ALBINITUDE E ALBINIDADE: apresentação do dossiê

ALBINITUDE AND ALBINITY: dossier presentation

 

Adailton Aragão*

 


DOI: https://doi.org/10.46906/caos.n27.61531.p9-28

 

Resumo

O presente artigo tem o intuito de apresentar os trabalhos que fazem parte do dossiê e, ao mesmo tempo, refletir sobre a construção da identidade das pessoas albinas, os sentimentos e compartilhamento de suas trajetórias, estratégias e vivências, problematizando além dos fatores biológicos/médicos, discutindo a partir das Ciências Humanas, Estudos Culturais e Decoloniais. Vale destacar que todos os trabalhos têm um fio condutor que os une, ou seja, os processos identitários e os sentimentos coletivos e individuais (albinitude e albinidade) sobre ser uma pessoa albina, além de pensar como o Estado, a ciência, o mundo do trabalho, as associações, as leis, a subjetividade, a moda/publicidade e os discursos ocidentais/raciais também atuam sobre essas pessoas. Em conclusão, as pessoas albinas buscam o reconhecimento e políticas públicas para fortalecer o grupo e, assim, ter mais visibilidade na sociedade. Falar sobre identidade é pensar sobre a identidade atribuída, autoatribuída, herdada e compartilhada.

Palavras-chave: pessoa albina; albinidade; albinitude; identidade.

 

Abstract

This article aims to present the works that are part of the dossier and at the same time to reflect on the construction of the identity of albino people and the feelings and sharing of their trajectories, strategies and experiences, thereby problematizing beyond a biological/medical perspective and instead discussing from the viewpoint of the Human Sciences, Cultural and Decolonial Studies. It is worth noting that all works have a common thread that unites them, that is, the identity processes and the collective and individual feelings (albinitude and albinity) about being an albino person, in addition to considering how State, Science, the world of work, Associations, Laws, subjectivity, fashion/advertising and Western/racial discourses also act on these people. In conclusion, albino people seek recognition and public policies to strengthen the group and to thereby attain greater visibility in society. Talking about identity is thinking about assigned, self-assigned, inherited and shared identity.

Keywords: albino person; albinity; albinitude; identity.

 

 

Falar sobre as pessoas albinas é um desafio, necessário e urgente. Esse grupo vive uma “(in)visibilidade” social e isso tem impacto nos processos de construção identitária aos quais estão submetidas. Dessa forma, este dossiê tem como justificativa a necessidade de pensar sobre a identidade albina e corroborar na desconstrução das ideias preconceituosas, discriminatórias, exóticas e estigmatizadas para com elas.

É o primeiro compilado — que se tenha conhecimento no Brasil — de trabalhos sobre o albinismo, pessoas com albinismo/pessoas albinas, e produzidos por elas, para elas e para os não albinos. Vale destacar que os autores e as autoras foram convidados/as para este dossiê, na expectativa de construirmos um conjunto de informações que possa ajudar/orientar/informar/problematizar sobre o tema. Esses e essas convidados/as, com exceção de alguns, estão tendo a primeira experiência de publicar em uma revista acadêmica, o que não tira o mérito e qualidade do trabalho preparado para esta edição. Acredito que, por ser o primeiro dossiê com essa temática aqui no Brasil, se tornará uma referência, e esperamos que surjam mais trabalhos como este.

Ressalto que, — embora não seja uma pessoa albina —, enquanto organizador e pesquisador, atrevo-me a (re)pensar os sentimentos e identidades coletivas e individuais desse grupo, ao mesmo tempo em que proponho novos termos/conceitos sobre o albinismo e o sentimento de pertencimento e identidade (coletiva e individual). Antes de começar a discussão sobre albinitude e albinidade, faz-se necessário explicar, de forma sucinta, o que é o albinismo/distúrbio da pigmentação.[1]

No campo biológico, é uma condição genética entre os indivíduos e isso afeta a produção da melanina, ou seja, produz pouco ou nenhuma. No Brasil, o mais comum é o albinismo/distúrbio da pigmentação do tipo oculocutâneo, e apresenta ausência total na produção da melanina, porém existem mais tipos na literatura biomédica. Na área médica, o albinismo/distúrbio da pigmentação é visto como uma doença e a interpretação/compreensão, enquanto patologia, vai variar entre os médicos, sobretudo, entre os dermatologistas e oftalmologistas. As definições mencionadas convergem ao entenderem que o albinismo/distúrbio de pigmentação é uma patologia ou doença genética e pode acarretar outros problemas na saúde das pessoas albinas (MELO, 2017; 2018). O discurso médico cria um rótulo para essas pessoas e é baseado apenas no que é visível, no fenótipo (ARVEILER; LASSEAUX ; MORICE-PICARD, 2017).

É importante reforçar que a falta de melanina não as impede de realizar suas atividades diárias como qualquer outra pessoa, mesmo com os problemas de visão, algo comum entre as pessoas albinas. Os riscos de câncer de pele, por exposição ao sol, são reais, embora todos os não albinos também estejam sujeitos, devendo usar protetor solar diariamente. Mas no caso das pessoas albinas, o protetor é como uma medicação, e de uso diário. Mesmo com essas particularidades, é a sociedade quem cria barreiras, coloca-as na situação de estigmatizadas, desacreditadas e desacreditáveis.

  O segundo ponto é discorrer sobre a construção da identidade albina, levando em consideração fatores políticos, sociais e culturais. Sendo esse último fator substancial no processo construtivo identitário (EDER, 2003; HALL, 2003; PINHEIRO, 2004; MORENO, 2014). Vale destacar o papel do Estado no processo de construção da identidade, seja no âmbito coletivo (nacional) quanto no individual, as dissociações (primárias e secundárias), os acoplamentos e desacoplamentos da identidade coletiva (EDER, 2001; 2003) e como a presença ou ausência do Estado afeta diretamente os indivíduos e seus grupos. Por último, temos a discussão sobre os conceitos de albinitude e albinidade, a partir das definições de sororidade e dororidade presentes nos movimentos feministas, além de problematizações sobre o colorismo e suas derivações. O intuito é discutir sobre a identidade albina e suas intersecções.  Dessa forma, o objetivo é problematizar a identidade albina além dos fatores biológicos, focando nas ciências humanas e sociais, para pensar esse “Outro” (albino) em relação aos não albinos. Neste trabalho, foram utilizados pequenos trechos dos diálogos dos sujeitos entrevistados durante a pesquisa do mestrado e do doutorado, fazendo uma relação com as teorias/conceito de alguns(as) autores(as). Após essa introdução conceitual, apresentarei os textos que compõem o dossiê.

 

O Estado e a população albina

 

          As pessoas albinas não constam no censo do IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística), não há um quantitativo exato da população albina no Brasil. Sabe-se quantos eletrodomésticos existem nas casas dos cidadãos brasileiros, mas não se sabe a quantidade/realidade dessa população, quem são, o que fazem e onde vivem (MELO, 2018). Como essa ausência dos dados oficiais afetam as pessoas albinas? Uma hipótese é que a falta de informações dificulta a criação de políticas públicas, tais como: consulta e acompanhamento médico especializado; protetor solar gratuito; óculos de sol e de grau gratuitos. Outra é que essa população vive uma espécie de “invisibilidade” social, o que aumenta os casos de preconceitos, estigmas e discriminação. Destaca-se que o papel do Estado é de proporcionar melhor qualidade de vida para todos os cidadãos, independentemente da sua condição. Diante disso, indagamos: O que o Estado tem feito em prol da população albina? Como as pessoas albinas têm se identificado com o Estado?

          O autor Klauss Eder (2003, p. 05) destaca que o Estado é “um mecanismo de domesticação dos sentimentos coletivos, que atua unindo o povo em uma nação”. Depois dessa afirmação, o que dizer sobre o papel do Estado brasileiro para com a população albina? Quais mecanismos têm trabalhado para despertar o “sentimento coletivo” delas? A princípio, tem-se a pouca participação do Estado, salvo em alguns estados brasileiros onde há algumas leis estaduais específicas, tais como a Bahia, sendo a pioneira na criação da Associação das Pessoas com Albinismo na Bahia (APALBA), fundada em 2001. Atualmente há a Lei 3.638/04 (BRASIL, 2004) em prol das pessoas albinas; em nível estadual, o estado de São Paulo se adianta com o projeto de lei (PL) n. 683/2009 (SÃO PAULO, 2009). Temos ainda projetos de leis em tramitação no Rio de Janeiro, Mato Grosso, Alagoas e outros.

Os depoimentos das pessoas albinas denunciam a insatisfação por não constarem no Censo do IBGE. Segundo elas, o desconhecimento do número real de pessoas albinas no Brasil dificulta a criação de políticas públicas. A não contabilização dessa população também acaba por dificultar os processos de reconhecimento, sentimento e identidade individual/coletiva. Há uma espécie de dissociação entre o Estado nacional e a população, como aponta Klaus Eder:

 

O Estado nacional está se tornando um ator racional em escala global, como ocorre com as empresas econômicas. Tal dissociação tem consequências também para o modo de pertencimento coletivo, para o povo: ela abre a caixa de Pandora da mobilização de identidades, de sentimentos de pertencimento para além do Estado nacional, seja acima dele (como as formas transnacionais de mobilização de identidades) ou abaixo (como as formas regionais ou locais de mobilização de identidades). (EDER, 2003, p. 6).

 

          O Estado, aparentemente, não tem interesse ou identificação com essa população, o que afeta também a identificação do povo albino com o Governo (estadual e federal). Como menciona Klaus Eder (2003), sobre as identidades coletivas desacopladas, está presente na ideia de ser um cidadão albino, participante de um Estado desde o seu nascimento, e faz dessa natividade seu alicerce e da sua soberania (BAUMAN, 2005), mas que encontra integração em um grupo ou associação específica por intermédio de laços, compartilhamento e sentimentos coletivos. Essa dissociação entre o interesse nacional e os sentimentos coletivos faz surgir identidades coletivas que vão além das “estruturas de vinculação e de pertencimento constitutivas do Estado nacional” (EDER, 2003, p. 8). Tais questões produzem uma dissociação secundária sobre as novas identidades como aponta Klaus Eder:

 

Essa dissociação produziu uma “dissociação secundária”, negligenciada em grande parte do debate sobre novas identidades coletivas, a saber, a dissociação entre o ser membro de um Estado como cidadão e o estar integrado num povo através de laços comunitários. Em outras palavras, o desacoplamento entre o ser cidadão e o sentimento de identidade coletiva. Podemos pertencer formalmente a um Estado e, ainda assim, sentirmo-nos parte de uma comunidade cujos limites não coincidem necessariamente com o âmbito por ele abrangido. (EDER, 2003, p. 8, grifo nosso).

 

Ser cidadão brasileiro parece não ser suficiente para que as pessoas albinas sejam representadas simbólica, material e culturalmente desse e demais grupos (MORENO, 2014), assim como a ideia de identidade nacional é algo discutido dentro e fora da academia, e que está intrinsecamente ligada à construção da identidade e suas representações como menciona Oliven (2002, p. 16): “o tema da identidade está associado à formação na nação”. As pessoas albinas almejam mais visibilidade e representação em meio a um governo que “nega” os direitos e reconhecimento dos grupos minoritários, de modo a afetar a forma como percebem a si mesmos e aos “outros” (não albinos) no campo cultural e identitário, conforme aponta Moreno:

 

Os diversos sujeitos sociais conduzem suas experiências por representações – atribuídas, autoatribuídas e compartilhadas – a respeito de quem são e de quem podem ou desejam ser. Essencialmente conflitiva, envolvendo interação social, afetos, autoestima e jogos de poder, a identidade é uma categoria social discursivamente construída, expressa e percebida por diferentes linguagens: escritas, corporais, gestuais, imagéticas, midiáticas. (MORENO, 2014, p. 7, grifo nosso).

 

          A ausência de debates, políticas públicas e produções acadêmicas têm corroborado para o processo de “invisibilidade” dessas pessoas. Dificultando que os grupos/associações das pessoas albinas tenham mais membros, pois muitas não se reconhecem, e que os representantes desses grupos associam esse fato à falta de discussões/eventos/palestras amplas com a sociedade. E, para aumentar a visibilidade, eles recorrem às mídias digitais, na tentativa de criar “signos de identificação” (MORENO, 2014). Vale destacar que a cultura cria atributos e representações culturais aos grupos humanos (EAGLETON, 2003), pois “nem sempre um grupo com uma cultura em comum percebe-se, denomina-se, reconhece-se ou é objeto de discursos identitários. A identidade estaria ligada, desta forma, à representação da cultura de um ou mais grupos humanos” (MORENO, 2014, p. 8).

 

As pessoas albinas e a decolonialidade

 

Ao falarmos das pessoas albinas, estamos a evidenciar um grupo minoritário e “subalterno”, e indagando de o porquê estarem dentro dessas categorias. O primeiro ponto se dá pela falta de pouca representação social, política, econômica, educacional e cultural (salvo os musicistas Hermeto Pascoal e Sivuca). Segundo, é que não temos o perfil socioeconômico dessas pessoas, tais como: classe, gênero, geração, etnia, religião, escolaridade. Deixando lacunas para serem preenchidas, afinal, quem são? Onde vivem? O que fazem? Essas indagações nos levam a pensar na obra de Jessé de Souza (2009) e o seu pensamento social sobre dar visibilidade aos “que não contam” e que estão entre nós.  Por fim, é pela falta de representação, em diversas esferas, que estão sujeitas às ordens de outros grupos “graduados e com reconhecimento”.

Destarte, com os estudos culturais e decoloniais surge uma “esperança” de que esse quadro possa, em algum momento, mudar, pois nada é fixo, engessado, embora possa ser muito duradouro e plural, como o preconceito racial apontado por Terry Eagleton (2005, p. 28), assim como o conceito de cultura é plural, o racismo também assume várias formas e afeta a autoidentidade. Como diz Stuart Hall (2003, p. 130), “o que importa são as rupturas significativas — em que velhas correntes de pensamentos são rompidas, velhas constelações deslocadas, e elementos novos e velhos são reagrupados ao redor de uma nova gama de premissas e temas”.

 Ainda sobre o racismo, é válido fazer uma breve discussão com os estudos decoloniais e culturais, sobretudo, na luta contra o racismo (VIANA, 2019); (EAGLETON, 2005) e os discursos ocidentais, e a ocidentalização (BHABHA, 1998; SAID, 1990). Em primeiro lugar, não é de hoje que os indivíduos sofrem com a invisibilidade (aos olhos do Estado), opressão social, preconceito, discriminação, solidão e racismo. Segundo Gabriela Viana,

 

Nos últimos tempos, sobretudo com o advento das redes sociais, vemos erigir vozes de diversos grupos subalternos, pessoas que, antes dessas ferramentas, jamais teriam sobre si os holofotes, hoje conseguem expressar publicamente suas opiniões e fazê-las ecoar de uma forma jamais antes vista. (VIANA, 2019, p. 135).

 

A autora destaca como o movimento decolonial é importante para combater o racismo, no qual as lideranças “indígenas, negras, feministas, transexuais e de muitos outros grupos subalternos passam a ultrapassar as fronteiras da militância e alcançam o cidadão médio, usuário de redes sociais, e inclusive a academia” (VIANA, 2019. p. 135). Cabe destacar que esses grupos conseguem se articular e se organizar com seus pares, na pretensão de terem mais representatividade social e cultural, uma vez que “a cultura está envolvida em processos de dominação e controle” (CEVASCO, 2003, p. 115). A articulação entre os grupos subalternos faz crescer os sentimentos de empatia e o compartilhamento (CANCLINI, 1997) de que existe um mal comum a ser combatido: a colonialidade (VIANA, 2019, p. 136). Embora o movimento decolonial fale dos privilégios da população branca (não albina) e qual o lugar que ocupam na pirâmide, além da hierarquia social, não estamos falando do branco albino, pois se o branco está no topo da pirâmide, por que o albino está na base dela? (MELO, 2017, 2018).

Temos então uma questão racial/cor/identitária delicada e que precisamos pensar com cautela. Por isso, proponho, ao falarmos da etnia/raça branca neste trabalho,  diferenciar  a população branca albina da não albina, especificando entre parênteses. Embora a questão da “ausência da cor” seja peculiar entre a população albina, no imaginário social, o que prevalece é a cor, mas não se trata de um branco qualquer; é um “branco enigmático” associado a algum tipo de doença. É uma cor que vai para além dos “padrões” em uma sociedade racista, pois não é só a pele que tem a tonalidade característica, são os cabelos, pelos, cílios e olhos. Ao falarmos da população branca (não albina) colonizadora, e que deixou marcas profundas por onde passou, estamos falando do pensamento eugênico/racista como uma realidade viva — sobretudo com o atual governo brasileiro —, algo que ainda permanece no topo das representações sociais, econômicas, políticas, sociais e culturais.

É relevante mencionar que a colonialidade criou discursos e saberes científicos aumentadores do preconceito racial, apoiados pela população branca (não albina) elitizada e que detém ou se acha no direito de elaborar teorias raciais para justificar as atrocidades, como a escravidão. Além de criar categorias para “encaixar” as pessoas como aponta Nery (2009, p. 212): “Sabemos que categorias raciais não são naturais, são relativas e situacionais, portanto, mutáveis.” Tais questões nos levam a pensar sobre o movimento eugênico no Brasil, além do etnocentrismo e eurocentrismo (DIWAN, 2013) com a ideia de uma raça superior a outra, e no qual destacavam que a “cor branca é a cor natural dos homens, reproduzindo um discurso de uma população superior a outra” (MELO, 2018, p. 43).

 

Albinitude

 

Antes de adentrarmos no conceito de albinitude, é necessária uma breve explanação sobre os de sororidade, dororidade e colorismo. Embora tenhamos “tomado por empréstimo” dessas ideias, ampliamo-las e as adaptamos, para pensar as trajetórias das pessoas albinas, partindo da seguinte questão: o que passam as pessoas albinas e quais as estratégias para conviver com o transtorno de pigmentação (albinismo)? Para traçarmos um fio condutor e responder a tais questões, vamos discorrer, brevemente, sobre os conceitos anteriormente mencionados.

Embora o conceito tenha sua ancoragem no movimento feminista, falar em sororidade é discorrer sobre irmandade, empatia, capacidade de se colocar no lugar do outro, amizade, afeição, afeto (LEAL, 2019). O termo é muito famoso nas redes sociais — disseminado entre as mulheres, e um dos mais pesquisados nas plataformas de buscas —, e tem aumentado as estratégias de mobilização, engajamento e ativismo feminista na contemporaneidade (LEAL, 2019). Entre as pessoas albinas, e, sobretudo, entre as mulheres albinas (tomando como exemplo), esse movimento ganha força a partir da ideia de aceitação da sua condição de mulher albina, da sua beleza, e como isso tem gerado mais empatia entre elas, embora algumas ainda não se reconheçam enquanto albinas.[2] Uma das explicações para não se reconhecerem como pessoas albinas é a falta de conhecimento sobre o distúrbio de pigmentação (albinismo) e como a sociedade reproduz um discurso estigmatizante (FOUCAULT, 2001; GOFFMAN, 1975).

Há vários vídeos no YouTube[3], além de blogs,[4] nos quais é possível identificar a tentativa de despertar a sororidade entre as pessoas albinas, ora falando da beleza albina e ora falando de como se aceitam e se amam, como menciona Araújo (2016): “Mais uma vez venho por meio deste blog incentivar as mulheres albinas a se gostarem como são, não é a cor que define se essa ou aquela pessoa é bonita! (ARAÚJO, 2016, online). Outras questões em torno da “sororidade” são trabalhadas nesses e em outros “sites”, além das associações representativas das pessoas albinas existentes no estado de Mato Grosso e na Bahia (APAAMT e APALBA, respectivamente) — essas associações têm desempenhado papel importante nos processos identitários das pessoas albinas. Algumas delas — com quem conversamos informalmente em nossas pesquisa — apresentam depoimentos afirmando que só depois de terem conhecido a APAAMT, por exemplo, é que passaram a gostar de si mesmo e de outras pessoas albinas.

A dororidade, termo e conceito apresentado por Vilma Piedade em meados de 2017, considera que a concepção de termo não é suficiente para representar o que as mulheres pretas sentem e passam, e como a opressão de mundo machista, patriarcal e racista causa dor. Daí surge a dororidade:

 

O caminho que percorro nessa construção conceitual me leva a entender que um conceito parece precisar do outro. Um contém o outro. Assim como o barulho contém o silêncio. Dororidade, pois, contém as sombras, o vazio, a ausência, as falas silenciadas, a dor causada pelo racismo. E essa dor é preta. (PIEDADE, 2017, p. 16, grifo nosso).

      

          O conceito da autora não nega a sororidade, pelo contrário, amplia a reflexão sobre o quanto as mulheres sofrem com o machismo estrutural, porém, quando falamos em mulheres negras e os processos de opressões que passam, numa perspectiva da interseccionalidade, com raça e classe (DAVIS, 2016) é que o conceito de dororidade talvez seja mais adequado, conforme aponta Denis Quadros (2019, p. 385): “A sororidade dialoga com uma dor advinda da opressão do machismo e da insistente estrutura patriarcal da sociedade, em especial, brasileira. Porém, o conceito isolado não consegue acessar ou compreender a dor do racismo [...]”. Esse conceito tem uma forte ligação com a questão étnico-racial, com foco entre as mulheres, como aponta Vilma Piedade (2017, p. 16), “a sororidade parece não dar conta da nossa pretitude”. Nessa perspectiva, sai a sororidade e entra a dor, que é o “velho conhecido das mulheres”, a dor que só pode ser sentida a depender da cor da pele.

          Ainda nessa vertente, temos a teoria do colorismo ou pigmentocracia, intrinsecamente ligada à questão étnico-racial e da cor. A princípio, esse pensamento surgiu em meados da década de 1980 por intermédio da escritora norte-americana Alice Walker, conhecida por seu autora do livro A cor púrpura, lançado em 1982. Segundo a autora, a discriminação racial tem por princípio a cor da pele dos indivíduos, ou seja, quanto mais melanina tiver, mais preconceito sofrerá. A pigmentocracia tem como referência classificatória a cor da pele. Segundo Alice Walker, as pessoas com mais pigmentação são inferiorizadas e sofrem com o preconceito, discriminação e exclusão social. Com base nessa discussão, o que dizer das pessoas que se declaram negras e albinas? Teoricamente a pessoa albina é reconhecida como “branca” com base no fenótipo, mas a maioria dos casos do transtorno de pigmentação ocorre na população negra, podendo o indivíduo se autodeclarar negro, daí temos um duelo entre o fenótipo e genótipo (desafiador é o fato de um casal albino ter tido um filho não albino, o que contraria a visão biológica sobre os genes recessivos).

No Brasil, em contraste com os outros países, entre eles os Estados Unidos, a questão racial ou a percepção de raça “se concentra na aparência e em pistas socioculturais” (NERY, 2009, p. 212). Dessa forma, se pensarmos na classificação pigmentocrática, a pessoa albina estaria no topo da pirâmide, mas então por que não está? A pessoa albina também sofre preconceito por sua cor “branca”, mas não é um branco qualquer, é o “extremamente branco” e que é associado a algum tipo de patologia, doença. O que induz a pensar que a pessoa albina e sua cor “peculiar” em relação com os não albinos, causa estranhamento e o senso comum acaba por torná-las pessoas desacreditadas e desacreditáveis (GOFFMAN, 1975; MELO, 2018).

Na visão de Alice Walker (1983) e de Vilma Piedade (2017), quanto mais melanina, mais racismo, mais dor, mais preconceito. Daí vem a seguinte indagação, se quanto mais melanina a pessoa tiver, mais dor, discriminação e racismo vai sentir, o que dizer das pessoas albinas? Talvez a sororidade, a dororidade e a pigmentocracia não deem conta da “albinitude”. Ao pensarmos sobre o que passam as pessoas albinas, sobretudo por sua condição de ausência total ou parcial de melanina, não conseguimos encaixá-las de forma “satisfatória” sem pensar nos fatores interseccionais, pois falar sobre as pessoas albinas é necessário refletir sobre as outras questões em torno do transtorno de pigmentação/albinismo. Não é a cor ou ausência dela (isoladamente) que torna a pessoa albina estigmatizada, desacreditada e desacreditável, há a associação com outros fatores, como por exemplo, a doença. A condição étnico-racial das pessoas albinas é que define a albinitude, assim como o processo de reconhecimento e sentimento coletivo ou individual da condição de pessoa com transtorno de pigmentação/albinismo, o que é comum a todas elas. Aceitar sua albinitude, talvez seja o primeiro passo para construção da sua identidade. 

 

Albinidade

  

          Para falar da condição das pessoas albinas, suas estratégias para lidar com o transtorno de pigmentação/albinismo, estigma, preconceito, discriminação e solidão, acreditamos que nem a sororidade, a dororidade e a pigmentocracia abarcam as peculiaridades quase que “inerentes” a essas pessoas no Brasil. São grupos separados geograficamente, mas que se aproximam por suas trajetórias, memórias e condição.

Enquanto a sororidade aponta para a irmandade, empatia entre os pares, algo como extremamente importante no movimento feminista, entre as pessoas albinas não é diferente. Por meio desse sentimento, muitos grupos vêm se juntando, unindo forças para outras pessoas tomarem conhecimento, e sentirem que não estão sozinhas, pois existem pessoas na mesma condição, a partir disso, é preciso “despertar” o sentimento de união para lutar por políticas públicas, visibilidade (positiva), desconstruir ideias equivocadas e exóticas.

Nas redes sociais é possível ver esses movimentos e manobras coletivas — a exemplo do requerimento de audiência pública da deputada Rejane Dias do Partido dos Trabalhadores, estado do Piauí (DIAS, 2021), e da pressão feita pelas associações representantes das pessoas albinas, o que levou o Governo Federal a propor uma política de saúde integral das pessoas com albinismo (FERREIRA, 2021).  São muitas as frases que podemos encontrar nas redes sociais virtuais: “Juntos temos mais forças”, “temos que nos unir” entre outras expressões. Mas as pessoas albinas não passam apenas por isso. Falta união? Falta. Mas por que isso acontece? Uma das respostas é a falta de informação e visibilidade, fazendo outras pessoas albinas não se verem representadas. Como ter sororidade/doridade/albinitude com alguém que não sei que existe? Como ter união e aliança com esse “Outro” desconhecido? A sororidade funciona até certo ponto. O distanciamento social sempre fez parte da vida delas, muito antes do contexto pandêmico que se iniciou a partir de 2020. A falta de empatia ou a busca dela é algo discutido recentemente. O primeiro livro no Brasil escrito por uma pessoa albina — Escolhi ser Albino — de Roberto Rillo Bíscaro, publicado em 2012, fala sobre a trajetória do autor, as manobras e estratégias que usou para lidar com o transtorno de pigmentação no século 21. O livro, além de provocar discussões no país e despertar um pouco a “sororidade” entre as pessoas albinas, chama nossa atenção para uma população até então “invisível”, e faz um apelo para os albinos se unirem (BÍSCARO, 2012).

Quando pensamos na dor sentida pelas pessoas albinas, enxergamos além do físico, corporal. Imagine você nascer marcado com um estigma, e essa marca é também estendida aos familiares, seguindo-os por gerações (GOFFMAN, 1975), e como isso afeta sua identidade. Pois bem, alguns relatos mostram como a dor está presente na vida delas. A seguir, valemo-nos de alguns depoimentos retirados das entrevistas informais que realizei durante a pesquisa de mestrado (PPGS/UFPB) entre 2016 e 2017 no estado da Paraíba, e outras da pesquisa no doutorado (ainda em andamento) em Mato Grosso (PPECCO/UFMT).

Segundo a Sra. D.E., “Minha vó não gostava muito da minha cor, pois achava que minha mãe havia traído meu pai”; “desde o meu nascimento as pessoas falavam que minha mãe havia traído meu pai”. A cor, nesse caso, é relacionada à traição por parte da mulher, o que torna a vida do indivíduo albino e seus familiares cheia de traumas duradouros. Conforme aponta Melo (2018, p. 44): “algumas pessoas albinas relatam os preconceitos enfrentados desde criança, e que em alguns casos, os nascimentos são considerados fruto de uma traição da mãe, a sociedade ainda não consegue compreender como pode um albino ser negro.”

As irmãs T.E. e T.I. relatam que, quando crianças, as mães dos seus colegas as proibiam de brincarem com elas por conta da cor da pele, além dos boatos pela cidade de elas eram fruto da traição da mãe com o pastor “galego” da cidade. Outro relato comovente — seguido por um choro — é o da Sra.  L. F.: “A vida do albino é muito solitária”. E complementa: “Se o negro sofre preconceito, nós sofremos muito mais”. A Sra. S. A. relata que, ao entrar no ônibus e se sentar ao lado de uma senhora, percebeu que toda vez que a tocava com o movimento do veículo, a senhora passava a mão para limpar. Esse fato a marcou profundamente.

Nesses casos, o conceito de dororidade se aproxima realmente do sofrimento das pessoas albinas, mas não se trata de uma mulher preta, o que invalida o pressuposto de que quanto mais cor tiver, mais dor sentirá, pois é justamente a ausência de cor (do ponto de vista biológico) que deixa as pessoas albinas numa condição de inferiorizados, desacreditados e desacreditáveis (GOFFMAN, 1975; MELO, 2018). Pelo senso comum, as pessoas albinas são vistas como doentes, “os intocáveis”. Então, não é só a cor que importa, há outros elementos que os conceitos de sororidade e dororidade sozinhos não dão conta de explicar.

Albinidade é o sentimento de empatia por outras pessoas albinas, a vontade de unir forças em prol de um bem comum, independentemente do gênero, raça/etnia, geração, religião, classe, entre outros. É buscar se integrar aos grupos com o intuito de lutar por reconhecimento, visibilidade positiva, superação, respeito e, acima de tudo, dignidade. Albinidade é também compartilhar as dores, as trajetórias, estratégias e manobras para conviver com o transtorno de pigmentação/albinismo. A dor da pessoa albina não depende só da cor da pele, não se trata do “preconceito reverso”, de que tanto falam alguns brancos não albinos (FANON, 2008), é o racismo estigmatizante (associando à cor, à doença), então, talvez, caberia falar: “sem melanina, também se tem racismo, estigma e dor”. Para provocar, perguntamos o que sente a mulher albina e negra? É uma dor por ser mulher, outra por ser albina e outra por ser negra? É a dor interseccional, essa é a dor das pessoas albinas. Em síntese, albinidade é a identificação que une as pessoas albinas, a partir de suas dores interseccionais para se unirem na luta contra o racismo, o estigma, o preconceito, o capacitismo e a discriminação, independentemente da classe, gênero, geração, religião, raça/etnia e cultura.   

Após essas discussões e problematizações preliminares que, obviamente, merecem mais amadurecimento, tempo e pesquisa — pretendemos seguir por esse caminho na pesquisa do doutorado que ora empreendemos —, passamos às apresentações dos textos[5] que compõem o dossiê.

O primeiro artigo — O direito e a inclusão de pessoas albinas com deficiência visual no mercado de trabalho: limites e possibilidades — é de Laudisseia Figueiredo, mulher, mãe, ativista, pedagoga, bacharela em direito e servidora do TRT/MT. Ela traz à tona a problemática da inclusão das pessoas albinas e pessoas com baixa visão no mercado de trabalho. Partindo de sua própria trajetória, como trabalhadora que experimentou os processos de adaptação que as empresas públicas e privadas devem ou deveriam fazer para acolher as pessoas com deficiência visual (total ou parcial), tem-se uma problemática que norteia sua pesquisa: existe inclusão de pessoas albinas com deficiência visual no mundo do trabalho? Embora seja o primeiro artigo da autora sobre esse tema, chama a atenção a forma como conduz seus pensamentos e argumentos para “denunciar” o que não acontece no Brasil no tocante à inclusão dessas pessoas no mercado de trabalho.

O segundo artigo — Defesa de direitos das pessoas com albinismo: um estudo realizado na APALBA —, de Maria Helena M. Santa Cecilia, assistente social e pesquisadora, apresenta a luta das pessoas com albinismo e integrantes da APALBA na busca por políticas públicas, inclusão social e a defesa dos direitos humanos. A Associação é a pioneira no Brasil, e a autora apresenta os percursos e trajetória dessa entidade na luta para que as pessoas com albinismo tenham seus direitos garantidos, além de dar visibilidade à causa. A autora traça um panorama geral do quanto é difícil formar uma organização coletiva e, sobretudo, quando essas pessoas não constam no Censo do IBGE, o que dificulta ainda mais as ações políticas e sociais. A APALBA teve de unir forças com outras entidades, como o Sindicato dos Trabalhadores do Serviço Público Federal (SINTSEF), o qual deu o suporte jurídico para formalizar a Associação. A autora problematiza o papel da Associação em dar suporte às pessoas com albinismo no estado da Bahia, o que a tornou referência nacional e, a partir dela, projetam-se outras reivindicações para além das questões apenas de saúde. É também uma questão social, econômica, cultural e política.

Em seguida, temos o artigo — As pessoas com albinismo e o direito à saúde no Brasil — de Joselito Luz, bacharel em Direito, um dos fundadores da APALBA (Associação das Pessoas com Albinismo na Bahia). Focaliza-se no direito à saúde das pessoas albinas. Seguindo algumas questões dos trabalhos anteriores já citados, o autor traz grande contribuição, ao traçar as bases legais e legislações, as quais, em teoria, garantiriam o direito da pessoa com albinismo a ter atendimento médico especializado, de forma “integral e específica”. Joselito Luz apresenta, de forma pontual, as leis existentes, que tratam indireta ou diretamente sobre os direitos das pessoas albinas no âmbito federal, e, por fim, discute algumas poucas leis existentes em alguns estados, as quais garantem o direito a protetor solar, óculos e atendimento médico especializado. Para o autor, só com políticas públicas específicas a população albina terá mais equidade e qualidade de vida.

Tatiana Moreira, psicóloga e especialista em Políticas Públicas e Formação Humana, traz a questão da subjetividade em relação à população albina no artigo: Albinismo e produção de subjetividade: uma análise dos diversos aspectos que compõem o tema. Rompe com as questões de ordem apenas biomédica, e amplia a questão para diversos contextos sociais, inspirada na sua própria biografia. Os discursos e entendimento sobre o albinismo geralmente vêm do senso comum e, em sua maioria, por pessoas não albinas, o que reforça as ideias preconceituosas e, em muitos casos, exóticas. Dessa forma, a autora aponta a relevância do “lugar de fala” desses sujeitos com base no que Djamila Ribeiro aponta sobre o lugar da escrita, da produção intelectual e fala, processos que estão intrinsecamente relacionados à produção das subjetividades. A autora problematiza e, ao mesmo tempo, tenta desconstruir a visão estigmatizante que se abate sobre a população albina, trazendo relatos e debatendo sobre: capacitismo, pertencimento racial (negritude), inserção social, cidadania e apropriação das pautas albinas para romper com as barreiras impostas pela sociedade.

O artigo de Rafaela Magalhães — Afinal, quem somos nós? Processos identitários das pessoas com albinismo —, doutoranda em antropologia pela UFBA e professora de sociologia do Instituto Federal Baiano, traz reflexões sobre o processo identitário das pessoas com albinismo relacionando-o às questões étnico-raciais. O texto discorre sobre a falta de representatividade das pessoas com albinismo — para autora, PCA — em várias esferas da sociedade e como isso afeta a construção da identidade delas. Com base metodológica da etnografia, realizando entrevistas, trocando conversas e relatos via WhatsApp com várias pessoas com albinismo no Brasil, a autora vai construindo a sua tese, pensando nesse “Outro” desconhecido por grande parte da população. E os poucos que têm algum conhecimento, têm visões equivocadas sobre o albinismo e sobre as pessoas com albinismo, o que acaba afetando a forma como elas se reconhecem, desde o nascimento até a fase adulta, do hospital à escola, dificultando o conhecimento ou autoconhecimento da sua própria condição e identidade. Como sugere o título do artigo: “Afinal, quem somos nós?”

O próximo artigo é de Solange Araújo — O belo (in)visível da criança albina na literatura infantojuvenil —, pesquisadora, professora de língua portuguesa e língua espanhola. Seu texto é sobre literatura infantojuvenil, sobretudo as obras que têm personagens albinas, o que torna o artigo pioneiro na temática. Nas obras analisadas, a pessoa albina aparece ora como protagonista, ora como coadjuvante, o que dá visibilidade às causas albinas, principalmente para as crianças albinas e seus familiares. Imaginamos que são as poucas famílias com algum caso de albinismo/transtorno de pigmentação que tenham conhecimento de obras infantis com a temática albina. A autora destaca a beleza albina, o “belo (in)visível”, presente na literatura analisada, ainda que em alguns trechos, as personagens albinas apareçam como algo “exótico”. A autora destaca e denuncia a falta de obras literárias (infantil e adulto) e acadêmicas que tratem do tema, ressaltando, ao mesmo tempo, a necessidade de se abordar a causa albina na educação, procurando despertar o interesse das pessoas em saber mais sobre quem são as pessoas albinas para que o preconceito possa ser desconstruído.

O ensaio visual  — Rompendo os padrões de albinismo — foi organizado por Andreza Cavalli, engenheira elétrica, educadora física, modelo e ativista. Representa uma novidade para as produções acadêmicas. Mas nem tanto para o mundo da moda, da mídia, da publicidade e do cinema, em que já se encontram diversificadas participações de pessoas albinas, embora, vale destacar, que a aura de exotismo ainda ronda muito fortemente essas produções, como por exemplo as cinematográficas, nas quais as pessoas com albinismo, quase sempre são portadoras de poderes mágicos. A autora destaca a inclusão das pessoas com albinismo nesses espaços midiáticos no Brasil, e a proposta é mostrar a diversidade da beleza albina, e, ao mesmo tempo, incluir e fortalecer o sentimento de pertencimento nesses espaços. O ensaio busca mostrar as diversas formas de olhar para o albinismo/transtorno de pigmentação e sua beleza ímpar, única, a qual desperta em nós (não albinos) várias sensações. O intuito de Andreza Cavalli é romper com os padrões existentes e mostrar uma outra visão sobre essa população. São dez fotografias com pessoas com albinismo, entre adultos e crianças, características físicas distintas e em contextos/cenários diferentes. É um espetáculo a ser visto, divulgado e comentado.

Por último, não menos importante, temos a entrevista com Roberto Rillo Bíscaro — Escolhi ser albino: entrevista com Roberto Rillo Bíscaro —, realizada por Amanda Santos, estudante do curso de Ciências Biológicas da Universidade do Estado de Mato Grosso (UNEMAT). A autora elaborou questões pertinentes sobre a trajetória do entrevistado, e o resultado é um trabalho com vários pontos relevantes para o movimento das pessoas albinas no cenário brasileiro. Fugindo um pouco das perguntas óbvias, Amanda Santos e Roberto Bíscaro têm uma conversa sobre os espaços ocupados pelas pessoas albinas, por exemplo, nas produções cinematográficas e redes sociais virtuais, a exemplo do próprio entrevistado que é dono de um blog e de um canal no YouTube. A proposta é discutir um pouco sobre os espaços que as pessoas albinas ocupam na sociedade, do cinema à academia, e como isso afeta a representação albina dentro e fora do Brasil.

 

Alguns apontamentos

 

A pretensão principal do dossiê é desconstruir a ideia de que as pessoas albinas são doentes e/ou descapacitadas socialmente. Embora o senso comum tenha essa impressão, e talvez os meios de comunicação, a mídia e o próprio Estado também reproduzam tais discursos, fica evidente para os autores e autoras deste dossiê que o albinismo/transtorno de pigmentação desperta preconceito, discriminação e estigma.

Enquanto o Estado e as ciências naturais (médicas e biológicas) tendem a rotular, fixar, cristalizar e enquadrar as pessoas albinas, as ciências humanas e os estudos culturais tendem a criar problematizações que vão além do fenótipo, visível, aparente. Percebemos como o Estado, a mídia e os discursos hegemônicos ocidentalizados ou não, afetam a construção da identidade albina. A falta de representação política, econômica, acadêmica, social, cultural, de informação primária e secundária, de dados estatísticos, de fóruns, de produções acadêmicas, entre outros, sobre o tema, acaba influenciando na forma como as pessoas albinas se reconhecem, auto identificam-se, tanto individual quanto coletivamente. Ter consciência da sua albinitude é relevante para unir forças com o coletivo, o sentimento de albinidade em prol de um bem-comum.

Dessa forma, as reflexões apresentadas nos levam a pensar sobre como é complexa a construção da identidade, ora tendemos a atribuir uma identidade ao “Outro” que, muitas vezes, é preconceituosa e degradante; ora o Estado corrobora nessa construção (positiva ou negativa) ou é omisso em reconhecer os grupos minoritários e suas peculiaridades/necessidades/identidades, e, acima de tudo, não os reconhece como cidadãos brasileiros. Pensar sobre as pessoas albinas é também pensar em quem somos nós.

 

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Recebido em: 29/11/2021.

Aceito em: 06/12/2021.

 

DOI: https://doi.org/10.46906/caos.n27.61531.p9-28

 

 



* Doutorando em Estudos de Cultura Contemporânea pelo PPGECCO/Universidade Federal de Mato Grosso/Brasil. E-mail: adailton.aragao@gmail.com.

[1] Para este trabalho será acrescentado uma outra definição para o albinismo, o “distúrbio da pigmentação”, pegando de empréstimo das Ciências Biológicas, sobretudo, dos autores Lacerda et al. (2005), no qual consideram o albinismo um distúrbio na produção da melanina (hipopigmentação, hiperpigmentação). Ao considerar que a expressão é menos ofensiva que “doença/transtorno”, é uma tentativa de desconstruir as ideias estigmatizantes de que essas pessoas são portadoras de uma doença. Assim, tratar o albinismo como uma disfunção orgânica na produção da melanina e que não afeta a capacidade cognitiva, laboral, capacidade e coordenação motora, é o movimento contrário ao capacitismo e suas derivações.

[2] Esse movimento não é exclusivamente para as mulheres, embora seja a maioria voltada para o público feminino, o intuito é ampliar para todas as pessoas albinas.

[3] A exemplo de A beleza albina, disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=dO-GmUg4sMo. Acesso em: 04 ago. 2021.

[4] É o caso do blog Albinos(as) do nosso Nordeste. Disponível em: Disponível em: http://albinosdonossonordeste.blogspot.com/?zx=31a560658432c5c9. Acesso em: 04 ago. 2021.

[5] Na apresentação, utilizaremos os termos utilizados pelos/as os/as autores/as para se referirem ao albinismos e suas variações semânticas.

 

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