MASCULINIDADES E FEMINILIDADES EM RELIGIOSIDADES AFRO-BRASILEIRAS

 

MASCULINITIES AND FEMININITIES IN AFRO-BRAZILIAN RELIGIOSITY

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Lara Rosa Meirelles Barros*

DOI: https://doi.org/10.46906/caos.n23.47720.p295-301

 

CONCEIÇÃO, Joanice. Irmandade da Boa Morte e culto de Babá Egum: masculinidades, feminilidades e performances negras. Jundiaí: Paco Editorial, 2017.  

 

            A obra Irmandade da Boa Morte e culto de Babá Egum: masculinidades, feminilidades e performances negras é fruto de tese defendida no Programa de Estudos Pós-Graduados em Ciências Sociais da PUC-SP, em 2011, pela pesquisadora Joanice Conceição. A autora dispõe de ampla trajetória em interlocução com áreas de estudos que tematizam populações afro-brasileiras, religiosidade, gênero e educação. Atualmente é professora da Universidade da Integração Internacional da Lusofonia Afro-brasileira (UNILAB). Este livro é resultado de pesquisa junto à Irmandade da Boa Morte, em Cachoeira, no Recôncavo Baiano, e à comunidade de Babá Egum, do Ilê Omo Agboulá, na localidade de Ponta de Areia, Ilha de Itaparica, também na Bahia. A proposta da autora foi investigar práticas mortuárias dos dois coletivos, buscando compreender como os integrantes se utilizam de modelos de masculinidades e feminilidades – a pluralidade desses conceitos é salientada – em práticas rituais e cotidianas. Assim, o tema do poder é destacado com vistas a entender performances de gênero, bem como seus desdobramentos para o status do coletivo e a legitimidade das respectivas posições.

Os grupos foram escolhidos por se incumbirem de rituais ligados à morte dentro de uma perspectiva afro-brasileira. De um lado está o culto de Babá Egum, no qual os sacerdotes, Ojés, são exclusivamente homens e monopolizam o acesso aos segredos rituais relacionados à materialização do Babá Egum, espíritos ancestrais masculinos cultuados. Para esta religião, integrantes dos grupos falecidos retornam a este mundo, após procedimentos ritualísticos, para se comunicarem com a comunidade por meio de danças, da fala e de terapias. Na Irmandade da Boa Morte, grupo “secreto” de mulheres negras que realizam anualmente adorações a Maria e às “irmãs” falecidas da irmandade com procissões, missas e festejos pela cidade de Cachoeira. Nesta estrutura, a hierarquia sacerdotal é exclusividade feminina.

A obra é dividida em Introdução, parte I, composta de um capítulo no qual são abordados conceitos utilizados na pesquisa como gênero, masculinidades e feminilidades, performance, cosmogonias mortuárias, e ainda, apresenta os grupos pesquisados. A parte II é composta por três capítulos em que se apresentam dados de campo com respectivas análises e culmina em uma breve conclusão.

A introdução do livro expõe os diálogos teóricos da autora, cujas reflexões sobre a morte e o morrer se respaldam em referências clássicas dessa temática na antropologia, como Robert Hertz, Arnold Von Gennep, Edgar Morin e Louis-Vicent Thomas. A morte é abordada como pertencendo aos cuidados masculinos e possui papel na coesão social, considerada como evento desorganizador que unirá os grupos para afastá-la em prol da sociedade. Os grupos da Boa Morte e de Babá Egum se expressam sob influência de uma “ressignificação da morte africana” (p. 36) caracterizada pela crença na imortalidade e pelo entendimento da morte como parte importante da vida.

Diante das interdições ao outro gênero, mantendo os espaços e rituais com exclusividade dos integrantes, a autora afirma que os grupos performariam masculinidades e feminilidades para manutenção do seu poder — na acepção de “micropoder” de Foucault (p. 145). Os conceitos de masculinidade e feminilidade são usados como meio de abordar gênero remetendo às práticas, conforme elaborações de Raewyn Connell e Miguel Vale de Almeida. Caracterizados assim por mobilidade, pluralidade e não equivalência às categorias de homem e mulher, já que podem ser acionadas por ambos em suas práticas e discursos. O conceito de patriarcado, promulgado por Saffioti, e o de dominação masculina bourdieusiano também são adotados, dando ênfase à ideia de desigualdade entre os gêneros; nessa mesma linha, o conceito de hegemonia de Gramsci é valorizado, uma vez que possibilita pensar a desigualdade das mulheres frente aos homens.

No capítulo União necessária: morte, vida e performance, a autora aprofunda as chamadas concepções “iorubá ou nagô” (p. 61) sobre a morte. Adota-se uma perspectiva afro-diaspórica, ainda que esse termo não seja utilizado, à medida que se compara na contemporaneidade os grupos afro-brasileiros e as tradições mortuárias africanas. Neste capítulo, Conceição também detalha a organização dos grupos e descreve o funcionamento dos respectivos rituais. A Boa Morte é apresentada como uma confraria que cultua Maria católica sob a forma de Nossa Senhora da Boa Morte, com a realização de uma performance ritual com duração de três dias, na qual se revive o falecimento até a ressureição da santa.

O culto de Babá Egum é descrito por suas particularidades ligadas ao cuidado e adoração com espíritos ancestrais de uma comunidade religiosa. Aqueles ancestrais masculinos que em vida se iniciaram nos mistérios – uma vez passando por processos sucessivos de transformação após morte – podem se materializar nos Opás, roupas sagradas por meio das quais os eguns se manifestam, para se relacionar com os adeptos (p.89). A participação das mulheres é destacada pela separação no espaço físico e pelas atribuições. Para elas, são reservados os cuidados com os orixás e a cozinha ritual, não lhes sendo possível acessar o segredo, ou seja, serem iniciadas nos mistérios do culto ou assumirem o papel de sacerdotisas de Egum.

O capítulo dois é dedicado a expor os dados de pesquisa relativos à construção de feminilidades e masculinidades na Irmandade da Boa morte. Para a pesquisadora, as participantes da Boa Morte utilizam o corpo para aprender e ensinar os comportamentos adequados às suas “acompanhantes”, o papel das filhas, netas e sobrinhas, por vezes (p.131). De tal modo, as mais velhas ensinam as mais novas, nas “brincadeiras” (p. 121) e na vigilância disciplinadora, como devem se portar; e as mais jovens rememoram as precursoras para corroborar suas atuações e o poder das mulheres do grupo.

As sacerdotisas usam a performance no ritual e afirmam serem “mulher-homem”, representando o papel com força e altivez (p. 128). Porém, na prática, a presença dos homens é registrada, levando a autora a considerar que – ao passo em que as mulheres transgridem a “ordem vigente” (p. 269) quando cuidam de rituais mortuários, em princípio, prerrogativa masculina – também contam, em algumas atividades, com a presença dos homens, ainda que não assumam esta presença na discursividade.

Outra ambiguidade encontrada pela autora é o fato de as integrantes da Boa Morte, nas entrevistas, negarem a presença do candomblé em seus ritos. Todavia, com base na investigação, Conceição aproxima a Irmandade com a religiosidade dos Orixás a partir de elementos como indumentárias usadas, comidas ofertadas e tabus respeitados. Os rituais secretos da irmandade são analisados por meio de “deduções” (p. 145) da autora, sobre a origem dos elementos acionados pelas integrantes durante as festividades.  Tais reflexões levam Conceição a deduzir a presença de homenagens a diversos orixás ligados à vida e à morte no culto.  

O terceiro capítulo aborda a construção de masculinidades e feminilidades no culto de Babá Egum. Enfatiza a divisão ritual de separação de gênero e como esta afeta a vida social da comunidade do terreiro. Para autora, as divisões dentro do espaço religioso se refletem nos espaços sociais destinados à “mulher” e ao “homem” como bares, mercearias e frentes de casa, onde grupos genderizados pouco se misturam. Sendo os espaços de “mulher” vistos como locais de “fofoca” e desqualificados, enquanto os dos “homens” são tratados como locais de assuntos sérios e de importância primordial para o bom funcionamento do culto de Babá Egum (p.198).

O aprendizado cotidiano da masculinidade e da feminilidade pelos mais jovens é salientado, assim como na Boa Morte. Às jovens são ensinados comportamentos baseados em uma feminilidade subalterna em que devem atentar ao masculino para construírem as próprias identidades, à exemplo da atenção ao comportamento corporal e ao vestuário utilizado. A construção da masculinidade é exposta em um caso etnográfico de um jovem sacerdote, que se desvia dos padrões de masculinidade viril e hegemônica promovida nesse espaço, sendo por isso questionado constantemente sobre sua sexualidade.

A autora afirma que os sacerdotes do culto de Babá Egum do Ilê Omo Agboulá reproduzem, ainda que não conscientemente, a dominação sobre as mulheres existentes na sociedade mais ampla, por não reconhecerem, espontaneamente, a participação das mulheres na religiosidade ancestral, assim, relegam-lhes papéis subalternizados. E recorrem às mitologias e tradições para subsidiar o caráter estático das práticas do culto, performam, dessa maneira, a masculinidade afirmando seu poder. As mulheres, por sua vez, aceitam essa condição e se acomodam promovendo o exercício de uma feminilidade subalterna e chegam a confirmar em entrevistas sua pouca importância em algumas esferas do culto aos eguns.

No capítulo 4, a autora afirma, com base no trabalho de Renato da Silveira, que no Candomblé da Barroquinha, no século 17, havia figuras pertencentes ao culto de Babá Egum e à Irmandade da Boa Morte levando-a à tese de que há uma “complementariedade simbólica” entre os grupos (p. 259). Joanice Conceição associa ainda a presença das organizações femininas, que homenageavam ancestrais mulheres neste candomblé, a elementos vistos na Boa Morte. Contudo, diferenças também são apontadas: em Babá Egum, as interdições ao outro gênero seriam mais eficientes, uma vez que são acionados elementos da tradição e da mitologia para manterem a separação dos domínios. Já na Boa Morte, a performance de poder aliada à feminilidade não exclui plenamente os homens, cuja participação é aceita, mas de forma controlada. Assim, as mulheres asseguram no ritual e no segredo sua hegemonia.

Conclusivamente, a autora afirma que os grupos fazem uso da masculinidade hegemônica e da feminilidade subalterna em suas práticas; porém, os rituais garantem a não exclusão do outro gênero, uma vez que a base nagô solicita a complementaridade mítica entre os domínios masculino e feminino. A Boa Morte é considerada uma organização subversiva por cuidar dos rituais mortuários de âmbito masculino, já o culto de Babá Egum, ainda que relegue as mulheres à participação parcial nos rituais, acaba por ceder à presença feminina, vez que este gênero é elemento primordial na cosmogonia nagô.

Não há no trabalho um tópico exclusivo que aborde reflexões metodológicas, porém é possível sinalizar informações com este teor. A exemplo de quando afirma haver utilizado observação participante e entrevistas com homens e mulheres como método de pesquisa, sendo as conversas gravadas. Contudo, em alguns momentos, os entrevistados solicitaram que o gravador fosse desligado, obrigando a pesquisadora a elaborar anotações posteriores. Também são expostas as dificuldades encontradas na realização da pesquisa, como o estranhamento da presença de Joanice Conceição enquanto antropóloga na comunidade de Egum, ainda que haja realizado extenso trabalho de campo durante três anos com visitas à localidade, onde conviveu nos espaços das mulheres; o impedimento de acessar os rituais secretos da Irmandade da Boa Morte – apesar das suas relações pessoais com sacerdotisas do coletivo em Cachoeira – também foi outro obstáculo exposto pela autora. A pesquisadora comenta ainda sobre o empecilho de fotografar ou gravar momentos rituais variados em ambos os grupos, interdições comuns em campos religiosos.

Em todo o livro predomina a escrita analítica, sendo as pontuações etnográficas descritas e analisadas em conjunto com fragmentos de determinadas entrevistas. O método de análise não é evidenciado, porém é possível inferir o uso de técnicas de análise do discurso, sobretudo nas entrevistas, visto que a autora analisa as conversas, apontando-as como exemplos de discursos de “dominação”, “acomodação”, dentre outras categorias.    

Sobre o viés epistemológico utilizado, percebe-se que ideias de estrutura e universalismo se fazem presente no que tange à desigualdade de gênero e dominação masculina, ainda que as ideias estruturais apareçam sem apagar o dinamismo da composição e performances dos interlocutores. Há também uma preocupação com o poder, o que leva a autora a atentar a questões da hierarquia e da organização social que se concatenam com a cultura. O trabalho se insere no campo dos estudos de religiões afro-brasileiras que abordam questões de gênero e poder, como é o caso dos trabalhos de Patrícia Birman (1995) e Rita Segato (1995). Porém, como observado por Conceição, em suas últimas páginas, trabalhar com gênero e poder em contexto de religiosidade pressupõe uma complexidade que envolve variáveis múltiplas, tal como aponta Marilyn Strathern (2006), no clássico O gênero da dádiva, ao dizer que tratar de grupos não ocidentais, no que concerne a aspectos de gênero, pede que o pesquisador busque compreender também as teorias e conceitos nativos a esse respeito.

O livro Irmandade da Boa Morte e culto de Babá Egum: masculinidades, feminilidades e performances negras traz subsídios importante para se compreender as masculinidades e feminilidades exercidas pelos grupos estudados. Suas análises poderiam se potencializar, ainda mais, em diálogo pleno com uma perspectiva afro-diaspórica, podendo conversar assim, com referências críticas sobre gênero no contexto africano, como é o caso do trabalho de Oyèronké Oyěwùmí (2017) que retoma os estudos iorubanos para pensar gênero de uma perspectiva epistemológica do Sul global. Acredito que – apesar de conter em breves passagens a questão da escravização e do racismo a que esses grupos foram expostos historicamente – questões identitárias poderiam ser melhor exploradas, haja vista aparecem como ponto de confluência entre os grupos. Trata-se de uma obra de relevância para os estudos de gênero e de religiosidades e muito tem a contribuir para pensarmos as práticas e interdições dentro dos rituais mortuários.

 

Referências

BIRMAN, Patrícia. Fazer estilo criando gêneros: possessão e diferenças de gênero em terreiros de umbanda e candomblé no Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: Relume-Dumará, 1995.

OYĚWÙMÍ, Oyèronké. La invención de las mujeres: una perspectiva africana sobre los discursos occidentales del género. Bogotá: La Frontera, 2017. Disponível em:  https://glefas.org/download/biblioteca/Lainvenciondelasmujeres_2.pdf. Acesso em: 26 ago. 2019.

SEGATO, Laura. Santos e daimones: o politeísmo afro-brasileiro e a tradição arquetipal. Brasília, DF: Editora da UnB, 1995.

STRATHERN, Marilyn. Estratégias antropológicas: um lugar no debate feminista. In: STRATHERN, Marilyn. O gênero da dádiva: problemas com as mulheres e problemas com a sociedade na Melanésia. Campinas: Editora da UNICAMP, 2006, p. 27-81.

 

 

 

Recebido em: 26/08/2019.

Aceito em: 21/09/2019.

 

DOI: https://doi.org/10.46906/caos.n23.47720.p295-301

 

 

 

 

 

 

 

 

 



* Mestranda do Programa de Pós-Graduação em Antropologia/UFBA-Brasil. E-mail: lararosamb@gmail.com.