PELAS RUAS DO VELHO MUNDO: um relato fotoetnográfico sobre pobreza e segurança pública

THROUGH THE STREETS OF THE OLD WORLD: a photoethnographic
report on poverty and public safety

Fábio Gomes de França *

 

 

DOI: https://doi.org/10.46906/caos.n32.68748.p211-226

 

 

 

Resumo

Este trabalho trata-se de uma experiência fotoetnográfica, obtida a partir de uma viagem de turismo realizada à Europa — mais especificamente para Portugal, Itália e França — entre o final de 2019 e início de 2020. A partir de uma observação livre, meu relato utiliza-se de fotos captadas de situações sociais das ruas de algumas cidades dos países citados, em diálogo com descrições textuais de minhas impressões dos locais pelos quais passei. Essa etnografia de rua me possibilitou refletir sobre problemas que envolvem a segurança pública no mundo europeu, ao mesmo tempo em que me auxilia a melhor entender o contexto brasileiro. Por fim, minha ênfase descritiva recai sobre a relação entre pobreza e segurança pública, e os dilemas atuais dessa relação.

Palavras-chave: fotoetnografia; etnografia de rua; segurança pública; pobreza.

 

 

Abstract

This article deals with a photoethnographic experience carried out in Europe during a tourist trip to Portugal, Italy and France between late 2019 and early 2020. Based on free observation my report makes use of photographic images of social situations on the streets of some cities in the countries referred to, including dialogue with textual descriptions of my impressions of the places I passed through. This ‘street ethnography’ enabled me to reflect on questions of public security in Europe in addition to helping me to better understand the Brazilian context. In conclusion, my descriptive emphasis reflects back upon the relationship between poverty and public security and the contemporary dilemmas around this relationship.

Keywords: photoethnography; street ethnography; public security; poverty.

 

Introdução

 

Este relato de experiência poderia ter sido apenas uma viagem comum de turismo à Europa. Sonho de muitas pessoas, essa viagem só se torna possível, na maioria das vezes, caso tenhamos uma situação financeira favorável que nos possibilite realizá-la. No entanto, quando se trata de um cientista social de férias como turista (que é o meu caso), dificilmente não desenvolvemos um sentimento paradoxal quando passamos a enxergar as contradições geradas pelo sistema econômico no qual vivemos em qualquer lugar do mundo. Nós, cientistas sociais, talvez devido ao modo crítico com que aprendemos a fazer certa leitura da realidade, corremos o risco de não conseguirmos experienciar o lazer como algo centrado em si mesmo, pois, a todo o momento, a imaginação sociológica está presente na forma como enxergamos as pessoas e as situações ao nosso redor, levando-nos a aguçar também a observação antropológica.

Foi assim que eu me deparei com situações as quais, sob um ponto de vista socioantropológico, despertaram minha atenção em minha primeira viagem de férias que realizei à Europa no final do ano de 2019 e início de 2020. Eu passei exatos 22 dias em cidades de três países (Portugal, Itália e França), e as experiências de vida enriquecidas com o deslumbramento pelo berço da civilização ocidental, que povoa nosso imaginário infantil desde a escola por meio de uma crença colonizada pela existência dos países considerados do primeiro mundo (econômica e culturalmente falando), não foram o suficiente para neutralizar minha visão crítico-subjetiva, a qual, na verdade, conduziu-me a buscar parâmetros pautados em certa objetividade que transformaram minha viagem em uma reflexão sociológica (Weber, 2003). Eu posso assegurar, também, que minha sensibilidade e atenção redobrada pelas ruas de algumas cidades europeias tornaram-me um verdadeiro flâneur, um indivíduo capaz de descrever com certo estranhamento um ambiente urbano do qual faz parte, caminhando livremente pelas ruas e avenidas, exercício típico das etnografias urbanas[1], já que a cidade se trata de um grande laboratório para o flâneur (Oliveira, 2015).

Para tanto, fiz uso do meu aparelho celular para captar moradores de rua através de fotografias em meio às cidades de Milão e Paris, assim como observei a presença e comportamento dos imigrantes africanos em algumas situações com as quais me deparei em Paris e em Roma. Desse modo, aventuro-me em relatar, baseado em uma observação livre em diálogo com as imagens apreendidas, as nuances que perpassaram essa experiência sem, contudo, deixar de analisar o contexto entre segurança pública e pobreza, dado o meu campo de estudos na esfera da sociologia da violência e criminologia em diálogo com os problemas que envolvem a segurança pública. Nesse sentido, eu gostaria de destacar que não sistematizei uma pesquisa prévia, por isso deixo claro que minhas reflexões surgiram das observações quase que espontâneas ao longo da viagem, o que não me impediu de pensar os problemas que levanto com base em minha experiência como pesquisador na área na qual eu atuo. No final das contas acredito que meu relato se aproxima, colocadas algumas condições epistemológicas, de uma “etnografia de rua”, na qual incluí uma “câmera na mão” (Rocha; Eckert, 2003, p. 2).[2]

Portanto, minha narrativa fotoetnográfica é uma interação a partir das imagens que captei juntamente com minhas observações, pois “as ruas da cidade podem ser um laboratório prático para análise fotográfica de fenômenos sociais” (Collier Júnior, 1973, p. 49). Minha intenção foi criar um quadro coerente de percepção para o leitor, especialmente para nós, brasileiros, acostumados a querer importar modelos de segurança pública europeus e norte-americanos, como símbolo de eficiência para manter a organização social.[3] Pelo que descrevo, melhor seria atentarmos para percebermos que o sistema econômico dominante está em todos os lugares, de modo universal, construindo seus padrões de beleza como dita o “sonho da pureza” pós-moderno, assim como descrito por Bauman (1998). Ao mesmo tempo esse sistema produz seus refugos humanos ou consumidores falhos (Bauman, 1998, 2005), aqueles indivíduos que não passam de homo sacer, a figura estudada por Agamben (2010), que não é nem sacra, nem maldita e cujo homicídio é negligenciado por tratar-se de algo insacrificável, uma vida incluída por exclusão. Assim, passo a descrever algumas de minhas experiências em terras europeias.

 

Olhares de um turista atento: quando falam as imagens

 

Viajei para a Europa na madrugada do dia 25 de dezembro de 2019 partindo do aeroporto de Recife, no Brasil, com destino a Lisboa, em Portugal. Correspondendo às minhas expectativas, minha primeira impressão, ainda pela janela do avião, avistando do alto a cidade de onde partiram aqueles que mudariam a história da América do Sul séculos atrás aportando no Brasil, foi de deslumbre. O encantamento por eu estar pisando em solo europeu, sonho de uma criança que amava estudar história e geografia na escola, realizava-se ao contemplar o imenso aeroporto de Lisboa e passar a sentir o frio europeu no inverno, que nos obriga a agasalhar-nos, mas também nos embevece pelo uso do casaco que o clima frio requer. Mas não demorou a que minha argúcia sociológica passasse a funcionar quando comecei a perceber os problemas estruturais que Lisboa apresenta. Assim, em meio ao deslumbramento com os primeiros passeios, também me chegaram os olhares para as sujeiras das ruas, as dificuldades para os carros estacionarem, os imigrantes negros vindos da África vendendo informalmente mercadorias falsificadas nas ruas. Os encantos europeus passavam a dialogar com as observações sobre um país que ajudou a difundir a mercantilização do capitalismo no mundo ocidental a partir do século XV. Um país, que em muito, foi responsável pelo tráfico e escravização de negros africanos no Brasil e que, assim, apresentava-me que lá, com tantos turistas pelas ruas e nos monumentos históricos, o capitalismo também, como sempre, apresentava suas consequências.

Mas até então eu ainda estava tentando apreciar as imagens que me chegavam pelos locais que passei a visitar com os amigos que me acompanhavam. E, vez ou outra, o quadro era pintado quando eu percebia pessoas negras trabalhando sempre em profissões pouco privilegiadas, como nas limpezas dos mercados públicos ou como segurança nas lojas. Os quatro dias passados em Lisboa transformaram-se em uma nostalgia maior quando fui para Roma e, a partir daí, minha viagem passou a ser um misto de diversão e observação constante em relação às dificuldades estruturais de uma cidade esplendorosa com seu antigo conjunto arquitetônico e seus problemas de uma grande urbe.

O lixo pelas ruas era bem mais evidente do que em Lisboa, assim também como a maior quantidade de turistas de todo o mundo. Foi então que observei o quanto Roma é uma cidade policiada. Em muitos lugares da cidade, encontramos parados em locais específicos, como praças e esquinas, militares do Exército, assim como policiais, sempre empunhando metralhadoras em uma atitude expectante. O fardamento atrelado ao modo viril de se portar nos indica como o modelo do ser militar parece tratar-se de uma identidade social universal. A diferença marcante em relação aos militares no Brasil fica por conta do uso da barba, algo comum entre os militares italianos, mas sempre aparada e bem desenhada na silhueta do rosto. Detalhes como esse talvez indiquem o grau maior de militarismo entre os militares brasileiros pela cobrança ao asseio pessoal, ou talvez seja apenas uma característica diferenciadora. Outro fator que me despertou a atenção foi a constante passagem de ambulâncias e viaturas policiais pelas ruas com as sirenes ligadas com seu barulho característico. Nesse caso, não consegui identificar se as situações se tratavam de emergências a serem resolvidas ou se era um artifício para abrir caminho entre os carros no movimentado trânsito da cidade.

No caso de Roma, existiam muito mais imigrantes africanos negros, assim também como outros de origem árabe e talvez indianos, se a minha percepção não estiver errada. E foi em Roma que vi pela primeira vez como a questão da segurança pública na Europa tem seus dilemas, o que me levou a ratificar que tratar da segurança pública sem levar em consideração as questões sociais é correr para permanecer no mesmo lugar (Rolim, 2006). Durante o réveillon, resolvi acompanhar o rito de passagem do novo ano no Coliseu, juntamente com meus amigos, e em meio a milhares de turistas de todo o mundo. Após a tímida explosão de fogos de artifício, as pessoas se dispersaram e, devido à grande quantidade delas para as poucas ruas de dispersão, resolvemos escolher um local íngreme que demandava uma subida para uma rua localizada em uma parte superior de frente ao coliseu. Minha intenção era também encontrar um amigo brasileiro que se encontrava em Roma e estava exatamente na rua que era o ponto final da subida. Muitas pessoas se apinhavam desordenadamente na estreita ladeira e, só depois, percebi que o tumulto dizia respeito a um grupo de africanos que estava furtando e roubando os turistas que tentavam passar.

Acompanhei uma situação na qual cerca de seis africanos, negros, rodearam um turista asiático que gritava de forma ininteligível, pelo menos para mim, certamente porque estava sendo roubado. Uma africana se jogava sobre o turista dentro do círculo protegido pelos colegas africanos e retirava os pertences das pessoas. Avistei mulheres chorando por ter tido objetos furtados.[4] Pela leitura que fiz da situação, talvez tenham sido aparelhos celulares. Infelizmente, a grande quantidade de africanos no local acabava por nos fazer construir um olhar generalista como se todos fossem criminosos, mas alguns deles estavam vendendo bebida de maneira informal aos turistas.

Após anos de imperialismo e exploração das terras africanas, os europeus se deparam com um grave problema em relação aos imigrantes que deixam suas terras espoliadas do passado em busca de meios para sobreviver. Por ironia do destino, eles acabam buscando as terras daqueles que muito lhes tiraram, sofrendo preconceito e tendo de vender mercadorias baratas no mercado informal. É um quadro um pouco diferente da realidade brasileira, mas que em um ponto apresenta semelhanças com nosso país no tocante à segurança pública: as desigualdades sociais geradas pela engrenagem capitalista produzem as classes perigosas e um círculo difícil de romper.

Após um período de calmaria conhecendo cidades como Siena, Pisa, Assis e Florença, viajamos para Paris, onde passamos cinco dias. O comportamento comedido e discreto de boa parte dos parisienses (que talvez traduza, como sugere Simmel (2005), certa antipatia como modo de sobrevivência nas grandes cidades), aliado ao alto custo de vida da cidade, deixou-me impressões negativas que, ao mesmo tempo, contrastaram com a beleza arquitetônica da cidade luz. O esplendor da Torre Eiffel e do Palácio de Versalhes, das ruas famosas como a Champs-Élysées e o Arco do Triunfo, o Museu do Louvre e suas famosas obras, apesar das marcas que deixam em nossa memória, ainda assim, foi em Paris que meu olhar socioantropológico aguçou de forma mais peremptória. Sobre os imigrantes africanos, lá estavam eles novamente nas frias calçadas vendendo miniaturas da Torre Eiffel e gorros para o frio. Quando um carro da polícia se aproximava pelas ruas, eles ensaiavam uma fuga rápida, guardando os objetos de venda rapidamente e nos lembrando os artifícios usados pelos vendedores ambulantes na famosa Rua 25 de março, em São Paulo. A contradição fica à mostra em Paris, pois, enquanto os transportes públicos, em sua maioria, estavam paralisados por conta de uma greve, ao ponto de o motorista de ônibus não nos cobrar a passagem em solidariedade às pessoas e como forma de protesto, a capital francesa exibe seu outro lado, aquele que não cabe nenhum glamour e contradiz os protestos sociais e a solidariedade das pessoas.

 

 

Figura 1 – Morador de rua em uma calçada em Paris

Fonte: arquivo do autor (2020).

 

 

Como nos ensina Bauman (1998), o sonho da pureza para os países considerados ricos da Europa é baseado em um ideal que se traduz pela limpeza e organização dos espaços. Só que, nesses espaços, projetados para ávidos consumidores de mercadorias e de si mesmos, é preciso descartar o supérfluo e excedente, para que não se transformem em sujeira e contaminem pessoas e ambientes. Nesse caso, não importa se o lixo a ser descartado sejam outros seres humanos que estejam impedindo a sociedade civilizada de manter-se higienicamente ordenada. Por outro lado, como pude constatar, existem espaços que transmitem perfeitamente o ideal de pureza pós-moderno e que bem dialogam com a noção de segurança pública que venho abordando. Essa minha percepção ocorreu quando fui assistir a um jogo de futebol em Paris, no estádio Parc des Princes. A partida de futebol, com estrelas do futebol mundial, incluindo brasileiros que defendem o time da cidade, transcorreu na mais completa organização (apesar de, ao final, termos sofrido para conseguirmos voltar para onde estávamos hospedados devido à paralisação do metrô e de boa parte dos transportes públicos). Ainda assim, a beleza do estádio e de seu impecável gramado, dos assentos padronizados, da recepção e da indicação do local onde deveríamos sentar pelos funcionários denotam como o capitalismo funciona bem quando é colocado em destaque. Os seguranças, todos privados, estavam, em sua maioria, sentados de frente às arquibancadas, na parte de baixo na mesma altura do gramado. A única viatura policial que visualizei estava a alguns metros de distância do estádio com os policiais em seu interior, o que mostra uma discreta participação na segurança do evento.

Em comparação com o caso brasileiro, o policiamento no interior e fora dos estádios é realizado pelas polícias militares em jogos privados. Os policiais militares das tropas de choque, consideradas mais ostensivas no uso da força, fazem a proteção do gramado e dos árbitros. Os demais policiais espalham-se em meio à torcida e também ficam sempre de pé na parte de baixo, na altura do gramado, vigiando para evitar a invasão por torcedores. Na parte externa do estádio, policiais ficam dispostos a pé, em viaturas, sobre cavalos e motocicletas, o que nos revela a ideia de que parece existir uma indistinção entre a coisa pública e o mundo privado (Holanda, 1995) dos clubes futebolísticos por meio de uma estrutura relacional (DaMatta, 1985).  Certamente não estou colocando as situações de França e Brasil como melhores ou piores no tocante à organização de um evento futebolístico e sua relação com a segurança pública, mas estou enfatizando que o capital privado do futebol mescla-se menos com as forças estatais de manutenção da ordem no caso francês, ao mesmo tempo em que fortalece meu argumento de que em um país no qual a economia mostra sua força, por outro lado, a pobreza encontrada nas ruas demonstra que o sonho do primeiro mundo também depende dos espaços nos quais o capital pode impor sua lógica. No Brasil, os eventos esportivos e a aproximação entre o público e o privado só deixam claro que as questões relativas à segurança pública e seus problemas são bem mais difíceis de serem percebidos e, quem sabe, resolvidos.

 

 

Figura 2 – Jogo de futebol em Paris

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Fonte: arquivos do autor (2020).

 

 

Fui embora de Paris após visitar o Castelo de Versalhes, por muito tempo, local de residência dos reis e nobres franceses, símbolo de opulência, luxo e riqueza. Nessa visita, pude entender melhor sobre o processo civilizador descrito por Elias (1993, 1994) acerca de como o homem europeu, desde a Idade Média, passou a internalizar a violência por meio da exteriorização de hábitos corteses e cavalheirescos, fazendo da etiqueta um mecanismo social de regulação das condutas e modos de ser. Em meio ao esplendor do castelo, podemos fazer uma digressão e conjecturar sobre como toda a riqueza dos reis franceses teve como contraponto a exploração de suas colônias, fazendo com que se torne mais claro que os “museus são testemunhos da dominação mais que de uma apropriação justa do espaço territorial e do tempo histórico. As marcas que o celebram fazem lembrar a frase de Benjamin que diz que todo documento de cultura é sempre, de algum modo, um documento de barbárie” (Canclini, 2013, p. 191).

A visita a Versalhes também me consolidou a visão de como os problemas de segurança pública que nos assola na América Latina têm suas raízes em processos históricos de longa duração como proposto por Elias (1993). A grandiosidade e brilho de Versalhes, com os detalhes arquitetônicos, provavelmente esculpidos em ouro, revelam também que o saque das colônias durante o jugo imperialista europeu deixou marcas que se revelam em problemas como as desigualdades sociais em países como o Brasil, já que quando eu estava em Lisboa, visitei o Palácio de Queluz, sede da monarquia portuguesa durante o período colonial brasileiro e monumento conhecido como “Versalhes português”. O que estou querendo dizer é que a espoliação histórica portuguesa em relação ao nosso país adquiriu outras dimensões que estão atualmente presentes na dependência econômica no mercado mundial, a qual gera como consequência, graves questões sociais.

Por fim, no final da viagem, fui de Paris à Milão passar os dois últimos dias da excursão antes de embarcar para Roma e pegar o voo de volta para casa. Milão, a capital mundial da moda, impressiona com sua linda catedral na Piazza del Duomo. Além disso, também visitei, vizinha à catedral, a Galeria Vittorio Emanuele II, uma das mais famosas do mundo por conta das lojas que exibem muitas das grifes também mais famosas do mundo, como a Gucci, Prada e Versace. Um fato curioso é que na luxuosa galeria avistei dois policiais vestidos com uma roupa elegante e diferenciada, de sobretudo e espada. Eles faziam a segurança do local e completavam a imagem de opulência da galeria. Isso nos mostra como a segurança pública dialoga com o sistema econômico, moldando-se, digamos, ao cânon do capital, já que imagem, segurança e proteção de mercadorias luxuosas devem falar a mesma linguagem por meio de uma mercantilização completa da vida cotidiana de uma grande cidade (Simmel, 2005). 

No entanto, foi em Milão onde vi o maior número de moradores de rua. Os imigrantes africanos, como sempre, estavam lá vendendo mercadorias falsificadas na praça. Foi também em Milão que me aconteceu uma situação inusitada quando resolvi fotografar uma moradora de rua. Ao perceber meu ato, ela levantou-se com muita raiva e veio ao meu encontro, enfurecida, querendo derrubar meu celular e me xingando, do que eu lembro apenas a expressão em espanhol hijo de la puta, e ela perguntava por que eu a estava fotografando. Em meio ao embaraço e à vergonha eu apenas respondi: “por nada!”. Saí andando apressadamente, e meus amigos se interpuseram entre minha fuga e ela. Essa situação obviamente que demonstra a relação de poder (Foucault, 1987) entre mim e meus fotografados, visto que, naquele momento, para mim, a moradora de rua era objeto de minhas especulações antropológicas, mas, talvez para ela, sua dignidade, já tão pisoteada, não permitisse que ela fosse fotografada como um monumento de atração turística.[5]

Um ponto a se destacar é que, desde os primeiros dias de janeiro, após o réveillon, os três países por onde passei estavam em liquidação total. Nas cidades italianas, incluindo Milão, boa parte das lojas estava sempre cheia. As pessoas passeavam pelas ruas com muitas bolsas de compras obtidas com a liquidação — saldi. Mas, pelos cantos das calçadas, apartados do luxo, objetos humanos compunham os espaços e eram, naturalmente, negligenciados pelos consumidores ansiosos por suas conquistas. De frente à loja da Gucci, pessoas faziam fila para entrar e outras chegavam em carros luxuosos. Como sempre, policiais por toda parte vigiavam as lojas. Traduzindo Marx, ao falarmos sobre o fetichismo da mercadoria, elas, as mercadorias, é que devem ser guardadas, protegidas, porque adquirem formas humanas enquanto nós, os humanos passamos a parecer cada vez mais com elas.

 

 

Figura 3 – Galeria Vittorio Emanuele II em Milão

Fonte: arquivos do autor (2020).

 

 

Figura 4 – Morador de rua em Roma

Fonte: arquivos do autor (2020).

 

 

Figura 5 – Morador de rua em Milão

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Fonte: arquivos do autor (2020).

 

 

Figura 6 – Moradora de rua em Milão

Fonte: arquivos do autor (2020).

 

 

Figura 7 – Exposição de mercadoria em loja de Milão

Fonte: arquivos do autor (2020).

 

 

Ao final, quando eu partira no trem indo de Milão a Roma, eu estava sentado ao lado de um dos meus amigos de viagem, que é negro e usa cabelo black power. Dois policiais passaram em nosso vagão, que tinha várias pessoas. Ao retornarem do vagão vizinho, coincidentemente pararam apenas de frente aos nossos assentos. Reportaram-se a mim e pediram minha identidade. Verificaram alguma informação em uma espécie de equipamento do tamanho de um celular. Depois agradeceram e desejaram boa viagem, mas não interpelaram mais ninguém. Para mim, restou a curiosidade de saber por que apenas eu fui abordado e tive o documento solicitado. Talvez seja porque em um mundo como aquele, idealizado por nós latino-americanos como modelo de segurança pública a ser copiado, eles vejam em nós os suspeitos em potencial do que eles consideram suas classes perigosas.

 

Considerações finais

 

Certamente torna-se difícil para qualquer pesquisador(a) no campo das ciências sociais dissociar-se do seu habitus de pesquisa, não importa onde esteja, pois parece que a imaginação sociológica não tira férias, ao contrário das pessoas que buscam descanso e lazer. Foi por esse mote que surgiu a descrição socioantropológica aqui realizada, quando fiz de minha viagem à Europa também um momento de reflexão sobre alguns pontos que despertaram minha atenção envolvendo pobreza e segurança pública.

Tendo como destaque a fotoetnografia, fiz com que as imagens, que não precisam de legenda ou explicações quando do uso dessa metodologia, dialogassem com a narrativa como um todo, criando não um mosaico de informações, mas um quadro coerente que envolve problemas comuns para países europeus, acostumados com o rótulo de que pertencem ao lado rico do capitalismo, e o Brasil, berço da exploração colonialista de outrora.

Por fim, a experiência de viagem descrita sob o olhar objetivo de algumas reflexões amadurecidas pelo campo, no qual já pesquiso faz algum tempo, revelou-me importantes insights acerca de nossa própria postura diante de problemas como a pobreza e como isso pode se relacionar com a segurança pública. Em um mundo no qual mercadorias se humanizam e humanos são mercantilizados ou se tornam lixo humano descartados pelas calçadas, é mais que necessário termos um olhar e, acima de tudo, certa sensibilidade que faz da ciência não apenas um exercício racional, mas também um ato de empatia diante das consequências de um sistema econômico que não encontra dificuldades em manter-se sem fronteiras.

 

Referências

AGAMBEN, Giorgio. Homo sacer: o poder soberano e a vida nua I. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2010.

BAUMAN, Zygmunt. Vidas desperdiçadas. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2005.

BAUMAN, Zygmunt. O mal-estar da pós-modernidade. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1998.

BELLI, Benoni. Tolerância zero e democracia no Brasil. São Paulo: Perspectiva, 2004.

CANCLINI, Néstor García. Culturas híbridas. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo: 2013.

COLLIER JR., John. Antropologia visual: a fotografia como método de pesquisa. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 1973.

DAMATTA, Roberto. A casa e a rua. São Paulo: Editora Brasiliense, 1985.

ELIAS, Norbert. O processo civilizador: uma história dos costumes. 2. ed. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1994. v. 1.

ELIAS, Norbert. O processo civilizador: formação do Estado e civilização. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1993. v. 2.

FOUCAULT, Michel. Vigiar e punir: história das violências nas prisões. Rio de Janeiro: Vozes, 1987.

HOLANDA, Sérgio Buarque de. Raízes do Brasil. São Paulo: Companhia das Letras, 1995.

OLIVEIRA, Beatriz Salgado Cardoso de. Olhar a cidade: o flâneur e o etnógrafo urbano. In: VII SEMANA DE ANTROPOLOGIA DESAFIOS DA ALTERIDADE, 7., 2015, Curitiba. Anais [...]. Curitiba, 2015. Disponível em: https://encurtador.com.br/tELOU. Acesso em: 31 jan. 2020.

OLIVEIRA, Beatriz Salgado Cardoso de. Linhagens benjaminianas do pensamento etnográfico. BIB, São Paulo, n. 81, p. 42-65, 2017. Disponível em: https://bibanpocs.emnuvens.
com.br/revista/article/view/414. Acesso em: 01 fev. 2020.

ROCHA, Ana Luiza Carvalho da; ECKERT, Cornelia. Etnografia de rua: estudo de antropologia urbana. Iluminuras, Porto Alegre, v. 4, n. 7, p. 1-22, 2003. Disponível em: https://seer.ufrgs.br/iluminuras/article/view/9160. Acesso em: 01 fev. 2020.

ROLIM, Marcos. A síndrome da rainha vermelha: policiamento e segurança pública no século XXI. Rio de Janeiro: Zahar; Oxford, Inglaterra: University of Oxford, Centre for Brazilian Studies, 2006.

SIMMEL, Georg. As grandes cidades e a vida do espírito. Mana, Rio de Janeiro, v. 11, n. 2, p. 577-591, 2005. Disponível em: http://www.scielo.br/pdf/mana/v11n2/27459.pdf. Acesso em: 01 fev. 2020.

WEBER, Max. Ensaios sobre a teoria das ciências sociais. São Paulo: Centauro, 2003.

 

 

Recebido em: 03/12/23.

Aceito em: 26/04/24.

 

DOI: https://doi.org/10.46906/caos.n32.68748.p211-226

 

 

 



* Doutor e mestre em sociologia pela Universidade Federal da Paraíba, Brasil. Professor de sociologia e criminologia do Programa de Pós-Graduação do Centro de Educação da Polícia Militar da Paraíba. E-mail: ffsociologia@gmail.com.

[1] Segundo Oliveira (2017), o flâneur é um personagem baudelairiano que foi utilizado por Walter Benjamin para descrever a atitude de um indivíduo que passa a enxergar a cidade com um olhar diferenciado, perdendo-se nela e passando as horas do dia de forma ociosa, caminhando por ruas e avenidas, mas sem deixar de aguçar os sentidos sobre as coisas, pessoas e lugares que estão ao seu redor. Foi com essa mesma atitude que ele escreveu sobre a Paris do século XIX. Nesse sentido, alguns autores têm debatido sobre as experiências urbanas do flâneur escritas por Benjamin utilizando-se da mesma perspectiva para construir experiências etnográficas em contextos urbanos. Ver Oliveira (2015, 2017); Rocha e Eckert (2003).

[2] Como ver-se-á adiante, as minhas descrições também abrangem a presença em um museu, um estádio de futebol e um trem, devido às considerações que faço sobre segurança pública, porém o foco central das experiências ocorreu nas ruas, o que pode ser visto pelas imagens que captei.

[3] Nesse sentido, ver a obra de Belli (2004) e suas reflexões acerca da implantação de programas de segurança pública no Brasil baseados no Tolerância Zero importado de Nova Iorque e as consequências para a garantia dos direitos humanos em nosso país.

[4] Juridicamente falando, pelo menos na legislação penal brasileira, roubo e furto são coisas distintas, o primeiro ocorre com violência à vítima e o segundo sem violência, até mesmo sem o conhecimento da vítima.

[5] Para mais detalhamentos das relações éticas em uma “etnografia de rua” ver Rocha e Eckert (2003).

 

 

 

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Desenho de um círculo

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