“A CONTESTAÇÃO NECESSÁRIA” DE MARIA SYLVIA DE CARVALHO FRANCO E ANÍBAL QUIJANO
“THE NECESSARY CONTESTATION” OF MARIA SYLVIA DE CARVALHO FRANCO AND ANÍBAL QUIJANO
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José Mauro de Pontes Pompeu*
DOI: https://doi.org/10.46906/caos.n23.47679.p271-294
Resumo
O presente artigo tem como objetivo apresentar duas perspectivas de “racionalidade alternativa” e correlacionar os conceitos de “unidade contraditória” e “dominação pessoal” de Maria Sylvia de Carvalho Franco com os conceitos de “heterogeneidade histórico-estrutural” e “colonialidade do poder” de Aníbal Quijano (1928-2018) a fim de apresentar suas aproximações, divergências e proposições. Através das sínteses reflexivas de Maria Sylvia de Carvalho Franco e suas críticas às correntes hegemônicas das ciências sociais latino-americanas nos anos de 1960-1970 – “época de ouro” da “sociologia do desenvolvimento”, das teorias da dependência e da modernização –, encontraremos uma chave de aproximação entre a economia argumentativa da autora e o pensamento de Aníbal Quijano, formulado nos anos de 1990, – década que corresponde à crise de hegemonia das teorias da dependência da qual Quijano foi um dos contribuidores. Neste sentido, os dois recortes históricos tomam como ponto de partida o contexto histórico pelo qual os dois intelectuais analisados, cujas interseções buscaremos iluminar, apresentam seus conceitos de forma madura. Nossa intenção é claramente contribuir para a afirmação de uma racionalidade alternativa como a “marca diferenciada” de um tipo de sociologia política produzida na América do Sul, que toma antes como pressupostos a historicidade e a epistemologia crítica para o seu próprio desenvolvimento e amadurecimento.
Palavras-chave: Modernização; Colonialidade; Dominação Pessoal; História-social.
Abstract
This article aims to present two perspectives of “alternative rationality” and to correlate Maria Sylvia de Carvalho Franco's concepts of “contradictory unity” and “personal domination” with the concepts of “historical-structural heterogeneity” and “coloniality of power” of Aníbal Quijano (1928-2018) in order to present his approximations, divergences and propositions. Through Maria Sylvia de Carvalho Franco's reflexive syntheses and her critiques of the hegemonic currents of Latin American Social Sciences in the years 1960-1970 - the “golden age” of “development sociology”, theories of dependence and modernization -, We will find a key to the approach between the author's argumentative economy and Aníbal Quijano's thought formulated in the 1990s - a decade that corresponds to the hegemony crisis of dependency theories to which Quijano was one of the contributors. In this sense, the two historical cuts take as their starting point the historical context in which the two intellectuals analyzed, whose intersections we will seek to illuminate, present their concepts in a mature way. Our intention is clearly to contribute to the affirmation of an alternative rationality as the “differentiated mark” of a political sociology type produced in South America, which presupposes historically and critical epistemology for its own development and maturation.
Keywords: Modernization; Coloniality; Personal Domination; Social History.
Aníbal Quijano e Maria Sylvia de Carvalho Franco: ligações em comum
[...] todos os grandes acontecimentos desta era, que se convencionou com razão chamar dos “descobrimentos”, articulam-se num conjunto que não é senão um capítulo da história do comércio europeu. Tudo que se passa são incidentes da imensa empresa comercial a que se dedicam os países da Europa a partir do século XV, e que lhes alargará o horizonte pelo mundo afora (PRADO JÚNIOR, 2011, p. 19).
O sociólogo e teórico político peruano Aníbal Quijano (1928-2018), reconhecido por sua teoria da “colonialidade do poder”, ganha, a cada dia, mais destaque no pensamento social “latino-americano”, uma vez que a sua leitura pressupõe uma revisão completa de nossos fundamentos políticos, filosóficos e epistemológicos. Resumiremos de forma muito breve sua trajetória intelectual, a fim de contextualizá-lo. Quijano fundou em 1962 o primeiro programa de sociologia do Peru, no Departamento de Sociologia da Faculdade de Economia e Ciências Sociais da Universidade Nacional Agraria de La Molina, de onde saiu em 1964 para lecionar na Universidad Nacional Mayor de San Marcos. Incorporou-se, no mesmo ano, à Divisão de Assuntos Sociais da Comissão Econômica para América Latina (CEPAL), onde trabalhou ao lado de brasileiros como Fernando Henrique Cardoso e Francisco Weffort. Fez parte dos “anos de ouro” da “sociologia latino-americana”, vivenciando-a no seu interior, dos chamados “teóricos da dependência”. Não obstante, apresentou uma versão original e própria, através de suas críticas às correntes teóricas funcionalistas comprometidas com a noção de mudança social própria das teorias da modernização. No fim dos anos de 1980, chamados pela Cepal de “a década perdida da América Latina”, Quijano assistiu à vitória de Fujimori, que levou o Peru a uma política de extrema austeridade econômica (sinceramiento) e uma brutal ditadura, culminada pelo fechamento do Congresso em 1992 e catalisada pela caçada ao grupo de extrema-esquerda Sendero Luminoso. Em 1992 e 1993, Aníbal Quijano aceitou o convite de Carlos Guilherme Mota, então diretor do Instituto de Estudos Avançados da Universidade de São Paulo (IEA-USP), para lecionar na instituição. O acirramento da política de Fujimori levou Quijano a denunciar a ditadura aos órgãos internacionais em 1995, após a invasão pelas forças armadas da Universidad Nacional, considerada pelo governo como centro de recrutamento e formação para o Sendero Luminoso (ZEVALLOS, 2018).
Maria Sylvia de Carvalho Franco, professora aposentada pela Universidade de Campinas (UNICAMP), é considerada uma das pioneiras da sociologia brasileira, cujas abordagens se tornaram paradigmas da interpretação da formação nacional. Sua integridade intelectual e a originalidade de seu pensamento sofreram resistências de todos os lados, pois, “do lado conservador, foi recusado por ser marxista; pela esquerda, foi recusado por não ser ortodoxo” (FRANCO, 1988 apud BOTELHO, 2013, p. 16).
Sua tese de doutoramento originalmente intitulada Homens livres na velha civilização do café, defendida em 1964 sob a orientação de Florestan Fernandes na Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras da Universidade de São Paulo, contou com uma banca composta por nomes como Antônio Cândido, Sérgio Buarque de Holanda, Octávio Ianni e Francisco Iglesia. Publicada em 1969, com o título Homens livres na ordem escravocrata, ainda tem sido motivo de grandes reflexões. Pois, a autora recusa, logo de cara, tratar a escravidão como um modo de produção. Critica o diagnóstico apresentado pelas teses de Fernando Henrique Cardoso e Octávio Ianni, cujas obras, vistas em seu conjunto, corroboram com a ideia da existência de uma “ordem tradicional”, cujo caráter “estamental” e patrimonialista representado pelo atraso social, conformariam a “tese maior” da irracionalidade econômica do Estado Brasileiro (CAZES, 2014).
Primeiro, a recusa de Maria Sylvia de Carvalho Franco em tratar a escravidão como “modo de produção”, leva-nos a compreendê-la antes como uma “instituição submetida a outras determinações que lhe imprimiram o seu sentido” e que “suporta um estilo de produção vinculado ao sistema capitalista” (FRANCO, 1997, p. 13). Segundo, Maria Sylvia de Carvalho Franco introduz o conceito de “unidade contraditória” como uma perspectiva alternativa de análise do processo de modernização, e, por conseguinte, como uma crítica contundente à “sociologia do desenvolvimento” e das teorias da dependência que tomavam a dicotomia tradição vs. modernidade, escravidão vs. liberalismo, e outras disjunções correlatas, a partir de “imprecisões interpretativas” sobre a teoria weberiana. Para a autora, o grande equívoco das interpretações seria dado pelo filtro funcionalista de Talcott Parsons, cuja falta de rigor das análises, visto o modo a-histórico e as generalizações abstratas de como as categorias weberianas eram tomadas, reafirmariam a ideia de obstáculos às mudanças sociais devido à herança de traços culturais, então, considerados tradicionais. Assim, Franco traz a historicidade para as análises sociológicas, construindo seus próprios conceitos “típico-ideais” de forma a relacioná-los à ordem dos fenômenos observáveis. Em sua tese, promove uma articulação entre as sequências particulares da vivência dos homens pobres para mostrar como “interpretações tendenciosas, tal como atribuir a violência às mazelas do ‘atraso’ brasileiro, ao ‘sistema escravista’, [absolve] o capitalismo então considerado etapa necessária ao ‘progresso’ histórico” (FRANCO, 1997, p. 18).
Não podemos afirmar, pelo menos até o momento, se houve algum tipo de relação direta, profissional ou afetiva, entre a socióloga brasileira Maria Sylvia de Carvalho Franco e o sociólogo peruano Aníbal Quijano. Talvez esteja aqui uma boa proposta para uma pesquisa futura. Mas, para o presente trabalho, cabe-nos focar em algumas personagens e instituições que nos servem de chaves para a aproximação das trajetórias e dos pensamentos dos dois intelectuais. Buscamos, portanto, através de um método comparativo de trajetórias, observar os eixos de mediação e articulação dos pensamentos de ambos os autores. Uma das forças de gravidade, que promove uma articulação entre as perspectivas sociológicas, encontra-se na figura de Florestan Fernandes, que tanto orientou Maria Sylvia de Carvalho Franco e Fernando Henrique Cardoso, quanto fez de epígrafe uma citação de Quijano em seu artigo sobre José Carlos Mariátegui, publicado em 1994 na revista Amauta, da qual ele também era leitor, e na própria Universidade de São Paulo, onde Quijano lecionou. Devemos ressaltar que nosso objetivo é observar as consonâncias e/ou ressonâncias entre as teorias formuladas por Maria Sylvia de Carvalho Franco nos anos de 1960-1970 e as teorias de Aníbal Quijano, cuja maturidade política-filosófica de seu pensamento vai ao encontro dos reclames vivenciados na América Latina nos anos de 1980-1990, sobretudo da profunda crise sofrida pelo Peru sob a ditadura de Fujimori.
Observa-se que o contexto histórico da formulação teórica de ambos os autores se inscreve em momentos de repressão política e negação dos direitos civis. Maria Sylvia de Carvalho Franco tem sua grande produção intelectual localizada nos anos em que o Brasil vivia sob o período mais obscuro da ditadura militar. Sua tese fora defendida no ano do golpe de 1964 e publicada no ano do “golpe dentro do golpe”, o AI5 (1968). Em 1970, Franco defende sua tese de livre docência intitulada O moderno e suas diferenças, período em que o ambiente universitário sofria forte intervenção da repressão militar. Neste contexto, faz-se o corpo teórico que fundamenta a economia argumentativa de Maria Sylvia de Carvalho Franco. Através do conceito de “unidade contraditória”, recusa qualquer forma de dualismo para a compreensão da formação social e política brasileira; ademais, no seu artigo Sobre o conceito de tradição (FRANCO, 1972), publicado pelo CERU/USP, consolida sua crítica ao conjunto de proposições feitas pela incorporação da premissa do “patrimonialismo”, à noção de estamento e de casta, evidenciando a falta de rigor das interpretações da então chamada “sociologia do desenvolvimento”. A autora é assertiva quanto aos elementos ditos “atrasados”. Diz, “esses elementos permanecem, são produzidos e reproduzidos no interior de um sistema social” (FRANCO, 1972, p. 40), e chama novamente atenção ao modo como as teorias eram aplicadas, “como se fossem verdades que pudessem ser desligadas do contexto de conhecimento em que originalmente se inscreviam” (FRANCO, 1970, p. X). Crítica, como se verá em breve, muito próxima ao que Quijano formulará em torno do conceito de “heterogeneidade histórico-estrutural”.
Portanto, se a sociologia surgiu com um compromisso de narrar o desenvolvimento da sociedade europeia, sendo ela a própria ciência da Modernidade, então, coube aos ideólogos latino-americanos pensar uma sociologia, uma teoria política e uma teoria econômica à sua maneira, tendo como referencial o seu lugar “desprivilegiado” nas relações assimétricas que são constitutivas do próprio sistema capitalista mundial. A relação centro vs. periferia, inerentes à própria disposição pela qual o sistema capitalista se erigiu e se reproduz, guarda consigo algo que vai muito além da própria dependência. Antes, esta relação se imbrica num sistema de interdependência, que abre possibilidades para diversas formas de existências, de dominação e de conflitos.
Neste sentido, as figuras de Maria Sylvia de Carvalho Franco e de Aníbal Quijano são essenciais para a consolidação de um tipo de sociologia política, cujas bases epistemológicas buscam, independente da fortuna, uma concepção alternativa à razão instrumental instaurada pelo processo de colonização/modernidade, catalisadas pelas exegeses teleológicas do pensamento eurocêntrico. Pois, é justamente esta crítica ao eurocentrismo das formulações sociológicas que ambos os autores chamam atenção, cada qual em seu tempo, cada qual respeitando a integridade dos processos históricos vividos a partir do seu ponto de observação, ou seja, de suas próprias identidades nacionais.
“Unidade Contraditória” e “Heterogeneidade histórico-estrutural”
O argumento, fundado no chamado “pensamento único”, inclui um receituário de soluções, sem as quais – diz-se – um determinado país se torna incapaz de participar do processo de globalização.
Milton Santos (SANTOS e SILVEIRA, 2001, p. 231-232)
Como já indicado, a noção de “unidade contraditória” carrega consigo uma crítica às perspectivas dualistas de interpretação do Brasil. Neste sentido, cabe ressaltar que Maria Sylvia de Carvalho Franco dialoga diretamente com toda a sua geração, que tem em Caio Prado Júnior o fundador de uma linhagem interpretativa do Brasil, cuja compreensão do “sentido da colonização” acentua o caráter econômico pelo qual o país se encontra submetido desde sua “descoberta” (FAUSTO, 1997; RICUPERO, 2000, 2009). Contudo, a interpretação de Franco se voltou para um objeto até então não estudado, os homens livres pobres, mas que tampouco haviam sido negligenciados da história nacional brasileira[1]. Muito se confunde com um estudo dos “brancos pobres”, trata-se antes de um estudo de uma massa de mestiços que se encontravam na “fímbria do sistema econômico”, cujas oportunidades eram reduzidas a serviços residuais.
Também já foi supracitado que Maria Sylvia recusa o caráter “tradicional” da formação social brasileira, que seria representado pela forma regressiva de exploração do trabalho. Aqui, a autora refuta diretamente as proposições de Gino Germani (1911-1979) e de Inácio Rangel (1914-1994), como também as teses de Fernando Henrique Cardoso e Octavio Ianni (1926-2004). De Germani, Franco critica a adoção do paradigma parsoniano e a construção de modelos abstratos das relações históricas. De Rangel, para quem o latifúndio era “internamente feudal e externamente capitalista”, refuta igualmente a adoção dos modelos dicotômicos e desligados do sentido histórico e que seriam estruturados por uma espécie de dualidade integrada. De Cardoso e Ianni, recusa a noção de “tradição”, “estamento” e “dominação patrimonialista”, pois eles incorreriam no mesmo equívoco interpretativo das teorias weberianas filtradas pelo funcionalismo parsoniano, assim como “tomam as relações entre senhores e escravos como eixo explicativo da formação social brasileira” (BASTOS, 2002 apud BOTELHO, 2013, p. 339).
Não obstante, os modos de produção que a priori seriam vistos como essencialmente opostos, no pensamento de Franco se encontram interligados pelo conceito “unidade contraditória”, cuja unidade seria a expressão do próprio capitalismo e a contradição se daria pela suposta “harmonia”, ou, nas palavras da autora, de uma “inclinação harmônica” pela qual conviveram diversos tempos e modos de produção, e que se encontrariam tão imbricados quanto as relações de violência e solidariedade. A autora nos fornece uma nova chave cognitiva e mostra como a produção mercantil e as produções de subsistência se encontravam interligados numa espécie de “comunidade de destino”, conformadas pela “função simplificadora da grande propriedade rural” (VIANNA, 1973).
Esta categoria: “unidade contraditória”, que é fundamental para compreender a recusa conceitual de Franco das dicotomias (tradição vs. modernidade; atraso vs. progresso; metrópole vs. colônia; hegemonia vs. dependência; etc.) é essencial para compreender as formas de dominação e subordinação que se desdobra no nível da economia, da organização social, das associações morais, mas também no nível da organização política e, sobretudo, na fusão das esferas públicas e privadas. Não obstante, deve-se entender o conceito “unidade contraditória” como uma formulação muito própria da noção de “desenvolvimento desigual e combinado” de Trotsky, que indica tanto a sua visão crítica quanto um reclame de autonomia intelectual (LAHUERTA, 1999; BOTELHO, 2013).
Há, sem dúvida, em Maria Sylvia de Carvalho Franco, uma crítica incisiva ao “eurocentrismo” do pensamento sociológico, em particular às interpretações norte-americanas sobre o pensamento de Weber e às correntes ortodoxas do pensamento marxista. Produz ao longo de suas obras uma grande revisão de Weber, adotando o seu método para a construção de tipo-ideais sempre em conformação com o chão histórico analisado. Do próprio Weber, Franco extrai sua visão do capitalismo, enquanto orientação de conduta que visa ao lucro contínuo, e da visão marxista do capitalismo, compreende o sistema das relações sociais fundado na valorização do capital (CAZES, 2014). Formula, portanto, suas próprias generalizações, através de uma longa pesquisa sobre as relações interpessoais entre as camadas pobres, destes com seu “patronato”, e o seu desdobramento nas instituições políticas. Deste modo, a autora observa através de uma sequência histórica particular a conformação de uma ordem social específica, cujas determinações do lucro rápido e contínuo, funda um sistema de dominação também específico. Ou seja, um “elo alienante” fundado pela representação igualitária da noção de “pessoa”, estabelecido por uma relação entre dominantes e dominados que se faz evidenciar na onipresença da violência nas mais diversas formas de relação social. Portanto, Maria Sylvia de Carvalho Franco consolida sua crítica às teorias da modernização, ao mostrar que não existe um padrão linear do processo histórico, em que as ditas sociedades modernas conservariam um padrão societário único. Pelo contrário, são as determinações deste sistema que imbricam uma diversidade de conflitos que pluralizam as formas de exploração e dominação, e, por conseguinte, conforma dentro desta “unidade contraditória” uma heterogeneidade de estruturas que “funcionam”, historicamente, só e apenas para reproduzir a ordem estabelecida pelo sistema capitalista.
O “sentido da colonização” é a “natureza” da própria modernidade, onde a própria noção de tradição é impossível, devido ao contínuo epistemocídio provocado pelo avanço capitalista. Parafraseando o semiólogo argentino Walter Mignolo (2011), a colônia não é só o lado obscuro da Modernidade, mas é antes o seu próprio produto, cuja ideia de progresso carrega consigo o próprio princípio da dominação.
A ideia de progresso enquanto norma do mundo moderno se expressa como palavra de ordem e, por conseguinte, como um reforço do locus de poder das formas hegemônicas dos “saberes” – no caso, o próprio eurocentrismo de nossas “formas de conhecimento” –, postulados como universais. Neste sentido, há uma complementaridade instigante entre as proposições de Maria Sylvia de Carvalho Franco e as teorias de Aníbal Quijano.
Aníbal Quijano fundamenta sua crítica ao eurocentrismo tomando como ponto de partida o “corte brusco” da história promovido pelo expansionismo europeu e suas conquistas, sobretudo na América Latina, onde o capitalismo se fez mundial, eurocentrado, e a colonialidade e a modernidade se instalaram como entes constitutivos deste específico padrão de poder (QUIJANO, 2007, p. 94).
Diferentemente de Franco, que toma Caio Prado Jr. para compreender o sentido de totalidade do capitalismo e seu sistema de distribuição global desigual de recursos, Quijano parte da reelaboração teórica de Immanuel Wallerstein, das relações diferenciadas entre as nações que, de forma integrada, constituem um “sistema mundo moderno”. Assim, colonialidade e modernidade são os lados contraditórios que se apresentam como a unidade da “economia-mundo”, engendrada pelo sistema capitalista.
A evocação da noção de “economia-mundo” do historiador Fernand Braudel (1902-1985) na teoria de Wallerstein, induz-nos a um breve parêntese. Braudel foi um dos integrantes da missão francesa que participou da fundação da primeira universidade do Brasil, a USP. Teve, portanto, relativa influência no pensamento uspiano e, sobretudo, no pensamento político e social brasileiro. Não obstante, a noção de “economia-mundo” se aproxima muito da compreensão de Caio Prado Júnior sobre o sentido da colonização, e, por conseguinte, nos sugere que os pensamentos de Quijano e Franco, assim como a heterogênea “sociologia latino-americana”, sejam ramificações deste mesmo tronco intelectual.
Do mesmo jeito que a sociologia na América Latina apresenta leituras e propostas heterogêneas, a realidade social da qual a sociologia se ocupa em investigar, também, em sua concretude, apresenta-se de forma heterogênea. E, se as formas do conhecimento apresentam uma característica centrífuga, irradiando-se do centro hegemônico – Europa – para conformar seu próprio sentido na subordinação das nações “não modernas”, é porque a pluralidade de tempos, existências e contradições são frutos desta mesma árvore cujo tronco se apresenta monolítico e universal. Não obstante, para Immanuel Wallerstein (1997, p. 97), “as ciências sociais são um produto do sistema-mundo moderno e o eurocentrismo é constitutivo da geocultura do mundo moderno. Ademais, como estrutura institucional, as ciências sociais são originárias basicamente da Europa”.
Neste sentido, Quijano formula sua crítica às formas de conhecimento que pressupõem uma estrutura configurada por elementos historicamente homogêneos, que evidencia antes sua comum linhagem eurocêntrica (QUIJANO, 2007, p. 97). O autor se refere a três grandes metanarrativas que formulam o sentido histórico da “humanidade”, como a teologia, o Iluminismo liberal e o marxismo. Guardada suas diferenças, Quijano ilumina o lugar comum destas três visões de mundo e nos mostra o quão obscura se encontram as visões “periféricas” ao conceber como norma universal esses três tipos de razões instrumentais. Aqui, as críticas de Quijano parecem reverberar as observações de Franco. Pois ambos teóricos criticam tanto as leituras dualistas quanto a visão linear dos processos históricos, e, com isso, evidenciam o caráter a-histórico dos modelos teóricos abstratos que negligenciam a realidade concreta e as variáveis de suas séries temporais. Portanto, as ideias de Quijano se aproximam muito à recusa de Franco sobre a concepção de tradição, ou de uma passagem linear e homogênea de uma sociedade tradicional para uma sociedade moderna. Contudo, a crítica de Quijano ao eurocentrismo das visões de mundo deve ser também entendida como uma crítica à própria sociologia – ciência que narraria a saga da modernidade –, o que é, portanto, uma crítica às perspectivas funcionalistas, estrutural-funcionalista e às diversas vertentes do estruturalismo/pós-estruturalismo que supostamente minariam a existência de uma sociologia tipicamente “latino-americana”.
[…] en todas esas vertientes subyace la idea de que de algún modo las relaciones entre los componentes de una estructura social son dadas, ahistórica, esto es, son el producto de la actuación de algún agente anterior a la historia de las relaciones entre las gentes (QUIJANO, 2007, p. 97).
A totalidade do sistema-mundo engloba, portanto, uma série de contradições que ganham a forma de exploração/dominação/conflito, e põe debaixo do controle do seu padrão de poder capitalista uma série de vivências e experiências díspares. O conceito de heterogeneidade histórico-estrutural pressupõe a articulação de múltiplas e heterogêneas determinações (exploração/dominação/conflito), cujo caráter permanentemente descontínuo, evidencia antes o complexo universo da dominação capitalista. Assim, a “unidade contraditória” que é o próprio capitalismo, comporta em seu complexo sistema histórias heterogêneas e encobre, através do tipo de “dominação pessoal” (FRANCO, 1997), a diversidade dos tempos históricos – modos de produções considerados essencialmente opostos –, ao produzir sujeitos determinados pela mediação do lucro, arché do capitalismo.
Lo que es realmente notable de toda estructura social que elementos, experiencias, productos, históricamente discontinuos, distintos, distantes y heterogéneos puedan articularse juntos, no obstante sus incongruencias y sus conflictos, en la trama común que los urde en una estructura conjunta. [...] Y como la experiencia de América y de actual mundo capitalista lo demuestra, en cada caso lo que en primera instancia genera las condiciones para esa articulación es la capacidad que un grupo logra obtener o encontrar para imponerse sobre los demás y articular bajo su control, en una nueva estructura global, sus heterogéneas historias (QUIJANO, 2007 p. 98-99).
A virada epistemológica de Aníbal Quijano liga-se, inevitavelmente, à originalidade da produção literária da América-latina, do realismo-fantástico de Jorge Luís Borges, Gabriel Garcia Marquez, Juan Rulfo, Guimarães Rosa, e, sobretudo, das obras de seu amigo romancista e etnólogo José Maria Arguedes, com quem trabalhou no Departamento de Sociologia da UNALM nos anos de 1962-1963. Do empreendimento “estético-mítico” dos romancistas latino-americanos, Quijano compreendeu a existência da concretude dos tempos simultâneos (RUBBO, 2018). Sem perder de vista a importância do pensamento de José Carlos Mariátegui, de quem Quijano absorve a noção de colonialidade, formula o conceito de “heterogeneidade histórico-estrutural” observando a permeabilidade entre logos e mito, expressa pela dialética própria de uma cultura. Consolida, assim, sua crítica às perspectivas eurocêntricas na subversão da ordem dicotômica da razão instrumental que enxerga de forma inconciliável os opostos: ciência vs. fé, razão vs. emoção, logos vs. mito (RUBBO, 2018). Portanto, a virada epistemológica de Quijano conclama uma ciência política e social cuja filosofia tem por base uma antropologia histórica e social, ou de acordo com Franco, tem por base o próprio chão histórico comum das vivências.
Tal subversão intelectiva se aproxima da “tradição” engendrada nos anos de 1920 pelas ditas vanguardas literárias. Movimentos próximo ao marxismo e que visavam à instauração de uma nova ordem social. No Brasil, assim como nos demais países da América latina, o “modernismo” se caracterizou por uma tomada de consciência nacional por vezes confundido com movimentos nacionalistas[2]. Não obstante, o moderno se ligava a barbárie promovida pela própria razão instrumental do espírito capitalista, cujo símbolo era o horror instaurado pelas Guerras Mundiais, que “devoram tudo isso, a cultura e o homem” (BENJAMIN, 1987, p. 198). Ademais, para os “modernistas” latino-americanos se tratava antes de formular uma racionalidade alternativa para se libertar do “problema da cópia”. O filólogo alemão Horst Nitschack (2008, n.p.) em seu estudo sobre Oswald de Andrade, afirma que a estética antropofágica visaria “criar não somente uma prática cultural diferente, mas também simultaneamente uma nova lógica discursiva, ou melhor, uma nova prática discursiva que transgrida as lógicas convencionais” e que, portanto, constitui “o primeiro argumento fundamental contra a civilização ocidental”.
Neste sentido, em conformação ao pensamento de Mariátegui, a proposta de uma nova lógica discursiva das vanguardas latino-americanas deveria ser antes entendida como um tipo de “criação heroica”, cujo propósito material era não ser um “decalque” ou uma “cópia” dos movimentos europeus, e, para tanto, era necessário dar vida a uma própria realidade e uma própria linguagem. Sobre a revolução surrealista dos anos de 1920 afirma Mariátegui, “não é um simples fenômeno literário, mas um complexo fenômeno espiritual. Não se trata de uma moda artística, mas de um protesto do espírito” (MARIÁTEGUI, 1971 apud LÖWY, 2013, p. 78).
Rubbo (2018), em seu artigo: Aníbal Quijano e a racionalidade alternativa na América Latina: diálogos com Mariátegui, observa uma grande aproximação entre a proposta de Quijano e a concepção antropofágica de Oswald de Andrade, mesmo que Quijano não reconheça a literatura brasileira em seu repertório.
Para Quijano, trata-se de “admitir a cultura ocidental como dominante sob condição de que nela possam caber todas as possibilidades de expressão e criatividade do que não era ocidental. Na realidade, é comer as entranhas do dominante para incorporá-lo àquele que é, até aquele momento, dominado. E convertê-lo em alternativa não excludente, pelo contrário, envolve o conjunto da história desse movimento” (QUIJANO, 2014a, p.701 apud RUBBO, 2018, p. 397).
Contudo a relação entre modernismo e marxismo na América-latina tem como eixo fundamental, o próprio pensamento de Mariátegui (PERICÁS, 2010), sobretudo, de sua crítica literária e sua atração pelo movimento surrealista (LÖWY, 2013), da qual destacamos o ensaio sobre Blaise Cendars (MARIÁTEGUI, 1988), poeta franco-suíço amigo e hóspede de Oswald em sua passagem pelo Brasil. Cabe ressaltar que se integravam ao heterogêneo grupo dos modernistas brasileiros figuras como Gilberto Freyre, Caio Prado Junior, Sérgio Buarque de Holanda, todos com contribuições significativas para a formulação de um pensamento social e político brasileiro.
Se Mariátegui surge como o precursor do pensamento marxista na América-latina, atribuímos, no Brasil, a Caio Prado Junior esse título, e a ambos a formação de um pensamento social latino-americano. Contudo, é através da experiência mística do surrealismo que podemos compreender as bases de construção para uma possível realidade onde logos e mito se fundem em uma nova razão – alternativa – sensível, sensual e sensória.
“Colonialidade do Poder” e “Dominação Pessoal”
Na visão de Aníbal Quijano, a crítica ao eurocentrismo possibilita uma proposta de uma racionalidade alternativa à ordem vigente. O sociólogo peruano buscou na releitura de Mariátegui, a contestação necessária para a renovação crítica da teoria social “latino-americana”. Ao buscar a especificidade da América Latina, deparou-se com uma diferença essencial, extraída da concepção do próprio Mariátegui, entre colonialismo e colonialidade. Se o primeiro termo diz respeito especificamente a um determinado momento histórico, ou seja, do próprio processo de colonização, o segundo, mesmo que vinculado ao conceito de colonialismo, apresenta-se muito mais profundo e duradouro, e se refere estritamente a uma estrutura de dominação e exploração, na qual o controle da autoridade política, dos recursos de produção e do trabalho de uma determinada população detém outra identidade diferente, e cujas sedes centrais se encontram em outra jurisdição territorial (QUIJANO, 2007). Colonialidade, portanto, é uma relação de dominação política, social e cultural direta que muito se aproxima da noção de dominação pessoal de Maria Sylvia de Carvalho Franco.
Para Franco, a dominação pessoal se caracteriza pelo exercício direto e violento do poder. Fundam-se, antes, nos valores de qualidade da “pessoa”, não em tradições familiares, religiosas ou étnicas. Se confrontarmos as ideias de “colonialidade do poder” e de “dominação pessoal” sem perder de vistas os conceitos de “unidade contraditória” e “heterogeneidade histórico-estrutural”, podemos ver como a dominação pessoal e a dominação burguesa se entrelaça no padrão autocrático de desenvolvimento do capitalismo (CAZES, 2014). Não obstante, os conceitos de Franco se restringirem à especificidade da formação política e social do Brasil, acreditamos que tais conceitos podem e devem ser vistos de forma homóloga, já que a ideologia liberal, cujo preceito da igualdade é fundamental, torna-se uma necessidade do sistema de dominação burguesa que encobre as disparidades através da equação “potencialmente iguais, mas desigualmente capacitados para empreender a conquista” (FRANCO, 1976).
A interpretação de André Botelho sobre o conceito de “unidade contraditória” nos sugere esta interconexão entre as teorias e pensamentos então comparados. Para ele, tal conceito,
remete a uma compreensão sociológica afinada à historicidade do processo social, e que a pessoalização das relações sociais e das práticas de poder não produz as mesmas sociedades que se formavam nas experiências históricas europeias, elas respondiam de modos próprios a determinações mais gerais da expansão do capitalismo e da construção da sociedade moderna (BOTELHO, 2013, p. 254).
Vê-se claramente a proposição colonialidade/modernidade na noção de “unidade contraditória” de Franco. Ideia esta que se torna inteligível nas formas de dominação engendrada pelo capitalismo e pelo pensamento eurocêntrico. Neste sentido, Quijano complementa a interpretação de Franco sobre o “desenvolvimento desigual e combinado” quando traduz, sob a forma da “heterogeneidade histórico-estrutural”, o padrão de dominação típico da razão instrumental burguesa. Assim, o “mundo moderno” inauguraria uma série de categorizações essenciais para a reprodução da sua forma de dominação.
A colonialidade se refere, portanto, a toda uma dimensão subjetiva inaugurada pelo corte brusco promovido na história das comunidades nativas da América. Assim como a colonialidade se tornou o padrão de poder intersubjetivo dos povos conquistados, ela mesma reformulou a própria noção de identidade europeia através da “descoberta” do outro, e ratificou as diferenças imanentes em desigualdades transcendentes, através da simples observação das formas, do fenótipo. Portanto, com a colonialidade, as noções de raça/etnia, gênero e idade, surgem como categorização de “classes” cuja racionalização das relações de poder entre as novas identidades sociais e geoculturais foram o sustento e a referência fundamental que legitimou o caráter eurocentrado do padrão de poder, material e intersubjetivo, imposto pelo sistema-mundo capitalista (QUIJANO, 2007, p. 119).
Ainda acerca do tipo pessoal de dominação, cabe-nos ressaltar que para Franco, este tipo de relação se expressa nas formas de compadrio, ou, “tipo de união ritual de parentesco divino” (FRANCO, 1997, p. 95), cujas relações assimétricas de poder entre o patrão e seus dependentes são mais que simbólicas para a compreensão da inserção dos países “periféricos” no sistema do mercado-mundo. A contradição expressa entre produção mercantil vs. produção de subsistência, escravidão vs. servidão, violência vs. solidariedade, sob a unidade totalizante do sistema capitalista, são constitutivas da relação colonialidade/modernidade, ou, do “elo alienante” que estabelece a relação entre dominantes e dominados.
Exploração/dominação/conflito são relações intimamente associadas à elaboração dos supostos atributos sociais e racionais para Quijano. Tal condição de subalternidade subjetiva da noção de “colonialidade do poder” coaduna, em partes, com a assertiva de Maria Sylvia de Carvalho Franco, para quem “os critérios extra econômicos de categorização dos indivíduos em sociedade aparecem, reiteradamente, perturbados pelos critérios de diferenciação social fundado em situação econômica” (FRANCO, 1970, p. 177). Porém, em contrapartida, para Quijano tais critérios extraeconômicos são antes categorias fundamentais para a consolidação de um mundo fundado sob uma ordem estritamente econômica. Aqui, as proposições tomam pontos de partida distintos, mas, não necessariamente, a ordem dos fatores parece anular o produto, ou seja, o próprio sentido da colonização que é a instauração de uma condição permanente de subordinação política, social e cultural. Ademais, a “colonialidade do poder” implica uma dominação interno-externa, quer dizer, tem implicações tanto no âmbito das relações internacionais como das relações domésticas, ou seja, uma dependência histórico-estrutural.
O que poderia parecer uma dissonância entre a incisiva postura de Franco diante da dicotomia hegemonia vs. Dependência, e a constatação de Quijano, na verdade se trata mais de uma leitura em que se evidencia a simultaneidade da dependência, ou seja, a interdependência entre as partes que complementaria antes a noção do capitalismo como “unidade contraditória”.
El esquema de un mundo capitalista, dualmente ordenado en “centro” y “periferia”, no es arbitrario precisamente por esa razón, aunque probablemente habría sido mejor pensar en “centro colonial” y “periferia colonial” (en el sentido de la colonialidad, y no solo, y no tanto, del colonialismo) para evitar la secreción “naturalista”, físico-geogáfica de la image. En el centro (eurocentro), la forma dominante, no sólo estructuralmente, sino también, a largo plazo, demograficamente, de la relación capital-trabajo, fue salarial. Es decir que la relación salarial fue, con el tiempo, principalmente, “blanca”. En la “periferia colonial”, en cambio, la relación salarial fue, con el tiempo, estructuralmente dominante, pero siempre minoritaria en la demografia como en el todo lo demás, mientras que las más extendidas y sectorialmente dominantes fueron todas las otras formas de explotación del trabajo: esclavitud, servidumbre, producción mercantil simple, reciprocidad. Pero todas ellas estuvieron, desde el comienzo, articuladas bajo el dominio del capital y en su beneficio (QUIJANO, 2007, p. 121-122 – grifos do original).
Por fim, é interessante notar que, ao recusar tratar a escravidão como um modo de produção e preferir os homens livres pobres em sua análise, Maria Sylvia de Carvalho Franco acaba iluminando a brutalidade da condição existencial do próprio negro na sociedade brasileira. Este, perdido na tautologia violência-escravidão das análises que tomavam a centralidade da relação “escravo e seu proprietário” para explicar as supostas formas irracionais de organização econômica adotada pelos Estados nacionais “periféricos”, acabava por carregar consigo todas as mazelas que eram atribuídas como obstáculo da modernização brasileira. Igualmente podemos pensar a proposta de Franco para os demais países latino-americanos, uma vez que a noção de “unidade contraditória” carrega consigo o próprio princípio da “dominação pessoal/colonialidade” como um tipo de “estrutura psíquica” do próprio capitalismo, que comporta continuidades de séries históricas e produz, pela descontinuidade da violência permanente, histórias heterogêneas. Franco, por sua vez, refere-se a essa violência “constante e pesada” da escravidão como uma situação de “presença ausente”, em que os negros são reiteradamente subsumidos à marginalidade da estrutura social e política brasileira.
Enfim, devemos ter claro em nossas mentes que as propostas de ambos os autores se debruçam sobre as questões nacionais próprias de cada país, no caso Brasil e Peru. Contudo, ambas as propostas têm por finalidade oferecer formulações gerais, tomando como ponto de partida a sensível realidade dos países subordinados culturalmente e, sobretudo, determinados economicamente por agentes externos, cuja dominação, a partir do processo de colonização, tornou-se algo muito mais profundo e próprio das relações assimétricas de poder. Relações de exploração/dominação/conflito que conformam subjetividades, que entram em contradição com as identidades importadas dos centros hegemônicos. Este é um problema que nos sugere um intenso debate e, por conseguinte, uma apurada investigação, uma vez que a dicotomia subjetividade vs. identidade, torna-se as forças motrizes das diversas contradições que são inerentes ao próprio capitalismo. Queremos, portanto, dizer que essa conciliação contraditória é própria da forma de dominação instituída pela ideologia liberal e pela universalização da forma de exploração/dominação/conflito da economia-mundo capitalista.
Vimos com Maria Sylvia de Carvalho Franco, que a ausência de tradição – no sentido tipo-ideal europeu (feudalismo, Antigo Regime) – e, sobretudo, dado ao extermínio das populações nativas, no caso brasileiro, fez com que a situação econômica se ligasse imediatamente à posição social, articulando as desigualdades individuais em questões de ordens psicológicas, intelectuais, biológicas e morais.
Na representação igualitária e, por conseguinte, na negação da luta de classes pelo pensamento liberal é que se legitimam os desequilíbrios de condição social, e se instituem no “complexo de relações sociais” os critérios de classificação social, que são de certa forma concomitante aos princípios imanentes do capitalismo, ou seja, a exploração/dominação/conflito.
A ideia de “colonialidade do poder” nos permite observar a crítica de Maria Sylvia de Carvalho Franco a Roberto Schwarz em As ideias estão no lugar (FRANCO, 1976), com mais cuidado. O problema da cópia, neste sentido, seria antes uma “imposição consentida”, uma vez que no processo de recepção das ideias eurocêntricas há sempre uma adaptação às estruturas internas de cada nação para a consolidação da dominação/exploração/conflito, que requer o sistema-mundo capitalista. Pois, colônia e metrópole apresentam, em seus processos de desenvolvimento, situações particulares que são determinadas no processo interno de diferenciação que é própria da razão dualista e instrumental das ideologias liberais, ou seja, do próprio sistema capitalista, que “no movimento imanente de sua constituição e reprodução” unem contraditoriamente as subjetividades e as identidades de baixo de seu próprio domínio, o mercado-mundo.
Conclusão
O prólogo tolera a confidência; fui um conservador vacilante e um bom ouvinte. [...] Sei que sou totalmente indigno em opinar em matéria política, mas talvez me seja perdoado acrescentar que descreio da democracia, este curioso abuso da estatística (BORGES, 2009, p. 204).
Se, como diz o poeta, o prólogo tolera a confidência, então, a conclusão nos permite criar possibilidades alternativas para que subjetividades e identidades não sejam suturadas por uma determinação exógena ao ator social em sua relação com o mundo.
Tratamos, pois, de pensadores, cuja honestidade intelectual para consigo e seus leitores nos induzem a um verdadeiro ethos social reflexivo, que é antes voltado para a experiência sensível e sensual, estético-mítico, dos agentes sociais de um determinado chão histórico. No caso dos intelectuais em questão, um continente inteiro, marcado pelo signo da barbárie – exploração/dominação/conflito – da expansão permanente do capitalismo.
Contudo, a honestidade intelectual é um atributo distintivo relevante entre aqueles que se pretendem a pensar a humanidade. Entendemos que o pensamento é arte. E enquanto uma forma de arte, ou assim como a obra de arte, as grandes ideias adquirem suas próprias vidas, suscitando interpretações que deslizam o domínio do próprio sujeito da reflexão. Muitas vezes, os conteúdos destorcidos assumem um caráter político que traem os próprios princípios do pensamento fundante. Poder-se-ia pensar que esta é uma regra geral para aqueles que pretendem engendrar metanarrativas e teleologias escatológicas, como observamos em Quijano na sua crítica à racionalidade instrumental eurocêntrica.
Sob a ordem estabelecida, a “humanidade”, quando pensa em seu fim, não pensa no fim das outras “humanidades”. Diria o antropólogo Lévi-Strauss (1970, p. 237) que “a humanidade cessa nas fronteiras das tribos, do grupo linguístico, às vezes mesmo da aldeia”, portanto, não se deveria pensar a humanidade como uma imagem estatizada num presente vazio. As intempéries do tempo sobre os espaços fez da humanidade uma fotografia pálida, cuja opaca memória, embranquecida brutalmente pela filosofia ocidental, engendrou a hierarquia entre os povos como “uma necessidade universal”, que “se tornará manifesta de algum modo sob formas encobertas, ignominiosas ou patológicas em relação aos ideais opostos vigentes” (DUMONT, 1972 apud DUARTE, 2015, p. 285).
Os outros – bárbaros, selvagens, primitivos – que habitam além da fronteira que não é só física, mas também simbólica, foram devorados pelo cinocéfalo Estado-moderno, que se apresenta como universal. Enfim, a conquista colonial poderia ser uma grande descoberta, se o “acaso” não produzisse um permanente epistemocídio. O descobrimento do “Outro-eu” levou os próprios colonizadores a um empreendimento que viria marcar por definitivo a história das Humanidades, pois, haviam não só sobrevivido às terras inóspitas habitadas por lindas mulheres guerreiras e canibais bugres, mas as haviam conquistado.
Na América, sobretudo, na chamada “América-Latina”, a emergência do Estado (capitalista em sua origem) mostra como as relações sociais de produção – sua forma política e sua forma econômica – encontram-se imbricadas num tipo de dominação específica e que nada tem de tradicional. Este complexo de relações sociais que é o próprio Estado nacional “é gerado e reproduzido pelos indivíduos ativos, mas sob condições que fogem à sua consciência imediata e ao seu controle” (HIRSCH, 2010, p. 19).
As relações de dominação política se apresentam explicitamente vinculadas às estruturas, que têm por base as condições materiais de produção, e que por sua vez se apresentam de múltiplas formas, são heterogêneas, mas “conciliadas” pelo feitiço do domínio amplo do sistema capitalista mundial. As relações de dominação burguesa ou pessoal são assim fetichizadas, uma vez que o estatuto de igualdade entre os homens “livres” tornam estas formas de dominação não diretamente observáveis pelos homens (HIRSCH, 2010), mas uma manifestação de um valor próprio que é constitutivo do social, em que as ideias liberais, ou, propriamente, a “colonialidade do poder”, são ajustadas às oportunidades políticas imediatas para a obtenção de lucro “fácil” e rápido. Não obstante, pode-se entender esta formulação genérica do tipo de dominação pessoal pelo processo permanente da “colonialidade do poder” dos povos “latino-americanos” quando observamos a dependência como “uma inclinação de vontades no mesmo sentido, como harmonia, e não como imposição da vontade do mais forte sobre a do mais fraco, como luta” (FRANCO, 1997, p. 95). Do mesmo modo, as formas fetichizadas da dominação pessoal, cujo seu “tipo ideal” no continente colonizado se apresenta sob a forma do compadrio ou compadrazo[3], desdobram-se em formas heterogêneas de organização econômica e social, de produção e de relações que têm em comum um teto, uma totalidade, que formula seu sentido, mesmo que antagônico e contraditório, sob a forma de uma única unidade, uma vez que imbricam nela as múltiplas formas de exploração/dominação/conflito pelas quais denominamos Estado Moderno capitalista.
Aníbal Quijano e Maria Sylvia de Carvalho Franco, cada um em seu tempo e à sua maneira, nos sugerem antes observar a importância do local de onde se emana a crítica sem perder de vista o conflito de classes, e sem incorrer numa perspectiva atomista. Buscaram compreender as especificidades históricas que constituem um tipo de dominação material-subjetiva ao mesmo tempo, em que empreendiam num novo processo crítico, de bases epistemológicas que iam além dos paradigmas estabelecidos pelas teorias de “moda”, um mal frequente nas ciências sociais. Alertaram, acima de tudo, para a crise como uma parte constitutiva do que é a própria modernidade e pelo qual o próprio sistema capitalista se estabeleceu e se desenvolve.
Neste sentido, correlacionar as teorias dos dois autores nos permitiu compreender como existem múltiplos movimentos de “desenvolvimento desigual e combinado” abaixo do padrão de poder capitalista e, sobretudo, observar como se gestou um padrão de conduta estabelecido por este poder, denominado por Quijano de “colonialidade do poder” e compreendido por Franco pela sua forma pessoalizada de dominação, o que por sua vez seria uma generalização do próprio pensamento burguês.
Portanto, a crise da modernidade, quando compreendida como crise do capitalismo ou crise das formas de representatividade, expressam antes a crise do próprio pensamento ocidental, da razão instrumental liberal que se tornou sobredeterminante, instituinte e constitutiva desta forma assimétrica de poder pela qual se organiza o sistema-mundo capitalista. Tal perspectiva não dá conta das múltiplas existências, ontologias que são tão heterogêneas quanto a sua própria determinação, que requer diversas estruturas históricas e modos de produção sob seu controle. É neste sentido que compreendemos a possibilidade de uma razão alternativa aberta pela crise do próprio pensamento eurocêntrico, para os povos cujas diversidades de ontologias e subjetividades confrontam as determinações identitárias e de classificação social. A dialética que se apresenta aqui diz respeito à capacidade da emergência de uma razão alternativa, sobretudo, quando confrontadas as subjetividades reais ou possíveis com as identidades determinadas ou fetichizadas pelo processo de mercantilização do mundo da vida, mas sem perder as particularidades dos processos históricos internos experimentados por cada cultura. Este confronto, em nossa perspectiva, um verdadeiro método epistemológico-crítico, pode ser capaz de engendrar uma nova visão no que concerne aos paradigmas universais que são próprios das disciplinas sociológicas. Com Quijano e Franco aprendemos que contestar tais paradigmas é necessário para desvelar o processo de reificação que constitui o verdadeiro caráter despótico do capitalismo. Ademais, se além dos trópicos “eles não sabem o que fazem”(MARX, 1978, 72),[4] então nós, deste lado do oceano, devemos sabê-lo muito bem, pois a violência que constitui a “matéria” e a “essência” dos Estados-nações tem em comum um ente pelo qual se estruturam e articulam formas heterogêneas, descontinuas e conflitivas de vivências.
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Recebido em: 25/08/2109.
Aceito em: 05/11/2019.
DOI: https://doi.org/10.46906/caos.n23.47679.p271-294
* Mestrando do programa de Pós-graduação em Ciência Política e Relações Internacionais da UFPB/Brasil. E-mail: josemauropompeu@gmail.com.
[1] Os estudos de Oliveira Viana (Populações meridionais do Brasil, 1920), de Sérgio Buarque de Holanda (Raízes do Brasil, 1936), de Victor Nunes Leal (Coronelismo, enxada e voto, 1949), assim como os estudos rurais e sobre a cultura messiânica sertaneja de Maria Isaura Pereira de Queiroz (1918-2018) constroem, mesmo que de forma heterogênea, toda uma tradição que toma por análise os homens livres pobres.
[2] O movimento modernista no Brasil, em sua primeira fase, é marcado pelos manifestos nacionalistas: do Pau-Brasil de Oswald de Andrade (1924), do Regionalismo de Gilberto Freyre (1926), do Verde-Amarelismo e da Escola da Anta de Plínio Salgado (1926).
[3] Ver Maria Isaura Pereira de Queiroz, (QUEIROZ, 1978).
[4] A formulação de Marx aparece aqui como um exemplo da “falsa consciência” do lema burguês acerca da ideia de igualdade. Ideologia que, sob a forma de contrato de trabalho, ratifica a alienação do homem pelo homem, e expressa uma relação de iguais detentores de mercadorias, ou seja, de um lado, aquele que vende sua força de trabalho, do outro, aquele que detém os meios de produção. Neste sentido, a ideologia da igualdade, enquanto um preceito do liberalismo, pressupõe, quando não a eliminação, a domesticação da luta de classes.