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aos nascia há 20 anos. Fazia-se carne e recebia nome, a partir da conjugação de vontades-desejos, planos, ocasiões e acasos. O professor Adriano de León foi o agente catalizador da reação “química” que a levou a materializar-se. “Vou atrás dos meus desejos”, diz ele em entrevista inserida neste número. E ao buscá-los, acabou arrastando desejos e vontades alheios. Nascia a Revista Caos em dezembro de 1999, como um brotinho pronto a receber a luz de um novo século, de um novo milênio.
Transcorridos 13 anos – mal entrava na adolescência –, assim como acontece nos contos de fada, foi acometida por um sono de 7 anos. Na “verdade”, não foi um sono, apenas uma retirada de cena. Um “na verdade” que não passaria incólume pela “lâmina” da imaginação sociológica: a revista não dorme e nem se retira, porque ela não existe sem as pessoas. Aqueles e aquelas, que catalisavam as vontades e os desejos e os canalizavam para fazê-la acontecer, descuidaram-se. Mas, a agência inscrita nos objetos e nos símbolos, pulsando como um farol, emitia diariamente o seu chamado. A ausência, e o silêncio sobre a ausência, incomodavam aqueles e aquelas que compreendem o significado da revista para a comunidade acadêmica, especialmente para os alunos do Curso de Ciências Sociais. Ela não deve ser tomada meramente como um lugar onde se pode alimentar “plataformas lattes”; assim como foi pensada no projeto inicial, criada para integrar pedagogicamente a estrutura curricular do curso, deve estar ativa para participar do processo formativo dos discentes e docentes. Ao se produzir e processar textos para publicação, estamos alimentando a formação do cientista social, criando estímulos para a pesquisa e o debate. Aprimoramos as habilidades da leitura, resenhando, organizando dados, indo em busca do que ainda não sabemos, desconstruindo o que julgamos saber. Tudo isso – e algo mais – parece ser elemento chave de uma formação significativa. A Revista é um “laboratório”.
A expressão “publicar ou perecer”, vista como sintoma de uma sociedade que fetichiza o trabalho intelectual e reforça os pilares da meritocracia, nesta situação muito particular, poderia ser reinventada para além do produtivismo insano que marca as nossas vidas, sussurraria algo como: “o que conta mesmo é o que as experiências socializadoras envolvidas no gesto de publicar um texto nos proporcionam, tanto para os autores e autoras quanto para a equipe editorial e a vasta gama de leitores e leitoras”. Como editor, posso atestar a relevância de tais experiências. Ainda que atuando em um contexto marcado pela “deficiência” (sem recursos financeiros, sem auxiliares, suporte técnico institucional precário, plataformas virtuais frequentemente interrompidas, escassez de manuscritos etc.), é possível produzir algo ao menos suficiente. Não é simplesmente o que se deseja, é o que se quer. Sonho! Mas não espero encontrar suficiência ou excedência nas universidades brasileiras. Como o alquimista, faz-se um esforço tremendo para transformar chumbo em ouro. E aos poucos se percebe que o alquimista precisa dar lugar ao minerador.
Por exemplo, nada é mais problemático, no processo editorial, do que as solicitações de pareceres aos pares. “Muitos são chamados, poucos respondem, outros e outras o fazem pela metade”. Porém, nesse cenário, alguns e algumas nos surpreendem com um rigor e disciplina inesperados na realização da tarefa, produzindo relatórios tão minuciosos e didaticamente elaborados. Eis o ouro brotando.
Este número marca o ressurgimento da Revista, e não poderia estar melhor apresentado. O dossiê organizado pelo professor Bruno Rubiatti nos traz textos excelentes sobre os estudos legislativos no Brasil. Aborda as várias comissões temáticas do Congresso Nacional (Câmara dos Deputados e Câmara Alta), temas relacionados às diferenças de gênero no cenário político, os mecanismos de democracia direta e o financiamento partidário. Os autores focam-se em aspectos que não têm recebido muita atenção da literatura. Além disso, o texto que introduz o dossiê, faz muito mais do que apresentar os artigos, cria uma moldura teórica, respaldada em literatura atual e pertinente: atmosfera que servirá de propedêutica para a leitura dos outros textos.
Para acompanhar o dossiê, apresentamos três artigos livres, uma resenha, uma entrevista e um texto da seção “Ofício do Cientista Social”.
O primeiro artigo é um exercício de sociologia em escala individual. As autoras buscam compreender os dispositivos envolvidos nas ações de um repórter-amador. Corretamente inspiradas pelo quadro teórico-metodológico lahireano, elas constroem a biografia sociológica de Lucas do Face, procurando compreender como se formaram e como se atualizam suas disposições para crer, pensar e agir, mobilizadas no processo de agir como repórter-amador. Mas o estudo não se limita a olhar o estoque de disposições de Lucas isoladamente, elas empreendem um trabalho de “contextualização” das ações, criando condições propícias para se compreender como o “social dobrado” se comunica com o “social desdobrado”.
No segundo artigo, a antropóloga em formação, com uma maestria no manuseio das palavras (as suas próprias e dos seus interlocutores), leva-nos a uma viagem ao Recife para vivermos as “aventuras” cotidianas de uma configuração que enreda mães, filhos, familiares, comunidade, ONGs, médicos e os próprios pesquisadores, a partir de um motivo: crianças portadoras da Síndrome Congênita do Zika Vírus. A autora nos mostra como a doença é uma construção social, como ela atua para reconfigurar a vida não só do doente, mas de toda uma comunidade, e a melhor maneira de percebermos essa realidade, é seguir os medicamentos e as questões que eles geram.
O terceiro artigo compara as ideias de dois grandes nomes das ciências sociais latino-americanas. O autor constrói um quadro no qual aproxima e distancia os conceitos de “unidade contraditória” e “dominação pessoal” de Maria Sylvia de Carvalho Franco dos conceitos de “heterogeneidade histórico-estrutural” e “colonialidade do poder” de Aníbal Quijano. O artigo não tem por única finalidade apresentar a compreensão teórica dos autores – o que é feito com bastante propriedade –, para além disso, em suas linhas, pulsa uma crítica que denuncia a dominação hegemônica sobre a América Latina. Ele nos leva a pensar, conforme suas próprias palavras, em “[...]possibilidades alternativas para que subjetividades e identidades não sejam suturadas por uma determinação exógena ao ator social em sua relação com o mundo.”
A resenha traz a recensão de um livro que antes foi uma tese de doutorado, cuja importância no campo do estudo das religiões afro-brasileiras (e do catolicismo) é inegável. As religiões afro-brasileiras com seus hibridismos e conjugações, mostram-se um terreno fértil para estudos interdisciplinares como os estudos de gênero. Desde a década de 1940, com Ruth Landes, já se falava delas como um lugar diferente em relação ao resto da sociedade: uma espécie de oásis matriarcal no meio de uma densa selva patriarcalista. Visão romântica que aos poucos vai sendo problematizada e desconstruída. O livro resenhado procura compreender como são construídos e como funcionam modelos de masculinidade e feminilidade em dois grupos religiosos da Bahia, organizados a partir dos rituais ligados à morte. Sua conclusão é que os dois grupos se utilizam dos mesmos modelos utilizados pelo resto da sociedade: masculinidade hegemônica e o modelo de feminilidade subalterna, embora pratiquem alguns diferenciais na forma concreta de vivê-los. Uma característica que precisa ser elogiada, tanto da obra resenhada quanto da resenha, é o fato de não serem textos laudatórios, como costumam ser vários deles que circulam por aí, falando sobre as religiões afro-brasileiras.
Na sequência, nada seria mais apropriado do que incluir no número de relançamento da Caos, uma entrevista com o professor Adriano de León, o seu arquiteto. Quando a li pela primeira vez, apesar das várias sugestões de imagens que o texto desperta, fixei em uma única: o céu tocando o mar. Entrevistado e entrevistadora construindo um enredo que desenha um horizonte. Nele, nomes, eventos e, principalmente, vontades e desejos, medos e sonhos se projetam numa só tela. A narrativa nos remete para além da simples “escrita de si”, é também uma escrita do nós, deles, do outro, do ontem, do hoje, do amanhã.
E fechando este número, apresentamos a transcrição de uma palestra, sobre a qual sou suspeito de dizer algo. Limito-me a uma descrição breve e seca, considerando que sou seu autor. Abordo um assunto que tem ganhado terreno ultimamente, a sociologia em escala individual. O texto faz uma comparação não muito aprofundada entre conceitos de dois sociólogos franceses: Bourdieu e Lahire. Que os leitores julguem o resto.
Eis o número 23 da Caos, como uma casa, está pronta para a inspeção do habite-se. “O estar pronto”, porém, não significa estar sem defeitos. Se olharmos com atenção, eles aparecerão. Vale lembrar que, às vezes, o que vemos como defeito, são marcas deixadas pelos andaimes, cuja retirada, jamais poderá apagar as inclinações topográficas do terreno no qual a construção se elevou.
Por último, quero registrar um agradecimento especial ao coordenador do Curso de Ciências Sociais, professor Terry Mulhall, pelo apoio fundamental nesta árdua empreitada para “minerar o ouro”.
Boa leitura.
O editor.
DOI: https://doi.org/10.46906/caos.n23.50105.p8-11