HARRIET MARTINEAU: precursora das ciências sociais e da luta pela emancipação das mulheres

HARRIET MARTINEAU: pioneer of the social sciences and the women's emancipation movement

 Alba Paulo de Azevedo *

                                                                                     

 

DOI: https://doi.org/10.46906/caos.n32.68019.p37-51

 

Resumo

O presente artigo tem como objetivo examinar a contribuição de Harriet Martineau para a inclusão social e política das mulheres, enquanto precursora da produção crítico-discursiva das ciências sociais acerca do fenômeno da desigualdade de gênero nas democracias modernas. Como metodologia, fez uso de um levantamento bibliográfico acerca do legado acadêmico da autora inglesa ao desenvolvimento da sociologia no século XIX, sublinhando o seu compromisso com a emancipação das mulheres, com vistas à reparação dessa incompletude na democracia, hoje considerada requisito para a concretização da diversidade e compreensão do mundo atual. Como resultado, foi identificado que o estudo de uma sociedade deve contemplar todos os seus aspectos e suas principais instituições políticas, religiosas e sociais, incluindo um entendimento da vida e do trabalho das mulheres. Como conclusão, manifesta a necessidade de (re)visitar a obra da socióloga, não apenas para o entendimento do caráter hierarquizado da democracia e da organização das relações de poder, mas sobretudo para uma afirmação da cidadania feminina plena.

Palavras-chave: Harriet Martineau; precursora; ciências sociais; emancipação das mulheres.

 

Abstract

This article aims to examine Harriet Martineau’s contribution to the social and political inclusion of women, as a precursor to the critical-discursive production in the social sciences regarding the phenomenon of gender inequality in modern democracies. In methodological terms, it utilized a bibliographical survey of the English author's academic legacy in the development of sociology in the 19th century, emphasizing her commitment to women's emancipation, with the goal of addressing this deficiency in democracy, now considered a prerequisite for achieving diversity and understanding the contemporary world. As a result, it was revealed that the study of a society should encompass all its aspects and key political, religious, and social institutions, including an understanding of the lives and work of women. In conclusion, it underscores the need to (re)visit the sociologist's work, not only for understanding the hierarchical nature of democracy and the organization of power relations but especially for an affirmation of full female citizenship.

Keywords: Harriet Martineau; pioneer; social sciences; women's emancipation.

 

 

Introdução

 

A pensadora britânica Harriet Martineau (1802–1876) é uma das pioneiras do desenvolvimento das ciências sociais e do feminismo mundial, cuja extensa obra tornou-se objeto de investigação mais intensa a partir dos anos 1960, recebendo maior impulso a partir de 1990. No entanto, os movimentos feministas, nas esferas política, social e científica, já tinham dado seus primeiros passos durante o século XIX, antes mesmo do surgimento do termo “feminismo”. Na condição de ativista, a autora fez da crítica à dominação e à desigualdade um princípio central de sua sociologia, inclusive declarando abertamente suas posições e exercendo influência sobre a opinião pública.

Em toda a sua obra, Martineau manteve o objetivo principal de acessibilidade ao público em geral, afastou-se de dogmas religiosos e primou pela busca da verdade a partir de princípios científicos e, voltada à razão e ao empirismo, tratou de temas que lhe eram caros, perpassando por uma abordagem sistemática e científica da sociedade. Considerada progressista na luta pelos direitos das mulheres, e dedicando-se à causa feminina, teorizou a respeito da diferença de progresso entre meninos e meninas no âmbito educacional, investigou a vida e o trabalho das mulheres, desde o direito ao acesso das mulheres à educação — tema central do seu pensamento feminista — ao direito ao trabalho.

          Uma diferença fundamental entre Martineau e seus contemporâneos homens da primeira geração de sociólogos é que eles almejam uma teoria geral abstrata, enquanto ela busca uma teoria empiricamente fundamentada e descritivamente rica. Ao sair dos papéis de gênero definidos para as mulheres e assimilando a concepção de políticos e intelectuais de seu tempo, teve visibilidade no domínio público e trouxe contribuições em frentes múltiplas, que albergam desde a economia, a moral, a política, a sociologia, a religião, a família, a escravidão na América do Norte até a provocação do debate sobre a questão da mulher na Inglaterra vitoriana.

Por meio de uma revisão bibliográfica, intenta-se analisar a contribuição da autora, na condição de precursora da luta pela emancipação das mulheres, e a receptividade dos seus ideais no Brasil de hoje, os quais vêm ganhando fôlego notadamente com a tradução de suas obras para a língua portuguesa, permitindo reflexões abrangentes para uma compreensão do caráter hierarquizado da democracia e da organização das relações de poder nas sociedades contemporâneas.

Para esse propósito, o artigo contém duas partes essenciais, além da introdução e das considerações finais. A primeira trata da constituição do conhecimento científico da sociedade, identificando a contribuição da teórica para as bases das ciências sociais e abordagem de temas antes ignorados, nomeadamente casamento, filhos, vida doméstica, vida religiosa e relações raciais, com a mesma atenção dirigida a assuntos relacionados às instituições políticas, ao mercado, à indústria e às classes sociais. Isso reflete seu modo sistemático de pesquisa, que distinguiu conteúdos relacionados ao gênero como eixos centrais de organização das experiências do mundo social. A segunda parte discorre sobre a recepção de Martineau na ciência social brasileira, realçando o papel desempenhado pelos pesquisadores e instituições em articularem estudos femininos, num movimento crescente de valorização e inclusão das teóricas clássicas nos currículos de ciências sociais, as quais não integravam o cânone da sociologia clássica, sendo excluídas da grande maioria dos programas acadêmicos.

 

Martineau e a constituição do conhecimento científico da sociedade

 

A sociologia clássica do século XIX e início do século XX ocupou-se de uma abordagem do mundo social arrimada no androcentrismo e na ideologia da domesticidade dominantes naquela época, na qual homens e mulheres deveriam por sua natureza ocupar espaços distintos da vida a partir de uma divisão sexual do trabalho: as mulheres eram excluídas da gerência do desenvolvimento e das relações de trabalho e deveriam ocupar-se do espaço privado com os cuidados domésticos e da prole; aos homens, caberia o espaço público, com a condução da política e da produção social pelo trabalho assalariado. Esse cenário denota que autores clássicos, como Karl Marx (1818-1883), Émile Durkheim (1858-1917) e Max Weber (1864-1920), não chegaram a desenvolver um tratamento tão sistemático das relações de gênero quanto Martineau, o que evidencia a contribuição vanguardista da socióloga.

Nesse contexto, a voz de uma mulher, a britânica Harriet Martineau, apesar de ter sido ignorada por muito tempo pelo cânone da disciplina, erguia-se no âmbito da teoria social. De modo pioneiro, ela tratou não só da emancipação feminina e diversos outros temas, mas sobretudo lançou as bases das ciências sociais com a publicação de dois livros em 1837 e 1838. Essas obras poderiam perfeitamente tê-la alçado há tempos à condição de clássica da teoria social.

Entretanto, no histórico de institucionalização das ciências sociais durante o século XIX, três homens têm espaço assegurado na condição de pioneiros. Alexis de Tocqueville (1805-1859), o autor de Da democracia na América, com a primeira parte publicada em 1835 e a segunda em 1840, cuja obra é considerada como um dos clássicos das ciências sociais, mais precisamente da ciência política. Auguste Comte (1798-1857), que utilizou o termo “sociologia” em 1839, na 47ª edição do seu Curso de filosofia positiva, para designar uma nova ciência como parte complementar da filosofia natural, relacionada ao estudo positivo de todas as leis fundamentais específicas aos fenômenos sociais. Por essa razão, ele é considerado o fundador da sociologia. E, por fim, Émile Durkheim (1858-1917) foi crucial para a institucionalização da sociologia como disciplina científica ofertada nas universidades da França ao publicar em 1895 As regras do método sociológico, um marco na formalização da sociologia enquanto ciência, cujo objeto específico seriam os fatos sociais, tratados como “coisas” (Castro, 2022).

Durkheim foi um defensor da natureza especializada e disciplinar do campo de investigação sociológica, enquanto outros cientistas sociais enxergavam a sociologia como um subcampo interdisciplinar da ciência social. Durkheim almejava criar uma ciência que não dependesse da psicologia, da biologia, da história, tampouco da filosofia, preconizando que a sociologia era uma ciência disciplinar autônoma e distinta de outras ciências sociais, com objeto definido e um método para estudá-lo (Durkheim, 2012).

De acordo com Castro (2022), esse percurso se desenvolveu sob as condições sociais de privilégios das sociedades patriarcais europeias ou estadunidenses, no qual, lamentavelmente, o nome de uma mulher — atualmente já reconhecida por muitos como a primeira cientista social, a extraordinária Harriet Martineau — foi esquecido. Daflon e Sorj (2021) frisam que o livro de Harriet Martineu, Como observar a moral e os costumes, é o primeiro manual de pesquisa sociológica de que se tem registro. Foi publicado em 1838, portanto, quase sessenta anos antes de As regras do método sociológico de Émile Durkheim. Em sua obra, Martineu (2021) discute os desafios epistemológicos e metodológicos do estudo das sociedades e apresenta a pesquisa sociológica como uma construção intencional e controlada, constituindo-se numa perfeita introdução aos métodos das ciências sociais. Antes, porém, em 1837, na mesma época em que Tocqueville publicara o seu livro, Martineau já havia lançado o livro Sociedade na América, em dois volumes. O livro é o resultado de sua viagem por todo o território dos Estados Unidos, em que Martineau foi movida pela curiosidade de testemunhar o funcionamento real das instituições republicanas. Além da profunda análise e concepção não etnocêntrica, nessa obra, a autora defende os direitos das mulheres e o fim da escravidão (Martineau, 2022).

Com efeito, antes de a sociologia se institucionalizar enquanto campo científico, firmando hábitos de pensamento e investigação centrados na vida pública de determinados  grupos humanos, Harriet Martineau idealizou um modo sistemático de pesquisa, que reconheceu conteúdos relacionados ao gênero como eixos centrais de organização das experiências do mundo social, trazendo para a ciência da sociedade essa dimensão tão relevante, acrescida de tantas outras, como o casamento, a infância, a educação das crianças, as relações entre os sexos, a economia política da casa, o trabalho doméstico, o status social e político das mulheres e a condição dos desprivilegiados. Tais abordagens tinham a mesma atenção que assuntos relacionados às instituições políticas, ao mercado, à indústria e às classes sociais (Daflon; Sorj, 2021).

Alcântara (2022) entende que o resgate do conteúdo e da magnitude da obra de Martineau contribui para o esforço de recontar a história da sociologia a partir de teóricos e teóricas que participaram, de fato, de sua fundação e institucionalização. Por esse ângulo, lembra que a “física social” foi nomeada por Auguste Comte em 1830, no Curso de filosofia positiva, e a “sociologia” em 1844, em seu Discurso sobre o espírito positivo. A autora remarca, contudo, que a disciplina foi realmente fundada, com teoria e prática de pesquisa, por Harriet Martineau no final da década de 1830, com suas três grandes obras: Society in America (1837), Retrospect to western travel (1838) e How to observe: morals and manners  (1838).

Lengermann e Niebrugge (2007) sublinham a obra de Martineau mostrando que sempre houve

 

1) uma preocupação com os significados que as ações têm para os atores; 2) uma sensação de que o lugar para começar a fazer sociologia é no campo; 3) uma definição do objeto de estudo da sociologia como a diversidade da vida humana; (4) um compromisso com a ideia de que o gênero é importante; e 5) uma compreensão de que uma crítica da sociedade em termos de suas múltiplas práticas opressivas é responsabilidade moral do sociólogo (Lengermann; Niebrugge, 2007, p. 39, tradução nossa).

 

Prosseguem as autoras, acentuando que o lugar de Martineau no cânone é essencial para uma compreensão integral da complexidade da história da sociologia. Eis que, em diferentes formatos,

 

[...] esses cinco pontos nos mostram que Martineau representa na geração fundadora tanto o paradigma interpretativo, particularmente apresentado como tendo sido introduzido pela segunda geração de fundadores, quanto o paradigma feminista, apenas intermitentemente apresentado como um paradigma sociológico com uma tradição (Lengermann; Niebrugge, 2007, p. 39, tradução nossa).

 

De descendência paterna francesa, Harriet Martineau nasceu em 12 de junho de 1802, em Norwich, Inglaterra. Era a sexta de oito filhos do casal Thomas Martineau (1764-1826) e Elizabeth Rankin (1771-1848). Ao longo de sua vida, além de uma surdez progressiva, só descoberta aos 12 anos, a pensadora britânica enfrentou quadros de enfermidades, que trouxeram consequências ao seu desenvolvimento e convivência social. Autodidata, estudou em casa até a juventude, passando a frequentar uma escola particular dirigida por uma tia, por volta dos 17 anos. A morte do pai e a falência dos negócios da família impeliram-na a buscar seu autossustento, e sua primeira opção foi a costura, porém já tinha escrito alguns artigos que lhe deram um certo retorno financeiro (Alcântara, 2021).

Martineau se revelou uma escritora fecunda e sua teoria foi construída nos mesmos lugares e tempo em que outros clássicos da sociologia elaboravam as suas. Conforme assinalam Daflon e Campos (2022), a socióloga britânica publicou, ao todo, mais de 1.500 artigos na imprensa britânica e norte-americana, tanto em jornais de grande circulação quanto em revistas acadêmicas, e dezenas de livros acerca dos mais variados assuntos. Inicialmente, seu interesse se voltava para assuntos religiosos, mas progressivamente alcançou temas como matemática, música, literatura, política, história, línguas, entre outros. Ademais, escreveu histórias infantis, relatos de viagem, uma autobiografia em três volumes e a tradução sintética do livro Curso de filosofia positiva de Auguste Comte (1853) para o inglês. Promovendo uma agenda abolicionista e a favor da igualdade de direitos para as mulheres, a autora defendeu, ainda, a preservação da natureza, escreveu sobre a situação política, econômica e comercial da Índia da Irlanda, além de manifestar-se sobre a situação das empregadas domésticas e a pobreza na Inglaterra.

Anthony Giddens (2012), ao reforçar o ativismo de Martineau, enfatiza que, hodiernamente, seus textos são relevantes para os sociólogos por inúmeras razões. A primeira, pelo fato de que a autora sustentava que o estudo de uma sociedade deve ter como foco todos os seus aspectos, incluindo as principais instituições políticas, religiosas e sociais. Em segundo lugar, pelo fato de a pensadora insistir no argumento de que uma sociedade deve incluir um entendimento das vidas das mulheres. A terceira razão seria o fato de que Martineau foi a primeira pessoa a ter um olhar sociológico acerca de assuntos antes ignorados, como casamento, filhos, vida doméstica e religiosa e relações raciais.

Correia e Fortuna (2018) reconhecem que os modos de vida de mulheres de variadas posições de classe e ocupações profissionais foram explorados pela autora, em conexão com posições públicas em favor de uma igualdade de oportunidades políticas e educacionais, o que colocava em causa estereótipos e convenções patriarcais daquele período. Consideram, ainda, que teria sido este envolvimento de Martineau com os processos sociais ligados ao gênero que a conduziu, de forma considerável, a ocupar um lugar pioneiro em termos de reflexão tipicamente sociológica, na medida em que ela pesquisou e refletiu quanto a assuntos ligados aos papéis sociais atribuídos às mulheres e à forma como estas os desempenhavam, fixando os eventuais contrastes com as condições e modos de vida dos homens, sem o que nenhuma observação da vida e das estruturas sociais se poderia realizar com seriedade.

Malgrado o termo sociologia feminista não tenha sido utilizado durante a vida de Martineau, ela é reconhecida como uma de suas fundadoras, devido ao fato de muitos de seus textos explorarem a questão dos direitos das mulheres, ao discutir a injustiça do sistema patriarcal, a marginalização das mulheres na política, na economia, no trabalho, na vida social, na restrição à educação, além dos papéis de gênero. Pontuam Alatas e Sinha (2023) que, em seus textos sobre a vida cotidiana de mulheres vitorianas da classe média e da classe alta — assim como em sua investigação acerca do serviço doméstico —, Martineau analisou as instituições sociais, apresentando uma teoria e uma filosofia sobre o trabalho, dado que este tema era abordado como um objeto de estudo, uma lente através da qual se investigava a sociedade industrial e capitalista. Além disso, a teórica defendeu fortemente o direito individual feminino ao trabalho e o direito de escolher o trabalho almejado.

Em Sociedade na América (Martineau, 2022), já na introdução, a pensadora expõe que vinha sendo frequentemente questionada sobre o fato de ser mulher se tornar uma desvantagem. Na mesma obra, a seção VII é dedicada ao tema da “não existência política das mulheres”, na qual Martineau questiona a legitimidade da Declaração de Independência dos Estados Unidos, no que diz respeito ao princípio da igualdade de direitos, que estaria assegurado apenas aos homens, diante da injustiça social no tratamento opressivo das mulheres, dos escravos e da classe trabalhadora, tanto na vida doméstica quanto na pública. Pondera a autora que um dos princípios fundamentais anunciado na Declaração de Independência do povo americano é que os governos derivam seus justos poderes do consentimento dos governados e que o princípio democrático requer a igual representação política de todos os seres racionais. Logo, não seria justo que a condição política das mulheres fosse aviltada nesse aspecto, quando os governos nos Estados Unidos têm o poder de dispor sobre a propriedade das mulheres sem o consentimento delas (governadas), além de terem o poder de escravizá-las, prendê-las e executá-las por determinadas ofensas.

Aqui é relevante não se olvidar que a igualdade, a universalidade e o caráter natural dos direitos adquiriram uma expressão política direta pela primeira vez na Declaração da Independência americana, em 1776, e na Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, promulgada em 1789. Entretanto, as mulheres não alcançaram direitos políticos iguais em nenhum lugar antes do século XX, e a questão da mulher, que veio à baila na Europa durante os séculos XVII e XVIII, relacionava-se à educação das mulheres ou à falta dessa educação. Os direitos propriamente ditos não tinham sido objeto de qualquer discussão nos anos que antecederam a Revolução Francesa ou a Americana (Hunt, 2009).

Consoante Vetter (2008), o que Martineau almejava era que o leitor de Sociedade na América percebesse a hipocrisia refletida na incongruência entre a situação política das mulheres, de um lado, e o princípio de que os governos derivam seus poderes justos do consentimento do governado, do outro. Como as mulheres nunca foram questionadas sobre o que elas pensavam, então sua aceitação do Estado de direito não poderia ser inferida. Desse modo, as punições contra mulheres que infringem a lei seriam injustas porque não foram aceitas pela maioria de todos os americanos, como também seriam injustas as leis em certos estados que concedem às mulheres direitos e proteções insuficientes, porque foram elaboradas sem o consentimento delas e não estariam em harmonia com os fundamentos democráticos.

Em Como observar: morais e costumes (Martineau, 2021), obra que assegurou o pioneirismo da autora na sistematização da análise social e na pesquisa de campo, a autora estabeleceu critérios para o pesquisador observar a sociedade e suas instituições. O tema “casamento e mulher”, no Capítulo III, aborda o “estado doméstico”. Problematizando a relação do pesquisador com as instituições sociais, Martineau (2021) adverte que o casamento existe em toda parte. Ele deve ser investigado pelo observador moral, a fim de que, através dele, possa-se averiguar o grau de degradação da mulher e o estado da moral doméstica do país. Realça, contudo, que em todo lugar a mulher é tratada como a parte inferior em um compacto no qual ambas as partes têm um interesse igual. Ainda, quanto à inferioridade feminina na qual as mulheres foram incessantemente afundadas por meio da moral doméstica, a pensadora já chama a atenção para o fato de que, enquanto os homens eram tidos como corajosos, nada mais era exigido para fazê-los honoráveis aos olhos da sociedade; por sua vez, a condição inferior das mulheres sempre lançou aquelas que não eram protegidas pelo nascimento e pela riqueza à devassidão dos homens.

Em Household education (Martineau, 1848), a autora faz uma reivindicação contra o péssimo estado da educação possibilitada às mulheres, deixando entrever sua luta para que as meninas recebessem a mesma educação para a vida profissional, numa crítica à ausência de prioridade na educação formal das meninas naquela época. Para a pensadora, liberdade e racionalidade, ao invés de comando e obediência, seriam os instrumentos mais eficazes de educação, além de entender que nenhuma mulher deveria ser excluída, por ser mulher, de qualquer estudo que ela fosse capaz de seguir. A igualdade na educação doméstica e acadêmica de uma mulher lhe permitiria alcançar lugares de responsabilidade e conquistar independência econômica, combatendo, assim, as ideias correntes de inferioridade feminina na sociedade androcêntrica. O livro de 1848 ratifica sua pujança para a contemporaneidade como uma das obras mais populares de Martineau ao ocupar, no ano de 2017, a posição de número 67 na lista dos 100 melhores livros de não ficção de todos os tempos, elaborada pelo escritor britânico Robert McCrum (2017). Naquela oportunidade, a crítica o descreveu como um protesto contra a ausência de uma educação voltada para as mulheres, o qual foi tão pioneiro quanto sua autora nos círculos literários vitorianos.

 

A recepção de Martineau na ciência social brasileira

 

A propósito de Martineau emergir em textos introdutórios de sociologia, de teoria sociológica e enciclopédias, Alatas e Sinha (2023) enaltecem o papel supremo desempenhado por professores e pesquisadores, assim como a função das instituições em promoverem estudos femininos, refletindo que isso “é indicativo de que alguma pressão surtiu efeito sobre as vozes detentoras de autoridade no registro da historiografia da disciplina. Mas, indo além do registro de sua presença, o mais importante seria indagar como Martineau é incluída nas narrativas sobre a história das ideias sociológicas” (Alatas; Sinha, 2023, p. 98).

         Complementam os autores que, em sendo o ensino a arena adequada para a exposição de novas ideias, listar Martineau lado a lado com Marx, Weber e Durkheim, indicar suas obras e incluir suas ideias em projetos de conclusão de cursos, constituem um passo notável para expressar sua teoria sociológica. Todavia, uma lente comparativa é instrumento pedagógico valioso nesse campo, não somente pelo esclarecimento que proporciona do ponto de vista das ideias, mas, em especial, para a abordagem independente de Martineau (Alatas; Sinha, 2023).

Yates (1985) lembra que o feminismo de Martineau, talvez por fazer parte de toda a sua filosofia política, não seja tão conhecido quanto suas outras ideias, apesar de a autora ter se posicionado e comentado praticamente todas as campanhas relacionadas às mulheres na Inglaterra e na América de sua época, inclusive abordando questões femininas que não foram identificadas com tanta clareza como tal até os movimentos de mulheres das décadas de 1960 e 1970. Complementa Yates (1985, p. 53) que “A questão da mulher era como ela e outras pensadoras e ativistas do século XIX chamavam o que chamamos de feminismo”.

Para a propagação dos textos da autora, um fator decisivo foi a reedição em 1962 do seu livro célebre, intitulado Society in America, em versão resumida, por Seymour Martin Lipset. Além disso, na mesma década, o historiador americano Robert K. Webb colaborou para a publicização do nome de Martineau, com o lançamento de uma biografia da autora. Já em 1992, foi publicado o livro Harriet Martineau: First Woman Sociologist, de Susan Hoecker-Drysdale, no qual se procede a uma análise dos relevantes acontecimentos da vida da teórica e dos seus escritos de multifacetados domínios, além da abordagem do envolvimento da escritora na condição de ativista e figura pública (Correia; Fortuna, 2018).

Distinguem Lengermann e Niebrugge (2007) que o ponto central da teoria social de Martineau é a questão feminista básica “Onde estão as mulheres?”, de tal maneira que, para responder a essa indagação, a socióloga investigou a vida e o trabalho das mulheres, como também explorou a dominação e a desigualdade, sempre retratando as mulheres como agentes, membros ativos do mundo social.

Nessa toada, podemos indagar: “Onde está Harriet Martineau na ciência social brasileira?”

Numa recente perspectiva de consolidação do pensamento e influência de Martineau no Brasil, descortina-se um movimento crescente de valorização das teóricas clássicas, mormente com o escopo de mudanças nos currículos de ciências sociais com inclusão não apenas de autoras como Harriet Martineau, mas também de nomes como os de Flora Tristan, Marianne Weber, Rosa Luxemburgo, entre outras, que não estavam inseridas no cânone da sociologia clássica e, portanto, foram deixadas de fora da grande maioria dos programas acadêmicos (UFJF, 2021).

Embora exista uma quantidade de pesquisas específicas sobre Harriet Martineau em um âmbito circunscrito, seu trabalho tem sido discutido e mencionado nos últimos anos com passos expressivos, em estudos acadêmicos e obras publicadas, que abordam temas relacionados à sociologia, à história do feminismo e a estudos de gênero. Em afirmação ao nome de Martineau, enquanto clássica e precursora das ciências sociais, destacam-se Fernanda Henrique Cupertino Alcântara (2021, 2022), Verônica Toste Daflon, Bila Sorj — pioneira na formação do campo de estudos de gênero no Brasil —, Luna Ribeiro Campos e Celso Castro (2022), todos com publicações de textos grifados pela intenção do preenchimento de um hiato da tradição sociológica.

Sem ter a pretensão de esgotar os esforços e os escritos desses autores para o reconhecimento do valor sociológico e teórico das obras de Martineau, rememora-se que em 2020, pioneiramente, a CAOS – Revista Eletrônica de Ciências Sociais, da Universidade Federal da Paraíba (UFPB), publicou tradução de parte de um texto de Martineau, desenvolvida por Fábio Guimarães Liberal sob o título Como observar moral e costumes: requisitos filosóficos (Martineau, 2020). Nos anos seguintes, Fernanda Alcântara foi responsável pelas traduções das obras de Harriet Martineau do inglês para a língua portuguesa, a exemplo de How to observe, em 2021, e Society in America, no ano de 2022. Verônica Toste Daflon e Bila Sorj (2021) publicaram Clássicas do pensamento social: mulheres e feminismos no século XIX, no ano de 2021. Verônica Toste Daflon e Luna Ribeiro Campos (2022) organizaram, no ano de 2022, Pioneiras da sociologia: mulheres intelectuais nos séculos XVIII e XIX, obra que propõe uma recuperação das contribuições de pensadoras oriundas de contextos latino-americanos, anglo-europeus, africanos e asiáticos, nos séculos XVIII e XIX. Por sua vez, Celso Castro organizou Além do cânone: para ampliar e diversificar as ciências sociais, no ano de 2022.

Levando-se em conta que, em momentos pretéritos, a inserção da Martineau no ensino superior não teve êxito pelo fato de não haver tradução de seus livros para a língua portuguesa, essas contribuições têm um valor exponencial que, sem sombra de dúvidas, aproximam a teórica britânica da comunidade acadêmica e do público em geral, trazendo a confiança de que o momento é alvissareiro para novos protocolos de ensino, abrindo um horizonte promissor e mais inclusivo nesse caminhar de preenchimento dessa lacuna no cânone das ciências sociais.

 

Considerações finais

 

A partir de um emergente método científico, partindo da premissa de que a sociologia teria como base observações empíricas, com seu senso de independência e desiderato em testemunhar o funcionamento real das instituições republicanas, Martineau dedicou-se ao desenvolvimento da sociologia com o escopo de conferir legitimidade a essa ciência. Foi pioneira não apenas na pesquisa sociológica, como também uma das primeiras teóricas a defender a igualdade entre homens e mulheres para a realização de uma sociedade justa, sobretudo ao detectar que as mulheres não existiam politicamente e que isso transgrediria princípios fundamentais do regime democrático vigente à época, na América do Norte do século XIX.

O legado de Harriet Martineau para o campo das ciências sociais é de marcante pluralidade e contemporaneidade. Suas produções teóricas possibilitam entender conceitos como democracia e diversidade, tão correntes nos dias atuais, com base na sua capacidade de abordagem crítica e na sua observação de que somente uma análise completa da sociedade, incluindo mulheres e grupos marginalizados, traz uma autêntica compreensão do status das mulheres entre os homens.

A analista social britânica desafiou conceitos dominantes acerca da inferioridade das mulheres ao defender um empoderamento social e político quando tratou de questões relacionadas às mulheres e seu papel na sociedade, sempre reforçando a importância de que as mulheres deveriam ter oportunidades iguais na sociedade, incluindo o direito à educação, ao emprego e à participação na vida pública, num tempo em que as elas eram tidas como dependentes, com estado definido pelo seu status familiar e desprovidas de plena capacidade  de autonomia política.

A democracia de hoje reclama igualdade de participação, de poder, de recursos e de respeito; passados quase 200 anos da difusão das ideias de Martineau, ao cabo e ao fim, o seu ativismo, iniciado na sociedade vitoriana, carece de ter seguimento com outras personagens. A igualdade proclamada nas Declarações de Direitos Humanos e nas Constituições do mundo ocidental ainda ecoa desigual no plano material para muitas mulheres, dada a existência política das mulheres com influência mitigada, trazendo a reboque as formas de dominação e marginalização de outrora.

Na pavimentação desse caminho para a completude democrática com plena emancipação feminina, merecem registro os esforços para contestar a visão androcêntrica dos textos canônicos da sociologia e o movimento crescente de valorização de teóricas clássicas como Martineau, por seu papel significativo no avanço do movimento de emancipação das mulheres e pela influência exercida no limiar do movimento feminista, este entendido sempre como um necessário compromisso ético e político de transformação da sociedade.

 

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Recebido em: 19/09/2023.

Aceito em: 20/04/2024.

 

DOI: https://doi.org/10.46906/caos.n32.68019.p37-51

 



* Mestra em direito pela Universidade Federal do Rio Grande do Norte, Brasil. E-mail: albapazevedo@gmail.com.

 

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Desenho de um círculo

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