MILITARES NO GOVERNO BOLSONARO: tutela à democracia brasileira?

MILITARY IN BOLSONARO'S GOVERNMENT: brazilian democracy under its submission?

 

Antonio Alves de Vasconcelos Filho *

 


DOI: https://doi.org/10.46906/caos.n26.57873.p291-309

 

Resumo

Este artigo visa analisar as motivações da forte participação política do Exército no governo Bolsonaro e sua tutela em relação à democracia brasileira entre os anos de 2013-2018, concretamente, como chegamos ao governo com o maior número de militares da história. Para tanto, necessário se faz um resgate histórico sobre a formação do Estado brasileiro e das atuais condições normativas que permitem que os militares ainda almejem ser o "poder moderador" da República. Em um primeiro momento, veremos como em vários momentos da vida política brasileira as Forças Militares foram sujeitos ativos das transformações sociais no Brasil. Em uma segunda parte, de forma crítica, utilizaremos conceitos desenvolvidos por Florestan Fernandes para compreendermos elementos fundantes da República. Finalmente, após esse resgate histórico e análise crítica da República, a partir de um estudo de caso da situação brasileira, veremos como no período recente escolhido, o papel do Exército é central para a crise institucional que vivenciamos, suas premissas e seus efeitos em relação à democracia brasileira. Concluiu-se que há uma tutela por parte do Exército para com a República, e que esse fenômeno dificulta a cultura democrática brasileira, e encontra raízes em nossa própria formação histórica. 

Palavras-chave: Exército; Tutela; República; Democracia.

 

Abstract

The following work aims to analyze the motivations for the extensive political participation of the Brazilian Army in Bolsonaro's government and its relation to submission of Brazilian democracy between the years 2013-2018, specifically, how we arrived at the government with the historically largest number of military in cabinet. For this, it is necessary to make a historical reconstruction of the formation of the Brazilian Republic and the current normative conditions that continue to allow the military act as the "moderating power" of the Republic. At first, we will see how, at various times in Brazilian political life, the Army were active subjects of social transformations in Brazil. In a second part, critically, we will use concepts developed by Florestan Fernandes to understand fundamental elements of the national State. Finally, after this historical overview and critical analysis of the Republic, starting from a case study of the Brazilian situation, we will see how in the recent period, the role of the Army is central to the institutional crisis that we are experiencing, its premises and its effects in relation to Brazilian democracy. It was concluded from the research that there is Military tutelage of the Republic, that this phenomenon hampers Brazilian democratic culture and that it finds its roots in our historical formation.

Keywords: Army; Tutelage; Republic; Democracy.

 

 

1 Introdução

 

A formação da República como a conhecemos se confunde e tem direta participação das forças militares, notadamente o Exército, em sua concepção. Para analisarmos um lapso temporal tão recente como o proposto (2013 a 2018), que culmina na estruturação do governo Bolsonaro, faz-se necessário observarmos a tradição que permeia a atuação do Exército em relação à política brasileira ao transcorrer do nosso processo histórico.

Por diversos pontos específicos e importantes da nossa história, os militares estão presentes como atores ativos, ou às escusas, em transações políticas e efervescências sociais. Este papel não é hodierno, como chama atenção Alexandre Fuccille (2019, p. 92): "foi a partir da guerra do Paraguai, ainda no século XIX, que as forças armadas brasileiras passaram a ter crescente importância política e militar." A guerra do Paraguai pode ser tomada ponto central para a formação da unidade nacional do Exército. Porém, ainda mais anterior é o movimento de formação política do Exército como identificado por John Schulz (1994), para quem o movimento de politização começa durante a década de 1850 impulsionado por reformas interiores e efervescências na educação militar.

Em breve resgate histórico, temos fundamentalmente a presença dos militares em todos os marcos históricos importantes para a formação da República e suas interrupções subsequentes, sejam como "garantidoras" da ordem vigente ou como forças golpistas. Momentos como: a Instauração da República (1889); Revolução de 1930, instituição e deposição do Estado Novo (1937-1945); Suicídio de Getúlio Vargas (1954); Golpe e Contragolpe em relação à posse de Juscelino Kubitschek (1955); Campanha da Legalidade (1961); Golpe Militar (1964), para citarmos apenas momentos chaves que não podem ser dissociados dos militares.

O que percebemos é que a participação ativa, de modo a tutelar as forças políticas no país, é a regra em relação à atuação do Exército Brasileiro. Como observa José Murilo de Carvalho (2019, p. 25): "as forças armadas intervêm em nome da garantia da estabilidade do sistema político; as intervenções, por sua vez, dificultam a consolidação de práticas democráticas." Esse ciclo vicioso, ora apontado, é um drama persistente que se demonstra mais ativo ou disfarçado ao decorrer do tempo, inclusive pós-Constituição de 1988.

A democracia, tomada como liberal, é um desafio em terras brasileiras. Vislumbra-se seu maior período de profusão pós-período militar, apesar dos gargalos ainda presentes na realidade brasileira. Somado a esse panorama, contextualizaremos o conceito de Florestan Fernandes para democracia, em contato com a problemática da elite militar tomando as rédeas da nação em diversos pontos de sua história.

Dentre as promessas da Constituinte pós-ditadura civil-militar, havia a esperança de um controle civil acima dos militares. Apesar de algumas conquistas nesse sentido, vivenciamos hoje um dos governos mais militarizados da nossa história. Com o maior número de ministros derivados das forças armadas desde o governo Castelo Branco (FREIXO, 2020, p. 22). Como chegamos até aqui, a problemática e as motivações para tanto é o que este trabalho visa abordar.

 

2 A politização do Exército

 

As Forças Armadas no Brasil, especificamente o Exército, foco principal deste trabalho, durante a vivência republicana do país desempenharam papel que fora além da defesa externa. O controle civil sobre a caserna é um desafio histórico na política brasileira. Como poderemos perceber, a formação militar está estritamente ligada a essa realidade.

O ponto de inflexão da participação política dos militares se dá a partir da organização plena de um Exército perante a Guerra do Paraguai. Rememoramos, como dito anteriormente, que a formação política é ainda mais anterior. José Murilo de Carvalho aponta três vertentes ideológicas presentes na formação militar brasileira durante seu desenvolver na Primeira República.

As ideologias de intervenção, assim chamadas, se traduzem na: intervenção reformista, não intervenção e intervenção moderada. A primeira vertente se construía sobre a ideia do soldado-cidadão, que só devia obediência apenas dentro da lei (de acordo com sua própria interpretação). Advindo a sanha reformista de escalões inferiores que constantemente entravam em choque com a própria hierarquia militar, como, por exemplo, o movimento tenentista (CARVALHO, 2019, p. 62-64).

Já a ideologia de não intervenção, baseada no ideal do soldado-profissional, visava o afastamento das forças militares das questões políticas do cotidiano civil. A ideia principal seria que "o Exército devia ser o órgão de defesa nacional, sob a direção de comando superiores, por sua vez submetidos ao presidente da República" (CARVALHO, 2019, p. 66). Como podemos perceber, apenas o ideário da defesa nacional veio a prosperar no meio militar.

A terceira vertente trata sobre a chamada intervenção moderada, o que José Murilo de Carvalho chama de "intervencionismo de generais". Combina-se à primeira ideologia interventiva dos tenentes, porém agora defendida pelo alto oficialato, mantendo-se a estrutura e organização militar. Segundo o autor supramencionado, "a ideologia do poder moderador das Forças Armadas tem aí sua primeira formulação sistemática" (CARVALHO, 2019, p. 68).

A partir dessa formação político-ideológica é que as forças militares passam a monitorar os caminhos do Estado Brasileiro. Sobretudo com o intervencionismo de generais que, hodiernamente, ainda reverbera como o suposto fundamento de que seriam os militares o poder moderador da República.

Em sua obra clássica História militar do Brasil, Nelson Wernerk Sodré divide em três períodos a formação militar: a fase colonial, a fase autônoma e a fase nacional. Para efeitos deste artigo, sobrepõe-se o interesse nas considerações sobre as últimas duas últimas fases abordadas, tanto pela sua atuação quanto formação vinculada ao período republicano (SODRÉ, 2010).

Sobre o momento da república oligárquica, importante vetor para a relação dos militares com a política, dispõe Sodré sobre o que ele acredita ser a concepção do movimento tenentista:

 

O Tenentismo começa a representar a renovação, o impulso burguês, a força do avanço, o sentido inconformista, amplo, nacional. Assinala o divórcio entre o poder, dominado pelo latifúndio, e o aparelho militar, que se recusa a servi-lo (SODRÉ, 2010, p. 270).

                                                                                                                                   

Independentemente do juízo de valor que se faça do movimento, o seu caráter politizador dos militares é inegável, assim como sua participação posterior para a chegada de Getúlio Vargas ao poder.

A fase nacional, citada anteriormente, se inaugura com a Revolução de 30, e perdura até a data da publicação da obra que coincide com o golpe de 64. Nesse contexto, destaca o autor, dois aspectos que considera ser a missão das Forças: “assegurar as condições democráticas e assegurar a livre expansão econômica nacional” (SODRÉ, 2010, p. 488).

Como se percebe, o caráter nacionalista e qualificado de sua avaliação sobre as Forças Armadas, naquele momento, não se confirmou com o Golpe Militar que logo ali ocorreu. Ao refletir sobre a Ditadura ainda em 1967, aponta:

 

A ditadura causou males profundos ao Brasil, e continua a causá-los; causou males específicos aos soldados brasileiros, de que só agora começaram a se dar conta, e ficam em perplexidade por isso. Pouco a pouco, começam a despertar, a ter consciência desses males. Quando o processo chegar ao fim, eles a detestarão – como ela merece (SODRÉ, 1967, p. 643-644).

 

Após este breve relato sobre as vertentes de intervenção e os períodos da formação militar que contribuíram para a politização dos militares e seu consequente posicionamento acerca da política civil do país, passaremos à análise específica destes institutos da tutela e das intervenções.

 

2.1 Da tutela à intervenção militar

 

A história brasileira é permeada de momentos de intervenções do Exército, que nos será o principal foco de análise. Assim sendo, desenvolveu-se ao longo deste processo uma suposta tutela dos militares em relação às forças políticas. Sendo a tutela mutável na medida em que há uma maior ou menor estabilidade democrática no país.

Apesar de serem conceitos que podem caminhar juntos, intervenção e tutela não se confundem. A intervenção militar se dá em momentos específicos, mormente com o uso da força, podendo ser considerada a expressão clássica do Golpe de Estado do Século XX, tão reconhecível na América Latina, como aponta Adam Przerworski:

 

Golpes – pelo menos aqueles que levam à morte da democracia, como no Chile em 1973 – são eventos notáveis. As usurpações de poder pelos titulares podem ser lentas e graduais, mas em muitos casos os pontos de ruptura são óbvios. (PRZEWORSKI, 2019, p. 26, tradução nossa).

 

Por sua vez, a tutela militar requer um processo aprofundado de interiorização das forças militares como partícipe político, mesmo que não explícito. A tutela permite que atuem as Forças Militares com interferências na política em seu próprio interesse.

No pós-ditadura civil-militar, podemos citar como exemplos desta tutela apenas dentre os anos de 1985 a 1998: O lobby no processo constituinte e a participação no governo Sarney (LINZ; STEPAN, 1999); participação de militares da ativa ou reserva no gabinete governamental; falta de rotina legislativa e de participação do Congresso nos assuntos referentes à Defesa Nacional (ZAVERUCHA, 1998).

 Ainda na década de 90, no incipiente novo regime democrático, aponta Jorge Zaverucha que: "As Forças Armadas foram consultadas sobre o impedimento de Collor e deram sua anuência à assunção de Itamar Franco. O novo presidente terminou nomeando nove militares para o seu ministério" (ZAVERUCHA, 1998). Rememora-se ainda que o então presidente Fernando Collor havia extinguido o Serviço Nacional Inteligência (SNI), herança da Ditadura (LEIRNER, 2020).

Apesar do marco institucional no segundo mandato de Fernando Henrique Cardoso (FHC) com a criação do Ministério da Defesa, a simples criação do ministério não foi suficiente para a adequação total dos militares ao controle civil. São exemplos notórios a omissão de FHC em lidar com as denúncias sobre o currículo militar da Escola de Inteligência do Exército, e seu recuo em demitir o Comandante do Exército por críticas públicas à falta de verbas e supostos salário defasados, após ato de desagravo de mais 155 Generais em Brasília (ZAVERUCHA, 2005, p. 206). Por mais de uma vez, o poder civil se viu acostado por uma sombra autoritária.

Ainda antes de atingirmos o estopim da presente crise institucional e democrática, Jorge Zaverucha (2005, p. 36) analisando a relação entre o Governo FHC e os militares, apontava como essa situação de democracia tutelada se amolda na realidade brasileira: "embora a competição eleitoral no Brasil venha se aprimorando, as Forças Armadas continuam a constranger os líderes políticos quando eles decidem ameaçar os interesses castrenses." Análise e consideração que se manteve relevante durante os governos que se sucederam entre 2003-2014, nos quais os militares, por diversos momentos, reagiram quando perceberam seus status e interesses ameaçados.

Durante o Governo Lula, apesar do aumento do investimento no Setor de Defesa (VAZ, 2017), há, pelo menos, alguns episódios que demonstram uma queda de braço entre civis e militares. Como por exemplo, no caso da 3ª versão do Programa Nacional de Direitos Humanos que propunha a criação de uma comissão especial para revogar a Lei de Anistia de 1979. Nessa situação específica, o Presidente Lula recuou após uma crise que quase culminou com a renúncia do seu Ministro da Defesa, Nelson Jobim, e os três comandantes das Forças (SAMARCO; LOPES, 2009).

Diante do exposto, percebe-se que mesmo os dois presidentes eleitos mais hábeis politicamente do nosso período recente, leia-se FHC e Lula, tiveram uma relação com os militares, na qual, apesar de eles estarem supostamente recolhidos aos quartéis, sua influência e efervescência política se fazia presente.    

Já durante o Governo Dilma Rousseff, os atritos se tornaram cada vez mais explícitos. Para Piero Leirner, “2012 foi o ano em que se resolveu ‘riscar o fósforo’” (LEIRNER, 2020); o autor faz referência às reações militares à Comissão Nacional da Verdade (CNV), e ainda pontua:

 

Em 2014, setores do Estado estavam atacando Dilma sem parar, incluindo-se aí oficiais da ativa que, depois de 25 anos mantendo-se em silêncio extramuros, passaram a abertamente criticar o Governo – entre eles o [hoje vice-presidente] general Mourão, que ainda em 2014 começa a dar palestras falando do PT e do Foro de São Paulo (LEIRNER, 2020).

 

Essa tutela é um processo enraizado e desenvolvido ao longo da nossa história, e que não encontrou seu fim com a Constituição, assumindo, como demonstrado, formas variáveis de atuação. Ainda sobre o fenômeno da tutela militar defronte a política, temos a definição de Eliézer Rizzo de Oliveira (1987, p. 61):

 

A tutela corresponde a uma manifestação específica do papel militar na preservação da ordem social num momento em que a corporação castrense não se encontra no exercício do poder de Estado, sem, no entanto, haver perdido a importância orgânica no conjunto dos órgãos do Estado.

 

Logo, mesmo em ambientes que teoricamente se apresentam como sendo democráticos, neste papel problemático de tutela do Estado restaria, em última razão, às Forças Militares o papel de garantidoras da ordem social vigente. Como demonstramos, o processo de tutela da democracia brasileira e a falta de um maior controle civil para com os militares, agravaram a crise institucional que culminaria no estágio de militarismo governista hoje presente. 

Para a melhor compreensão da problemática que ora apresentamos, faz se também necessária a análise sobre a formação da democracia entendida no contexto brasileiro. Para tanto, versaremos a seguir sobre elementos constitutivos da cultura autoritária em Florestan Fernandes e sua possível ligação com a politização das forças armadas.

 

3 A formação da República: uma democracia restrita

 

Ao longo da história brasileira, tivemos períodos de maior intensidade autoritária ou tentativas imperfeitas de estabelecimento de uma democracia liberal. Mesmo com o período de maior avanço das liberdades públicas a partir da Constituição de 1988, ainda assim, o Brasil segue à procura da democracia (BIGNOTTO, 2020).

O autoritarismo que hoje ronda a internalidade do Estado brasileiro e a construção da República não é uma exceção diante da nossa história, muito pelo contrário, faz parte do seu processo fundante. Analisando a obra de Florestan Fernandes, Newton Bignotto assim resume essa tendência:  "O ressurgimento contínuo de regimes autoritários está, portanto, ligado à maneira como o capitalismo se desenvolveu entre nós, mas também ao modo de conservação do poder pelas classes dominantes ao longo do tempo" (BIGNOTTO, 2020, p. 148).

Logo, a forma como o poder se relaciona com as elites delimitou a possibilidade de uma experiência democrática. Conforme observa Silvana Tótora (1999, p. 111): "a dominação burguesa associou-se a procedimentos autocráticos de uma democracia restrita, válida para os iguais, excluindo da Nação a grande maioria dos desfavorecidos." Trata-se, portanto, de um fenômeno de tradição e cultura autoritária. Sobre o tema, Morena G. Marques conceitua a cultura autoritária como:

 

Próprio da necessidade de autoprivilegiamento e autoproteção burguesa que, em nome da estabilidade política, estatiza a violência sistemática contra os de baixo, ultrapassando os limites do seu braço armado e a condensando nas políticas sociais e demais esferas públicas de interlocução com os trabalhadores (MARQUES, 2018, p. 140, grifos da autora).

 

Dessarte, o fenômeno da cultura autoritária se traduz no uso sistematizado do poder coercitivo do Estado em vias de suposta motivação pela estabilidade política e social. Nesse sentido, observando os efeitos e repercussões do Golpe de 1964 para além da relação da burguesia com o próprio papel do Estado, Florestan Fernandes afirma que:

 

Isso fez com que a restauração da dominação burguesa levasse, de um lado, a um padrão capitalista altamente racional e modernizador de desenvolvimento econômico; e, concomitantemente, servisse de pião a medidas políticas, militares e policiais, contrarrevolucionárias, que atrelaram o Estado nacional não à clássica democracia burguesa, mas a uma versão tecnocrática da democracia restrita, a qual se poderia qualificar, com precisão terminológica, como uma autocracia burguesa (FERNANDES, 2005, p. 313, grifo nosso).

 

Logo, não é surpresa que no Brasil, com essas características, possa existir um projeto autoritário, o qual se apoie em forças militares na captura do Estado, pois esta é a regra perante a história do país. Como conclui Morena G. Marques: "Ao afirmarmos a existência de uma cultura autocrática supomos algo inevitável diante dos fatos históricos: a superação da natureza autocrática do Estado não se realizou, ato que exigiria muito de nossa burguesia nacional"(MARQUES, 2018, p. 143).

Portanto, a burguesia nacional que deteria as ferramentas de superação desse autoritarismo, escolhe se utilizar dele em benefício próprio, de forma a manter seus privilégios enquanto classe. O subdesenvolvimento, a dependência externa e a cultura autoritária formam um tripé de sustentação para a manutenção do poder.

Dessa forma, aponta Florestan Fernandes:

 

Esse parece ser o sentido da progressiva adaptação da ordem social competitiva a novas modalidades de dominação autocrática, fundadas no poder estatal, na militarização das estruturas e funções do Estado e na repressão político-militar das “ameaças à ordem”, quer elas tenham origens liberal-democráticas, quer elas tenham origens socialistas (FERNANDES, 2009, p. 97-98).

 

Há, desse modo, uma relação entre a elite dominante e a militarização, de modo a garantir a manutenção do status quo, frente a qualquer ameaça a esta dinâmica estabelecida de poder. Ainda sobre o tema das instituições políticas sob a óptica de Florestan Fernandes, discorre Thiago Mazucato:

 

Ao analisar as instituições políticas brasileiras, Florestan destaca a ausência de verdadeiros princípios democráticos no país, o que se evidencia pelo fato de que, ainda que em vários momentos da vida política nacional tenham surgido sinais de avanços em direção ao que poderia ser considerado como princípios democráticos, salta à vista que elementos conservadores, e mesmo reacionários, sempre permaneceram de forma predominante nas instituições políticas brasileiras (MAZUCATO, 2016, p. 74, grifos do autor).

 

Essa situação denota a problemática, ora referenciada, na República pós-1988; mesmo em governos considerados como progressistas, os elementos reacionários e conservadores intrínsecos se fizeram presentes. Seja com maior ou menor intensidade, ganhando notório destaque no período recente a partir de 2013.

Esse é um fenômeno que encontra raízes na formação da sociedade de classes brasileira, com a permanente presença das oligarquias no poder, não sendo permitido ao povo o processo decisório de maneira ampliada da nação. Sobre o tema, discorre Silvana Tótora:

 

É essencial, no pensamento de Florestan, o conceito de revolução burguesa em atraso. A burguesia não logrou incorporar as classes populares na sociedade civil e no âmbito dos direitos civis e políticos. Ao contrário, criou uma Nação dual. De um lado, os privilegiados que instrumentalizam a política, especificamente o Estado, para si, de outro lado, a grande maioria dos excluídos, relegados à miséria e à opressão (TÓTORA, 1999, p. 125).

 

Logo, é no processo de instrumentalização da política que se destacam as máquinas de repressão simbolizadas também pela politização das Forças Militares, não sendo respeitados os fundamentos nem mesmo para um modelo de democracia representativa. A partir dessas considerações, passamos à atual crise do país e à presença dos militares na ágora política.

 

4 Crise sistemática e a militarização governista

 

Os momentos de crise costumam ser reveladores para a solidez da institucionalidade de um país. A crise orgânica inaugurada em 2013, e que se seguiu com a derrocada econômica, com o impeachment, e a crise política e das instituições fez com que anos depois, no esteio da Operação Lava-Jato, a criminalização da política ganhasse força, e que os representantes eleitos fossem vistos como indiferentes aos anseios dos eleitores. Como relata Rosana Pinheiro-Machado sobre os protestos de 2013:

 

Nada voltou ao lugar após as Jornadas, porque as bases da transformação social já estavam se alterando. Junho foi um incentivador e inaugurou – como uma espécie de marco, e não como uma causa direta – um tempo logo de limbo, definido por polarização, confusão e sofrimento social (PINHEIRO-MACHADO, 2019, p. 38).

 

Para fins de exemplificação, podemos dividir as manifestações dos últimos anos em três estágios: As Jornadas de Junho de 2013, que se caracterizaram por serem apartidárias, criticavam de forma genérica os gastos com a Copa do Mundo, para além de requererem mais direitos sociais (PINHEIRO-MACHADO, 2019).

Em um segundo momento, a partir de 2015, há as manifestações antigoverno, favoráveis ao impeachment da presidente Dilma Rousseff. Essas manifestações denotaram o antipartidarismo, a ojeriza à classe política, um forte sentimento antissistema. Em questionário realizado em abril de 2015 numa manifestação em Curitiba, foi constatado que 73% dos manifestantes presentes não confiavam em partido político algum. Porém uma maioria de 71% rejeitou a hipótese de entregar o poder aos militares (ORTELLADO; SOLANO, 2016).

Em São Paulo, epicentro das marchas pelo impedimento, em pesquisa realizada na manifestação em março de 2015, a situação não foi diferente: Para 50% do universo presente no questionário, os partidos políticos não têm nenhum prestígio, enquanto 39% apontaram ter pouco prestígio na cena da época. No confronto de opções entre Democracia x Ditadura, 85% escolheram a democracia como sempre melhor do que qualquer outra forma de governo (DATAFOLHA, 2015).

 Já a partir da posse de Jair Bolsonaro, as profusões de rua de caráter antidemocrático ficaram cada vez mais comuns, começou a surgir com mais aparência o apelo da extrema direita pelo intervencionismo militar (CNN BRASIL, 2020), e já nas forças militares, a defesa do ideário de pacificadores da nação. Como nos diz Heloísa Starling: "A partir de 2013, o empenho em fraudar a história para transformá-la em objeto de contestação e disputa política só fez crescer" (STARLING, 2019, p. 281).

A acirrada disputa eleitoral em 2014 e o seu resultado apertado fizeram com que pela primeira vez, desde o advento da Nova República pós Constituição de 1988, um resultado de eleição presidencial e a lisura do processo fossem questionados pelo partido perdedor, o Partido da Social Democracia Brasileira (PSDB). Inaugurando uma crise política que culminou no impeachment da presidente eleita Dilma Rousseff.

Sobre esse processo, vale ressaltar sua natureza de desgaste para o tecido democrático brasileiro. O impedimento da forma como feito, no qual consideramos sem cometimento de crime de responsabilidade, não pode ser considerado como um elemento ordinário da vida política brasileira.

Em relação a esse período, duas interpretações sobressaem-se para o objetivo deste trabalho: a que considera a destituição um golpe parlamentar (SINGER, 2016), um soft-coup, que rompe com a soberania do voto popular manifestada nas eleições de 2014. Já a segunda, de matriz legal-liberal, considera o processo um agravamento do chamado "jogo duro constitucional", no qual se usam os institutos legais de maneira jamais imaginada como arma política para atingir os oponentes (LEVITSKY; ZIBLATT, 2018).

Independentemente da interpretação política que se queira usar para definir tal momento, resta demonstrada sua não normalidade. Sendo um dos motivos e estopim para o agravamento da crise ora abordada de forma a sobrelevar, inclusive, a participação política das forças armadas.

A partir de 2016, na busca por legitimar seu governo impopular (DATAFOLHA, 2018), Michel Temer começa um processo de maior cooptação dos militares ao governo. Rompendo com importantes tradições da recente República, nomeou para o Ministério da Defesa o primeiro militar desde o governo FHC, que em seu segundo mandato, colocou um civil à frente dos comandos militares (ZAVERUCHA, 2005).

A Intervenção Federal no Rio de Janeiro sob o comando do general Braga Neto do Exército, hoje Ministro da Defesa do Governo Bolsonaro, foi mais um sinal da perda de legitimidade do poder político e do reforço às tradições autoritárias de intervenção, mesmo que tenha ocorrido sob a égide da formalidade legal (ARIAS, 2018). Ainda em 2018, tivemos o célebre episódio do general Villas Bôas, que em tons de ameaça velada manifestou-se acerca da possível decisão do Supremo Tribunal Federal (STF) sobre o habeas corpus do ex-presidente Lula, à época preso em decorrência da Operação Lava-Jato (VALENTE, 2018).

O processo de militarização do governo brasileiro, que se intensificou com Michel Temer, atinge seu ápice no Governo Bolsonaro. Como demonstra o levantamento realizado pelo Tribunal de Contas da União (TCU) sobre a presença de militares em cargos do governo, os números impressionam pela enormidade escalonada no período de 2016 a 2020:

 

Gráfico 01 – 
Fonte: Lis (2020).

 

Ou seja, mesmo que a eleição de um líder de extrema-direita tenha influenciado a maior presença militar na vida política do país, esse é um problema histórico como constatamos anteriormente, e que se fortaleceu principalmente nos últimos cinco anos. Apenas se contarmos a participação de generais da ativa no Gabinete Ministerial, uma verdadeira exceção no ambiente democrático, teríamos Eduardo Pazuello (ex- Ministro da Saúde), Otávio Rêgo Barros (ex-porta-voz da Presidência da República), Luiz Eduardo Ramos (Secretaria de Governo e Ministro da Casa Civil) e Walter Braga Netto (Ministro da Casa Civil, e agora Ministro da Defesa).

Ao analisar a ascensão do conservadorismo e da extrema direita na Europa e no Brasil, Michel Löwy aponta importante particularidade do processo político brasileiro, o chamado apelo militar:

 

O elemento mais preocupante da extrema-direita conservadora no Brasil, que não tem um equivalente direto na Europa, é o apelo aos militares. O chamado a uma intervenção militar, o saudosismo da ditadura militar, é sem dúvida o aspecto mais sinistro e perigoso da recente agitação de rua conservadora no Brasil (LÖWY, 2015, p. 663).

 

Ainda refletindo sobre a simbiose do governo eleito em 2018 para com as forças militares, notadamente o Exército, esclarece Daniel Aarão Reis:

 

Em uma análise específica da força política do bolsonarismo, cumpre destacar, em primeiro lugar, seu núcleo mais coeso nos aparelhos de segurança formais (forças armadas e polícias) e informais (milícias e bancada da bala). Agrupam-se em torno dos conceitos de Ordem, de Segurança e de defesa da Pátria (REIS, 2020, p. 8).

 

Há, portanto, para além da cultura autoritária, uma identificação ideológica desses setores para com o presente governo. No caso dos militares, a gravidade resta exposta com o abandono de suas funções de Estado, mormente de defesa nacional, para confraternizar de forma abusiva com o governante da vez.

A simbiose entre governo e militares nos levou inclusive a maior crise das Forças Armadas desde 1977, quando Sylvio Frota, Ministro do Exército, tentou golpear o General Ernesto Geisel durante a Ditadura Civil-Militar. Ocorrido diante da consumação da renúncia conjunta do Ministro da Defesa e dos três comandantes das Forças Armadas em resposta a uma suposta tentativa do presidente Bolsonaro de usá-las (Forças Armadas) ao seu bel-prazer. No entanto, essa aparente tentativa de afastamento pode significar uma intenção na qual: "a visão de que as Forças Armadas estão apartadas de Bolsonaro é funcional para o projeto militar mais amplo, de permanência no poder, bem como de não serem responsabilizadas pelo desastre que o governo causou (MEI et al, 2021).

Comum, durante os últimos anos, foi o suposto apelo popular a medidas autoritárias, como o fechamento do Congresso Nacional por meio de uma intervenção militar. Em verdade, esse apelo só fica explícito em manifestações específicas, visto que pesquisas recentes apontam que a confiança nos militares diminui com a grande participação no governo. Segundo os dados, o sentimento de confiança nos militares caiu sete pontos desde 2018, de 33,9% para 27% em 2020. Os que dizem confiar “mais ou menos” na instituição são a nova maioria: 33,8%. Ainda, 58% dos entrevistados e entrevistadas avaliam que "não ajuda a democracia do país a maior presença de militares em cargos de primeiro e segundo escalão" (CARVALHO, [2020?]). Ainda, pesquisa Datafolha demonstra que 75% dos brasileiros adultos concordam que a Democracia é sempre a melhor forma de governo (DATAFOLHA, 2020).

Importante ressaltar que o papel da Força Militar na democracia liberal moderna é aquele vinculado ao poder e hierarquia civil, destacando-se a necessidade de maior profissionalização da caserna e a maximização do poder político sob os militares (HUNTINGTON, 2000).

Nessas manifestações localizadas, os candidatos ao golpe da vez promovem atos contra a democracia dizendo-se basear no artigo 142 da Constituição Federal, que declara:

 

Art. 142. As Forças Armadas, constituídas pela Marinha, pelo Exército e pela Aeronáutica, são instituições nacionais permanentes e regulares, organizadas com base na hierarquia e na disciplina, sob a autoridade suprema do Presidente da República, e destinam-se à defesa da Pátria, à garantia dos poderes constitucionais e, por iniciativa de qualquer destes, da lei e da ordem (BRASIL, 1988).

 

Apesar de toda tradição autoritária do país, e de um processo de transição da saída da Ditadura Civil-Militar de forma controlada, interpretar que há tamanho dispositivo autoritário na Constituição, capaz de legitimar o ideário de poder moderador às Forças Armadas, não resguarda sustentação diante da hermenêutica constitucional. Sobre o tema, expõe Lênio Streck:

 

O artigo 142 não permite intervenção militar [...]. Por qual razão o constituinte diria que todo poder emana de povo, com todas as garantias de sufrágio etc. Se, de repente, dissesse: ah, mas as forças armadas podem intervir a qualquer momento, como uma espécie de “poder moderador” (STRECK, 2020, online).

 

O artigo se refere apenas à possibilidade jurídica do uso das Forças Armadas como forças de segurança pública em situação excepcionais, possuindo toda uma legislação específica para tanto. Concluímos que uma redação mais simples e direta focando na soberania e defesa nacional poderia até ser mais compreensível, e ajudaria na contensão de aspirações golpistas, mas não sanaria um problema tão profundo quanto os anseios de tutela das forças militares.

Portanto percebe-se que vários elementos convergem para o atual momento de expansão da ocupação dos militares na vida pública. Não caímos de paraquedas nesta situação, há elementos históricos e culturais enraizados no Estado brasileiro, e muito se deixou por fazer em termos de transição pós-ditadura e na formação da educação militar nas últimas décadas para que chegássemos até aqui.

 

5 Considerações finais

 

O artigo propôs-se a uma análise sobre como chegamos a este momento de ocupação do Exército em cargos governamentais, e qual é o significado disso para a democracia brasileira. Estaria a República sofrendo um processo de tutela, ou haveria ali um simples exercício regular dos militares?

Diante do exposto, restou evidente o papel central da cultura autoritária, da formação dos militares, e da politização do Exército para o atual cenário. Não é de hoje que quando não são titulares do poder, as forças militares buscam seu espaço por meio da tutela do poder político.

Apesar dos avanços democráticos das últimas décadas, a questão foi negligenciada pelos presidentes que detinham estabilidade e poder suficiente para enfrentar o problema, que, definitivamente, não é de simples abordagem. Logo, a participação dos militares para além dos limites democráticos denota um resultado de um processo histórico no qual o poder político foi alijado pelas armas.

As considerações, tomando nota nos ensinamentos de Florestan Fernandes, demonstram como a elite militar se instrumentalizou em conjunto com as classes dominantes para uma experiência de autocracia burguesa. Demonstrando que mesmo quando há um avanço civilizatório no país, como ocorreu desde a Constituição até a recente crise sistemática, basta o mínimo de espaço para o autoritarismo voltar à tona. 

Portanto o quadro atual é crítico, pois reforça o entendimento por parte dos militares de que eles seriam um quarto poder na República, como agem efetivamente tentando o ser. Apenas com reestabelecimento do poder político, profusão de cultura democrática nas forças militares, maior profissionalização e a superação dos dogmas que a cercam, poderíamos deter um resultado condizente com as reais necessidades do país em encontrar-se com uma experiência democrática consolidada, situação que hoje nos parece uma miragem utópica.

 

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Recebido em: 25/02/2021.

Aceito em: 01/05/2021.

 

DOI: https://doi.org/10.46906/caos.n26.57873.p291-309  

 

 



* Mestrando  do Programa de Pós-graduação em Ciência Política e Relações Internacionais  da Universidade Federal da Paraíba/Brasil. E-mail: antonioalvesvf@outlook.com.

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