Entrevista: Klaus Hilbert1
Por Denise Schaan2
1 Professor da PUC-RS.
2 Professora da UFPA, Presidente da SAB (2007-2009).
Quando e como me interessei pela arqueologia,
não posso lhe dizer com exatidão.
Algumas memórias não têm datas, não são
como moedas ou jornais. Seguidamente encontramos
coisas em nossas cabeças que, às vezes,
colocamos na ordem cronológica correta apenas
através de reflexões, de estudos comparativos
com outras memórias e através de processos
de exclusão. Quando era moleque em
Belém, gostava de juntar coisinhas na rua de
terra, principalmente, depois da chuva, quando
essas coisas apareciam do nada na superfície recém
lavada. Cacos de vidro, pedacinhos de azulejos,
pregos..., tudo colocava na boca para ficar
bem limpo, depois guardava estes tesouros, encontrados
na rua, em uma caixa que ganhei da
minha avó. Mais tarde, quando já freqüentava
o primeiro ano no colégio “Suíço-Brasileiro”,
meu pai me deixou escrever números nos cacos
de cerâmica. Outro dia vi aqueles cacos numerados:
linhas tremidas, tinta borrada e alguns
números invertidos ou espelhados. Posso dizer
que aprendi a escrever sobre cacos da tradição Itacoatiara. Então, acho que comecei com meu
estágio em arqueologia já naquela época. Mas
minhas arqueologias mudaram, quando Peter
Paul me levou, em 1975, para a região dos rios
Trombetas e Nhamundá para fazer campo, aí
me apaixonei por este tipo de arqueologia. Era
aventura pura, que combinava uma sensação
gostosa e fantasiosa de descobrir coisas e histórias.
Quando meu pai publicou os resultados de
suas pesquisas no médio Amazonas, em 1968,
tinha mais ou menos a idade que tenho agora.
Eram os anos de rebeldia dos estudantes, de
Woodstock e de Vietnã. Tinha 22 anos, quando
decidi não ser mais arqueólogo. Quis fazer algo
diferente, algo mais importante, e relacionado
com alguma coisa social, ou ligado com a educação,
mas não sabia exatamente o que. Era um
sentimento difuso e uma incerteza perigosa.
Falando sobre este assunto com meu pai, ele
me convenceu que a arqueologia também era
uma questão social, que poderia ser relacionada
com a educação, igualmente importante e que
as aventuras de verdade aconteciam nas cabeças
e no coração das pessoas. Fazer arqueologia, dizia,é contribuir para o bem-estar das pessoas,
ajudá-las a se posicionar no mundo, sentir se
integrado a uma rede de relações sociais. E, assim,
comecei estudar arqueologia na Philipps
Universität de Marburg.
Bem no meio, e ao mesmo tempo entre
estes lugares, entre línguas, pessoas, tempos e entre saudades. Estes lugares me fazem o que sou
hoje. Não posso tirar das minhas memórias os
anos em Belém: as tardes no parque zoobotânico
do Museu Goeldi, brincando com os filhos
do diretor Egler, nadando no tanque do peixeboi,
subindo nas árvores, os perfumes das flores,
os sabores das frutas tropicais, a umidade, o
calor... lembranças que, inclusive, me ajudaram
superar o choque cultural dos primeiros anos
na Alemanha. Mas superando as dificuldades
e a negociação com a nova vida na Alemanha,
tudo isso teve seu preço: o consumo destas lembranças
tropicais, das emoções e sensações. Aos
poucos, estas foram se apagando, fui esquecendo,
formaram-se camadas de sedimentos sobre
as palavras, sobre as imagens, de tal forma, que
aos poucos esqueci até a língua. O que sobrou,
foram alguns versos, musicas de crianças e a capacidade
de pronunciar corretamente o nome
de Pelé. O que falo hoje é uma mistura de falas
recuperadas da minha infância, aquela linguagem
simples e prática de criança, e um português com
sotaque de estrangeiro.
Minha formação na Alemanha me trouxe
muitas vantagens. O ginásio da Alemanha,
pelo menos era assim nos meus tempos, equivalia
hoje a uma graduação no Brasil. Terminei
o segundo grau falando bem o inglês e francês,
adquiri uma base de conhecimentos gerais que
me ajudam nas minhas aulas na universidade.
Já ministrei aulas de História Antiga e História
Medieval, sem passar por vexames, além das
minhas aulas titulares de Pré-História e História
Pré-Colonial da América. As Faculdades de Prée
Proto-História que freqüentei em Marburg e
em Colônia me deram uma excelente base metodológica
nas técnicas de escavação. Hoje, este
conhecimento me garante uma segurança que
me permite solucionar situações complicadas
nas escavações arqueológicas. Posso afirmar
isso com todo orgulho e sem arrogância.
Meu retorno ao Brasil, primeiro para
Belém e depois para Porto Alegre, está relacionado com tudo aquilo que já disse antes, com
minha vontade de ser arqueólogo com uma
preocupação com o social, ainda nebulosa, atuando,
principalmente, no ensino. No começo,
essa vontade ainda não estava bem cristalizada
na minha cabeça. Os dois anos no Goeldi eram
de reabastecimento. Serviam para refrescar e
reviver as lembranças consumidas em épocas
de escassez. Eu tinha uma bolsa do CNPq de
pesquisador visitante, então pesquisei. Depois,
quando a bolsa terminou, foi o Arno Kern
quem me convidou para trabalhar na PUC. Sem
o Arno, tenho certeza, eu estaria na Alemanha,
provavelmente, fazendo Arqueologia de contrato,
longe do ensino ou vendendo cachorro
quente na esquina, como alguns dos meus colegas
da faculdade.
Hoje, me vejo principalmente como professor
e formador de arqueólogos-pesquisadores.
A PUCRS me oferece excelentes condições
de trabalho e de pesquisa. Como professor, que
atua também na Pós-graduação de História, eu
desfruto alguns privilégios; entretanto, preciso
estar sempre presente na universidade, não somente
em sala de aula, mas também como interlocutor
dos alunos. Atualmente, tenho uma
média semanal de dez horas-aulas por ano e
entre oito e dez orientandos, entre graduandos,
mestrandos e doutorandos. A margem de tempo
que tenho disponível para ler e pesquisar é
bastante reduzida. Por isso, somente posso
desenvolver pesquisas de campo nos períodos
sem atividades de ensino na universidade. Meus
focos de pesquisa mudaram consideravelmente
nos últimos anos, devido às demandas e curiosidades
dos alunos, mas continuo pensando sobre
caçadores-coletores do Holoceno, tecnologia
lítica, pesquiso em cerritos e em sambaquis. E continuo namorando com a arqueologia da
Amazônia, infelizmente só de longe.
As primeiras turmas que se formaram
na PUC, em 1993 e 1994, queriam saber como
escavar um sítio, como datar e como analisar
o material. Enquanto que, nos anos noventa,
esses nossos alunos estavam muito mais preocupados
com a objetividade dos seus estudos,
a Arqueologia, fora deste nosso contexto, mudou
e, evidentemente, as perguntas mudaram.
A grande maioria dos nossos primeiros alunos
encontra-se hoje em boas condições profissionais,
atuando em universidades ou fazendo
arqueologia de contrato. Nos últimos anos, os
nossos alunos da pós-graduação em História
nos questionam mais sobre os significados, as
significações, e de onde surgem os significados
nas evidências arqueológicas. Dissertações e teses
defendidas mais recentemente valorizam a
cultura material, o significado das coisas e partem
da idéia de que os objetos podem ser vistos
como signos que auxiliam seus donos e usuários
na comunicação entre as pessoas, além de
expressar suas identidades perante a sociedade.
Atualmente, preciso ler muito mais e conhecer
assuntos bem mais diversificados e diferentes
de que nos anos noventa. Agora, os alunos são
bem mais exigentes e bem mais informados a
respeito das teorias arqueológicas, sociais, antropológicas,
literárias, do que antigamente. Alguns
alunos que entram hoje na pós-graduação
cursaram antes, além da História, Filosofia, Antropologia
ou Letras. O leque das abordagens
abriu-se muito. E preciso acompanhar estas
mudanças no enfoque teórico e metodológico.
Tenho certeza do sucesso da PUC na formação de novos arqueólogos. Arno e eu, e,
até 1999 o Brochado, orientamos, a partir de
1993, mais de 70 mestres e 25 doutores. Esta
quantidade considerável de doutores em arqueologia
em tão pouco tempo foi resultado de um
esforço extraordinário da Tânia Andrade Lima
que conseguiu deslocar uma quota de dez bolsas
do CNPq para o nosso programa.
Eu moro num sítio na periferia de Porto
Alegre. Gosto de trabalhar na terra, mexer com
plantas e cultivar hortaliças. A manutenção do
sítio dá muito trabalho, sempre tem alguma coisa
para arrumar. Além disso, faço muito esporte:
corro e nado - já fui professor de educação física
e sei da importância do exercício físico para
manter a cabeça funcionando. Gosto de pintar
e de fazer música: rock, blues e folk. Ainda não
desisti de entrar na banda de rock do meu filho,
mas, como dizem, preciso de mais “power”. Gosto
de ler poesia em alemão, e ciência e ficção em
inglês, de preferência, Robert Heinlein. Não sei
quem são meus outros autores preferidos, sou
um leitor meio impulsivo. Leio antes de dormir
autores como Lewis Carroll, Rudyard Kipling,
Jerome K. Jerome, sempre os mesmos livros, só
para relaxar.
Puxa, essa é uma pergunta difícil! Parece
que já estou no final da minha carreira como pesquisador
e professor, mas, sinto-me ainda como
iniciante. Mas isso pode ser coisa de arqueólogo,
como ele pensa em longas dimensões cronológicas,
acha que domina o tempo e que por isso não
passa por ele. Minha principal contribuição para a arqueologia brasileira está na formação de novos
professores e pesquisadores. Arno e eu estamos
trabalhando juntos nessa missão, fazemos parte de
uma rede de outros arqueólogos e de instituições
com o mesmo objetivo. Somente com uma grande
massa crítica de profissionais que busca qualidade
e o diálogo com outros profissionais, sobretudo
no estrangeiro, é que a arqueologia brasileira será
capaz de sair cada vez mais de sua letargia.