O AVESSO DA PELE: o pacto da branquitude e a censura como estratégia de silenciamento e manutenção de poder
DOI: https://doi.org/10.46906/caos.n33.70667.p70-89
Resumo
O presente estudo objetiva examinar as manifestações contemporâneas do pacto narcísico da branquitude no Brasil, com ênfase na censura ao livro O avesso da pele de Jeferson Tenório (2020), ocorrida em escolas de alguns estados brasileiros em 2024. A metodologia fundamenta-se em dois eixos: o conceito de pacto narcísico da branquitude, definido por Cida Bento (2022) e a análise do episódio de censura à obra de Tenório. Adicionalmente, foram realizadas análises de trechos do livro, relacionando-os com questões de estruturação e perpetuação do racismo no Brasil. A fundamentação teórica inclui contribuições de Jessé Souza (2017), Silvio Almeida (2019), Kabengele Munanga (2005) e Lélia Gonzalez (2020), proporcionando uma base para a compreensão das complexidades do racismo no contexto brasileiro. As discussões sobre o papel da literatura na educação antirracista foram embasadas por Bárbara Carine Pinheiro (2023), Chimamanda Ngozi Adichie (2019) e Conceição Evaristo (2009), ao destacar a importância de narrativas diversificadas e representativas na formação de uma consciência crítica e inclusiva. Este artigo pretende contribuir para a compreensão das dinâmicas raciais e sociais, promovendo um diálogo inclusivo e transformador atendendo ao apelo para a construção de novos pactos civilizatórios, conforme proposto por Bento (2022).
Palavras-chave: pacto narcísico da branquitude; censura literária; educação antirracista; Jeferson Tenório.
Abstract
This study aims to examine contemporary manifestations of the narcissistic pact of whiteness in Brazil, with an emphasis on the censorship of the book O avesso da pele by Jeferson Tenório (2020), which occurred in schools in some Brazilian states in 2024. The methodology is based on two axes: the concept of the narcissistic pact of whiteness, defined by Cida Bento (2022) and the analysis of the episode of censorship of Tenório's work. Additionally, analyses of excerpts from the book were carried out, relating them to issues of structuring and perpetuation of racism in Brazil. The theoretical foundation includes contributions from Jessé Souza (2017), Silvio Almeida (2019), Kabengele Munanga (2005) and Lélia Gonzalez (2020), providing a basis for understanding the complexities of racism in the Brazilian context. Discussions on the role of literature in anti-racist education were supported by Bárbara Carine Pinheiro (2020), Chimamanda Ngozi Adichie (2019) and Conceição Evaristo (2009), who highlighted the importance of diverse and representative narratives in the formation of a critical and inclusive consciousness. This article aims to contribute to the understanding of racial and social dynamics, promoting an inclusive and transformative dialogue in response to the call for the construction of new civilizing pacts, as proposed by Bento (2022).
Keywords: narcissistic pact of whiteness; literary censorship; anti-racist education; Jeferson Tenório.
1 Introdução
Até o fim você acreditou que os livros poderiam fazer algo pelas pessoas. No entanto, você entrou e saiu da vida, e ela continuou áspera.
(Jeferson Tenório, 2020, p. 13)
Refletir sobre as dinâmicas de poder na sociedade, especialmente no contexto das relações étnico-raciais, demanda uma análise sensível a uma questão de grande relevância, o pacto narcísico da branquitude. Esse fenômeno, intrinsecamente ligado às estruturas de poder dominantes, desempenha um papel crucial na perpetuação das desigualdades e na manutenção de hierarquias sociais. Cida Bento (2022) define o pacto da branquitude como uma “herança inscrita na subjetividade do coletivo, mas que não é reconhecida publicamente” (Bento, 2022, p. 19).
Segundo Bento (2022), o pacto narcísico da branquitude é um acordo tácito imposto às novas gerações com o compromisso de ampliar e transmitir o legado acumulado, beneficiando o grupo privilegiado e perpetuando a ideia de mérito. Esse pacto exclui outros grupos e oculta o intolerável, resultando em esquecimento e suprimindo lembranças dolorosas da escravidão. Discutir essa herança ajuda novas gerações a reconhecer suas realidades, marcadas por desigualdades sociais e raciais. A reflexão permite o debate e a resolução de questões históricas, promovendo novas narrativas e pactos civilizatórios (Bento, 2022).
Ao discutir o tema do pacto narcísico da branquitude e suas manifestações, é fundamental considerar casos que ilustram a persistência das estruturas de poder e a resistência à abordagem crítica das questões raciais. Um exemplo é a tentativa de censura ao livro O avesso da pele, do escritor Jeferson Tenório (2020). Este caso evidencia os mecanismos de silenciamento e negação que permeiam as discussões sobre raça e identidade no país.
A censura à obra reflete não apenas uma tentativa de reprimir vozes dissidentes, mas também de preservar uma narrativa hegemônica, controlando a produção de ideias, ocultando desigualdades e injustiças sociais e raciais na estrutura da sociedade brasileira. A manutenção de poder concentrada nas mãos da elite branca também pode se relacionar a essa dinâmica da produção de ideias dominantes, como afirma Jessé Souza:
Quem controla a produção das ideias dominantes controla o mundo. Por conta disso também, as ideias dominantes são sempre produto das elites dominantes. É necessário, para quem domina e quer continuar dominando, se apropriar da produção de ideias para interpretar e justificar tudo o que acontece no mundo de acordo com seus interesses. (Souza, 2017, p. 30)
Ao explorar o conceito do pacto narcísico da branquitude, é imperativo contextualizá-lo em eventos contemporâneos, que evidenciam os desafios enfrentados na promoção de uma discussão franca sobre as questões raciais, principalmente no que diz respeito à manutenção de poder da elite branca.
O objetivo deste artigo é analisar as manifestações do pacto narcísico da branquitude na sociedade brasileira através da tentativa de censura ao livro O avesso da pele (Tenório, 2020), ocorrido em escolas de alguns estados brasileiros. Essa censura exemplifica a perpetuação desse pacto e suas implicações para as discussões sobre raça, racismo, identidade e poder, colocando a censura como ferramenta político-ideológica utilizada pela elite branca para perpetuar seus privilégios e continuar se beneficiando deles.
A metodologia da pesquisa baseia-se em dois pilares: discutir o pacto narcísico da branquitude (Bento, 2022) e sua relação com a censura ao livro O avesso da pele; e analisar a literatura como ferramenta antirracista. Inclui na análise passagens do livro e referências a teóricos como Jessé Souza (2017), Silvio Almeida (2019), Kabengele Munanga (2005), Lélia Gonzalez (2020), entre outros.
Primeiro, analisamos a obra, abordando o racismo na sociedade e suas representações sobre a situação de homens e mulheres negras no país sob as reflexões de Osmundo Pinho (2014) e Lélia Gonzalez (2020). Kabengele Munanga (2005) e Jessé Souza (2017) enriquecem a análise, destacando o pacto narcísico da branquitude nas relações sociais, políticas e culturais. Em seguida, foram incorporadas discussões sobre o papel da literatura na educação antirracista embasadas por Bárbara Carine Pinheiro (2020), Chimamanda Ngozi Adichie (2019) e Conceição Evaristo (2009), ao destacar a importância de narrativas diversificadas e representativas na formação de uma consciência crítica.
A censura ao livro de Tenório revela o silenciamento de experiências raciais e a repressão histórica a materiais impressos no Brasil e América Latina. Como observado por Carneiro (2002), os regimes autoritários utilizam esse método para conter o progresso das ideias contrárias que ameaçam sua autoridade. A censura no Brasil, apesar de constante, não segue uma trajetória linear. A história do país é marcada pelo controle cultural em diferentes períodos e por meio de diversas formas de atuação (Carneiro, 2002).
Este estudo pretende contribuir para a compreensão das dinâmicas raciais e sociais, bem como para o fomento de um diálogo inclusivo e transformador sobre essas questões na contemporaneidade, respondendo ao chamado para a construção de um novo pacto civilizatório, proposto por Cida Bento (2022).
2 O Avesso da pele: uma narrativa sobre identidade e resistência
Jeferson Tenório é graduado em Letras pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul, mestre em Literaturas Luso-africanas pela mesma universidade e doutor em Teoria Literária pela PUC do Rio Grande do Sul. Pesquisa temas como colonialismo, pós-colonialismo, identidade e diáspora africana na pós-modernidade. Suas obras exploram identidade, raça, violência e desigualdades.
Destacou-se com contos em antologias e revistas literárias. Seu primeiro romance, O beijo na parede (2013), foi eleito livro do ano pela Associação Gaúcha de Escritores. O livro Estela sem Deus (2018) também marcou sua carreira. O avesso da pele (2020) aumentou sua visibilidade, abordando racismo e violência policial, recebendo prêmios como o Jabuti, em 2021. Em suas obras, o autor apresenta uma narrativa que provoca reflexões sobre a sociedade brasileira e suas complexidades. Além de sua carreira como escritor, Tenório atua como professor de literatura e realiza palestras e debates sobre literatura, cultura e questões sociais em universidades pelo Brasil.
No cerne do romance O avesso da pele, encontra-se uma narrativa que aborda de maneira profunda a condição humana diante das complexidades existentes nas relações étnico-raciais na sociedade brasileira. Nas primeiras linhas, Tenório faz uma reflexão sobre como o pai do protagonista — Pedro — acreditava no poder transformador dos livros: “Até o fim você acreditou que os livros poderiam fazer algo pelas pessoas. No entanto, você entrou e saiu da vida, e ela continuou áspera” (Tenorio, 2020, p. 13).
Através de personagens complexos, o autor oferece uma representação vívida da diversidade da experiência humana no Brasil, como é observado no diálogo entre Pedro e sua tia Luara sobre as experiências de homens e mulheres negras na sociedade.
Minha tia Luara pediu o cardápio e, enquanto esperávamos a comida, eu perguntei como ela suportava tudo aquilo. Tudo o quê?, ela perguntou. Tudo isso, de ser sempre julgada pela cor da pele. Minha tia me olhou com tristeza e disse que a gente se acostuma. A gente se acostuma com tudo. A gente se acostuma quando você caminha na rua e as pessoas recolhem as bolsas e mochilas, a gente se acostuma quando os próprios homens preferem as negras mais claras, a gente se acostuma a ser só. A gente se acostuma a chegar numa entrevista de emprego e fingir que não percebeu a cara desapontada do entrevistador. Mas não estou reclamando, porque com o passar dos anos eu aprendi a me defender bem. Aprendi a inventar estratégias de sobrevivência. Seu pai também teve de inventar estratégias. Mas isso não significa que sejamos sempre bem-sucedidos. Quero dizer que nós, às vezes, falhamos. E falhar, no nosso caso, pode resultar num erro fatal. Ainda assim, Pedro, ainda assim a gente segue. O que você tem que compreender é que os homens negros sofrem suas violências. E que as mulheres negras sofrem outras. Algumas são parecidas. Mas, veja, somos diferentes. Nem sempre as causas são iguais. (Tenório, 2020, p. 181)
Segundo Lélia Gonzalez (2020), as mulheres negras enfrentam dupla discriminação: racismo e machismo, que se entrelaçam criando uma experiência única de opressão. Essa interseccionalidade é distinta das vividas por mulheres brancas e homens negros. No estereótipo da mulher negra, o racismo cria e perpetua imagens prejudiciais, desumanizando e desvalorizando-as, reforçando a estrutura racista da sociedade. Gonzalez (2020) aborda como o racismo estereotipa a mulher negra:
Não é raro que uma dona de casa negra de classe média, quando atende a porta, seja surpreendida por um vendedor que insiste em falar com sua patroa. Ou, ainda mais comum, quando porteiros de prédios de classe média alta ou burguesa impeçam mulheres negras de usarem a entrada principal, insistindo para que usem a porta de serviço. Em ambos os exemplos, o estereótipo estabelece a relação: mulher negra = trabalhadora doméstica. O ditado “Branca para casar, mulata para fornicar e negra para trabalhar” é exatamente como a mulher negra é vista na sociedade brasileira: como um corpo que trabalha e é superexplorado economicamente, ela é a faxineira, arrumadeira e cozinheira, a “mula de carga” de seus empregadores brancos; como um corpo que fornece prazer e é superexplorado sexualmente, ela é a mulata do Carnaval cuja sensualidade recai na categoria do “erótico-exótico”. (Gonzalez, 2020, p. 170)
Esses estereótipos não apenas limitam as oportunidades das mulheres negras, mas também perpetuam uma visão distorcida de suas identidades e papéis sociais. Gonzalez, ao discutir a interseccionalidade entre racismo e machismo, ressalta como essas formas de opressão se entrelaçam de maneira única na vida das mulheres negras.
Em particular, o protagonista, Pedro, emerge como uma figura central, cuja jornada pessoal nos leva a uma reflexão sobre o que significa ser negro em uma sociedade marcada pela discriminação e pela desigualdade. Ao mesmo tempo, Tenório também nos presenteia com personagens que acrescentam complexidade e significado à narrativa, que assim como a tia Luara também contribuem para as reflexões sobre racismo na sociedade. Ao relatar sobre um relacionamento interracial de Henrique na juventude, o autor apresenta Juliana, a namorada branca. Em meio ao cotidiano dessa relação, surgem discussões, como a estereotipação do homem negro, o mito da democracia racial e o racismo recreativo.
Foi com Juliana que você começou a desconfiar da sua situação como homem negro no sul do país. Foi caminhando de mãos dadas com ela, pela Rua da Praia, no centro de Porto Alegre, que você começou a notar os olhares, às vezes acompanhados de piadas racistas. Vendedores ambulantes diziam, à boca pequena, que ela só poderia estar com você por dinheiro. Pois uma branquinha daquelas com um neguinho desses, ha ha, não, não podia ser. (Tenório, 2020, p. 28)
Osmundo Pinho (2014) oferece uma análise da condição do homem negro e explora hipóteses sobre as possíveis formas de masculinidade. Ele argumenta que, mesmo entre homens negros, essa construção de identidade é fluida e diversificada.
Antes de tudo, o homem negro é representado como um corpo negro, o seu próprio corpo. Paradoxalmente, esse corpo é configurado de forma alienada, como se fosse separado da autoconsciência do negro. O corpo negro é outro corpo, lógica e historicamente deslocado de seu centro. Como suporte ativo para a identidade, é o lugar de uma batalha pela reapropriação de si do negro como uma reinvenção do self negro e de seu lugar na história. Uma reapropriação do corpo como plataforma ou base política revolucionária. Ora, essa base é contraditória porque tem sido definida pelas discursividades racializantes ou puramente racistas que justamente aprisionam o negro na “geografia da pele e da cor”. Ser negro é ser o corpo negro, que emergiu. Assim, o corpo negro masculino é fundamentalmente corpo-para-o-trabalho e corpo sexuado. (Pinho, 2014, p. 67)
Nesse cenário, o afeto não é considerado relevante, pois corpos negros enfrentam violência e racismo estrutural, o que complica a ressignificação das relações humanas, sejam elas familiares, de amizade ou amorosas.
Além de explorar temas complexos, Tenório destaca-se pela escrita crítica, expondo injustiças enfrentadas por personagens negros e iluminando sua resiliência e esperança. O avesso da pele é reconhecido pela sua relevância, oferecendo reflexões sobre questões sociais e raciais no Brasil. A obra desafia os leitores a confrontarem seus preconceitos, promovendo empatia pelas experiências das pessoas negras. No capítulo A barca, Tenório aborda a violência policial contra homens negros, narrando a morte de Henrique, durante uma abordagem policial:
Era uma abordagem. Sua cabeça ainda estava na sala de aula, ainda estava em Dostoiévski. Ele gritou para você parar. Gritou para você ir para a parede. Mas você não escutou ou não quis escutar. Ele e os outros policiais estavam nervosos, era só para ser mais uma abordagem de rotina. Só isso, vamos, porra, colabora. Mas você não estava se importando mais com a rotina deles. Ele gritou novamente para você ir para a parede, ele já estava te apontando a arma. Mas para você já não fazia diferença, porque daquela vez eles não iam estragar tudo. Vocês tinham de estar lá. Vocês tinham que ver a cara deles quando comecei a ler, vocês tinham que ver o silêncio deles, vocês tinham que vê-los prestando atenção. Vocês tinham de conhecer o Peterson, tinham de ouvir o que ele tinha para dizer sobre o livro. Então, você abriu a pasta, ignorando os gritos do policial, os gritos de larga a pasta, porra. Você ignorou porque agora era a sua vez. Era a sua vez de ditar as regras. E a regra, agora, era seguir seu movimento, colocando a mão dentro da pasta. O primeiro tiro pegou no seu ombro, e foi como se você tivesse levado uma pedrada forte. O segundo foi no peito, dilacerante, uma dor difícil, não tão forte como as outras dores que tocaram seu corpo, mas ainda uma dor difícil. O terceiro foi dado por ele, pelo policial que vinha tendo pesadelos com homens negros invadindo a sua casa. Um tiro certeiro na tua cabeça. Os outros vieram simultaneamente. E a última imagem que você viu, foi a lua-gema-de-ovo-no-copo-azul-lá-do-céu. (Tenório, 2020, p. 176-177)
Por meio dessa narrativa, o autor denuncia a violência policial e humaniza suas vítimas, enfatizando a história de quem foi silenciado pela brutalidade. Ele força o leitor a confrontar a realidade do racismo estrutural e suas consequências, promovendo uma reflexão sobre a urgência de mudanças sociais e políticas para proteger e valorizar vidas negras.
3 Encobrindo realidades: censura, pacto da branquitude e consciência racial
A tentativa de censura ao livro O avesso da pele aconteceu em escolas nos estados do Paraná, Mato Grosso do Sul e Goiás (Santos, 2024). As secretarias de educação desses estados solicitaram, de forma arbitrária, a retirada do livro das escolas alegando que ele contém “expressões impróprias” para menores de 18 anos. No Rio Grande do Sul, a tentativa de retirada partiu de uma diretora de escola, entretanto, sua solicitação foi negada pelo governo estadual. O argumento moral e de “proteção às crianças” foi o que predominou na decisão de retirar o livro das escolas. Tal argumentação visa evitar que conteúdos considerados prejudiciais por alguns grupos, impactem negativamente o desenvolvimento infantil. A problemática desse tipo de argumento é que ele é subjetivo, geralmente parte de um viés religioso, variando entre diferentes grupos, e pode levar à censura de materiais que poderiam enriquecer o aprendizado. Além disso, pode limitar a liberdade acadêmica e o acesso a diversas perspectivas importantes para a formação crítica dos estudantes. No entanto, é válido questionar se o livro é realmente impróprio para esses estudantes ou se as questões abordadas na obra, sobretudo as raciais, causaram desconforto a essas pessoas.
A censura da obra traz à tona reflexões sobre liberdade de expressão, desigualdade racial e as dinâmicas de poder. Ao analisarmos esse evento à luz dos conceitos discutidos por teóricos como Cida Bento (2022) e Jessé Souza (2017), podemos compreender os seus significados e implicações. O caso repercutiu nas mídias brasileiras, conforme apresentado pelo jornal eletrônico O Globo:
A obra foi retirada das escolas de diversos estados após vídeo gravado pela diretora da Escola Ernesto Alves, Janaina Venzon. Segundo ela, o livro teria usado “palavras de baixo calão” e apresentaria situações envolvendo atos sexuais. 'O Avesso da Pele' faz parte do Programa Nacional do Livro e do Material Didático (PNLD), que avalia, seleciona e disponibiliza obras didáticas e literárias para escolas públicas das esferas federal, estadual e municipal. O livro foi selecionado para ser trabalhado no Ensino Médio e qualquer obra do programa teve de passar por avaliação de especialistas do PNLD e por educadores das próprias escolas. (Vista, 2024)
O pacto da branquitude, conceituado por Cida Bento (2022), emerge como elemento para analisar esse caso. Esse pacto, que busca preservar o privilégio branco ao ocultar as realidades desconfortáveis do racismo, pode ser identificado na decisão de censurar uma obra que confronta o racismo estrutural. A narrativa explora as complexidades das relações raciais, mostrando como o racismo se manifesta em diferentes aspectos da vida cotidiana, desde a infância até a vida adulta. Ao aprofundar-se nas experiências e na subjetividade dos personagens, o autor revela como o racismo não é apenas um ato isolado, mas um sistema que afeta oportunidades e direitos, problematizando a realidade social e a necessidade de mudança.
Ao suprimir uma narrativa que expõe as injustiças do sistema, as autoridades escolares reforçam a hierarquia racial e tentam perpetuar o status quo, alegando que o livro contém “palavras de baixo calão”. No entanto, a obra é recomendada para aulas de literatura do ensino médio, em que a idade mínima dos alunos é adequada para o conteúdo. Além disso, o livro já foi avaliado e aprovado pelo Ministério da Educação e Cultura.
Os trechos da obra apontados como inadequados abordam experiências sexuais que são essenciais para o crescimento e a descoberta pessoal dos personagens jovens. Essa censura ocorre porque a sexualidade jovem ainda é um tabu em vários contextos culturais, percebido através de uma perspectiva moralizante que desconsidera a naturalidade e a importância dessa exploração na formação da identidade. Profissionais da educação que censuram essas passagens argumentam que são inadequadas para certos públicos, sem levar em conta o contexto da obra e a mensagem que o autor deseja transmitir.
Tenório utiliza essas narrativas para mostrar como os personagens enfrentam sua identidade, emoções e relações em um ambiente, muitas vezes, hostil e discriminatório. A censura a esses trechos foi questionada pelos pareceristas do PNLD e pelo próprio autor (Rádio Senado, 2024), pois ignora a realidade desses jovens em comunidades marginalizadas. Em vez de proteger o público, essa prática pode contribuir para a estigmatizar e silenciar questões sexuais e relacionais importantes para o desenvolvimento dos jovens.
O parecer do PNLD sobre a obra reconhece sua importância na promoção de reflexões sobre diversidade e direitos humanos, reforçando que a literatura juvenil deve abordar temas relevantes e contemporâneos. Há uma menção sobre palavras e termos que podem ser inapropriados para o ambiente escolar, no entanto, justifica-se que elas fazem parte do contexto da obra e não uma apologia aos termos:
Há, portanto, trechos com expressões vulgares, de cunho sexual, e referência à violência e drogas. Contudo, fazem parte da lógica da narrativa, trazendo uma coerência interna para o narrado. Há uma coerência narrativa que procura revelar as tensões sobre a vida e suas reflexões e não fazer uma apologia ao uso de drogas, à violência contra a mulher, ao uso de expressões vulgares e sexuais. (Brasil, 2021, p. 1-2)
A obra, ao provocar reflexões sobre as estruturas de poder, pode ser considerada perigosa para aqueles que ocupam esses espaços de poder. Isso ocorre porque, como afirma Souza (2017), “a questão do poder é a questão central de toda sociedade. A razão é simples. É ela que nos irá dizer quem manda e quem obedece, quem fica com os privilégios e quem é abandonado e excluído” (Souza, 2017, p. 15). Dessa forma, reprimir o contato com essa obra é uma das estratégias da branquitude para evitar tais reflexões, que poderiam influenciar um levante dos oprimidos contra a elite branca e burguesa, reivindicando seus direitos a esses espaços de poder e não mais aceitando a violência como resposta às suas demandas.
Para discutir a censura, é necessário abordar como ela começou a ser instituída no Brasil como um instrumento de controle por parte daqueles que detêm o poder e desejam mantê-lo. A censura representava uma estratégia legal de controle social, instituída pelo Ato Institucional nº 5 (AI-5), promulgado em 1968, por meio do qual muitos artistas, músicos, escritores e cineastas tiveram suas obras restringidas ao público durante a ditadura militar no Brasil, sob o pretexto de conter a subversão. Borges e Barreto (2016) explica como essa dinâmica de censura ocorria e com base em quais argumentos:
Visando ao estabelecimento de uma visão positiva de si e de enfraquecimento ou interdição a discursos adversários (FOUCAULT, 1997 e 1999), os governos militares lançam mão de extenso repertório de medidas ancoradas em duplo propósito: conter as investidas do “inimigo” no plano ideológico e fortalecer a visão de que a “revolução” foi feita para o engrandecimento da pátria, em defesa da paz, da democracia, da família e em nome de princípios morais e “bons costumes”. Neste cenário de disputas simbólicas e por representações legítimas (BACZKO, 1985; GRAMSCI, 2002; CHARTIER, 1971), a censura, assim como a propaganda, tem lugar sinalizado na própria doutrina de segurança nacional, que prescrevia o entrelaçamento entre política cultural e segurança nacional (BUCCI e KEHL, 2004). Tratava-se, nesse front, de unificar o país em torno das narrativas elaboradas pelos e para os militares e, como contraface do mesmo processo, silenciar e deslegitimar as narrativas adversárias. (Borges; Barreto, 2016, p. 123-124)
As ações de controle incluíram revisão de livros, regulação de músicas, filmes e peças teatrais. Televisão, cinema, teatro e eventos culturais foram supervisionados pelo Departamento de Censura de Diversões Públicas (DCDP), garantindo a moral e bons costumes. Nesse contexto, ocorreram proibições como a de gravuras eróticas de Picasso, censura de sátiras políticas, e a imposição de componentes curriculares, como Educação Moral e Cívica e Estudos de Problemas Brasileiros, para promover a ideologia dos governos militares.
Durante a ditadura, os centros populares de cultura (CPCs), criados pela União Nacional de Estudantes (UNE) para promover uma cultura crítica e progressista, foram desmantelados. Isso refletiu o controle dos censores sobre a cultura, enquanto os críticos temiam o uso cultural para contestar o regime. A UNE, que defendia uma reforma universitária nacionalista, também foi reprimida, com sua sede atacada e incendiada (Alves, 1985; Reis; Ridenti; Motta, 2004; Brasil, 2014).
Quando consideramos a censura ao livro O avesso da pele em relação à censura estabelecida durante a ditadura militar, é possível notar semelhanças entre os cenários políticos e ideológicos da época e os discursos atualmente proferidos pelos representantes estatais que tentaram remover a obra das escolas. Isso inclui a similaridade dos discursos morais utilizados por ambos os períodos. Comparar esses contextos pode oferecer um melhor entendimento sobre como os detentores do poder se mantêm no controle em relação àqueles que são reprimidos por eles.
A censura do livro em escolas também pode ser analisada à luz do conceito de racismo institucional proposto por Silvio Almeida (2019). Este conceito se refere às práticas das instituições que, de maneira sutil e inadvertida, perpetuam a discriminação racial e a desigualdade:
No caso do racismo institucional, o domínio se dá com o estabelecimento de parâmetros discriminatórios baseados na raça, que servem para manter a hegemonia do grupo racial no poder. Isso faz com que a cultura, os padrões estéticos e as práticas de poder de um determinado grupo tornem-se o horizonte civilizatório do conjunto da sociedade. Assim, o domínio de homens brancos em instituições públicas – o legislativo, o judiciário, o ministério público, reitorias de universidades etc. – e instituições privadas – por exemplo, diretoria de empresas – depende, em primeiro lugar, da existência de regras e padrões que direta ou indiretamente dificultem a ascensão de negros e/ou mulheres, e, em segundo lugar, da inexistência de espaços em que se discuta a desigualdade racial e de gênero, naturalizando, assim, o domínio do grupo formado por homens brancos. (Almeida, 2019, p. 27)
Censurar obras que abordam racismo e identidade racial revela um viés institucional que suprime discussões sobre questões raciais, refletindo o racismo institucional. As estruturas educacionais marginalizam narrativas não hegemônicas, contribuindo para a invisibilização das comunidades negras. Essa prática perpetua desigualdades ao moldar currículos escolares para reforçar uma única narrativa, excluindo vozes não hegemônicas.
Nesse sentido, a censura do livro de Tenório pode ser analisada a partir da teoria do perigo de uma única história, de Chimamanda Ngozi Adichie. Segundo Adichie (2019), essa prática simplifica e distorce realidades, perpetuando estereótipos incompletos. Ela mesma, ao crescer lendo literatura europeia, viu-se incapaz de se identificar com personagens estrangeiros que não refletiam sua própria realidade: “Como eu só tinha lido livros nos quais os personagens eram estrangeiros, tinha ficado convencida de que os livros, por sua natureza, precisavam ter estrangeiros e ser sobre coisas com as quais eu não podia me identificar” (Adichie, 2019, p. 13).
O avesso da pele, por abordar questões de racismo, identidade e violência policial, oferece uma perspectiva marginalizada na mídia. A censura desse livro pode ser vista como uma tentativa de suprimir vozes e experiências que desafiam a narrativa dominante, mantendo assim a “história única” sobre o que significa ser negro no Brasil. Essa censura reflete o medo e a resistência contra a pluralidade de histórias que podem desestabilizar o status quo. A obra de Tenório apresenta uma contranarrativa, revelando as injustiças enfrentadas pelas pessoas negras, algo que a “história única” tende a ignorar.
A resistência à censura de livros representa uma forma de enfrentamento ao racismo institucional. Movimentos sociais e educadores têm lutado para garantir uma educação mais inclusiva, que reconheça e valorize a diversidade racial e cultural do Brasil. Essa luta não se restringe apenas à defesa da liberdade de expressão, mas também à promoção de uma sociedade mais justa e igualitária, onde todas as vozes e experiências são respeitadas e representadas.
4 Literatura e educação antirracista no enfrentamento ao pacto da branquitude
Kabengele Munanga (2005) oferece reflexões que contribuem de maneira sólida sobre a forma de como a censura de O avesso da pele reflete os desafios enfrentados na promoção da educação antirracista. Em vez de confrontar as questões raciais e estimular um diálogo crítico sobre o tema, esse tipo de censura perpetua o silêncio e a invisibilidade das vozes não-brancas, dificultando a compreensão e o combate ao racismo. A falta de letramento racial dos educadores e o comprometimento insuficiente do Estado em capacitar esses profissionais, somados aos princípios racistas nas estruturas da sociedade, criam um terreno fértil para esse tipo de censura. Segundo Munanga (2005):
Alguns dentre nós não receberam na sua educação e formação de cidadãos, de professores e educadores o necessário preparo para lidar com o desafio que a problemática da convivência com a diversidade e as manifestações de discriminação dela resultadas colocam quotidianamente na nossa vida profissional. Essa falta de preparo, que devemos considerar como reflexo do nosso mito de democracia racial, compromete, sem dúvida, o objetivo fundamental da nossa missão no processo de formação dos futuros cidadãos responsáveis de amanhã. (Munanga, 2005, p. 16)
Na jornada pela construção de uma sociedade mais justa e igualitária, a literatura desempenha um papel crucial na educação antirracista, fornecendo reflexões e emoções que ressoam para além do livro literário.
Carla Akotirene (2019) enfatiza a necessidade de empoderar as identidades negras no ambiente educacional, principalmente através da aplicação da interseccionalidade, que é uma forma sensível de pensarmos a identidade em sua multiplicidade e sua relação com o poder. Isso nos permite perceber o encontro, a interação e a inseparabilidade estrutural do racismo, capitalismo e do cisheteropatriarcado (Akotirene, 2019). Em outras palavras, diante das articulações das questões raciais, de gênero, classe, sexualidade, entre outras formas de enunciação e diferenciação, que constituem as principais formas de opressão, torna-se possível compreender que diferentes formas de opressão interagem entre si e se reforçam mutuamente, de forma que considerar tais intersecções permite uma compreensão menos fragmentada, mais ampla e fiel sobre as desigualdades sociais.
Ao utilizar a literatura como uma ferramenta de empoderamento, os alunos negros encontram espelhos literários que refletem suas próprias experiências e desafiam os estereótipos impostos pela sociedade. Através da identificação com personagens e narrativas que refletem sua realidade, os alunos são capacitados a desenvolver uma autoestima positiva e resistir ao racismo internalizado. Ao integrar obras literárias como O avesso da pele no currículo escolar, os alunos são convidados a explorar e confrontar as complexidades do racismo brasileiro de uma forma acessível e envolvente. A literatura se torna, assim, um instrumento para a conscientização e transformação social.
Desafiando normas estabelecidas, desconstruindo estereótipos e promovendo o respeito mútuo entre todas as identidades raciais, a literatura se torna uma aliada na luta contra o pacto narcísico da branquitude. Com um compromisso coletivo pela justiça racial e a transformação dos sistemas educacionais, podemos construir um futuro no qual a igualdade racial seja uma realidade concreta, e não apenas um ideal distante. Para alcançar esse objetivo, é fundamental também contar com o papel dos/das professores/as como agentes mediadores.
Em Como ser um educador antirracista, Pinheiro (2023) pauta o debate sobre raça, racismo, branquitude e poder, convocando os educadores a serem antirracistas na prática e demonstrando que é possível, sim, repensarmos nossas práticas pedagógicas e pensar práticas antirracistas em sala de aula, principalmente valendo-se de uma perspectiva afrocentrada, de reforço positivo, que é justamente o que propõem as leis 10.639/03 e 11.645/08, isto é, a história e cultura africana, afro-brasileira e indígena como centro do processo de ensino e aprendizagem; o reconhecimento e a valorização dessas histórias e culturas:
Mais do que uma opção, deve ser um compromisso histórico, um dever da escola, ser antirracista. A escola e, por sua vez, a professora e o professor precisam pautar a equidade racial em toda a sua estrutura: no corpo profissional, principalmente na ocupação dos espaços de poder escolares; na construção curricular, pautando os conhecimentos ancestrais africanos e indígenas fora de um lugar de estereotipagem e de rebaixamento; representar graficamente as pessoas negras e indígenas na estética da escola a partir de um lugar de positivação; fomentar a leitura de literatura negra e indígena nas proposições didáticas escolares; organizar na escola programas de formação de professores/as a partir da óptica do letramento racial; apresentar intelectuais e personalidades negras e indígenas aos/às estudantes, objetivando ressignificar a noção de humanidade e inteligência ainda hoje. (Pinheiro, 2023, p. 147-148, grifo nosso)
Fomentar a leitura de literatura negra e indígena nas proposições didáticas, assim como outras questões e temas que confrontam e questionam o currículo hegemônico eurocentrado, pressupõe uma descolonização dos currículos, movimento que já vem acontecendo há algum tempo, mas que sempre gera resistências, tensões e conflitos, já que se relaciona aos interesses de grupos dominantes, portanto, ao poder, e configura-se como um território em disputa. Superar a perspectiva eurocêntrica é essencial para uma ruptura epistemológica e cultural na educação brasileira, da qual tanto necessitamos (Gomes , 2012).
Pela temática e toda a discussão ensejada na obra O avesso da pele, podemos considerá-la como uma grande contribuição ao processo de ruptura epistemológica e cultural na educação brasileira, bem como para a luta antirracista. Podemos considerá-la, portanto, como uma literatura afro-brasileira e antirracista que, pode e deve ser apreciada, do ponto de vista estético e literário, e utilizada em sala de aula como um material para a (re)educação das relações étnico-raciais, do ponto de vista político e pedagógico. Como características de uma literatura afro-brasileira, Evaristo (2009) destaca que:
Sem pretensão de esgotar a temática sobre o que seria a literatura afro-brasileira, as considerações aqui levantadas apenas buscam situar a existência de um discurso literário que, ao erigir as suas personagens e histórias, o faz diferentemente do previsível pela literatura canônica, veiculada pelas classes detentoras do poder político-econômico [...]. Pode-se dizer que um sentimento positivo de etnicidade atravessa a textualidade afro-brasileira. Personagens são descritos sem a intenção de esconder uma identidade negra e, muitas vezes, são apresentados a partir de uma valorização da pele, dos traços físicos, das heranças culturais oriundas de povos africanos e da inserção/exclusão que os afrodescendentes sofrem na sociedade brasileira. Esses processos de construção de personagens e enredos destoam dos modos estereotipados ou da invisibilidade com que negros e mestiços são tratados pela literatura brasileira, em geral (Evaristo, 2009, p. 19-20)
Nesse sentido, a obra de Tenório, ainda nas palavras de Evaristo (2009), como um texto afro-brasileiro que afirma um “contra-discurso à literatura produzida pela cultura hegemônica” está pautado “pela vivência de sujeitos negros/as na sociedade brasileira trazendo experiências diversificadas” (Evaristo, 2009, p. 27). A obra diz o que querem calar, revela o que querem ocultar, desnuda o que querem encobrir ao tratar, sobretudo, da exclusão que as pessoas negras sofrem na sociedade brasileira em diversos aspectos da vida humana, se não, em todos. A obra denuncia, característica do antirracismo (Pinheiro, 2023), mas também anuncia um porvir mais promissor por meio do potencial sensibilizador que possui e que pode contribuir para despertar mentes e corações e promover mudanças importantes.
Conclusão
A censura ao livro O avesso da pele, constitui-se, como discutido ao longo do trabalho, como mais uma manifestação do pacto da branquitude para a manutenção do status quo no que diz respeito à questão racial no país. Também se insere nas discussões sobre os “processos de ensinar e aprender em meio a relações étnico-raciais, no Brasil” (Gonçalves e Silva, 2007, p. 489).
Embora a diversidade seja algo que está presente na nossa sociedade de forma inerente e não algo a ser construído, mas sim a ser celebrado, como aponta Pinheiro (2023), a sua negação é prática comum e, no ambiente escolar, não poderia ser diferente. Esse ocultamento da diversidade no Brasil, que não é fenômeno recente, traz prejuízos de toda ordem e contribui para reforçar mitos como o da democracia racial e o da cordialidade do povo brasileiro, bem como reforçar o sentimento de inferioridade e de não pertencimento por parte de grupos subalternizados. E são estes mesmos grupos, aliados a movimentos sociais, na maioria das vezes, que vão reagir ao ocultamento, fazendo-se enxergar, como nos apontam Gonçalves e Silva (2007).
A obra de Tenório é uma reação por meio da literatura, para a promoção da discussão sobre diversidade, de maneira geral, e da diversidade étnico-racial, de maneira específica. Ademais, a obra contribui, ao nosso ver, para a tentativa de implementação, de fato, da lei 10.639/03 relativa à obrigatoriedade do ensino de história e culturas africanas e afro-brasileira no sistema educativo brasileiro. Apresenta-se como um material político-pedagógico a ser trabalhado em sala de aula, pois fornece uma descrição de como se dão as relações raciais entre negros e brancos no Brasil, bem como da situação de negros e negras no que diz respeito a gênero, raça, classe, condições psíquicas etc. a partir dos impactos do racismo nas suas vidas. Uma melhor compreensão dessas relações aliada a um debate responsável sobre suas causas e consequências pode contribuir para a educação das relações étnico-raciais e, por conseguinte, para o combate ao racismo e às desigualdades raciais.
Como uma das dificuldades apontadas para a implantação de uma gestão voltada para a diversidade e para a implementação da referida lei nas escolas brasileiras, e que podemos considerar como mais um motivo para a censura da obra de Tenório, Gomes (2011) ressalta a tendência de hierarquização das desigualdades por muitos gestores de escolas, que acabam dando pouca importância à desigualdade racial, que é frequentemente vista como subordinada à desigualdade socioeconômica.
A partir dos estudos de diversos(as) intelectuais negros(as) sobre raça, racismo e relações raciais no Brasil, presentes ao longo deste trabalho, é possível depreender que a tendência de hierarquização das desigualdades também configura-se como uma estratégia da branquitude, para tentar justificar as mazelas sofridas pela população negra como fruto, apenas, de condições socioeconômicas precárias, desconsiderando e camuflando os impactos causados pelo racismo estrutural em todas as esferas da vida dessa população.
A ressignificação de raça, assim como a sua politização, contribuições do Movimento Negro no Brasil e de outros movimentos ao redor do globo, resultando em vários estudos e teorias, foram essenciais para a visibilização da questão étnico-racial e para o reconhecimento de direitos, como o direito à diversidade. Segundo Gomes (2012),
Ao politizar a raça, esse movimento social desvela a sua construção no contexto das relações de poder, rompendo com visões distorcidas, negativas e naturalizadas sobre os negros, sua história, sua cultura, práticas e conhecimentos; retira a população negra do lugar da suposta inferioridade racial pregada pelo racismo interpreta afirmativamente raça como construção social; coloca em xeque o mito da democracia racial. (Gomes, 2012, p. 731)
Considerando que mudanças podem gerar incômodo, quando as mudanças de paradigmas colocam em xeque determinados aspectos, como tirar as pessoas de suas zonas de conforto, convocá-las para as suas responsabilidades, fazê-las repensar sobre suas crenças e atitudes diárias, bem como levá-las a questionar-se sobre os seus privilégios e os de seu grupo, incômodo e desconforto podem (e devem) fazer parte do processo, se não há abalo das estruturas atuais, não há mudanças reais e efetivas.
Nesse sentido, considerando todo o potencial estético da literatura aliado ao potencial de transformação social de realidades, o livro O avesso da pele se inscreve como escrevivências da população negra brasileira, e sobre isso, Evaristo (2020) chama a atenção para que “a nossa escrevivência não pode ser lida como histórias para ‘ninar os da casa-grande’, e sim para incomodá-los em seus sonos injustos” (Evaristo, 2020, p. 54). A branquitude não só se incomoda como se vê ameaçada pela contação de histórias e pela construção de contranarrativas a partir das experiências vividas pelas pessoas negras sobre raça e racismo, já que estas podem sensibilizar e conscientizar negros e não negros a partir da compreensão mais aprofundada das relações raciais no Brasil e de como o racismo opera, promovendo mudanças de atitudes em relação ao combate ao racismo e a outras formas de discriminação.
Ao trazer as experiências vividas pela população negra, Tenório vai de encontro às narrativas hegemônicas contadas e impostas pelas pessoas brancas e que oferecem uma visão única da(s) realidade(s). Sobre o perigo de uma história única, Adichie (2019) alerta que “é assim que se cria uma história única: mostre um povo como uma coisa, uma coisa só, sem parar, e é isso que esse povo se torna” (Adichie, 2019, p. 22). A autora relaciona a história única ao poder que detêm determinados grupos em relação a outros, reforçando estereótipos, visões preconceituosas e reducionistas: “o poder é a habilidade não apenas de contar a história de outra pessoa, mas de fazer que ela seja sua história definitiva” (Adichie, 2019, p. 23). Por fim, a autora valoriza a pluralidade de ideias, pensamentos, visões de mundo, conhecimentos e culturas por meio de múltiplas histórias-realidades:
As histórias importam. Muitas histórias importam. As histórias foram usadas para espoliar e caluniar, mas também podem ser usadas para empoderar e humanizar. Elas podem despedaçar a dignidade de um povo, mas também podem reparar essa dignidade despedaçada. (Adichie, 2019, p. 32)
Ao trazer as escrevivências da população negra brasileira através de múltiplas vozes, experiências e vivências, Tenório desafia o sistema e o pacto da branquitude não só politizando a raça, como contribuindo, também, para a racialização das pessoas brancas, algo tão necessário para o entendimento do que é a branquitude e para combatê-la (Bento, 2022).
É necessário que o indivíduo branco se perceba racialmente, saindo da invisibilidade, da neutralidade, para que possa enxergar a si mesmo, os seus privilégios e encare suas responsabilidades, engajando-se no combate ao racismo, já que “não temos um problema negro no Brasil, temos um problema nas relações entre negros e brancos. É a supremacia branca incrustada na branquitude [...]” (Bento, 2022, p. 14-15).
Referências
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Recebido em: 29/06/2024.
Aceito em: 16/10/2024.
DOI: https://doi.org/10.46906/caos.n33.70667.p70-89
* Mestra em Literatura Comparada pela Universidade Federal da Integração Latino-americana (UNILA), Brasil. E-mail: elirodriguesedu@gmail.com.
** Doutora em Linguística e Língua Portuguesa pela Universidade Estadual Paulista (Unesp), Brasil. Professora da Universidade Federal da Integração Latino-americana (Unila), Brasil. E-mail: julia.alves@unila.edu.br.
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