Entrevista: André Prous
Por: Andres Zarankin e Juliana Soares Campos
Por favor, nos fale sobre sua
trajetória acadêmica.
Graduei-me em história na Université de Poitiers, França no ano de 1966. Nesse período, realizei estudos nas áreas de história clássica e história da arte, literatura clássica, literatura francesa
e latina. Em 1968, concluí meu mestrado em história antiga, também na Poitiers, cujo tema era Sidonius Apollinaris, um bispo de Clermont do século V, que desempenhou um importante papel, tanto político quanto religioso, no período de transição entre o Império Romano e a dominação da Galia central pelos Visigodos. Apresentei também
outra dissertação sobre citações de autores da latinidade clássica na obra de Suger, um historiador
medieval. Defendi meu doutorado em 1974, na Université Paris 1 (Panthéon-Sorbonne), orientado
por Annette Laming-Emperaire. O tema era os sambaquis do litoral sul brasileiro, o que me levou a participar de escavações em Ubatuba e em sambaquis do Paraná.
Como surgiu seu interesse
pela arqueologia?
Aos 10 anos de idade, um amigo alemão me emprestou a biografia de Heinrich Schliemann, o descobridor de Tróia, e a partir daí já soube que queria ser arqueólogo. Aos 11, ouvi no rádio uma apresentação sobre o livro “A vida quotidiana
no tempo dos Incas” e me encantei. Esse episódio definiu minha preferência pela América.
E sua família, como lidou com o fato de você querer ser arqueólgo?
Minha família sempre me deu apoio no que eu quisesse fazer, apesar de acharem exótica minha decisão de trabalhar com arqueologia. Aconselharam-me, então, a me graduar em história, pois se meus planos não dessem certo, eu teria algum emprego garantido como professor.
Mas sempre me apoiaram muito, desde jovem
eu viajava pelo mundo, meus pais sempre mostraram interesse por outras culturas, sempre tivemos muitos amigos estrangeiros.
A França em finais da década
de 1960 e durante 1970 foi um
dos pólos mais importantes
e vanguardistas de produção
intelectual em humanidades. Como você vivenciou esse momento?
Nessa época eu costumava freqüentar os seminários do Museu do Homem que contava
com vários estudantes americanos, australianos
e canadenses; participava de uma série de cursos e palestras interessantes sobre etnologia; acompanhávamos A. Laming-Emperaire que ia discutir suas idéias nos seminários de Lévi-Strauss. Em Paris há uma série de instituições acadêmicas mais abertas que a universidade tradicional, como a École Pratique des Hautes Études, por exemplo, que embora a maioria dos que freqüentavam lá já possuíssem graduação ou mestrado, era aberta para pessoas que não tivessem
um curso formal. Eram seminários de pós-graduação abertos a qualquer interessado, assim podia-se encontrar ali gente de todo tipo - desde doutores e pesquisadores até guardas do museu. O Collège de France que, desde o século XVI, abriga os maiores nomes da pesquisa francesa, também oferece ciclos de ensino em forma de palestras, abertos para a comunidade em geral. Desta forma, era só entrar lá e escutar as aulas dos maiores especialistas. Existia, portanto, uma facilidade enorme em ter acesso a uma diversidade
de pessoas (professores e estudantes) com variadas formações e horizontes.
Neste ano se cumprem 40 anos daquele famoso maio de 68. Você foi parte? Como o vivenciou?
Em 1968, eu viajava semanalmente entre Paris e o interior. Tive a sorte de assistir de perto ao que estava acontecendo tanto em Paris, quanto
em Poitiers – a única Universidade da França onde teve uma reação por parte de uma fração estudantil inclusive da extrema direita. Já em Paris, nem todos os participantes dos évènements eram de esquerda, mas o movimento reunia as pessoas num mesmo borbulhar de contestação das idéias recebidas. Lembro que na Sorbonne, por exemplo, tinha um professor que era monarquista
e oficial da reserva, e era ele quem ensinava aos alunos esquerdistas como se resguardarem do gás lacrimogênio. Ao mesmo tempo havia uma barraca de estudantes israelenses ao lado da barraca
de palestinos, e todos indo juntos, discutindo e brigando, mas numa solidariedade entre si. Era um momento muito especial.
Como se deu sua chegada ao Brasil?
Minha idéia, inicialmente, era ir para o México estudar Mesoamérica; já tinha entrado em contato por carta com pessoas que trabalhavam na Missão Francesa do México quando tinha uns 13 ou 14 anos. Porém quando terminei meu mestrado,
praticamente não havia professores america-nistas disponíveis em Paris. Jacques Soustelle, um especialista em estudos mesoamericanos estava no exílio. O então chefe da missão francesa no Mé-xico era uma pessoa complicada e recebi muitos conselhos de esperá-lo sair para eu poder entrar. Annette Emperaire poderia orientar uma tese, masconselhos de esperá-lo sair para eu poder entrar. Annette Emperaire poderia orientar uma tese, mas estava em um projeto de longa duração no Chile; então fui aconselhado a estudar pré-história (do Velho Mundo) enquanto esperava seu retorno. Fiz um ano de pré-história em 1968 e, no ano seguinte, quando ela voltou, também segui o seminário
que ela ministrava na École Pratique. Participei
também de alguns seminários de arqueologia Mesoamericana com importantes nomes como C. Baudez e P. Becquelin. Meu pouco conhecimento em cerâmica eu adquiri com eles, enquanto na pré-história, minha formação estava mais orientada
para os vestígios líticos e estratigrafia.
Ao final coincidiu que A. Laming-Emperaire
estava planejando uma missão para o Brasil, mas eu tinha que prestar o serviço militar.
Normalmente, na França, prestava-se aos 18 anos, mas quem estava estudando podia obter uma licença até os 25 ou 26 anos de idade. Como eu atingi esta idade máxima, precisei me alistar, mas aquele era um momento em que a França não sabia o que fazer com seu exército, a guerra da Argélia havia acabado e, por isso, queriam “se livrar” do maior número possível de cons-critos. Criaram então um serviço de cooperação para estudantes que deveriam prestar um serviço militar, mas voltados para trabalhos sociais no Terceiro Mundo. Entraram neste sistema professores
de francês, geólogos, engenheiros, e muitos da área médica. Por influência de Paulo Duarte, a USP estava solicitando um pré-historiador francês para inaugurar um ensino de arqueologia
pré-histórica, e podia ser uma solução para que eu escapasse de ficar um ano e meio mofando
num quartel. Assim, um ano antes de ter vencido o prazo para fazer meu serviço militar, eu havia juntado dinheiro dando aulas na Universidade
de Angers e acabei indo para o Brasil para conhecer a Universidade de São Paulo e ver se ela podia solicitar minha inclusão no programa
de cooperação. Em 1969, tinha conhecido, no seminário de Annette Laming-Emperaire, Luciana Pallestrini, do Museu Paulista, que me convidou para escavar um mês em um sítio em Piraju. Após vários meses de viagem na América Central e do Sul, fui a Piraju, me entendi com o Departamento de História da USP e voltei à França para me alistar; pouco depois (no início de 1971), eu fui enviado em cooperação para São Paulo para dar aulas durante dois anos no Departamento de História da USP.
Fiquei escavando no litoral no sítio do Tenório com o pessoal do Instituto de Pré-história, até que começou a Missão Franco-brasileira em Lagoa Santa em que eu participei. Passava em média três meses por ano em Lagoa Santa ou em sítios no Sul e ia para São Paulo só para dar aulas. Defendi meu doutorado em Paris e fiquei na USP até o final de 1975. Nessa época, o reitor da UFMG, Eduardo Osório Cesalpino,
junto com o IEPHA (Instituto Estadual do Patrimônio), resolveram montar um centro de pesquisa nesta Universidade e me contrataram para iniciar um projeto de centro que queriam chamar Museu do Homem, financiado pela FUNDEP. A princípio era um projeto muito amplo,
que trouxe até Darcy Ribeiro para a UFMG, mas acabou não dando certo. Sobrou dele o Setor de Arqueologia do Museu de História Natural.
Quais pesquisas você desenvolveu em Minas Gerais, além da missão em Lagoa Santa?
Trabalhei em Lagoa Santa dentro da Missão
Francesa dirigida por Annette Laming-Empe-raire, e quando ela faleceu, eu não quis prosseguir o trabalho lá por questões pessoais. Preferi trabalhar um pouco mais longe, na Serra do Cipó; mais tarde, investi na região arqueológica do médio São Francisco
que engloba as cidades de Januária, Itacarambi e Montalvânia, onde fiquei pesquisando por vinte anos, e aos poucos ampliei meu trabalho para ou-tras regiões como o Rio Doce e o Alto São Francisco.
Paralelamente, havia trabalhos mais pontuais no alto Jequitinhonha e outras regiões do Estado. Desta forma, pesquisei por um lado, temas regionais, e por outro, assuntos mais amplos, tais como a arte rupestre
do Brasil ou a cultura tupi-guarani. Nos últimos anos, me associei a Tânia Andrade Lima e nós reunimos
todos os pesquisadores que tinham estudado os portadores da cerâmica tupi-guarani para fazer uma síntese sobre o tema e também aqueles que propu-nham novos rumos; a publicação que reúne as contribuições
de todos que participaram deste trabalho está atualmente no prelo.
Como você vê a arqueologia
brasileira na atualidade e quais
seriam seus desafios frente
ao futuro?
Não sou muito bom para falar nesse assunto,
pois não gosto de prever os acontecimentos,
não sou nenhum profeta – e ninguém o é. Nenhum “futurólogo” destes que se espalhavam nos anos de 1960 na Europa previu a revolução trazida pelos micromputadores. Da mesma forma, sempre tinha pensado a arqueologia como um campo de trabalho acadêmico e, de repente, a explosão da arqueologia de contrato me pegou de surpresa. Assim sendo, como ainda ter a pretensão
de prever o futuro? Acho que o desafio atual no Brasil é equilibrar a arqueologia de contrato e a acadêmica. É claro que esse tipo de trabalho tem suas vantagens, permite alcançar regiões que as pesquisas não chegam, obriga a obter resultados
rápidos e traz retorno financeiro. O problema é que todos os jovens no mercado são jogados nesse campo. Há também uma falta de preparo, é comum ver jovens dirigindo pesquisas de contrato
sem possuir experiência prévia. Para mim, a arqueologia de contrato representa um risco para as gerações mais novas, de que se limitem a este tipo de projeto. O problema é que a maioria dos poucos arqueólogos contratados, mesmo na Universidade Pública, se envolve essencialmente na pesquisa contratada, em vez de desenvolver pesquisas mais acadêmicas, que deveriam trazer outras perspectivas. Felizmente, começa existir uma preocupação em melhorar a qualidade e em publicar os resultados.
Outro problema, na minha opinião, é que o ensino da arqueologia no Brasil é muito teórico. Vejo pessoas que possuem mestrado e que não sabem
tratar materiais básicos. Poucos no Brasil sabem
praticar uma escavação estratigráfica. E a validade
das interpretações depende muito da forma da coleta. Qualquer pesquisador tem que pensar sobre os dados, mas a arqueologia é concreta. Os dois devem se completar, teoria e prática.
Falando de teoria, como você
se classificaria teoricamente?
Na realidade não ligo muito para classificações.
Para mim, importa o que é inteligente, o que traz alguma coisa, o que é crítico. De onde vem, pouco interessa. Acho insuportável a maneira
como se classificam as pessoas - porque se acaba criando pessoas que se autoclassificam. Para mim não há arqueologia A ou B, e sim arqueologias
boas e ruins, práticas adequadas ou não, e ponto final. Cada geração trouxe novas orientações e técnicas que precisam ser assimiladas,
assim como algumas modas que vão para o lixo e não passam de lembranças históricas.
Você é um dos arqueólogos
com mais experiência de pesquisa no Brasil. Depois de tantos anos de trabalho, quais suas principais contribuições para a arqueologia deste país?
Eu me sinto bem por ter feito tudo e que eu fiz, e pelo que ainda faço. Pesquisador é uma criança que cresceu fisicamente, mas continua
criança, quer mexer com tudo, quer entender
tudo. Se ele consegue fazer sua pesquisa já está feliz. Tive muita satisfação em algumas coisas que fiz, agora não sei se estou ciente do que fiz de melhor. Na literatura francesa temos exemplos como Voltaire, que tinha muito orgulho
de suas peças de teatro e da sua poesia, porém não valorizava seus contos filosóficos; já, hoje em dia, ninguém lê suas peças nem seus versos, ambos considerados medíocres, mas seus contos fazem parte do patrimônio cultural francês: formam a nossa maneira de perceber o mundo e nossas relações com as autoridades. O que se aproveitou desse autor foram seus textos de críticas à sociedade - textos
que ele achava não ter nenhuma serventia a não ser momentânea. Desta forma, se você quer saber em que contribuí, pergunte para outros, ou espere passar o tempo, porque eu mesmo não sei. Eu sei apenas o que gostei de fazer, mas não sei se isto foi importante... Ao invés de pensar no que eu trouxe, talvez seja mais interessante
pensar nos prazeres que tive ao longo de minha trajetória, por exemplo, ao encontrar algumas pessoas especiais, em me realizar com uma certa paisagem, ou ao ouvir a canção de algum caipira.