacional e francês que contrariam o gosto como uma capacidade de julgamento estético exclusivamente individual e apresentam-no como uma disposição submetida às lógicas sociais e de distinção. Conforme apresentado por Monique de Saint Martin, no prefácio da obra, os artigos discutem a inexistência de um gosto inato e, ao mesmo tempo, a sua construção partir de jogos de aproximação e distanciamento, de oposição, de classificação e hierarquização no espaço social. Para Saint Martin, os estudos reunidos pelos organizadores da obra se mostram como a constituição de um campo de pesquisa das ciências sociais no Brasil que tem ganhado autonomia ao se desvincular da sociologia da cultura e da arte, denominado como “sociologia e história social do gosto”.
O prefácio do livro aborda a construção do gosto como um objeto de estudo no campo das ciências sociais que nem sempre foi considerado um tema prestigioso de ser pesquisado em razão da lógica hierárquica das pesquisas nesse campo intelectual. Estudos sobre esse tema tornaram-se relevantes quando as práticas dos agentes não eram mais suficientemente explicadas por uma questão exclusiva de renda e as condições culturais de socialização passaram a ser acionadas para esse tipo análise. Ainda no prefácio, é exposto que a coletânea de pesquisas, ao reunir estudos produzidos em diferentes contextos, representa casos particulares do possível. Deste modo, é concebível a extração de regularidades nas distintas situações observadas sem condicionar a escolha a uma classe social ou ignorar que o sentimento de aversão e desgosto por práticas e estilos de vida diferentes é um marcador importante de classe – evidenciando a complexidade das análises sobre a construção do gosto.
A introdução do livro, intitulada Por uma sociologia do gosto no Brasil, que foi escrita pelos organizadores, apresenta um breve panorama sobre os estudos do gosto. Como já apontando inicialmente, o gosto era um tema de pouca abertura no campo das ciências sociais brasileira e esse tipo de discussão estava destinada a áreas do conhecimento como a filosofia, a comunicação e o marketing. Em uma perspectiva internacional, desde a década de 1960, o gosto já se constituía como um tema de estudo de sociólogos dedicados à compreensão da cultura. Nomes como Pierre Bourdieu, Richard Hoggart, Edward Palmer Thompson, Raymond Williams e Norbert Elias destacaram-se como pioneiros nesses estudos que avançavam na compreensão sobre a estratificação das sociedades, considerando o consumo cultural e o gosto como princípios da hierarquização social.
Ainda na introdução, Pulici e Fernandes apresentam as tendências dos estudos da sociologia do gosto, indicando sumariamente que há um conjunto de pesquisas publicadas no final do século XX que defendiam como ultrapassada a tese da homologia entre o campo da produção cultural e o campo do consumo. Outra tendência de pesquisa apontada pelos organizadores trata-se de estudos denominados por eles como “unilaterais” por dedicarem-se à análise exclusiva da produção artística ou da preferência do público sem a integração dessas duas vertentes analíticas. Por fim, indicam a existência de estudos que analisam os discursos ditos “autorizados” que são aqueles que tratam da apropriação legítima dos bens culturais problematizando as possibilidades de ecletismo cultural.
A alimentação solene e parcimoniosa: práticas gastronômicas como fonte de distinção das elites paulistanas é o capítulo de abertura do livro, escrito por Carolina Pulici, e que trata das diferenças sociais exteriorizadas por meio do consumo alimentar. Nesse estudo de metodologia qualitativa, a autora entrevistou agentes das elites culturais e econômicas buscando compreender como as classes dominantes administram a arte de se comportar à mesa e como elaboram o que é considerado “comer bem”. À vista disso, os informantes da pesquisa relataram situações em que mobilizaram investimentos para experienciar esteticamente a culinária de maneira que ultrapassava qualquer experiência meramente do consumo do alimento e se estendia para as suas referências culturais e históricas. Ou seja, não se trata apenas de consumir, mas de vivenciar a gastronomia como uma prática cultural distintiva.
O comportamento oposto e até observado com desprezo é exemplificado pelos informantes por momentos em que presenciaram as refeições feitas por agentes das classes populares, por vezes – fazendo referência aos seus empregados – que além de consumirem grandes porções de alimentos, comendo sem parcimônia ou cerimônia, fazem combinações impensáveis para aqueles que valorizam a harmonia da cozinha e que repreendem a voracidade do gosto popular. O controle das pulsões naturais, assim como o das satisfações corporais, é o que aproxima os agentes de práticas distintivas – o comer pouco, o apresentar, servir e fruir os alimentos – e os distancia de práticas que beiram ao grotesco, isto é, o exagero nas porções e a comida “pesada”. O estudo evidencia as hierarquias sociais expressas no campo da alimentação para as frações das elites paulistanas e que operam práticas distintivas a partir da construção do eu “como um apreciador da estética da gastronomia” e do outro como aquele que prefere a fartura bem-vista nas classes populares.
O segundo capítulo, intitulado Moderno sob medida: produtores e clientes do mobiliário paulistano nos anos 1950 e que foi escrito por Camila Gui Rossati, é um estudo que analisa como as condições sociais que estruturaram a formação do gosto moderno na capital paulista. A autora analisou três arquitetos importantes para a construção de uma estética progressista que se desvinculava do ar pomposo e de ostentação à la Luís XV e prometia aos novos mobiliários a beleza e funcionalidade – características da modernidade e das transformações culturais da cidade de São Paulo. Deste modo, foi apresentada a trajetória social de Lina Bo Bardi, Jacob Ricthi e Zanini Caldas, reconstituindo as redes de relacionamentos pessoais e rede de clientes desses arquitetos, analisando também os desenhos dos mobiliários produzidos e a linguagem utilizada nos portfólios de demonstração e nos catálogos de venda. O resultado foi a constatação de que cada um dos agentes pesquisados apresentava uma produção de mobiliários direcionada para um público específico, ainda que todos produzissem um mobiliário moderno, observou-se preferências e práticas distintas entre eles.
Segundo a pesquisadora, a distinção, tanto entre os produtores dos artefatos quanto entre os consumidores, estava relacionada com as redes de sociabilidades tecidas por eles: Bo Bardi e Ricthi tinham uma produção exclusiva, autônoma, encomendada e de material nobre que era destinada a consumidores atraídos pelo valor simbólico das peças e que circulavam entre profissionais ligados às artes e cultura. Em oposição, Zanini Caldas, ao constituir redes de relações menos prestigiosas que os arquitetos anteriores, produzia móveis em larga escala, com produtos padronizados, traços e cores arrojados e com materiais pouco nobres – o que reduzia os custos da produção. Seu trabalho era proposto ao público em geral por meio de anúncios e revistas. As trajetórias apresentadas mostraram produtores e consumidores desigualmente distribuídos no espaço social em razão do volume e estrutura do capital econômico e cultural que os fazia mais ou menos distintos.
O terceiro capítulo denominado Pode aplaudir que a orquestra é sua: o recrutamento social do quadro de assinantes da Osesp como estratégia de consolidação é a chave para compreender os valores simbólicos que vinculam a Orquestra Sinfônica do Estado de São Paulo (Osesp) ao grupo de assinantes que lhe deu apoio social em meados dos anos 2000. A Osesp é identificada no campo da cultura musical legítima e o pesquisador Ricardo Teperman propõe compará-la à Sociedade de Cultura Artística, uma das instituições promotoras de música clássica mais longevas de São Paulo, estabelecendo um paralelo entre a oferta de concertos e o perfil dos assinantes, além de analisar a atuação do Serviço de Voluntários da Osesp, revelando o imaginário compartilhado por esse grupo de expressiva projeção profissional que era formado, sobretudo, por empresários e executivos.
Para a construção da pesquisa sobre a Osesp, o pesquisador reuniu como fonte as declarações públicas dos maestros, reportagens da imprensa, publicações da coluna “Tribuna”, programas de concertos e sondagens sobre o público da Osesp, a fim de comprovar o que estava em jogo para além propriamente da música clássica, no projeto de reestruturação da orquestra. Embora a Osesp buscasse construir o recrutamento de quem não fazia parte nem do circuito de música clássica, nem das frações da elite, mais da metade dos assinantes e voluntários angariados nas campanhas vinham do “clube” da Cultura Artística. Essa adesão, apesar de importante para o estabelecimento da instituição, emitia o sinal de exclusividade próprio da cultura legítima, revelando a ambivalência do projeto da orquestra.
O discurso cultivado sobre a arte: o ‘Musée Égoïste’ do Nouvel Observateur”, de autoria de Louis Pinto, é o quarto capítulo e está apresentado sob a forma de quatro seções: a) um jogo regrado; b) o que se encontra no “Museu Egoísta”; c) a hierarquização social dos Museus Egoístas; e d) o discurso do prazer. Nesse formato, o leitor é conduzido a entender a lógica das publicações da coluna “Musée Égoïste”, na importante revista semanal francesa “Le Nouvel Observateur”, por meio de um corpus de 74 escritos sobre arte elaborados por convidados qualificados e aptos a comentarem livremente sobre obras de arte de livre escolha. A análise caracteriza o julgamento propriamente estético de romancistas, poetas, universitários, curadores, ensaístas, cientistas, médicos, arquitetos, profissionais do teatro e do cinema.
A conclusão da pesquisa é de que a escrita dos colunistas e as propriedades dos discursos em torno da arte têm relação com as propriedades sociais de quem escreve. Quer dizer, as impressões espontâneas que acabam por tomar evocações subjetivas de memórias e sensações referem-se aos autores que ocupam posições dominadas no espaço social. Por outro lado, quanto maior o capital cultural específico, maior é a autoridade para se exprimir sobre o assunto “arte”, porque, neste caso, os autores tendem a privilegiar a obra em detrimento da pessoa. Nesse sentido, fica evidente que as publicações na coluna “Museu Egoísta” se organizam a partir de três núcleos principais: o dos comentadores autorizados; dos criadores reconhecidos e o dos amadores esclarecidos. Sem deixar de mencionar a correspondência entre as características sociais dos colunistas e as maneiras cultivadas de perceber as obras, sugerindo que a experiência social e pública de arte não está afastada de uma forma de vida “interior”.
Os resultados de uma pesquisa realizada com estudantes do terceiro ano do ensino médio em duas escolas de cidades vizinhas no estado de Minas Gerais são apresentados no quinto capítulo, Uma janela para o mundo: a apreciação socialmente diferenciada de telejornais policiais brasileiros. O estudo tem como objetivo analisar a apreciação diferenciada dos discursos imagético e vocabular dos programas televisivos, Cidade Alerta e Brasil Urgente e seus respectivos apresentadores, por agentes com diferentes posses de capital econômico e cultural e distintas experiências sociodemográficas. Para os autores, Dmitri Cerbocinni Fernandes e Fábio Ricardo dos Anjos Ribeiro, a apreciação dos programas é orientada pelo habitus dos estudantes, que pode ser observado por meio da identificação ou pelo distanciamento do discurso empregado nos dois programas policiais.
Os dois grupos de estudantes pesquisados apresentavam estruturas morfológicas distintas – e que foram classificados como pertencentes à classe baixa e classe média – reagiram distintamente aos programas policiais televisivos. Os estudantes que faziam parte do grupo de classe baixa, socialmente desprivilegiados, com pais e mães com baixa escolarização, empregos precários e que apresentavam uma condição de classe permeada de privações, apreciavam os telejornais policiais como uma maneira de “conhecer a realidade e os perigos do mundo”. Igualmente, identificavam neste tipo de programa uma prática quase que pedagógica ao compreenderem quais os comportamentos eram reprovados pelos apresentadores que se mostram indignados com a impunidade dos crimes e que são sujeitos que não têm medo de “falar a verdade” na televisão.
Contrariamente, o grupo de jovens pertencentes à classe média, em situação de maior privilégio, filhos de pais e mães com mais anos de estudo e com ocupações de trabalho provenientes da escolarização, apresentaram uma interpretação dos programas policiais menos moralista e mais humanista, ao menos no plano do discurso. Este grupo de estudantes entendiam que as motivações para ações criminosas estavam muito mais relacionadas com a falta de oportunidade de estudo e trabalho do que com falta de valores religiosos ou de envolvimento com amizades ruins, como apontou o primeiro grupo.
No contexto do teatro, as divisões que estruturam a encenação correspondem ao prólogo, cenas, atos, epílogos e rubricas. Com tais características, os autores Heloisa Pontes e Rafael do Nascimento Cesar escreveram o capítulo seis do livro, intitulado Cidades, palcos e públicos: Rio de Janeiro e São Paulo em dois atos em que reconstituem as trajetórias de Chiquinha Gonzaga e Cacilda Becker nos epicentros culturais e artísticos do Brasil do fim do século XIX e início do século XX.
O primeiro ato do texto elege as hierarquias simbólicas que estruturam a vida social da belle époque carioca traduzida a partir do protagonismo de Chiquinha Gonzaga. O sucesso da maestrina excedia o fato de ser mulher – apesar da discriminação de gênero estar presente na carreira – e foi suplantado pelo capital social de origem que permitiu operar uma mediação entre classes sociais e gêneros musicais. No segundo ato da análise, as informações deslocam-se para São Paulo num contexto de renovação do teatro brasileiro, enfatizando a figura de Cacilda Becker na transformação do teatro brasileiro à luz da modernização internacional. Ainda que Cacilda Becker fosse destituída de capital econômico, social e cultural, seu triunfo se deveu a sua competência para incorporar as convenções cênicas e a dramaturgia moderna despontadas na década de 1950. Paradoxalmente, tornam-se trajetórias “simétricas e inversas”, mas imprescindíveis para exemplificar os mecanismos de distinção que operavam a transformação da cultura brasileira e definiam o entendimento acerca da noção de público.
No sétimo capítulo, Edison Bertoncelo, autor do texto Consumo cultural e manutenção das distâncias sociais no Brasil, utilizou a análise de correspondência múltipla para responder à questão da estratificação social do consumo cultural a partir dos usos do tempo livre da população adulta brasileira. O questionário utilizado na pesquisa permitiu identificar o perfil social e demográfico de 1,2 mil indivíduos quanto à prática de esporte, frequência em atividades religiosas, participação em atividades culturais (por exemplo, cinema) e as preferências por gêneros musicais, filmes, programas de TV e leituras. Os resultados foram dispostos em duas etapas de interpretação: a primeira classificando o investimento dos agentes em atividades de lazer sociável, dentro ou fora do contexto doméstico; a segunda avaliando as preferências musicais associadas à idade, capital cultural herdado, escolaridade do indivíduo e capital econômico.
O pesquisador aponta conclusões importantes na sua pesquisa retificando a chamada “tese das homologias”, central para os estudos de Pierre Bourdieu e do “onivorismo cultural” – cunhado nos estudos de Richard Peterson. Deste modo, a pesquisa ganha força quando é interpretada segundo a correspondência entre o espaço de estilos de vida e os espaços sociais, engendradas conforme propriedades do habitus. O argumento do “onivorismo cultural” se aproximou mais do processo empírico quando os indivíduos da amostra apresentaram uma amplitude maior de gosto, que variava das práticas culturais mais consagradas às de menor valor simbólico. No fim, o autor aponta que o conjunto de argumentos que sublinham a individualização das desigualdades (como classe social e status com peso menor) ainda é insuficiente para sustentar as fronteiras simbólicas e sociais em matéria de consumo cultural.
O último capítulo da coletânea, Sobre a transformação do sistema de gosto na França, de Julien Duval, inicia com uma crítica às investigações sociológicas que classificam A distinção como uma obra determinista do gosto e das práticas. Geralmente tais análises justificam que, atualmente, as estruturas sociais encontram-se menos rígidas que as da França na década de 1970, época em que foi publicada. Duval argumenta que os dados empíricos que sustentam a obra, de fato, são datados. No entanto, defende que Bourdieu desenvolveu um modelo geral sobre os sistemas do gosto que pode ser aplicado em distintos objetos desde que considerando as transformações no espaço social que, igualmente, interferem na produção do gosto.
O capítulo ainda discute criticamente as noções de cultura popular, cultura de massa, cultura compartilhada e “ecletismo” que, segundo ele, configuram-se como adjetivos fortemente usados nas pesquisas que tratam da sociologia do gosto. É com esse horizonte que Duval analisou as mudanças da competência cultural e do gosto na sociedade francesa, utilizando questionários que foram aplicados pelo Ministério da Cultura em amostras representativas da população nos anos de 1973, 1981, 1998 e 2008. Com uma metodologia embasada em análises estatísticas, Duval indicou mudanças na produção cultural, no sistema de ensino, na mídia e na sociedade francesa de um modo geral. Contudo, considerou tais mudanças como parciais, em razão de que não identificou grandes transformações no sistema do gosto francês como evocado por sociólogos da cultura contemporânea. Isso porque as próprias estruturas sociais não são passíveis de intensas transformações de maneira tão rápida. À vista disso, confirma a atualidade da obra porque o princípio gerador das práticas (habitus) continua fazendo parte das análises, independentemente das diferentes modalidades de cultura.
Além dos assuntos que atravessam os estudos da sociologia do gosto, ganham espaço nos textos apresentados termos bourdieusianos, como competência cultural, disposição, habitus, capital cultural, essenciais para compreender de forma detalhada as disparidades de estilos de vida que se expressam entre todas as classes sociais. Muitas vezes o “gosto” e o “bom gosto” confundem-se, todavia, esse livro de leitura obrigatória expressa, no momento mais oportuno, as predileções e estratégias culturais que tendem a predispor e a desempenhar uma função social de legitimação das diferenças sociais. Além disso, os capítulos enriquecem o debate em torno das condições de produção e reprodução do verdadeiro status social privilegiado para aqueles que participam e compreendem os domínios da cultura (do ponto de vista da hierarquia cultural vigente). A sociologia do gosto, com possibilidades emergentes no campo de pesquisa brasileiro, se revela uma área necessária para desvelar as lacunas entre as escolhas de um indivíduo e os hábitos socialmente compartilhados.
Referências
PULICI, Carolina; FERNANDES, Dimitri Cerboni (org.). As lógicas Sociais do Gosto. São Paulo: Editora Unifesp, 2019.
Recebido em: 29/06/2020
Aceito em: 24/03/2021
1*Doutoranda em Educação pelo Programa de Pós-graduação da Universidade Federal do Paraná, mestra em Sociologia Política e graduada em Ciências Sociais pela Universidade Federal de Santa Catarina. E-mail: luanalopes.cso@gmail.com
**Doutoranda em Educação pelo programa de Pós-Graduação da Unicamp, mestra em Educação pela Universidade Federal do Paraná e graduada em Artes Visuais pela Universidade Estadual de Ponta Grossa. E-mail: cabourglima@gmail.com
ISSN 1517-5901 (online)
POLÍTICA & TRABALHO
Revista de Ciências Sociais, nº 56, Janeiro/Junho de 2022, p. 240-246