Convivendo com a diversidade: a percepção camponesa sobre o impacto da fauna silvestre nas lavouras do Assentamento Colônia Nova, Nioaque, MS

Elivelto da Silva Cavalcante1, Laura Jane Gisloti1*, Judite Stronzake1

1 Universidade Federal da Grande Dourados

*Autor para correspondência: lauragisloti@gmail.com

Recebido em 23 de maio de 2018. Aceito em 08 de dezembro de 2019. Publicado em 27 de dezembro de 2019.

Resumo - O objetivo deste estudo foi compreender aspectos da relação conflituosa na interface humano e fauna silvestre (Chordata: Vertebrata) no Assentamento Colônia Nova, município de Nioaque, Mato Grosso do Sul, com o intuito de contribuir para a compreensão das interações entre humanos e animais que coabitam o mesmo território. Foram entrevistados 30 camponeses que em sua totalidade percebem que o ataque de animais silvestres em suas lavouras aumentou no decorrer dos anos. A maioria (65%) acredita que esse aumento está relacionado ao desmatamento. Os psitacídeos (Psittaciformes: Psittacidae) (75%) foram apontados como sendo os grandes responsáveis pelo ataque às lavouras e o milho (Zea mays, L.) (44%) como sendo a principal lavoura atacada. A preservação da mata nativa (80%) seria a melhor solução a longo prazo para evitar danos às lavouras. A maioria dos entrevistados (60%) acredita que o dano animal ás lavouras não contribuiu para a desistência na produção agrícola do Assentamento. As dificuldades encontradas se referem principalmente ao preço elevado de insumos (77%). A comunidade compreende que mesmo que os animais silvestres ocasionem perdas na produção, fazem parte da biodiversidade e das relações ecossistêmicas.

Palavras-chave: agrobiodiversidade, assentados, etnobiologia, fauna silvestre.

Living with diversity: the peasant perception about the impact of wildlife on the settlements of the Colonia Colônia Nova, Nioaque, MS

Abstract - The aim of this study was to understand aspects of the conflicting relationship in the human interface and wildlife (Chordata: Vertebrata) in the Colônia Nova Settlement, Nioaque municipality, Mato Grosso do Sul, in order to contribute to the understanding of the interactions between humans and animals that cohabit the same territory. Thirty peasants were interviewed, all of whom realize that the attack of wild animals on their crops has increased over the years. Most (65%) believe this increase is related to deforestation. Parrots (Psittaciformes: Psittacidae) (75%) were found to be largely responsible for crop attack and maize (Zea mays, L.) (44%) as the main crop attacked. Preserving native forest (80%) would be the best long-term solution to prevent crop damage. Most respondents (60%) believe that animal damage to crops did not contribute to the abandonment of agricultural production. The difficulties encountered mainly refer to the high price of inputs (77%). The community understands that even if wild animals cause production losses, they are part of biodiversity and ecosystem relations.

Keywords: agrobiodiversity, ethnobiology, settlers, wildlife.

Conviviendo con la diversidad: la percepción campesina sobre el impacto en la fauna silvestre en las labranzas del Asentamiento Colonia Nova, Nioaque, MS

Resumen - El objetivo de este estudio fue comprender aspectos de la relación conflictiva en la interfaz humana y la fauna silvestre (Chordata: Vertebrata) en el Asentamiento de Colônia Nova, municipio de Nioaque, estado de Mato Grosso do Sul, Brasil, para contribuir a la comprensión de las interacciones entre humanos y animales que conviven en el mismo territorio. Se entrevistó a treinta campesinos, todos los cuales se dan cuenta de que el ataque de animales salvajes en sus cultivos ha aumentado con los años. La mayoría (65%) cree que este aumento está relacionado con la deforestación. Se encontró que las psitácidas (Psittaciformes: Psittacidae) (75%) eran, en gran parte, responsables del ataque al cultivo y el maíz (Zea mays, L.) (44%) como el principal cultivo atacado. Preservar el bosque nativo (80%) sería la mejor solución a largo plazo para evitar daños a los cultivos. La mayoría de los encuestados (60%) cree que el daño animal a los cultivos no contribuyó al abandono de la producción agrícola del asentamiento. Las dificultades encontradas se refieren principalmente al alto precio de los insumos (77%). La comunidad entiende que, aunque los animales salvajes causan pérdidas en la producción, son parte de la biodiversidad y las relaciones con los ecosistemas.

Palabras clave: agrobiodiversidad, asentados, etnobiología, fauna silvestre.

Introdução

A forma como os seres humanos manejam o ambiente e os seres que ali vivem está profundamente relacionada ao modo de percepção, conhecimentos, métodos de manejos agrícolas, e crenças (Anderson 2011). Assim humanos e fauna local estabelecem uma profunda relação entre si, de forma que essa relação humana-animal é influenciada pelas necessidades humanas como nutrição, simbologia, transporte, além de distintas outras maneiras de uso (Atran 1998).

O estudo das relações humanos-animais possibilita o diálogo entre o conhecimento cultural e biológico e até abre caminhos para refletir sobre acontecimentos ambientais relacionados aos animais, dentro de uma perspectiva de determinado local e tempo (Costa-Neto 2007).

Assim, a partir do campo da sociolinguística e da antropologia cognitiva (particularmente da Etnociência) surge a Etnobiologia, sendo, portanto, um campo de pesquisa multidisciplinar que investiga as distintas percepções culturais da relação humano/natureza (Posey 1987; Begossi 1993). É um campo de estudo que se debruça sobre conhecimentos e conceituações desenvolvidas por sociedades a respeito da Biologia e, deste modo, emprega modelos de construção de conhecimentos sobre a organização do mundo natural diferentes daqueles formados no racionalismo e pragmatismo da ciência vigente (Begossi et al. 1999; Bandeira 2001).

Esses estudos são considerados transdisciplinares, por incluir saberes e significações, tais como, sentimentos e comportamentos que permeiam as relações dos animais e as populações humanas (Marques 2002; Costa-Neto 2007). Desta forma, pesquisas neste âmbito são consideradas um extenso campo multidisciplinar a ser trilhado, já que investiga as diversas percepções culturais da interação humano/natureza, esclarecendo através da linguagem, o modo e a finalidade como estas informações são ordenadas e classificadas pelas diversas sociedades. Esse campo de pesquisa também atua como intermédio entre as distintas culturas ao assumir seu papel como componente dedicado ao entendimento e respeito mútuo entre os povos nas suas diversas formas de entendimento do mundo natural (Albuquerque et al 2014).

O Mato Grosso do Sul é caracterizado como sendo um estado megadiverso biologicamente e culturalmente. Com uma área de 357.145,532 km² e uma população estimada de 2.748.023 (IBGE 2019), o Estado se encontra em uma região estratégica em termos de biodiversidade ocorrendo o contato entre vários ecossistemas como as Florestas Atlântica Amazônica e Chiquitana, o Cerrado, o Chaco (Farinaccio et al. 2018).

Em relação à diversidade dos povos, este Estado possui uma população indígena de 73.295 pessoas, na qual se destacam os Kaiowá e Guarani, os Terena, os Kadiwéu, os Guató e os Ofaié, sendo que os Kaiowá e Guarani e os Terena apresentam-se com o maior contingente populacional (IBGE 2010). Da mesma forma, a população do campo, ou camponesa, agrega diversidade cultural e biológica para a região, de forma que foram conquistados 204 assentamentos, que hoje abrigam 27.764 famílias em uma área de 716.212,19 hectares (INCRA 2017). Deste modo, a agricultura familiar no Estado corresponde a 14% do Valor Bruto da Produção Agropecuária – VBP, sendo responsável por 46% do pessoal ocupado no meio rural, correspondendo a 97.431 pessoas (Guilhoto et al. 2007).

Cabe ressaltar que o processo de povoamento, colonização e reforma agrária em Mato Grosso do Sul foi e continua sendo marcado pela disputa da terra entre indígenas, empresas extrativistas, posseiros, trabalhadores rurais sem terra e latifundiários. Assim, a luta pela terra no Estado, embora tenha enfrentado todos os obstáculos, entre recuos e avanços, tem contribuído para conquistar a terra e desestruturar latifúndios. Nesses espaços tem sido adotada outra dinâmica de relação de trabalho alinhadas à luta pela permanência no campo através da prática da agricultura familiar (de Oliveira et al 2013).

Nas sociedades contemporâneas, a fauna silvestre tem sido percebida e utilizada de diversas formas, desde alimentação, comércio, vestuário, atividades culturais, além da zooterapia e do uso como elementos simbólico-religiosos. As populações campesinas possuem relação direta com a fauna silvestre, a qual percebem, interagem e fazem uso regular. A diversidade de interações entre as pessoas e os animais silvestres de seu entorno pode alterar a dinâmica populacional de muitas espécies a ponto de afetar o risco de extinção. Conciliar a conservação das riquezas naturais com as necessidades das populações locais, que muitas vezes dependem diretamente dessas riquezas para sua sobrevivência, é um dos grandes desafios enfrentados atualmente pelos gestores do meio ambiente e ambientalistas.

Por este ângulo, os estudos etnozoológicos se apresentam como um importante instrumento para o manejo dos recursos faunísticos, uma vez que o conhecimento da forma com que essas populações percebem e utilizam os animais do entorno ajuda na determinação de quais espécies que mais sofrem pressão de manejo, controle e uso, contribuindo assim para elaboração de estratégias de uso sustentável da fauna e conservação, levando em consideração não apenas a diversidade biológica mais também a necessidade de sobrevivência e a diversidade cultural das populações locais (Arruda 1999, Fernandes-Ferreira et al. 2012, Alves et al. 2012, Alves & Souto 2015de Lima et al. 2014 Mesquita & Barreto 2015, Santos et al. 2019). Assim, a integração das necessidades humanas à conservação da biodiversidade é atualmente um dos maiores desafios da humanidade. A proteção de espécies à beira da extinção e o manejo de espécies com populações aumentadas e que causam danos econômicos são dois extremos do contínuo que é a gestão de conflitos entre seres humanos e fauna silvestre (Conover 2001).

Portanto, em áreas rurais estudos etnozoológicos são importantes, pois permitem avaliar de que forma os moradores reúnem as informações trazidas de seus locais de origem com as obtidas no lugar onde se assentaram, mostrando como eles incorporam os novos, pois, oriundos de diversas regiões do país, necessitam adaptar-se e buscam, nesse novo ambiente se relacionar de forma harmônica com a fauna e flora local.

Desta forma, este trabalho busca compreender aspectos da relação conflituosa na interface ser humano e fauna silvestre (Chordata: Vertebrata) no Assentamento Colônia Nova, município de Nioaque, Mato Grosso do Sul, com o intuito de contribuir para a compreensão das interações entre os seres humanos e animais que coabitam o mesmo território.

Material e Métodos

Área de estudo

A pesquisa foi realizada no município de Nioaque (21° 7’ 37’’ S, 55° 49’ 56’’ O), no assentamento Colônia Nova, localizado no sudoeste do Estado de Mato Grosso do Sul, na microrregião da Bodoquena (Figura 1). Este município se estende por 3 923,8 km² e contava com 14 396 habitantes pelo último censo. Nioaque possui nove assentamentos sendo: Padroeira do Brasil, Boa Esperança, Andalúcia, Conceição, Areias, Palmeira, Uirapuru e Santa Guilhermina e Colônia Nova. Este último foi o local de estudo deste trabalho.

Figura 1. Localização do município Nioaque, distante cerca de 145 km de Campo Grande, capital do Estado de Mato Grosso do Sul.

Fonte: Adaptado de Raphael Lorenzeto de Abreu/Wikimedia Commons.



O assentamento Colônia Nova teve origem com a luta dos movimentos sociais do campo, sendo implantado em 3 de dezembro de 1987, onde foram assentadas 88 famílias em uma área de 1.314,1405 ha (Brasil 1986). As famílias do assentamento são oriundas de vários Estados do Brasil, principalmente dos estados de Mato Grosso do Sul, Sergipe, Alagoas, Bahia, Minas Gerais, Santa Catarina, Paraná, Rio Grande do Sul, além dos Brasiguaios (grupos de brasileiros que retornaram do Paraguai ao Brasil de forma organizada a partir de 1982). Esse assentamento é rodeado por uma Reserva Legal que têm sofrido impactos negativos, devido à retirada de madeiras de lei e branca que são usadas na construção de mangueiros cercas e outras benfeitorias (Candil 2004).

Obtenção dos dados e análise

Para a coleta de dados usamos métodos qualitativos, de forma que entrevistas livres e semi-estruturadas foram usadas como instrumento, já que a grande vantagem da entrevista sobre outras técnicas é que ela permite a captação imediata, sensível e corrente da informação desejada (Amarozo et al 2002).

No início da pesquisa foi organizado um encontro com a comunidade para apresentar o projeto e seus objetivos, para que assim obtivéssemos o consentimento da comunidade para o desenvolvimento do estudo. Posteriormente o projeto foi submetido e aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa com Seres Humanos da Universidade Federal da Grande Dourados e enviado ao Conselho de Gestão do Patrimônio Genético (CGEN), para consulta sobre a necessidade de autorização. A análise dispensou a necessidade de autorização daquele órgão, uma vez o assentamento não se caracteriza como “comunidade local” presente no inciso III do artigo 7º da Medida Provisória nº 2.186-16/2001, mas sim como comunidade de pequenos agricultores/agricultores familiares.

Inicialmente foram realizadas entrevistas livres com as lideranças da comunidade no intuito de conhecer aspectos mais gerais do assentamento e de suas atividades. Posteriormente os 88 lotes que compõe o assentamento foram visitados e os moradores foram convidados a participar da pesquisa. Após esta etapa inicial, foram gravadas entrevistas semi-estruturadas com 30 camponeses (17 mulheres e 13 homens) que se auto afirmaram como sendo responsável pelo lote e concordaram de forma livre e esclarecida em participar do estudo. Assim, coleta de dados ocorreu entre os dias 29 de maio ao dia 20 de julho de 2018. As informações foram registradas em mídia digital, gravadas pelo celular e os dados foram anotados em caderno de campo. Observações diretas também foram feitas quando os interlocutores foram acompanhados em suas atividades de cultivo e manejo de plantações.

O roteiro das entrevistas buscou analisar os seguintes parâmetros: (I) aspectos gerais (gênero, ano da chegada no assentamento e lavouras cultivadas); (II) percepção sobre animais nas lavouras (animais e lavouras afetadas); (III) soluções para evitar perdas nas lavouras ocasionadas por esses animais (curto e longo prazo) e (IV) impacto que os animais silvestres tiveram sobre o assentamento.

A análise de dados foi baseada na comparação de forma que buscamos analisar os dados na tentativa de formar categorias, estabelecer os limites das categorias, designar segmentos de dados às categorias, além de sumarizar o conteúdo de cada o conteúdo (Tesch 1990).

A checagem das espécies de animais silvestres e plantas cultivadas citadas nas entrevistas foi realizada com todos os participantes, através da mostra de fotos das espécies cultivadas que ocorrem no Mato Grosso do Sul. Essas imagens foram obtidas de sítios da internet ligados à Zoologia e à Botânica.

Os áudios das entrevistas, bem como todos os registros gravados tiveram cópias de segurança que ficaram na posse dos pesquisadores responsáveis por este estudo. A cópia impressa do trabalho final foi disponibilizada para a comunidade envolvida. Salientamos ainda que cópias digitais, contendo as imagens, áudios e vídeos produzidos foram entregues aos líderes das comunidades e sua divulgação será ampla, tanto do aspecto científico quanto do aspecto comunitário, podendo ainda os mesmos requerem acesso, a qualquer tempo, sobre materiais e informações produzidas neste projeto. Isto posto, em observância aos Direitos destes Povos, à Legislação concernente ao tema e ao Compromisso Ético entre pesquisadores e Povos que colaboram neste intercâmbio científico-cultural.

Esta metodologia que respeita os Povos, desviando de abordagens etnocêntricas, está de acordo com o preconizado por Marques (2002), que estabelece métodos de coleta e análise de dados em etnobiologia e etnoecologia.

Resultados e discussão

Os participantes da pesquisa chegaram no assentamento entre os anos de 1973 e 2009, de forma que a maioria deles (75%) chegou nas décadas de 70 (35%) e 80 (40%). Uma minoria se assentou na década de 90 e na primeira década do século XXI (15% e 10%, respectivamente). A maioria dos lotes são geridos por mulheres (57%) que lidam com a labuta diária dos serviços domésticos e da lida com o lote produzindo diferentes culturas agrícolas em todas as épocas do ano.

No momento da pesquisa as famílias cultivavam mandioca (Manihot esculenta Crantz.) (71%), milho (Zea mays L.) (48%), soja (Glycine max (L.) Merr.) (39%), frutas cítricas (Citrus spp.) (37%), hortaliças (Lactuca sativa L. e Brassica spp.) (36%), cana-de-açúcar (Saccharum sp.) (29%), goiaba (Psidium guajava L.) (28%), quiabo (Abelmoschus esculentus (L) Moench.) (24%), abóbora (Abobra tenuifolia (Gillies) Cogn.) (18%), maxixe (Cucumis anguria L.) (17%), banana (Musa sp.) (12%), feijão (Phaseolus vulgaris L. ) (11%), abacate (Persea americana Mill.) (7%), café (Coffea arábica L.) (4%), mamão (Carica papaya L.) (4%), melão (Cucumis melo L.) (4%), melancia (Citrullus lanatus (Thumb.) Matsumura & Nakai) (3%), abacaxi (Ananas comosus (L.) Merril) (2%), batata doce (Ipomoea batatas (L.) Lam.) (1%) e carambola (Averrhoa carambola L.) (1%). A soja (G. Max.), o milho (Z. mays) e a cana de açúcar (Saccharum sp.) são comercializadas, as demais são cultivadas para o próprio consumo. No entanto, atualmente, a maior parte do assentamento é constituída por pastagens.

Percepção sobre animais nas lavouras

Todos os entrevistados perceberam que houve um aumento em relação aos ataques dos animais silvestres nas lavouras cultivadas. Assim, os moradores relataram que na formação do assentamento todas as 88 famílias assentadas produziam alguma cultura durante todo o ano. Porém com o passar dos anos o desmatamento foi aumentando para o estabelecimento de pastos e isso fez com que os animais silvestres tivessem que procurar recurso alimentar nas lavouras ao redor da área de Reserva Legal.

A maioria acredita que esse aumento está relacionado ao desmatamento (65%), seguido pela vigência das leis de proteção animal severas (15%), da reprodução acelerada de alguns animais considerados pragas (10%) e da diminuição na produção do assentamento (5%) que faz com que os animais se concentrem em lotes que produzem mais.

De fato, a ocupação descuidada e devastadora da região centro oeste do Brasil tem gerado consequências alarmantes para a população do campo e para a produção agropecuária local. Muitas áreas da região se encontram em processo acelerado de degradação devido à forte erosão ocasionada pelas culturas de grãos, além da poluição por agrotóxicos e de efluentes de criações. Paralelamente, a produção mecanizada não considera o valor da diversidade, apenas está fundamentada na exploração contínua e nos lucros relacionados (D’Aquino 1998). Na região desse estudo as maiores áreas de desmatamento chegam a 0,0942 km² per capita, o que é um valor considerado alto e que pode estar relacionado com a dependência de uma economia agrícola pouco preocupada com a sustentabilidade (Rodríguez et al. 2019). Desta forma, a maioria dos camponeses compreendem que o desmatamento é a principal causa do aumento do impacto da fauna silvestre nas lavouras, já que com a retirada de árvores da Reserva Legal faz com que os animais tenham que procurar recurso alimentar nas plantações cultivadas por esses agricultores.

Diniz e colaboradores (2013), em um estudo sobre os impactos da agricultura moderna em comunidades camponesas e quilombolas do Vale do Jequitinhonha, constataram nas comunidades pesquisadas que a substituição da vegetação nativa do Cerrado pelo monocultivo de eucalipto/café implicou não só na perda da biodiversidade local, utilizada secularmente pelas populações, mas também na contaminação dos solos e dos recursos hídricos por resíduos de agrotóxicos e fertilizantes químicos, além do agravamento de processos erosivos e do assoreamento de rios e córregos. Assim, a substituição das lavouras tradicionais pelo modelo hegemônico do agronegócio altera a dinâmica dos ecossistemas locais e as populações que vivem no meio rural identifica essa relação como sendo desarmônica, já que os animais silvestres passam a frequentar com maior frequência as lavouras do entorno.

Por outro lado, também foi indicado pelos camponeses que o endurecimento das leis ambientais está relacionado com o aumento da presença da fauna nas lavouras. Assim, neste estudo, nenhum participante afirmou praticar a caça de animais silvestres. Nota-se que o desconhecimento do potencial de uso dos recursos naturais, a falta de compreensão sobre a importância das leis de proteção ambiental, as queimadas e a intensidade de exploração agrícola têm provocado prejuízos incalculáveis ao solo, à fauna, à flora e aos recursos hídricos, comprometendo a sustentabilidade desse ecossistema e colocando muitas espécies animais e vegetais em risco de extinção, principalmente no tocante às espécies fruteiras nativas (Klink e Machado 2005).

Em relação à percepção sobre os principais animais silvestres que atacam as lavouras, os psitacídeos (Psittacidae) papagaios (Amazona spp.), periquito verde (Brotogeris tirica (Gmelin, 1788)) e araras azul e vermelha (Anodorhynchus hyacinthinus (Latham, 1790)) e Ara chloropterus, respectivamente) foram apontados como sendo os grandes responsáveis pelo ataque às lavouras, de forma que dos 30 camponeses entrevistados 23 apontaram (75%) para essas aves como sendo os maiores causadores de impactos ás lavouras, seguido pela anta (Tapirus terrestres (Linnaeus, 1758)) (16%) e tatu peba (Euphractus sexcinctus (Linnaeus, 1758)) (12%).

Resultado semelhante ao dessa pesquisa foi encontrado em um trabalho realizado na região da Zona da Mata de Minas Gerais Zona, onde os psitacídeos (Psittacidae) foram relatados como sendo os animais silvestres que mais causam danos às lavouras (Mateus et al. 2018).

Pinto e colaboradores (2012), em um estudo sobre o conhecimento e o uso da fauna silvestre por moradores rurais da Serra do Ouro Branco (MG), encontraram espécies diferentes das encontradas neste presente estudo entre animais e humanos e as relações conflituosas. No trabalho desses autores o quati (Nasua nasua), o jacu (Penelope sp.), e o teiú (Tupinambis merianae) foram as espécies apontadas pelos moradores como sendo as responsáveis por danificarem as colheitas.

É importante salientar que a grande maioria dos trabalhos que buscam investigar a percepção de camponeses sobre a fauna silvestre no âmbito nacional e/ou internacional se refere à atividade de caça (e.g. Alves et al. 2009, Alves et al. 2012, Fernandes-Ferreira et al. 2012, Mendonça et al. 2013, Barboza et al. 2016, de Farias Lima 2018, Santos et al. 2019), sendo bastante limitado os trabalhos que buscam refletir sobre as relações conflituosas entre camponeses e animais, no que diz respeito ao ataque às lavouras.

De acordo com os camponeses, o milho (Z. mays) (44%) é a principal lavoura atacada por animais silvestres e a que gera um maior prejuízo, segundo suas impressões, seguido pelas frutas cítricas (Citrus spp.) (40%), mandioca (M. esculenta) (10%) e feijão (P. vulgaris) (5%). No entanto, foram apontadas outras culturas agrícolas que também são e/ou foram atacadas por animais silvestres como: abóbora (A. tenuifolia) (22%), quiabo (A. esculentus) (18%), banana (Musa sp.) (11%), mamão (C. papaya) (7%), acerola (Malpighia emarginata) (4%), abacate (P. americana) (4%) e feijão (P. vulgaris) (2%).

No mesmo trabalho realizado na Zona da Mata, citado anteriormente, a lavoura que mais foi afetada pelo ataque de animais silvestres foi a de frutas em geral, já que os autores não discriminaram as espécies frutíferas (Mateus et al. 2018). Neste caso, o fato do maior ataque percebido se referir à uma cultura que não é comercializada (frutas) faz com que a tensão conflituosa seja amenizada, o que não ocorre no caso do presente estudo, onde o milho é apontado como produto comercializado pelos camponeses do assentamento Colônia Nova.

Soluções para evitar perdas nas lavouras ocasionadas por esses animais (curto e longo prazo)

Em relação às soluções a curto prazo para evitar perdas nas lavouras ocasionadas por esses animais verificamos que os métodos utilizados para afugentar os animais das lavouras são: uso de panos ou plásticos brancos (45%), seguido pelo uso de bombinhas (10%) e rojões (5%). Algumas pessoas (10%) optam por não afugentar os animais, alegando compreender o impacto do desmatamento na cadeia alimentar da fauna silvestre fazendo com que esses animais encontrem dificuldades alimentares em áreas degradadas pelo ser humano.

Quando questionados a respeito das possíveis soluções a longo prazo para evitar o ataque de animais nas lavouras, a maioria dos assentados (80%) afirmou que a preservação da mata nativa seria a melhor solução, enquanto o plantio de arvores frutíferas ao redor do lote também foi apontado pelos camponeses (20%) como sendo a melhor solução para minimizar o ataque dos animais silvestre na produção agrícola.

Os moradores apontaram que antigamente existiam muitas frutas nativas aos arredores dos lotes e nas fazendas vizinhas que serviam como alimento para esses animais, porém o estabelecimento de pastos no entorno do assentamento fez com que os animais silvestres não encontrassem mais recursos para se alimentar e assim passaram a atacar as lavouras. Ressaltamos que o desmatamento que deu origem a uma vegetação fragmentada na Região Centro-Oeste resultou do modelo rural construído a partir da década de 1970. Nesta região uns grandes números de espécies têm desaparecido sem serem conhecidas pela ciência, ao mesmo tempo em que o fragmento de vegetação natural e o habitat fragmentado já fazem parte de uma nova realidade dessa região (Nascimento e Bourlegat 2003).

Impacto que os animais silvestres tiveram sobre o assentamento.

Em relação ao impacto que estes animais ocasionaram na dinâmica do assentamento, a maioria dos entrevistados (60%) acredita que o dano animal ás lavouras não contribuiu para a desistência na produção agrícola do Assentamento. As dificuldades encontradas pelos pequenos produtores se referem ao preço elevado de insumos (óleo diesel, adubos, embalagens) (77%) e à ausência de políticas públicas que subsidiem os agricultores (23%), desde o estabelecimento das culturas até a obtenção do produto final.

Neste sentido, verifica-se que o êxodo rural ainda acontece em todas escalas do território brasileiro, em menor ou maior ritmo, mas que aos poucos tem gerados preocupações pela desvalorização do campo e de seus moradores que fazem muito e são pouco reconhecidos. Diante de todo o explicitado acima verificou-se que o êxodo rural ainda acontece em todas escalas do território brasileiro, em menor ou maior ritmo, mas que aos poucos vai preocupando pela desvalorização do campo e de seus habitantes que muito fazem e pouco é reconhecido. É necessário que o Estado desenvolva e implante políticas públicas que garantam a permanência dos assentados, proporcionando a valorização das comunidades rurais, que necessitam de um olhar especial para se desenvolverem e com a produção local promoverem a ascensão econômica e social (Nascimento Cezimbra et al. 2018).

De fato, é de grande relevância analisar as especificidades do conhecimento ecológico local, que é em grande parte influenciado pelo contexto contemporâneo destas comunidades (Miranda e Hanazaki 2008). Assim, os assentamentos da reforma agrária constituem-se como novos espaços de sociabilidade que se espalham por todo o interior do país. São locais onde se define e se transforma a história coletiva da população do campo que precisa conviver e se adaptar com as condições locais (Cappellin e Castro 1997).

Conclusão

Os psitacídeos (Psittacidae) são os principais causadores de conflitos entre humanos e animais silvestres na área pesquisada. Esses animais atacam, sobretudo, as lavouras geradoras de renda às famílias locais. No entanto, os camponeses reconhecem que o estabelecimento do modelo produtivo baseado no agronegócio influencia na dinâmica populacional dos animais silvestres de forma a ocasionar um desequilíbrio ecológico nos ecossistemas locais.

As áreas de Reserva Legal e de Preservação Permanente podem ser importantes aliadas nas políticas conservacionistas da região, no entanto estas áreas protegidas têm sido utilizadas para a pecuária. No entanto, faltam recursos humanos e infraestrutura adequada para que haja ações educativas e fiscalização ambiental no assentamento. Por outro lado, os assentados não conseguem, de fato, cumprir com a lei por não terem acesso ou conhecimento sobre a maioria dos laudos e documentações oficiais que foram elaborados referente à estas áreas de proteção ambiental.

Faz-se necessária a reflexão sobre o desmatamento, sendo um tipo de destruição provocada pelo modelo de agricultura do agronegócio, afeta diretamente as comunidades rurais e todo o meio ambiente. Isto porque existe um conjunto de elementos presentes neste sistema que é violento contra a flora e fauna. A produção em escala de monocultura, onde se produz matéria – prima para exportação, característica do agronegócio, fragiliza a agrobiodiversidade, colaborando no aumento de pragas, devido à homogeneização do ecossistema. O uso intensivo de venenos destrói a biodiversidade. Em contrapartida, territórios povoados da agricultura camponesa almejam pela manutenção dos agrossistemas diversificados, não desmatando para preservar a vida dos animais que vivem de alimentar-se dos frutos das matas e dos rios.

Agradecimentos

À toda comunidade camponesa do Assentamento Colônia Nova, do município de Nioaque, Mato Grosso do Sul.

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