O SINGULAR PLURAL:
conversas sobre habitus, disposições, campo e contextos

 

SINGULAR PLURAL:
Conversations about habitus, dispositions, field and contexts

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Giovanni Boaes*

DOI: https://doi.org/10.46906/caos.n23.48275.p326-340

 

 

 

Resumo

Nesta palestra, proferida em junho de 2018, junto ao GRESP da Universidade Federal da Paraíba, o autor compara alguns elementos da sociologia praxiológica de Pierre Bourdieu com a sociologia em escala individual de Bernard Lahire. Tendo como eixo norteador a questão da singularidade, procura colocar em tela os conceitos de campo e habitus de Bourdieu frente aos conceitos de “homem plural” (disposições) e “mundo plural” (contextos) de Lahire.

Palavras-chave: Sociologia Disposicinalista; Sociologia em Escala Individual; Bourdieu; Lahire.

 

Abstract

In this lecture, delivered in June 2018, next to the GRESP of the Universidade Federal da Paraíba, the author compares some elements of Pierre Bourdieu's Praxiological Sociology with the Individual Scale Sociology of Bernard Lahire. Having as its guiding axis the question of singularity, it seeks to screen the concepts of the field and habitus of Bourdieu against the concepts of "plural man" (dispositions) and "plural World" (contexts) of Lahire.

Keywords: Disposicinalist Sociology; Sociology in Individual Scale; Bourdieu; Lahire.

 

 

Introdução

 

“Não gosto de fazer palestras!”

 

Há algo nelas que me deixa pouco à vontade. É como se a configuração que emerge do encontro entre um palestrante e um público, dispostos em posições instáveis de poder, me fizesse ativar uma couraça muscular, mecanismo que ao mesmo tempo que protege, limita a ação e o pensamento.[1] Está aí um assunto que alguém poderia explorar. É um expediente interessante para dialogar tanto com Lahire como com Bourdieu, porque as couraças são exemplos vivos e sentidos da incorporação, digo in-corporação, tornar-se corpo, mesmo processo que ocorre na formação de disposições e habitus.

Por que começar esta comunicação com tal afirmação? Se assim o faço, não é outro o objetivo senão o de abrir um caminho para o que se pretende discutir hoje, as convergências e divergências entre as sociologias de Bourdieu e Lahire.

“Não gostar de palestras” é uma afirmação que cria uma pequena dissonância num discurso sociológico consolidado. Simples demais para ser considerado pelos sacerdotes, caso estivéssemos tratando de um ritual religioso. Destoante, porque não me imagino meramente como um agente inserido num campo, sujeito à illusio, disposto a jogar as regras do jogo, disputando algum tipo de capital, guarnecido por uma pequena máquina de práticas, chamada habitus. Mesmo estando no campo acadêmico, sujeitado aos seus chamados à ordem, parece que me recuso a participar totalmente do jogo. Esta simples afirmação nos coloca diante de uma questão epistemológica importante, a questão da subjetividade frente às estruturas.

Ora, o meu exemplo, obviamente, seria tratado por sociólogos mais convencionais, com certo desdém, pois não significaria muita coisa, é um caso isolado, e no fundo, suspeitariam que eu estaria verbalizando um discurso racionalizado, com certo “charminho crítico”. Ou poderiam dizer que “nem eu mesmo tenho consciência do quanto eu gosto de fazer palestras, de quanto a minha posição no campo, como ser relacional,  atravessa-me tão intensamente, e o meu caso não passaria de uma variante estrutural (do habitus acadêmico) com sua corporificação individual, e que deve à trajetória, seus pequenos adereços”. E arrematariam dizendo que “talvez eu não tenha tido uma trajetória modal, mas o campo e o habitus acadêmico estão em mim.” Podem até ir um pouco mais além, inspirados nas lições tardias de Bourdieu[2] e aceitarem que talvez se trate de um habitus fraturado, devido à minha condição de trânsfuga de classe, ou seja, por eu ter vindo das camadas das classes populares.

Pela lente da ortodoxia, não posso me negar a ser o que me tornei: um ser no campo. Porém, é preciso problematizar as certezas – como tem feito Bernard Lahire (2012) –, posso estar no campo e me recusar a participar de seu jogo, estar fora dele, estar em vários campos ao mesmo tempo, ou simplesmente apenas ocupar o espaço social. Neste discurso sobre minha ação (ou melhor sobre meu comportamento, como um complexo de ações e sentidos), o especialista, a heteronomia me conhece mais do que a mim mesmo. Sou um ser deslocado pelas estruturas, lição psicanalítica muito presente em várias teorias sociológicas.

Outros poderiam dizer: “usar um exemplo pessoal é deixar o subjetivismo penetrar a membrana que o pensamento sociológico, em algumas de suas diversas abordagens, conseguiu construir entre a sociologia e a psicologia.” Estaria sendo muito subjetivo, e com um argumento do tipo ad hominem, poderia ser acusado de praticar um narcisismo obliterante da razão sociológica. Por outro lado, outros sociólogos não me condenariam tão precipitadamente, pois para eles não há sociologia sem psicologia, não há sociedade sem indivíduo, não há indivíduo sem sociedade, sendo assim, o narcisismo não pode nascer isolado na ipseidade – apartado do resto, como deus ex machina.

            Hoje, pretendo falar um pouco sobre a sociologia em escala individual, tendo como companheiro de rota, o sociólogo francês Bernard Lahire. Um bourdieusiano sem dúvida, porém com muitas ganas de superá-lo por dentro de suas próprias ideias, e ao fazê-lo, prolongar o pensamento do mestre. Diria que nesse afã, às vezes o desejo pode adiantar-se aos argumentos, mas não que isso seja de todo ruim. Contudo, quero advertir que não se trata aqui de uma exposição do tipo: Bourdieu ou Lahire. Creio que os dois se complementam.

Uma nota de rodapé faz-se necessária: não é sem conflitos internos que faço isso. Isso? Apegar-me a mais um e mais um sociólogo europeu quando em meu espírito sociológico há muito se agitam as águas turbulentas de uma crítica pós-colonialista. Nesta profunda divisão, reconhecer o outro, na esfera do ódio é uma tarefa complicada. Faço esta nota porque ela pode jogar luz sobre minha questão inicial, o meu problema com as palestras.

 

A singularidade

 

Penso que a questão colocada com a afirmação inicial – “Não gostar de fazer palestras” – remete-nos ao tema da singularidade. É por aí que quero começar.

Para localizar a questão da singularidade, seguirei os passos do sociólogo francês, Philippe Corcuff (2001), que, inicialmente, se refere a Bourdieu como um dos teóricos que teria negligenciado o aspecto singular em favor das “estruturas sociais”. Não para Corcuff, mas para alguns dos críticos de Bourdieu por ele citado, este seria um holista, em outras palavras, para ele as partes se sobreporiam, na explicação sociológica, aos “átomos”. Ou como diz Lahire, Bourdieu haveria privilegiado as análises a partir do campo, deixando a parte que cabe ao habitus bastante descoberta.

Neste jeito de ler Bourdieu, que não é o de Corcuff, e que eu tenho tentado evitar, apesar das muitas sugestões contrárias, acaba-se por engessar sua teoria quase que exclusivamente na impessoalidade coletiva ou nas “regularidades objetivas”, ou seja, na parede oposta à singularidade.  A questão, portanto, seria saber se há no pensamento de Bourdieu uma sociologia da singularidade – pergunta feita por Corcuff. O que eu apreendi desta reflexão, é que se não há uma sociologia do singular pronta, mas Bourdieu nos legou bases para a construirmos. Penso que é isso que Lahire reiteradamente quer dizer ao se referir a prolongar criticamente o pensamento de Bourdieu, ou quando Corcuff reconhece que é possível “na obra de um intelectual, transformar obstáculos em recursos e se apoiar sobre os limites de uma abordagem para descobrir novas pistas” (CORCUFF, 2001, p. 96).[3]

A questão da singularidade é fundamental para as abordagens sociológicas do indivíduo.[4] Falar de uma sociologia em escala individual, parece-me ser a mesma coisa que falar em uma sociologia da singularidade. Acho que esta expressão é bastante feliz, porque aponta ao mesmo tempo para um “objeto” complexo – no sentido de que não pode sofrer nenhum tipo de redução, a não ser com o prejuízo de perder sua identidade – e de apontar para uma abordagem teórica e empírica ampla, que não obedeça aos limites impostos pela hiperespecialização inter e intradisciplinar. Estes, por exemplo, são traços fortes da proposta científica de Lahire, explicitada no seu livro Monde pluriel (LAHIRE, 2012).

A singularidade, diz-nos Corcuff, remete-se ao que é único, àquilo que não pode ser copiado, irredutível. É singular aquilo que não é comum. Neste caso, o singular se diferenciaria do coletivo. Filosoficamente falando, o autor nos conduz à ideia de que a singularidade tem a ver com a identidade pessoal, mas também com o aquilo a ultrapassa. À primeira vista, este vazamento poderia ser entendido apenas orientando-se no sentido para o coletivo, mas não é só isso, – interpretação minha – ele pode tomar rumos mais interiores, como camadas sobrepostas. Uma protusão não só de dentro para fora ou de fora para dentro, mas em um fluxo de dentro para dentro também.

Permitam-me apontar algumas dimensões desta singularidade, ainda seguindo os caminhos adotados por Corcuff. Para ele, a singularidade possui três facetas, consideração constituída a partir do que lhe advém do pensamento de Paul Ricoeur e Jocelyn Benoist.

A primeira delas, refere-se à identidade mesmidade (parte objetiva da identidade – um conjunto de disposições duráveis pelas quais se reconhece uma pessoa). É a esta dimensão da singularidade que o conceito de habitus de Bourdieu se refere. E sua pergunta-base é “o que eu sou?”.

A segunda refere-se à identidade ipseidade (autenticidade). Seria a parte subjetiva da identidade pessoal. É ver um sentido em sua própria unidade e de sua continuidade. É por exemplo, perceber-se irredutível aos papéis (posições). Sua pergunta-base seria “quem eu sou?”.

Os “momentos de subjetivação” compreendem a terceira dimensão da singularidade. Esta foi proposta por Jocelyn Benoist, como distanciamento do outro e de si mesmo, uma rejeição da identidade. Se expressará por indeterminações, hesitações, oscilações e movimentações. “O ‘eu’ não manifesta uma identidade de si mesmo, mas a expressão de uma irredutibilidade, de uma singularidade na especificidade de um momento, de uma ação” (CORCUFF, 2001, p. 99). Aqui, creio, devido às características de imprecisão e variabilidade de situações em que os momentos de subjetivação podem ocorrer, o autor se furta de apresentar uma pergunta de base.

Tomando estas três facetas da singularidade, podemos colocar o habitus em averiguação, para daí retirarmos alguma resposta àquela pergunta: há uma sociologia da singularidade na obra de Bourdieu? Bom, não pretendo apresentar resposta a esta questão, nesta palestra, limitar-me-ei a mencionar as conclusões de Corcuff, o que per se pode ser suficiente para gerar debates neste dia. Para ele, em Bourdieu, a questão se resolveria a partir do habitus. E, então, conforme constata, habitus de classe (coletivo) e habitus individual não são a mesma coisa. Isto nos daria uma resposta afirmativa à pergunta. Contudo, a singularidade comportada pela teoria de Bourdieu estaria limitada à primeira dimensão, da mesmidade, ou seja, à dimensão mais objetiva da singularidade. Segundo Corcuff, esta conclusão pode ser claramente percebida ao lermos e compreendermos os argumentos de Bourdieu sobre a biografia de Heidegger (BOURDIEU, 1989).

Feitas estas considerações iniciais sobre a singularidade, passemos à sociologia em escala individual, conforme a proposta de Bernard Lahire.

 

Sociologia em escala individual

 

Podemos adentrá-la por várias portas, que da mesma forma, nos levariam ao mesmo lugar, ou seja, ao salão principal do edifício teórico-metodológico do autor. Escolho para começar, a porta que tem duas folhas, uma que abre para dentro e a outra que abre para fora, refiro-me à metáfora do social desdobrado e do social dobrado. A singularidade, nesta perspectiva, assemelha-se a uma folha de papel amassada. Esta metáfora nos levará a trocar a ideia única de um sistema de disposições, como fórmula generativa da ação,  por aquela que fala de um repertório de disposições, bastante heterogêneas e que não agem por si só, independente das situações, dos contextos; há portanto, na explicação sociológica da ação de Lahire, um enredamento entre disposições e contextos.

Na obra de Bourdieu, como afirma Sloterdijk (2018), o conceito de habitus seria a inovação conceitual mais importante e um dos instrumentos mais frutíferos da sociologia contemporânea, pois mostra como a sociedade penetra o indivíduo de forma duradoura. Creio que Lahire não desconsideraria esta afirmação, porém, como de fato o faz, procura ir mais além. Ao falar de um social desdobrado, refere-se às estruturas que resultam das interações interinviduais e se tornam regularidades no sentido sociológico. Mas não podemos considerar este social desdobrado como equivalente e igual ao que existe no interior do indivíduo. Para Lahire, Bourdieu estaria muito próximo de uma concepção deste tipo ao focar sua afirmação no caráter forte do coletivo, e é exatamente essa inclinação para o social desdobrado que lhe permite fundamentar o conceito de habitus (de classe, primário, acadêmico etc.) e, consequentemente, de illusio e campo.

Habitus é um conceito cuja definição já se tornou frase feita e lição a se tomar de cor e salteado de todo neófito em sociologia: “[...] sistemas de disposições duráveis e transponíveis, estruturas estruturadas predispostas a funcionar como estruturas estruturantes [...]” (BOURDIEU, 2011, p. 87). Enquadra a mesma matéria cara a todos os sociólogos, tanto aos que elaboram teorias quanto aos seus consumidores: perceber como se transformam objetividades em subjetividades e subjetividades em objetividades, cuja finalidade é explicar a ação. É bem verdade que muitos sociólogos, às vezes tornados míopes pelas lentes epistemológicas que utilizam, atêm-se apenas à primeira parte da fórmula – objetividades se transformando em subjetividades – ficando a meio caminho para uma explicação sociológica satisfatória. E uma das causas/consequências deste erro, talvez se encontre no projeto inicial da sociologia como ciência do social, que colocou o tema da subjetividade/individualidade para fora de seu escopo.[5]

Considerando tais limitações, a proposta de uma sociologia em escala individual não poderia permanecer presa ao “laço” chamado habitus.[6] Não que ele seja inútil, só devemos saber onde atirá-lo e qual parte da realidade pode ser por ele capturada. Quanto mais indiferenciada é a realidade, mais possibilidades se teria para dar vida analítica ao habitus. Quanto mais diferenciada uma realidade, ou seja, um social desdobrado heterogêneo, mais se deve privilegiar o estudo “da dança das disposições”. Consequentemente, é preciso pensar mais no social dobrado. Não como um reflexo mimético do social desdobrado. Aquilo que antes se definia como um sistema, reaparece como um repertório, ou um estoque. O sistema é estruturado e funciona através de suas diretivas, o repertório ou estoque reúne disposições, e cada qual precisa de agências para funcionar ativamente ou passivamente. Essas agências, podem, então, ser entendidas como contextos e pluralidades singulares.

À fórmula de Bourdieu: habitus + campo = prática, Lahire propõe outra fórmula:  disposições + contextos = prática. A primeira parece refletir e se apoiar no social desdobrado, a segunda extrai do social dobrado sua proposta investigativa. Lahire opera na fórmula de Bourdieu dois movimentos contrários. Sobre o conceito de habitus faz um movimento descendente chegando ao terreno das disposições; sobre o conceito de campo opera um movimento ascendente chegando ao conceito de contexto – categoria ampla que envolve não só o campo, mas várias modalidades de domínios sociais (LAHIRE, 2012).

Creio, e espero não estar fazendo uma leitura apressada, que ao se colocar ao lado do social desdobrado, Bourdieu atrai críticas para si, do tipo da que é feita por Sloterdijk. Segundo ele, o conceito de habitus

 

[...] de nenhuma maneira consegue compreender adequadamente aquilo que pretende explicar, isto é, a região dos “costumes”. A grande tradição da reflexão filosófica e psicofisiológica sobre o papel dos costumes no processo da formação da existência humana encolhe, neste autor, até um resíduo útil para o fim da crítica da dominação. Em vez de entrar no panorama da formação efetiva do sujeito por meio do exercício, do treinamento e da adaptação, a teoria de habitus à la Bourdieu contenta-se com o segmento estreito dos costumes, que são os sedimentos da “classe dentro de nós” – ela engana o usuário e reduz a plenitude daquilo que o seu nome indica (SLOTERDIJK apud BRÜSEKE, 2011, p. 167).[7]

Ainda segundo Brüseke, na mesma página citada, “o conceito de habitus de Bourdieu fica, na perspectiva crítica de Sloterdijk, incapaz de entender as formas individualizadas de projetos existenciais do self”. Seria, então, apenas uma representação do típico e médio, ou seja, apenas a expressão do coletivo (a classe) dentro de nós.

 Lahire, adotando outro caminho, avança ao focar sua atenção para o social dobrado, procurando compreender como na trajetória do indivíduo, reconstruída como retrato sociológico ou biografia sociológica – produto de uma descrição fina – se compõe o repertório de disposições do ator plural. E o que é este social dobrado senão um conjunto de disposições que para atuar (ativar-se ou inibir-se) depende de forças contextuais. Daí, Lahire é levado a reavaliar a generalidade e a transponibilidade do habitus.  É preciso que um estudo detalhado, utilizando a segunda fórmula, seja levado a cabo para se compreender a amplitude e a transponibilidade, casos existam, das disposições. E não simplesmente fazer do habitus uma fórmula feita aplicável a qualquer situação. Assim procedendo, corre-se o risco de transformar a lógica da lógica em lógica das coisas, ou fazer aquilo que é substantivo virar uma substância.[8]

Como consequência de sua escolha, Lahire é levado a reavaliar também o conceito de campo. Se o “Homem plural” é o livro no qual Lahire coloca na berlinda o conceito de habitus, Monde Pluriel é o livro dedicado a realinhar o desenho do espaço social deixado por Bourdieu, com especial destaque para a inspeção acurada do conceito de campo, o que obviamente o levará a anunciar que a teoria dos campos deveria ser considerada como um teoria regional do poder. Em outras palavras, no espaço social global com suas subdivisões, nem tudo pode ser considerado campo. Esta proposição vai lhe permitir falar em “campo secundário”, “estar no campo”, “estar fora do campo”, “negar-se a pertencer a um campo”, “estar em vários campos”, “transcampos”, “mundos”, “domínios de atividades” etc. Ou seja, suas reflexões levam ao enriquecimento do vocabulário da praxiologia de Bourdieu.

É preciso diferenciar as entidades que preenchem o espaço social global. Campos, classes, domínios de atividades, mundos sociais, instituições, microgrupos, indivíduos e as interações, o que é feito no livro em foco, cujo resumo pode ser lido com muito proveito, em suas páginas finais: Addenda – L’espace social global et ses subdivisions. Apresenta constatações importantes, que podem servir como orientações para nossa imaginação sociológica: “Não existe campo, mundo ou instituição sem interação, mas a recíproca não é verdadeira, pois nem toda interação se inscreve necessariamente em um campo, mundo ou instituição” (LAHIRE, 2012, p. 360).

Das diferentes representações do espaço social apresentadas por Lahire, depreende-se que certas interações são diretamente suscitadas, guiadas e engendradas pela lógica de um campo; outras são diretamente suscitadas, guiadas, engendradas pela lógica de uma organização ou de uma instituição; certas categorias de interações, estudadas pelos interacionistas, estão certamente fora do campo, fora de instituições, sem, porém, estarem fora do quadro social geral, pois se trata inevitavelmente de interações entre indivíduos que pertencem a espaços sociais diferenciados e hierarquizados (segundo a classe, o sexo, a idade, origem étnica etc.). Por isso, o sociólogo é obrigado a ligar estas interações ao contexto local, o que envolve instituições, campo, mundo etc.

Mas se Lahire avança ao focar-se no social dobrado, acabará perdendo em outros lugares. Ao ajustar o foco da sua lente para a escala individual, temas importantes serão retirados do enquadre. Dentre eles, classe e poder, elementos que, por outro lado, estão bem fortificados no pensamento de Bourdieu.

Quanto a isso, Lahire procura se justificar com sua proposta de ciências sociais, vista como um conjunto de vários estudos e teorias que devem ser realizados em vários níveis de escala, e daí, uma teoria social ampla deveria surgir, resultado da complementação entre todas elas, sendo o que sugere o subtítulo do livro Monde pluriel: “pensar a unidade das ciências sociais”. A verdade, porém, é que Lahire não se livra do conceito de classe, e este, como um espectro, ronda sempre seus estudos, e pode-se perceber, que neste aspecto, é Bourdieu quem lhe dá sustentação, pois não se pode considerar o social dobrado, sem nenhum tipo de relação com o social desdobrado, e para falar sobre o indivíduo desindividualizado, é necessário recorrer-se aos instrumentos que analisam o tipo médio ou o tipo ideal. A classe, nos estudos em escala individual, acaba se confundindo com outro conceito, que por causa da generalidade do uso, pode ter seu potencial heurístico diluído, estou me referindo à noção de “contexto”. Classe, para Lahire, pode ser tomada como ponto de partida para os retratos sociológicos de indivíduos e configurações, e ela, sem muita problematização para o autor, determina-se pela soma do capital global dos indivíduos, ou seja, a localização do sujeito no espaço social, tal como  postulado por Bourdieu, a partir do peso relativo do capital cultural em relação ao capital econômico na definição da posição socioprofissional dos indivíduos.

Sobre o poder. Este é outro assunto que tem gerado críticas a Lahire. Por exemplo, Vandenberghe (2013) diz que a sociologia em escala individual praticada por Lahire, acaba levando (trocando ou traduzindo) os conflitos sociais que existem no nível desdobrado para o interior do indivíduo. São conflitos gerados por uma heterogeneidade de disposições que habitam o acervo deste indivíduo. Neste sentido, por exemplo, pode-se falar de “distinção de si contra si”, “travamento da ação”, “reflexividade de primeiro nível”, reflexividade de segundo nível” etc.

Podemos encontrar uma linha geral do posicionamento de Lahire em relação à dominação, na análise ou retrato sociológico que faz de Kafka (LAHIRE, 2010, 2011).[9] Estes textos, especialmente o último, levam-nos a refletir sobre a servidão voluntária e a força dos hábitos. As disposições estão no centro deste olhar sobre a dominação, tanto no de Kafka como no de Lahire:

 

Ao questionar ritualmente em nome de quê (de qual abuso de poder) os sociólogos podem definir uma situação como “situação de dominação”, enquanto mesmo os atores não parecem vê-la desse modo, uma concepção como essa ignora muito facilmente o trabalho de legitimação da dominação pelos dominantes ou os simples efeitos de habituação que as dominações plurisseculares produzem naqueles que a elas se submetem ou as incorporam, desde suas primeiras socializações, e que fazem com que essas dominações lhes pareçam tão “naturais” quanto as paisagens nas quais se acostumaram a viver (LAHIRE, 2011, p. 176).

Finaliza o texto exortando os sociólogos contemporâneos a incluírem Kafka em suas listas de leitura, pois o que Kafka nos faz perceber é a necessidade de voltar o olhar para os estoques de disposição dos atores, se quisermos compreender bem o fenômeno da dominação.

Na mesma orientação, em outro texto, ao tratar das desigualdades sociais, acrescenta que em

 

[...] vez de medir sem reflexividade as diferenças entre grupos, classes ou categorias sociais e de converter automaticamente toda diferença em desigualdade, o sociólogo deve se dar por objeto a gênese dessas crenças coletivas, os processos de legitimação, de deslegitimação ou de relegitimação dos diferentes tipos de bens, atividades ou saberes, e, finalmente, as lutas para a definição social do “que conta”, do “que tem valor”, em suma, do que faz “capital” aos olhos da maioria das pessoas (LAHIRE, 2003, p. 993).

Creio que já tenha extrapolado bastante o tempo, mas peço um pouco mais de paciência, para falar sobre outro ponto que me parece importante. Prometo que não me alongarei muito, além do mais, já temos muitos elementos para fazermos um debate consistente. 

Trata-se daquilo que Lahire chama “contexto”. Na minha opinião, como já disse, ele aparece como uma ressignificação do conceito de campo, e é tomado por Lahire como algo pouco problematizado. Ora, se é possível pensar em disposições fortes, disposições fracas, apetência, competência, penso que deveríamos também pensar em contextos fortes, fracos, efetivos, que resistem etc.[10] Com a metáfora do social dobrado e desdobrado, parece-me que se está criando uma condição mental e linguística que nos leva a desconsiderar, por exemplo, que o social desdobrado também tem suas dobras. Daí a crítica de Sloterdijck (2018), apontando que tanto Bourdieu como Habermas construiriam seus pensamentos sobre planícies. Poderíamos dizer o mesmo sobre o pensamento de Lahire quando se trata da situação conceitual do “contexto”. Não tenho resposta para isso, mas assim como outros, percebo que alguma coisa precisa ser trabalhada, e é notório que o próprio Lahire já sentiu há algum tempo.

Em síntese, creio que o movimento que devemos fazer não é simplesmente de Bourdieu para Lahire e daí para o infinito, será sempre um movimento de ida e vinda. Depois de ler a proposta de Lahire, é mais do que interessante voltar a Bourdieu, é uma necessidade, e com isso se fazer o prolongamento crítico do prolongamento crítico.

 

Finalizando

 

Então, considerando o que disse sobre não gostar de palestras, por que eu estou hoje aqui? Há envolvido na questão, um conjunto de elementos que a teoria do campo-habitus não leva em consideração. Ver esta ação simplesmente como resultado de um habitus acadêmico, de um sujeito inserido em um campo é, no mínimo, uma simplificação da ação, ou das ações que se concatenaram para que ela ocorresse. Apesar de considerar a relacionalidade das posições, a singularidade como tratei aqui, permanece tocada apenas tangencialmente.[11]

O que pode alterar na questão, o fato de dizer que estou aqui por causa da amizade e consideração que tenho pelos professores que estão organizando o grupo? Cujos nomes menciono agora para que fiquem registrados, caso saia alguma publicação, a professora Simone Brito e o professor Rogério Medeiros. Há elementos emocionais direcionados a pessoas, sujeitos de sentimentos que movimentam os meus próprios sentimentos. Há um sentimento de dever para com eles, mas há também uma orientação para o universal, e neste caso devo concordar tanto com Parsons como com Habermas, trata-se de um elemento prático-moral. Então, estamos tratando de avaliações fortes, no sentido tayloriano. Adesão a valores, entre tantas outras coisas que podem alterar a explicação. Da mesma maneira, poderíamos nos referir à disposição sob influência, como faria Lahire, ou a momentos de subjetivação como falamos antes. Estes elementos, a meu ver, podem fazer um ator estar no campo, porém sem querer jogar o seu jogo ou jogá-lo de forma diferenciada. Devemos, então, repensar a illusio.

Enfim, são elementos para se pensar. Como disse há pouco, não se trata aqui de Bourdieu ou Lahire simplesmente, a sociologia como uma forma de interpretar e se comportar frente à realidade não pode deixar de fora outras maneiras de se pensar. Em uma sociologia, quer política, como anuncia o qualificativo que anima as pretensões do grupo que nasce, ou de qualquer outra especificação, não se pode deixar de considerar outros autores, filósofos, sociólogos, literatos, enfim, consciências que elaboram pensamentos de segunda ordem, europeus ou os da nova onda politicamente correta, e até mesmo os execrados da história como Parsons, podem nos dar lições importantes. Como disse, não se trata de Bourdieu ou Lahire.

Agradeço a oportunidade, e creio que já tenhamos muitos elementos para se fazer um robusto – e polêmico – debate.

 

Referências

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Recebido em: 23/09/2019.

Aceito em: 05/11/2019.

 

DOI: https://doi.org/10.46906/caos.n23.48275.p326-340

 

 

 



* Professor do Departamento de Ciências Sociais da UFPB/Brasil. Doutorado em Sociologia pela Universidade Estadual Paulista/Araraquara/Brasil. E-mail: giboaes@gmail.com.

[1] O tema das couraças musculares vem das ideias de Wilhelm Reich, médico e psicanalista austríaco. Ver Reich (2001).

[2] Refiro-me especificamente aos livros: Meditações pascalianas (BOURDIEU, 2001) e Um convite à sociologia reflexiva (BOURDIEU; WACQUANT, 2005).

[3] Todas as citações de trechos, inseridas neste texto, cuja obra consultada está na língua francesa, são traduções livres.

[4] Para informações sobre estas abordagens ver Martuccelli, 2007.

[5] Há na história de formação da sociologia, um processo de personificação dos coletivos com consequente exclusão do indivíduo. É famosa a afirmação de Durkheim sobre o caráter sui generis do social. Para uma discussão atenta desta problemática, recomendo a leitura do Post-scriptum do livro “A cultura dos indivíduos” (LAHIRE, 2006).

[6] Um exemplo de crítica bem sensata ao conceito de habitus, pode ser encontrado nos textos de João Teixeira Lopes (1998), sociólogo português que tem desenvolvido pesquisas utilizando a sociologia em escala individual, sem, contudo, desprezar os conceitos bourdiesianos.  

[7] Grifos do original.

[8] Uma discussão interessante sobre esta questão, que envolve aspectos epistemológicos e metodológicos, pode ser encontrada em Lahire, 2006a.

[9] Apesar de direcionarmos o argumento para estes dois textos, os temas da “dominação” e “desigualdades sociais” aparecem em várias obras do autor. Podemos citar:  Sucesso escolar nos meios populares: razões do improvável (1997), A cultura dos indivíduos (2006), Ceci n’est pas qu’un tableau: essai sur l’art, la domination, la magie et le sacré (2015) entre outros.

[10] Creio que Lahire já tenha se dado conta dessa necessidade, e podemos ver uma tentativa de maior problematização do “contexto” no livro sobre Kafka (LAHIRE, 2010) e em L’interprétation sociologique des rêves (LAHIRE, 2018). Sobre este último, acaba de ser publicada resenha que fiz em coautoria com Maylle Benício na Revista Política & Trabalho (BOAES e BENÍCIO, 2019).  

[11] Este texto, seguindo os trâmites editoriais da Revista Caos, foi submetido à avaliação de dois pareceristas, a quem, ainda que anonimamente, quero registrar agradecimentos pelas considerações pertinentes e perspicazes, com as quais concordei plenamente. Contudo, algumas não consegui cumprir, por isso, quero deixar registrada uma delas, por considerá-la muito importante. Diz o parecerista: “Considero interessante a proposta de colocar a não apetência do autor como um mote para uma reflexão teórica. Acredito apenas que careça de mais informações e de um pequeno perfil – minirretrato sociológico – para sustentar a defesa do autor, pois o que ele nos passa é apenas um autorretrato sem imagens. Se nos desse mais informações sobre sua biografia sociológica, poderíamos saber o que ele é enquanto ser no campo-habitus. ou os fatores que o levam a se auto enquadrar como trânsfuga de classe.”