O MATERNAR E A MULTIPLICATIVA DO CORPO FEMININO: a centralidade matriarcal em “As alegrias da maternidade” de Buchi Emecheta

MOTHERING AND THE MULTIPLICATION OF THE FEMALE BODY: matriarcal centrality in “The Joys of Motherhood” by Buchi Emecheta

 

Cassirene Milena Silva Lima *

Nanashara Carneiro Oliveira Santos **

Rodrigo Ribeiro Santos ***

 

 

https://doi.org/10.46906/caos.n32.70163.p251-261    

 

 

EMECHETA, Buchi. As alegrias da maternidade. Porto Alegre: Dublinense, 2017.

 

Florence Onyebuchi Emecheta nasceu em 1944, em Lagos, na Nigéria, fazendo parte da etnia Igbo. Casou-se jovem, ainda na adolescência, com Sylvester Onwordi em 1960. Após o casamento, mudaram-se para Londres, onde tiveram cinco filhos. A vida marital durou pouco tempo e Bucchi, divorciada, enfrentou dificuldades para criar cinco crianças pequenas em um país estrangeiro. Diante das “alegrias de ser mãe”, ela se multiplicou em várias funções, conciliando trabalho, estudos e a maternidade. Por outro lado, isso possibilitou o avanço para sua bem-sucedida carreira de escritora, e um dos motivos do sucesso é o seu olhar sociológico para o feminino em enredos complexos. Bacharela em sociologia, mestra e doutora em educação (1974, 1976, 1991, respectivamente), seus romances-obras são um retrato significativo das imposições sociais que muitas mulheres em África vivem. As Áfricas possuem maneiras particulares de reger o papel de mãe e mulher, que ora estão imbricados com o ônus do divino e a tradição.

A obra analisada tem a proposta de repensar a maternidade em solo nigeriano, mais especificamente na cultura Igbo, uma das etnias mais numerosas localizadas no ocidente africano, em países como Guiné, Camarões e Nigéria. Nesta cultura, a maternidade é vista como objetivo central na vida de uma mulher. Os homens são projetados para sustentar e serem os provedores dos seus lares. Historicamente, são um povo guerreiro. A educação feminina é depreciada em relação à educação dos homens. Buchi vivenciou essa realidade e lutou para mostrar os estudos eram importantes para ela. A autora traz em sua escrita ficcional elementos biográficos, como os costumes de sua origem Igbo e o retrato colonial nigeriano. Isso proporciona aos leitores vivenciarem com profundidade os enredos complexos das personagens, como ocorre com a protagonista Nnu Ego, uma jovem mulher criada dentro da tradição.

Ao longo de dezoito capítulos, ela percorre uma jornada complexa, carregada de diversos sentimentos ambíguos e vários desafios até concretizar o sonho da maternidade. A narrativa da personagem central é indissociável do ato de maternar. Ela lutou muito para viver essa experiência, enfrentando a dor da perda com o aborto. No entanto, quando finalmente conseguiu, cuidou com todo zelo e amor. Ser mãe era uma dádiva alcançada e celebrada por Nnu Ego, mas isso não diminuiu as angústias vivenciadas em sua trajetória, marcada pelo contexto cultural e colonial. Como primeira esposa em um casamento  poligâmico, Nnu Ego tinha a responsabilidade de administrar o lar e a segunda esposa. Além disso, seu marido, Nnaife, era um homem da capital, o que a expôs a um perfil masculino diferente do que ela estava acostumada em Ibuza. Quando seu marido foi para a guerra, ela precisou se reinventar para sustentar seus oito filhos. Essas responsabilidades, atreladas ao seu maternar, dividiram-na entre as alegrias e tristezas. No entanto, não houve espaço arrependimento em sua melhor e mais desafiadora jornada: ser mãe.

A autora lança luz sobre os estereótipos impostos às mulheres e à maternidade, em que não corresponder a estas expectativas gerava angústia e desprestígio social. No entanto, de maneira instigante, ela pondera sobre a identidade desses corpos femininos, colocando-os em evidência por meio dos sentimentos, circunstâncias e desafios vivenciados pelas personagens.

As trajetórias têm enredos, como a migração do interior para capital, o contraste com outra cultura, novos costumes e valores, o aprendizado através do luto, o encontro com o mundo ocidental colonizador. Além disso, ser filha, primeira esposa, mãe e empreendedora traz desafios e experiências marcantes. Essas vivências incluem momentos de fartura e escassez, amor e desamor, e mesmo cercada por pessoas, a solidão permanece como fiel companheira. Esses são elementos que entrelaçam as diversas narrativas existentes nessa obra considerada clássica. Emecheta, de forma audaciosa, suscita indagações que desmistificam a visão romantizada de aceitação sobre o papel da mulher africana, buscando  compreensão e aceitação por todas no contexto de Igbo, construindo, assim, um cenário que evidencia a complexidade para seguir a tradição com êxito.

 

O amor materno foi por tanto tempo concebido em termos de instinto que acreditamos facilmente que tal comportamento seja parte da natureza da mulher, seja qual for o tempo ou o meio que a cercam. Aos nossos olhos, toda mulher, ao se tornar mãe, encontra em si mesma todas as respostas à sua nova condição (Badinter, 1985, p. 19).

 

Nesse recorte do território africano expressado no livro, a figura da mãe é sagrada, é uma dádiva. Este tema foi explorado por vários autores e autoras, como Flora Nwapa, que teve um papel fundamental para acender a escrita feminina em África. Ela é considerada a mãe da literatura africana, pois foi a primeira autora publicada na Nigéria. O seu primeiro livro, Efuru, publicado em 1966, ganhou destaque internacional. Nele, a autora evidencia a cosmogonia do povo Igbo, falando sobre casamento e maternidade, trazendo destaque para a espiritualidade, mostrando como ela rege a vida da mulher que busca ser bem-sucedida.

Flora Nwapa (1966) compõe a personagem Efuru de maneira muito semelhante à Nnu Ego, protagonista do romance de Buchi Emecheta. Ambas representam a história de uma mulher Igbo no momento da colonização, cuja escrita deu-se em meio ao contexto histórico da pós-independência da Nigéria, assim dizendo, na segunda metade do século XX. Verificando as duas narrativas, as personagens e autoras, mulheres na sociedade Igbo são evidências e realidades das Áfricas. As narrações produzidas não se limitam apenas à narrativa; versam também sobre cronologia, modo e argumento de construção dos enredos, instituindo uma interlocução direta das obras com os cosmos que as rodeiam. Tanto em Efuru quanto em As alegrias da maternidade, as vivências e enredos foram atravessados pelo colonialismo.  

Entretanto, após o período colonial, essa visão começa a ser questionada e revisada sobre outros prismas que refletem as novas dinâmicas sobre o que significa ser mulher. Isso ocorre mediante as transformações sociais mundiais que impactaram o continente africano, como o colonialismo. Dessa nova perspectiva, Buchi é uma expoente.

Na obra que está sendo resenhada, de forma comovente, conhecemos a vida de Nnu Ego desde seu nascimento até sua morte. Nessa cronologia temporal e reflexiva, o romance pondera o que seria o maternar na visão dessa forte e emblemática africana. Ponderações que podem ser traduzidas nas seguintes perguntas: As alegrias encontradas no percurso de ser mãe advêm da expressão padecer no paraíso? O sonho da maternidade é naturalmente feminino ou construído socialmente? Se a mulher nasceu com o instinto maternal, quem não é mãe nunca será uma mulher completa? Ela é fracassada, e isso invalida sua existência? E o amor é, de fato, o mais forte sentimento norteador nessa trajetória? Ser mãe representa vitória, fracasso, alegria e tristeza para quem? Esses múltiplos sentimentos, contraditórios ou não, serão apresentados em uma perspectiva nada convencional ou simplória sobre a visão desta personagem central sobre a maternidade.

 

Nnu Ego e Ona: corpos femininos em evidência

 

Os questionamentos acima suscitados carregam em si a temática da maternidade. As personagens Nnu Ego e Ona, na composição deste romance, revelam e/ou descortinam os sofismas que as alegrias da maternidade anunciam a partir do momento em que uma mulher passa a ser mãe e como ecoam para a sociedade. A obra de Buchi Emecheta, As alegrias da maternidade, apesar de o título ter uma conotação feliz, de gozo e de contentamento, apresenta um conjunto de propostas sociológicas. A exemplo, a literalidade das tensões narrativas de mulheres africanas, nigerianas, com discussões cuja tônica são perquisições que vão desde relações historiográficas da Nigéria (Igbo), colonialidade, subjetividade e gênero. Emecheta realça de forma satírica as dicotomias vivenciadas por suas personagens.

A jovem Igbo, Nnu Ego, cresceu em Ibuza, filha de Ona e Agbadi. Os seus pais tinham características tão distintas; todavia, esses traços que os separavam também os uniam. Sua mãe era uma mulher arrogante e insensível, com uma personalidade complexa diante dos olhos tradicionais da sociedade Igbo; assim era Ona. Seu pai, o destemido, belo e viril, possuía uma liderança primorosa, sobretudo nas articulações de não ceder às modernidades advindas com a colonização; esse era Agbadi.

Os capítulos são icônicos em suas descrições, como o capítulo primeiro que se inicia descrevendo o quase autocídio de Nnu Ego. Evento que foi provocado pela morte de seu primogênito. Essa perda a deixou em transe, correndo pelas ruas movimentadas e caóticas de Lagos. Felizmente, alguns conhecidos que por ali estavam, impediram-na. Nos capítulos seguintes, capta-se um desapontamento de Nnu Ego acerca da maternidade e suas utopias. De maneira especial, em consequência do rompimento de ritos tradicionais igbo, destaca-se o comportamento moderno de seu segundo marido no trato com os filhos e as outras esposas, no qual é permitido que a mulher fique com o papel funcional de provedora. Tudo isso adicionado à convulsão constante da colonização. Fica evidente que a escritora Buchi Emecheta reflete sobre os corpos femininos em seu romance, concebendo a relevância da mulher nigeriana para sociedade Igbo, em frentes verticais e horizontais concomitante ao domínio britânico (os colonizadores).

Derivando dos pareceres e observações enunciadas por Ifi Amadiume acerca das cosmopercepções de seio familiar, corporeidade e da mulher em condição de mulher e mãe, constata-se o sistema da matrifocalidade e as correlações com a etnia Igbo. A matrifocalidade é abrangida como gênese estruturadora societal, estando também envolta nas demandas basilares intrínsecas. É imprescindível salientar que o prelúdio do matriarcado não se vincula a demandas de condições financeiras, isto é, se o homem ou mulher possuem ou não status econômico e social. Logo, o cenário do matriarcado é revestido de uma distribuição matricêntrica, cujo papel na sociedade se encontra na mulher como perspectiva de integração principal e mais proeminente (Amadiume, 2005).

Cotejar e ressaltar a filosofia de vida Igbo e de muitos territórios africanos, no prisma da maternidade, emite mais que entusiasmo para a fecundação e multiplicação social. Sem embargo, evoca a sociabilização de crenças, regras e moral.  Assim, a maternidade está relacionada a outras construções fundamentais que se entrelaçam com a ancestralidade, pressupondo uma epistemologia e cosmovisão que transcende o superficial. Em Theorizing matriarchy in Africa: kinship ideologies and systems in Africa and Europe, Amadiume (2005) indica que o matriarcado, de maneira nenhuma, deve ser idealizado como uma classificação globalizante. todavia, ele é alicerçador e aglutina outras possibilidades, a exemplo códigos de consanguinidades favoráveis da cultura que enfoca, ou seja, a etnia Igbo.

A obra A unidade cultural da África negra: esferas do patriarcado e do matriarcado na antiguidade clássica, de Cheik Anta Diop (2014), discorre, sobretudo, sobre as disparidades e multíplices histórias que se apresentam nas Áfricas. Tem como sustentáculo a disposição matriarcal, exibida como uma paridade no meio das sociedades africanas e suas agregações corporativas.

Questionamentos sobre a exemplaridade das mães e da maternidade têm seu impacto sobre o que é esperado da mulher no que tange à dedicação e ao reconhecimento, haja vista que o corpo de uma mulher, na sua plenitude materna, é enxergado, na cultura patriarcal, como uma figura devotada ao seu bebê indefeso. A narrativa do livro de Emecheta desencadeia interrogações que vão além da maternidade, mostrando que o corpo feminino se encontra atravessado por várias condições que são contrapostas a ela.

Se existe uma resposta para tais questões, vamos considerar o intenso terreno da história pessoal da autora, pois não há como negar o quanto foi excruciante e radiante a maternidade para ela. Apesar de ser uma obra ficcional, ela diz muito sobre realidades de muitos corpos. Emecheta movimenta sua própria autobiografia, trazendo à tona seu corpo, seu gênero, sua etnia, difundindo os ônus e os bônus de ser mãe. Dentre muitas possibilidades interpretativas, sopesa-se que a interseccionalidade dos corpos de Nnu Ego e Buchi Emecheta habitaram espaços de conflito e de silenciamento. Ambas não desistiram dos filhos e resistiram, inclusive, à morte.

 

Nnu Ego: da maternidade à morte

 

A maternidade vivenciada pela personagem Nnu Ego impõe inúmeras condições de sofrimento, sejam dores, perdas e decepções, culminando, de certa forma, em sua própria morte sob condição de solidão e abandono. A obra vem com o título bastante pitoresco e mórbido, pois Emecheta vivenciou situações semelhantes às da sua personagem principal.

A autora e a sua personagem têm em comum estes territórios: Ibuza e Lagos. Ambas vivenciaram momentos difíceis em suas vidas nesses lugares. No entanto, mantiveram-se firmes e decididas a melhorar suas condições de vida. Fica evidente que esses corpos estão conectados. A multiplicativa do corpo feminino na vida da autora e da personagem é apresentada sob a condição de ter que abarcar todos os momentos da vida de uma mulher: ser filha, mãe, provedora da casa e mantenedora do lar. Isso ocorre de maneira intensa e ainda enfrentando os problemas de um cenário patriarcal e de invisibilização, que subjugam a mulher a uma condição inferior à do homem.

A socióloga Oyèrónké Oyěwùmí, em A invenção das mulheres: construindo um sentido africano para os discursos ocidentais de gênero, diz que a

 

[...] noção de sociedade que emerge dessa concepção é a de que a sociedade é constituída por corpos e como corpos – corpos masculinos, corpos femininos, corpos judaicos, corpos arianos, corpos negros, corpos brancos, corpos ricos, corpos pobres. Uso a palavra “corpo” de duas maneiras: primeiro, como uma metonímia para a biologia e, segundo, para chamar a atenção para a fisicalidade pura que parece estar presente na cultura ocidental. Refiro-me tanto ao corpo físico como às metáforas do corpo. Ao corpo é dada uma lógica própria. Acredita-se que, ao olhar para ele, podem-se inferir as crenças e a posição social de uma pessoa ou a falta delas. (OYĚWÙMÍ, 2021, p. 36)

 

Retomando a trama, a vida de Nnu Ego já tinha um destino traçado. Havia uma escrava que servia à esposa mais velha de seu pai Agbadi. Por ocasião da morte da referida esposa, a tal escrava suplicou para não morrer, contradizendo um ritual cultural de sacrifício no qual a escrava devia ir junto com a sua senhora para o túmulo. Contrariada, a escrava prometeu encarnar e interferir no curso da vida de Nnu Ego. Por esse motivo, seu pai sempre cuidou de acalmar a ira da escrava que morreu a contragosto.

Em seu primeiro casamento, Nnu Ego não foi feliz. Passados os primeiros meses, não engravidava. Assim, sofreu com a rejeição do marido e passou a ocupar o lugar de segunda esposa, sem ter filhos para cuidar. Envergonhada e rejeitada pela condição de infértil — condição que se aproxima do estigma da doença e da maldição —, ela assumiu uma condição social de solidão e rejeição.

Nnu Ego retorna à casa de seu pai. Ele, para reverter a situação constrangedora, decidiu mais uma vez entregá-la em casamento, pois, assim, amenizaria tanto a imagem do nome de sua comunidade local quanto as consequências psicológicas que ela enfrentou quando era esposa de Amatokwu. Nnu Ego continuava decidida em ser esposa e mãe, diferente de sua mãe Ona:  “Uma expressão levemente pesarosa aflorou no rosto de Nnu Ego por um segundo, mas a moça se consolou dizendo em tom despreocupado: quem sabe na próxima vez que eu vier a Ibuza trago uma fileirinha de filhos!” (Emechetta, 2018, p. 49).

Seu pai, Agbadi, prometeu-a em casamento a Nnaife Owulum, também de Ibuza. Ele foi muito cedo para trabalhar e morar na cidade de Lagos. A chegada da prometida esposa para Nnaife Owulum estava mais que esperada. Porém, para Nnu Ego, foi um desapontamento, pois não era o que ela esperava.

 

Fez força para não derramar lágrimas de frustração. Estava habituada a lavradores altos, rijos, de mãos ásperas, escurecidas pelo trabalho no campo, pernas compridas e esguias e pele muito escura. Aquele homem era baixo, a carne da parte de cima de seus braços balançava enquanto ele se movimentava jubilante entre os amigos. E aquela barriga saliente!? Por que ele não a escondia? Nnu Ego o desprezou naquela primeira noite. (Emechetta, 2018, p. 56)

 

Ela não aceita Nnaife no primeiro momento como seu marido. Nnu Ego o vê apenas como um serviçal do homem branco por causa do seu ofício de lavador de roupas em Lagos. Para não desapontar o seu pai e ainda com desejo de se tornar mãe, Nnu Ego busca se adaptar à nova vida na cidade, mas em pouquíssimo tempo percebe o imenso contraste entre Ibuza e Lagos.

Mesmo insatisfeita com seu marido Nnaife, ela conseguiu ser mãe. O sentimento que Nnu Ego tanto desejava realizava-se finalmente. De Ibuza até Lagos, esse foi o percurso da jovem que tanto sonhava e alcançou o objetivo de ser mãe, a tal ponto de se submeter a viver em outra cidade com aspectos muito diferentes de sua comunidade local. Esse percurso inicial, que apresenta essa sequência de sofrimentos, aponta para uma multiplicidade mais real de como o corpo da mulher é suscetível e sujeitado pela cultura local, por crenças e costumes impostos às mulheres na comunidade local em Ibuza. Ao chegar à cidade de Lagos — onde a personagem irá vivenciar ebulições de sentimentos e questionamentos acerca da sua condição de esposa, mãe e mulher numa realidade bastante conflituosa no aspecto social, político e econômico — ela notou que seu marido ganhava pouco. Foi então que decidiu montar uma pequena venda de cigarros na rua para sustento dos filhos e da casa.  

Nnu Ego chegou à conclusão de que os maridos e as esposas naquela cidade não tinham tempo para o amor. Apenas trabalhavam de sol a sol para garantir sua sobrevivência, fazendo o que fosse necessário para conseguir algum dinheiro.

 

Em Lagos, as esposas não tinham tempo. Precisavam trabalhar. Compravam os alimentos com o pouco dinheiro que os maridos lhes davam para a manutenção da casa, mas se fosse para comprar roupa ou qualquer tipo de implemento doméstico, às vezes até para pagar a escola das crianças, o ônus era das mulheres. (Emechetta, 2018, p. 69)

 

Um acontecimento que marcou também a vida dessa mãe foi o contexto da Segunda Guerra Mundial, que afetou Lagos. Homens foram alistados/convocados a favor dos ingleses, obrigando mais uma vez Nnu Ego a se desdobrar para sustentar os filhos. Em Lagos, ela passou por momentos degradantes, como a falta de dinheiro e comida, uma pobreza latente e o trabalho exaustivo para conseguir proventos para alimentar todos os seus filhos, numa condição de desespero e miséria. Nnu Ego, ao longo da vida, foi desfalecendo devido às condições de trabalho e ao cuidado com os filhos, e envelheceu precocemente. Chegando à velhice, uma das muitas decepções dela foi com os seus filhos, especialmente o investimento feito em alguns deles para que saíssem daquela situação de extrema miserabilidade.

A definição de mãe na África é divina, sendo um aspecto inerente à mulher. Mesmo com a era colonial modificando o sentido da maternidade em África e trazendo novos formatos, a maternidade continua sendo um elo com o sobrenatural, representando um corpo feminino múltiplo. Buchi Emecheta faz um delineamento cultural em sua narrativa, esclarecendo que as mulheres têm como destino ser mãe. Tão somente a maternidade vai legitimar o que é ser mulher, considerando que sua anatomia e fisiologia foram feitas para isso. Maternar é intrínseco.

O sentimento de ser cuidada na velhice estava cada vez mais longe, e a solidão e o abandono cada vez mais próximos. A personagem Nnu Ego protagoniza constantemente comportamentos que ratificam, desde a sua juventude, que ser mãe é tudo que mais deseja. Ou seja, a vida só terá seu real frescor e plenitude quando seu corpo gesta um bebê e seus braços embalam seu bem mais precioso, um filho (Emecheta, 2018).

Finalmente, Nnu Ego retornou para Ibuza, sua terra natal. Assim, ela decepcionava totalmente os filhos, criticada pelos membros da família e pelo marido, que achavam que ela não tinha sido uma boa mãe. Todo o fardo pesado que a maternidade lhe impôs, ainda mais em condições extremas de miséria e abandono, resultou na solidão: sem esposo, sem os amigos e muito menos sem os filhos. E assim, a mãe desfalece.

 

Depois de um desses passeios, certa noite, Nnu Ego se deitou à margem da estrada, convencida de que já havia chegado em casa. Morreu ali, discretamente, sem nenhum filho para segurar sua mão e nenhum amigo para conversar com ela. Nunca fizera muitos amigos, de tão ocupada que vivera acumulando as alegrias de ser mãe. (Emechetta, 2018, p. 298)

 

E por fim, ergueu-se um túmulo para que seus netos e as pessoas que quisessem pedir por fertilidade pudessem realizar os seus pedidos. Porém, muitas vezes, esse pedido não era concedido, e ela ficou sendo vista como uma mulher má, mas não o era. É um corpo em constante exercício, de uma mulher que deu tudo por seus filhos. Uma mulher resumida na fórmula: “Não sei ser outra coisa na vida, só sei ser mãe.” Uma boa mãe!

 

Considerações finais

 

A presente resenha traz em seu bojo reflexões sobre o maternar e as exigências condicionantes a essas mulheres no cenário ocidental do continente africano. A escritora Florence Onyebuchi Emecheta apresenta a África a partir de um lócus, a Nigéria, e contempla a etnia Igbo. Ela é um fio condutor real da narrativa encontrada em sua obra As alegrias da maternidade, de 1979. Buchi Emecheta, como ficou conhecida no espaço literário mundial, foi uma mulher que escrevia a partir de suas vivências, ou escrevivências, termo cunhado por Conceição Evaristo (2008). A aglutinação de escrever e viver fez desta romancista um espelho das muitas personas que uma mulher possui.

Emoldurar o continente africano sob a ótica singular e homogênea é uma composição perigosa e injusta. Nessa lógica de não uniformizar e enquadrar a(s) África(s), têm-se resultantes conflitantes de mulheres nigerianas que circulam entre a dualidade da tradição e modernidade, corpo feminino e maternidade, a centralidade imagética materna em África e os dissabores que a maternidade traz. As alegrias da maternidade é uma caricatura que oscila nas dicotomias rasas e profundas da escritora nigeriana Buchi Emecheta. Quando se imputa à mulher a função de mãe, sua permanência no espaço doméstico é sinônimo de abdicação em prol da prole.  Ser mãe constitui o ápice sobrenatural do elo com o divino (Akujobi, 2011, tradução nossa).

O legado social que a mulher nigeriana tem como mãe é comparado com aquela que gesta nações e povos. Tem sua relevância, pois é Mãe África, constituinte da Terra. Se não for mãe, mulher nigeriana não é vista como um pilar necessário à sociedade; ao contrário, é considerada seca e improdutiva. A mãe-mulher africana é literalmente a força espiritual, sobretudo “[...] sagrada nas tradições de todas as sociedades africanas. [...] a fertilidade da terra é tradicionalmente ligada aos poderes maternais das mulheres[...] (Amadiume, 1987, p. 191, tradução nossa). Dito isso, percebe-se que a busca por aceitação em conjunturas específicas, a sua etnia e conjunturas maiores da sociedade, torna claro que ser mãe não é apenas gerar filhos e ser feliz; é também carregar as adversidades, as desgraças e os aborrecimentos. A narrativa da matrifocalidade contorna e demuda o espectro no que se refere ao significado da maternidade em África (Nigéria).

 

Referências

 

AKUJOBI, R. Motherhood in african literature and culture. Comparative Literature and Culture, West Lafayette, v. 13, p. 1-7, abr. 2011. Disponível em: https://docs.lib.purdue.edu/clcweb/vol13/iss1/2/. Acesso em: 3 maio 2024.

AMADIUME, Ifi. Theorizing matriarchy in Africa: kinship ideologies and systems in Africa and Europe. In: OYÈWÚMI, Oyèrónké (ed.). African Gender Studies: A Reader. New York: Palgrave Macmillan, 2005. p. 83-98.

AMADIUME, Ifi. Male daughters, female husbands: gender and sex in an african society. London: Zed Press, 1987.

BADINTER, E. Um amor conquistado: o mito do amor materno. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1985.

DIOP, Cheikh Anta. A unidade cultural da África negra: esferas do patriarcado e do matriarcado na Antiguidade clássica. Luanda: Edições Mulemba; Ramada: Edições Pedago, 2014.

EMECHETA, Buchi. As alegrias da maternidade. Porto Alegre: Dublinense, 2018.

EVARISTO, C. Escrevivências da afro-brasilidade: história e memória. Releitura, Belo Horizonte, n. 23, 2008. Disponível em: http://nossaescrevivencia.blogspot.com/2012/08/escrevivencias-da-afrobrasilidade.html. Acesso em: 3 maio 2024.

NWAPA, Flora. Efuru. Londres: Heinemann, 1966.

OYĚWÙMÍ, Oyèrónkẹ. A invenção das mulheres: construindo um sentido africano para os discursos ocidentais de gênero. Rio de Janeiro: Bazar do Tempo, 2021.

 

Recebido em:  13/05/2024.

Aceito em:  01/06/2024.

 

https://doi.org/10.46906/caos.n32.70163.p251-261   

 

 



* Graduada em Letras pela Faculdade Santa Fé, Brasil. Graduanda em Licenciatura Interdisciplinar em Estudos Africanos e Afro-brasileiros (LIESAFRO), Universidade Federal do Maranhão, Brasil. E-mail: milenacassirene@gmail.com.

** Graduanda em Licenciatura Interdisciplinar em Estudos Africanos e Afro-brasileiros (LIESAFRO), Universidade Federal do Maranhão, Brasil. E-mail: nanashara.santos@discente.ufma.br.

*** Graduando em Licenciatura Interdisciplinar em Estudos Africanos e Afro-brasileiros (LIESAFRO), Universidade Federal do Maranhão, Brasil. E-mail: rodrigo171746@gmail.com.

 

 

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Desenho de um círculo

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