TEORIA CRÍTICA: apresentação do dossiê
CRITICAL THEORY: presentation of the dossier
DOI: https://doi.org/10.46906/caos.n30.66715.p11-17
Resumo
O texto apresenta um conjunto de artigos produzidos como trabalho final da disciplina Teoria Crítica, oferecida a alunos de mestrado e doutorado do Programa de Pós-graduação em Sociologia da UFPB no segundo semestre de 2021. Os artigos buscam construir um debate com a primeira geração dos teóricos da Escola de Frankfurt para compreender os fundamentos do autoritarismo contemporâneo, mas também para criar diálogos com teorias críticas e diagnósticos contemporâneos, atualizando o núcleo do projeto crítico-emancipatório.
Palavras-chave: teoria crítica; capitalismo; emancipação; decolonialidade.
Abstract
The text presents a set of articles produced as the final project of the Critical Theory discipline, offered to master's and doctoral students in the Sociology Graduate Program at UFPB in the second semester of 2021. The articles aim to build a debate with the first generation of theorists from the Frankfurt School to understand the foundations of contemporary authoritarianism, but also to create dialogues with contemporary critical theories and diagnoses, updating the core of the critical-emancipatory project.
Keywords: critical theory; capitalism; emancipation; decoloniality.
O pensamento crítico, que não se detém nem mesmo diante do progresso, exige hoje que se tome partido pelos últimos resíduos de liberdade, pelas tendências ainda existentes a uma humanidade real, ainda que pareçam impotentes em face da grande marcha da história.
Adorno e Horkheimer (1991, p. 9).
Para mim, é uma grande alegria e satisfação que a Revista Caos tenha acolhido este dossiê dedicado a reflexões sobre a teoria crítica. Da mesma forma, sinto-me gratificada por tê-lo proposto e organizado. O conjunto de artigos aqui apresentados foi resultado da disciplina de mesmo nome, oferecida aos alunos de mestrado e doutorado do Programa de Pós-graduação em Sociologia da UFPB, durante o segundo semestre de 2021. Além da importância desta revista para a formação em ciências sociais, também é motivo de alegria e alívio que já não estejamos mais sob as mesmas condições do momento de nosso curso, realizado de modo remoto e marcado pelas emoções que só a conjunção de uma pandemia com um governo autoritário poderia produzir. Em 2023, já não sentimos que estamos nos afogamos como nos afogávamos em 2021 (ainda que o refrão de Sujeito de sorte continue tocando)... Nesse sentido, o conjunto de textos que agora se oferece aos leitores da Caos é uma espécie muito particular de testemunho sobre como dialogamos e aprendemos com os autores da primeira geração da Escola de Frankfurt naquele período. Foi a primeira vez, em meus muitos anos lecionando sobre teoria crítica, em que ninguém reclamou do “pessimismo dos rapazes”.
Desde o início, a ideia do curso foi construir um debate com a primeira geração dos teóricos da Escola de Frankfurt, principalmente para estabelecer os fundamentos de uma compreensão do autoritarismo, mas também para criar diálogos com teorias e diagnósticos contemporâneos, atualizando seu núcleo crítico emancipatório. Contudo, a construção de diálogos produtivos com a teoria social contemporânea precisa começar enfrentando alguns problemas que surgem com o desenvolvimento do projeto apresentado por Horkheimer (2010) em Teoria crítica e teoria tradicional numa linhagem acadêmica, com o fortalecimento de pesquisas disciplinares (uma vez que a teoria crítica é um projeto interdisciplinar) e também com a ampliação do horizonte da própria crítica a partir da aceleração dos embates políticos e morais no capitalismo tardio.
Em meio a esses problemas, dois merecem destaque. Primeiro deles diz que é preciso lidar com a ideia de que a perspectiva da primeira geração teria perdido sua radicalidade. Segundo Bronner (2017, p. 17), a teoria crítica estaria “ameaçada pela reificação que procurou combater, pela falta de propósito político construtivo, uma virada para o metafísico e a exegética”. Talvez uma certa tendencia exegética seja um dos preços pagos pela institucionalização acadêmica e, certamente, será um questionamento mais pesado às teorias crítico-emancipatórias. Longe de revelar um limite teórico da tradição em questão, essa discussão apresenta um problema para o pensamento em geral: o modo como os processos de formação intelectual e produção do conhecimento passam a ser produzidos em um mercado, seguindo uma lógica industrial que prioriza sentidos de especialização. Ao mesmo tempo, não se pode esquecer que, de um ponto de vista substantivo, o conflito entre teorias tradicionais e críticas transforma o campo do saber. Assim, ainda que as teorias crítico-emancipatórias não possam revolucionar imediatamente o campo da ciência, mantêm um trabalho fundamental de contraponto e produção de ferramentas teóricas para autorreflexão da sociedade.
Quanto ao segundo problema, Amy Allen chama atenção para uma questão que toca diretamente na constituição da teoria crítica contemporânea: a ausência de uma reflexão mais séria sobre as relações entre o universalismo moral que está na base da sua fundamentação normativa e o imperialismo europeu ou “o próprio eurocentrismo do Iluminismo e, portanto, seus envolvimentos contínuos com a colonialidade do poder” (ALLEN, 2016, p. 204). Dito de modo direto, trata-se da ausência de uma reflexão sistemática sobre a colonialidade, o que se constituiria um empecilho ao desenvolvimento dos potenciais reflexivos da segunda e terceira gerações da teoria crítica. É justamente na crítica à concepção de progresso desenvolvida pela primeira geração que Allen encontra os fundamentos de uma análise do poder com potencial para descolonizar a teoria crítica contemporânea.
O modo como Allen busca reconstruir o fundamento emancipatório da teoria crítica abre caminho para a constituição de pontes teóricas e metodológicas com o pensamento pós-colonial, os feminismos, a teoria racial crítica, dentre outros projetos intelectuais. Diante desse projeto intelectual ambicioso, paira uma certa dúvida se o que está em jogo é eleger uma tradição de pensamento como modelo para todas as outras. Em conexão com o problema anterior, podemos imaginar que o pensamento da primeira geração da Escola de Frankfurt, apesar de sua história, possa ser usado fiel da balança das teorias críticas respeitáveis, limitando experimentos intelectuais de linhagens do pensamento periférico. Assim, é preciso lidar com o fato de uma certa desconfiança de que a permanência do olhar sob a primeira geração da Escola de Frankfurt seja um lance estratégico para continuidade da hegemonia do pensamento europeu. Ainda que essa desconfiança seja problemática e que seu anacronismo ponha em risco a compreensão da produção social das teorias sociais, precisamos conceder, uma vez que a crítica é movimento, que talvez possua um momento de verdade e que a reflexão sobre elementos regressivos na teoria deve ser permanente. Desse modo, como aponta Patrícia Hill Collins, “essa tendência de usar uma pequena lista de teorias sociais existentes e definidas a priori como arquétipos ‘críticos’ para a própria teoria social crítica desvia a atenção dessa teoria como um projeto intelectual contínuo” (COLLINS, 2022, p. 95, grifo meu). Por este caminho, temos a chave para realizar as conexões entre a primeira geração da teoria crítica e as teorias sociais críticas contemporâneas: trabalhar a continuidade de um projeto emancipatório em meio às contradições do capitalismo.
Desse modo, não se trata de tomar como meta a defesa da autoridade intelectual da teoria crítica produzida pela primeira geração da Escola de Frankfurt, mas sim de produzir encontros num projeto intelectual contínuo de enfrentamento dos processos de reificação e frieza, de construção de uma livre associação de pessoas livres. Para isso, as pesquisas desenvolvidas no Instituto de Pesquisa Social sobre a relação entre capitalismo, violência e autoritarismo fornecem bases importantes para a constituição do pensamento crítico contemporâneo. Em suma, a tarefa da crítica não é sustentar um pensamento único, nem colecionar diagnósticos sobre o sombrio, mas fornecer as bases para sua continuidade como espírito da mudança.
Inspirados nessa discussão, os artigos aqui apresentados são exercícios de diálogo entre teoria crítica e problemas contemporâneos, particularmente aqueles que cada pesquisador adotou em suas dissertações e teses. Embora abordem temáticas bastante distintas, todos os artigos têm em comum o propósito de estabelecer um diálogo entre o horizonte intelectual da primeira geração da teoria crítica e as teorias e problemas contemporâneos. Essa abordagem busca confrontar os limites e significados de ordem produzidos pelo sistema, promovendo uma reflexão crítica e atualizada.
Em A arte desafia o princípio da razão? Reflexões sobre arte e política a partir do pensamento de Herbert Marcuse, Isaura Tupiniquim volta às reflexões de Marcuse para compreender o recente processo de criminalização da arte e dos artistas do corpo pelos movimentos de extrema direita no Brasil. Ao refletir sobre o modo como uma performance artística foi atacada e mobilizada para produção de pânico moral, Isaura retoma o problema das possibilidades emancipatórias da prática artística em contextos autoritários e revela como a perspectiva marcuseana continua importante para pensar os ataques da moralidade civilizada, não só às artes do corpo, mas à própria imaginação. Parece claro que os sentidos de morte nunca estiveram tão organizados num sistema de ataque à arte e a todas as possibilidades de imaginação. No entanto, ao discutir essa questão, a autora explicita um sentido ético-político fundamental: “cabe a nós, nessa disputa de narrativas, enfrentar o ódio instaurado enquanto política, de modo a considerar que, se eles temem os artistas, é porque há na arte uma capacidade de transgredir o sentido da violência numa direção ética emancipatória”.
Da estrutura à (re)produção burocrática: a produção social da indiferença no processo de remoção dos moradores da comunidade Jardim Edith e Água Espraiada em São Paulo nos anos de 1990, de Rodrigo Ferreira, procura explicitar como um projeto de urbanização produz uma lógica sistemática de rejeição da humanidade e da negação da individualidade. O autor retoma a discussão sobre a racionalidade burocrática e sua frieza, procurando direcionar seu argumento para uma proposta de interpretação centrada no modo como os distintos segmentos em disputa se alinham à lógica de reprodução do capital. A partir do caso discutido, percebemos que a produção sistemática da indiferença deixa de ser vista como um problema abstrato e passa a se constituir como um foco de análise das disputas e projetos políticos.
Depois, Teoria crítica e relações étnico-raciais: reflexões e possibilidades no campo teórico, de Roberto Alexandre de Abreu, aproxima Axel Honneth e Amy Allen para delinear as bases teóricas de uma reflexão sobre a questão racial no Brasil a partir da teoria crítica. A trajetória de resistência da população negra no Brasil pode ser entendida como uma busca continuada pelo reconhecimento, mas, seguindo o caminho de Allen, essa análise precisa encontrar as particularidades e disputas históricas locais. O autor defende a necessidade de aproximar as perspectivas de reconhecimento e decolonialidade como modo de ampliação do potencial de explicação da teoria crítica, especialmente por sua pretensão emancipatória que pode se constituir como “apropriação do conhecimento como meio para desarticular gradualmente e continuamente ideias raciais sedimentadas”.
Também inspirado no diálogo com Amy Allen (2016, 2018), temos o texto de Anna Kristyna Araújo da Silva Barbosa: As antinomias do progresso: Theodor Adorno, Amy Allen e a descolonização da teoria crítica. Aqui, partindo da apresentação da ideia de progresso presente no pensamento de Adorno, a autora argumenta em favor do projeto de descolonização da teoria crítica proposto por Allen. Esse projeto é fundamentado na ideia de que a teoria crítica contemporânea não teria lidado com a dimensão imperialista do sentido de progresso e, de modo geral, com a dimensão colonial do poder.
Em Imagens digitais e comunidades imaginadas: uma analogia entre videogames, imperialismo e indústria cultural, de Gabriel Maia de Oliveira, temos uma leitura dos jogos digitais como produtores e mediadores de comunidades morais. Numa análise que relaciona a tecnologia para a guerra com a tecnologia do entretenimento na origem dos videogames, vemos como dilemas da indústria cultural permanecem relevantes para a contemporaneidade. O diálogo entre Walter Benjamin e Benedict Anderson pretende dar conta de uma economia moral dos videogames. Embora esse não seja o termo usado pelo autor do artigo, ele lança luz sobre seu exercício de pensar o trânsito entre imagens da sociedade e a produção e prática de vínculos e valores morais.
Por sua vez, Um fragmento da libido e o representante do mundo: elementos para uma antropologia filosófica a partir de Theodor Adorno, de Esdras Bezerra Fernandes de Araújo, busca apresentar elementos de uma antropologia filosófica no pensamento de Adorno a partir de suas reflexões sobre a ideologia. A ideia é demonstrar como, por meio do cruzamento entre psicanálise a análise de classe, constitui-se uma crítica radical da subjetividade sob o capitalismo com importantes consequências para o pensamento sobre a emancipação ou a vida reta.
Por fim, temos o artigo de Rodrigo Campos Vieira Lima: A radicalidade da teoria crítica, seus reflexos no Grupo Krisis e nas formulações de Paulo Arantes. Neste, o autor traz o instigante exercício de apresentar dois desenvolvimentos ou continuidades intelectuais da crítica radical elaborada pela primeira geração da Escola de Frankurt: o Grupo Krisis e o filósofo brasileiro Paulo Arantes, intelectuais que não costumam figurar na linhagem familiar tradicional (“segunda ou terceira geração”). De modo importante, argumenta contra a percepção de que a crítica radical seria mais “uma mera visão pessimista” uma vez que seria “hoje irrealista esperar ciclos econômicos virtuosos que possibilitem uma nova rodada de modernizações progressistas, com melhor e mais equilibradas participações das classes trabalhadoras no conjunto das riquezas sociais produzidas”.
Aproveito para agradecer aos editores da Revista Caos pela paciência durante todo o processo.
Boa leitura!
Referências
ADORNO, T. W.; HORKHEIMER, M. Dialética do esclarecimento: fragmentos filosóficos. 2. ed. Rio de Janeiro: Zahar, 1991.
ALLEN, Amy. O fim do progresso. Dissonância, Campinas, v. 2, n. especial, p. 14-42, jun. 2018. Disponível em: https://ojs.ifch.unicamp.br/index.php/teoriacritica/article/view/3203. Acesso em: 20 maio 2023.
ALLEN, Amy. The end of progress: decolonizing the normative foundations of critical theory. New York: Columbia University Press, 2016.
BRONNER, Stephen Eric. Critical theory and resistance: on antiphilosophy and the philosophy of praxis. In: THOMPSON, Michael, J. The palgrave handbook of critical theory. New Jersey: Palgrave Macmillan, 2017. p. 17-42. E-book. DOI: 10.1057/978-1-137-55801-5.
COLLINS, Patricia Hill. Bem mais que ideias: a interseccionalidade como teoria social Crítica. São Paulo: Boitempo, 2022.
HORKHEIMER, Max. Teoria tradicional e teoria crítica. In: HORKHEIMER, Max. Teoria crítica. São Paulo: Perspectiva, 2010. p. 17-64.
Recebido em: 18/05/2023.
Aceito em: 20/05/2023.
DOI: https://doi.org/10.46906/caos.n30.66715.p11-17
* Professora do Departamento de Ciências Sociais da Universidade Federal da Paraíba (UFPB), Brasil. Doutora em Sociologia pela Lancaster University, Londres. E-mail: simonebritto@gmail.com.
É permitido compartilhar (copiar e redistribuir em qualquer suporte ou formato) e adaptar (remixar, transformar e “criar a partir de”) este material, desde que observados os termos da Licença CC BY-NC 4.0.