Caracterização da música brasileira para efeito de organização da informação
CHARACTERIZATION OF BRAZILIAN MUSIC FOR THE PURPOSE OF ORGANIZING INFORMATION
Juliana Rocha de Faria Silva1
Fernando William Cruz2
Murilo Bastos da Cunha3
RESUMO
Sabe-se que o acervo de músicas brasileiras é vasto e reflete as tradições do País em função da sua forte conexão com a cultura local. Do ponto de vista informacional e tecnológico, é importante caracterizar a música brasileira e os seus limites, a fim de permitir a construção estratégias de preservação e organização desses conteúdos musicais. Por outro lado, a literatura aponta algumas definições para o conceito de música brasileira que sugerem uma revisão a fim de formalizar as características desse repertório. Neste artigo é apresentado um estudo etnográfico com músicos especialistas no tema a fim de identificar uma definição mais precisa sobre música popular brasileira e seus atributos mais relevantes.
Palavras-chave: Informação musical. Música popular brasileira. Estudo etnográfico.
ABSTRACT
It is known that the collection of Brazilian music is vast and reflects the traditions of the country due to its strong connection with the local culture. From the informational and technological point of view, it is important to characterize Brazilian music and its limits, in order to allow the construction of strategies for the preservation and organization of these musical contents. On the other hand, the literature points out some definitions for the concept of Brazilian music that suggest a revision in order to formalize the characteristics of this musical style. This article presents an ethnographic study with musicians specialized in the theme in order to identify a more precise definition of Brazilian popular music and its most relevant attributes.
Keywords: Musical information. Brazilian popular music. Ethnographic study.
Artigo submetido em 22/01/2020 e aceito para publicação em 24/04/2020
1 Introdução
O repertório de música brasileira, segundo Cruz (2008), é um mais ouvidos no Brasil, provavelmente devido à sua forte conexão com a cultura local. É, portanto, legitimada como uma expressão de arte que traduz a tradição e promove registros subjetivos da organização social corrente. De fato, através da música é possível encontrar vários aspectos étnicos brasileiros, seja pelas letras, pelas falas do dia-a-dia ou pelas origens dos sons e ritmos, variando das músicas regionais até as músicas nacionais que tocam nas rádios.
A grande quantidade de acervos de música brasileira disponibilizados nas mais variadas formas provocou uma mudança de perspectiva em termos de organização. Dessa maneira, a música brasileira – geralmente vista como uma forma de expressão artística – passa a ser vista também como objeto informacional de amplo interesse que precisa receber o devido tratamento intelectual para estar disponível aos usuários atuais e futuros.
Apesar da sua importância reconhecida, percebe-se a necessidade de revisão das diretrizes formais para a organização do patrimônio musical brasileiro, particularmente no que diz respeito aos aspectos tecnológicos. De fato, as diversas fontes de informação da música brasileira carecem de estratégias dedicadas a atender às diferentes necessidades de informação e, muitas vezes, adotam padrões de catalogação que impedem que esses objetos musicais sejam acessíveis e colocados, por exemplo, em um contexto de preservação e curadoria digital.
O experimento descrito por Silva (2017), que envolve a busca em catálogos online de bibliotecas universitárias brasileiras e sites especializados na Internet pela música de Tom Jobim “Garota de Ipanema” – uma das músicas mais conhecidas no Brasil e no mundo –, dá uma boa ilustração desse problema. Por exemplo, em alguns casos, a música não foi encontrada quando dentro de uma publicação de partituras ou em uma faixa de CD. Em outros casos, quando encontrada, não havia nenhuma informação sobre o arranjador ou os intérpretes. Adicionalmente, além da falta de coerência no uso de metadados, os muitos registros de catálogo para este acervo eram incompletos ou incompatíveis entre si. Corroborando com essa percepção, acervos como o de Pixinguinha, Chiquinha Gonzaga, Ernesto Nazareth e do violão brasileiro, embora mais completos e representativos, se caracterizaram como silos de dados musicais porque as tecnologias e métodos em uso não levam em conta a necessidade de interoperabilidade com os demais sistemas que tratam do patrimônio e da história do Brasil, sejam eles musicais ou não-musicais.
Historicamente, segundo Dobedei (2003), a organização da informação musical brasileira tem sido feita por meio de estratégias baseadas em um modelo de entidade única (um livro, uma música, etc.), onde o recurso é descrito por metadados em acordo com os padrões MARC e Dublin Core, orientados pelas regras de catalogação da AACR2 e das regras derivadas de recomendações de instituições estrangeiras, como a Library of Congress (LC) e as da Music Library Association (MLA). São iniciativas herdadas de técnicas e metodologias utilizadas pela Biblioteconomia e Musicologia, em especial das iniciativas do Répertoire International des Sources Musicales (RISM), que seguem as tradições musicais europeias ocidentais, onde o objetivo principal é o registro escrito representado pelas publicações de partituras. Além dessas iniciativas provenientes do projeto RISM, os esforços empreendidos pela Musicologia brasileira têm aproximado o patrimônio musical brasileiro às técnicas e metodologias da Arquivologia para a catalogação de arquivos de música que abrangem, principalmente, os manuscritos, partituras de música sacra do período colonial (CONARQ, 2018; COTTA; BLANCO, 2006).
O Padrão Internacional de Descrição Bibliográfica (ISBD) proposto pela IFLA (2017) – usado como referência por muitas bibliotecas brasileiras –, tem sido questionado por não ser capaz de responder a expressões de consultas complexas, especialmente aquelas que lidam com formas variadas de representações de objetos informacionais, como é o caso da música brasileira. Por serem mais descritivas e menos focadas no conteúdo interno dos recursos de informação, elas limitam os sistemas de recuperação de informação bibliográfica que seguem essas normas quanto à sua capacidade para responder a requisitos de navegabilidade e buscas sobre documentos musicais.
Desde o final dos anos 1990, alguns modelos conceituais multi-entidade surgiram com forte influência sobre a organização da informação musical, porque eles: (i) têm uma melhor capacidade de representar a arquitetura interna de recursos de informação; e (ii) habilitam formas de expressar o contexto onde objetos de informação estão inseridos, por meio dos relacionamentos, facilitando a navegabilidade e a busca em sistemas de recuperação de informação musical.
Um desses modelos inovadores é conhecido como IFLA LRM (IFLA, 2017) que é consolidação de versões anteriores da família FR – FRBR, FRAD e FRSAD – e produziu duas importantes inovações. Em primeiro lugar, inaugurou um novo olhar sobre o processo de criação intelectual, formalizando-o na abreviatura WEMI – Obra, Expressão, Manifestação e Item. Uma segunda melhoria foi a ênfase dada às entidades (i) Pessoa, Família e Pessoa Jurídica, e (ii) Conceito, Objeto, Lugar e Evento, que tiveram antes um papel secundário no processo de catalogação. Uma das aplicações importantes do FRBR, segundo Dunsire et al. (2012), é ter servido como referência para criação da regra de catalogação RDA, que é voltada para descrição de recursos digitais dentro da perspectiva das conexões permitidas pela web semântica.
Embora os modelos de múltiplas entidades promovam uma melhoria no processo de organização de conteúdos, existem ressalvas sobre a aplicação desse modelo para música num sentido amplo, sem considerar as especificidades da cultura subjacente. Essa posição é corroborada por Smiraglia (2002), que argumenta que obras são veículos de cultura que variam substancialmente no tempo e entre culturas distintas. Por sua vez, Kishimoto e Snyder (2016) e Gentili-Tedeschi (2015) criticam o conceito de Obra do FRBR e sinalizam os efeitos gerados por essa má definição na aplicação das regras de catalogação RDA para o caso de músicas populares.
De fato, o IFLA LRM prevê a adoção de extensões do modelo de forma a contemplar domínios específicos, como é o caso da música brasileira. No entanto, essas pesquisas estão ainda em estágio embrionário e não surtiram efeito nas regras de catalogação, deixando a cargo dos bibliotecários a interpretação livre para o tratamento desses acervos.
Dentro desse contexto, o objetivo desse artigo é apresentar um levantamento feito com especialistas em música brasileira sobre algumas especificidades desse recurso informacional a fim de: (i) oferecer algum conhecimento sobre a arquitetura (gênese, classificação e características essenciais) desse acervo para profissionais que trabalham com os diversos estilos musicais que o formam e, ao mesmo tempo, (ii) discutir a adequação de regras de catalogação, padrões de metadados e modelos de organização de informação compatíveis com esse tipo de conteúdo informacional.
2 Música brasileira
O termo música brasileira refere-se a um vasto repertório de estilos musicais e, desde o início do século XX, há relatos de pesquisas para definição desse repertório. De acordo com Blomberg (2011), os primeiros registros a esse respeito foram feitos pelas comunidades ameríndias e, posteriormente, pelos europeus e africanos, como fruto de viagens de estrangeiros ao Brasil tais como (i) a Histoire d’um voyage fait en la terre Du Brésil, do francês Jean de Léry, que apresenta transcrições de melodias colhidas no século XVI e a (ii) Viagem pelo Brasil (1817-1820), de Spix e Martius, que inclui transcrições musicais de Canções Populares Brasileiras e Melodias Indígenas.
Somente no século XX é que essas histórias foram abordadas sob um critério mais metódico e, nesse caso, a obra de referência para a música brasileira é o “Ensaio sôbre a Música Brasileira” de Mário de Andrade (1972) – primeira edição impressa em 1928. Ulhôa Carvalho (1991) argumenta que essa obra é uma espécie de manifesto nacionalista da música brasileira, no qual os compositores brasileiros são conclamados a valorizarem e a utilizarem os elementos nacionais em suas composições, considerando-os em um degrau acima daqueles pertencentes à cultura europeia.
Com viés modernista-nacionalista, Andrade (1972) define a música brasileira como aquela que está relacionada à ordem social e que revela a unidade nacional. Argumenta ainda que sua identidade musical não é originada a partir da noção de mestiçagem, que era o pensamento que vigorava naquela época. Em seu ensaio, esse autor defende uma música brasileira que deveria: (i) ser toda criação musical nacional com ou sem caráter étnico; (ii) ser uma manifestação musical realizada por brasileiro ou indivíduo nacionalizado e que refletisse as características musicais de sua raça; (iii) ser composta por artistas brasileiros com priorização de elementos essencialmente nacionais, com valorização social à obra, porém sem perder o artístico, e (iv) não ser analisada sob o ponto de vista da opinião europeia – o que poderia falsificar a identidade brasileira. O fato de uma música fazer sucesso na Europa não implicaria nenhuma relevância para a música brasileira, mas a sua complexidade se dava em razão da interpretação e da execução dos ritmos brasileiros serem distintos da grafia musical das impressões. A preocupação de Andrade (1972) voltava-se para a música brasileira em si e em seus elementos nacionais e as influências estrangeiras que poderiam ou não ser utilizadas.
Quadro 1: Classificação geral da música brasileira
Indígena |
Folclórica |
Artística |
Popular |
|
Origem |
Rural |
Rural |
Urbana e universal |
Urbana e mista |
Comunidades a qual pertencem originalmente |
Comunidades indígenas tradicionais |
Classes camponesas (diversas origens étnicas) |
Grupos dominantes da elite urbana |
Do povo sem distinção de origem étnica |
Repertório |
Relativo aos rituais religiosos e à vida cotidiana das tribos indígenas |
Música ameríndia, de - tradições folclóricas luso-brasileiro e da tradição folclórica afro-brasileira |
Resultante da transformação da música popular (folclórica) em arte (erudição, intelectual) |
Música indígena e popular com características do folclore |
Transmissão |
Oral |
Oral |
Escrita |
Oral e pela mídia |
Alcance/ público |
Restrita à tribo |
Regional |
Restrita aos iniciados |
Público diverso e heterogêneo |
Perpetuação (permanência no repertório brasileiro) |
Muito tempo |
Muito tempo |
Muito tempo |
Pouco tempo |
Fonte: Síntese coletada em Andrade (1972), Ulhôa Carvalho (1991) e Behágue (2001).
A literatura aponta que, ao longo dos anos, surgiram diversas formas de classificação das músicas brasileiras considerando diferentes aspectos. Ulhôa Carvalho (1991) faz um resumo da visão de muitos musicólogos brasileiros sobre esse acervo, cuja síntese está apresentada no Quadro 1. Numa análise mais profunda, percebe-se que essa classificação é controversa e que, desde o início, algumas combinações diferentes foram identificadas. Por exemplo, Andrade (1972) definiu a música folclórica – que inclui música indígena e música popular – como aquela relacionada à música tradicional ou original e de essência rural que se mesclou a certas formas urbanas, como o choro e a modinha. Essa música, também denominada de popular, foi entendida como a música do povo de qualquer região brasileira ou etnia, em contraposição à música artística (clássica) – composta para ser apresentada para o deleite de um público intelectualmente erudito. Além disso, Andrade (1972) usou o termo popularesca para descrever um outro tipo de repertório intermediário entre a música folclórica e a música erudita, que é similar à música folclórica, porém qualificada como música de letras simples, de “aplauso fácil” e mais voltada para o contexto urbano.
A música folclórica apresentada no Quadro 1 é colocada sob a perspectiva de Béhague (٢٠١٥), que a descreve como a música de áreas rurais e inclui a música ameríndia brasileira e as tradições de música folclórica com predominância da luso-brasileira e da afro-brasileira. Embora a música indígena apareça nesse quadro, alguns autores não a consideram como música brasileira. Por exemplo, Ulhôa Carvalho (1991) argumenta que a sobrevivência de grupos nativos que viveram à margem da sociedade brasileira não é suficiente para considerá-los brasileiros totalmente naturalizados. A música folclórica, no Brasil, é a música criada ou reformulada como o resultado de uma mistura de grupos principalmente ibero-europeus, africanos e étnicos nativos, tradicionalmente encontrada nas áreas rurais. No Brasil, a música erudita é, por vezes, denominada “clássica” e refere-se à música “séria” europeia; e, a música popular se refere a um amplo espectro de gêneros produzidos e consumidos em contextos urbanos.
Uma outra classificação identificada para a música brasileira é a divisão do repertório tradicional por regiões, áreas ou estados brasileiros. Embora a música folclórica brasileira não possa ser considerada homogênea por causa de seus diferentes padrões socioculturais, há um grande corpus de músicas nas várias áreas geográficas no Brasil. Houve várias tentativas de definir áreas culturais no Brasil, mas os critérios de classificação negligenciaram os traços musicais.
Béhague (2001) considera essas tentativas de classificação úteis como uma ferramenta de trabalho, mas elas omitem a música indígena brasileira, além de ignorar as numerosas sobreposições de distribuição de gêneros populares e cita algumas principais: (i) a visão de Maynard de Araújo, em 1964, que propôs a seguinte divisão: área da Amazônia, área de pastoreio de gado, área de mineração, área agrícola, área de pesca, com subdivisões, tudo de acordo com técnicas de subsistência; (ii) a visão de Joaquim Ribeiro, em 1944, que foi o primeiro a propor um conjunto de quatro áreas musicais, baseadas em gêneros musicais: embolada (Nordeste); moda (sul); jongo (várias zonas de influência bantu); aboios (zona de pastoreio de gado do sertão); (iii) a visão de Azevedo, em 1954, que baseou sua classificação a partir da distribuição de gêneros e instrumentos musicais. Ele distinguiu nove áreas musicais e um ciclo de canções: área da Amazônia; região cantoria (Nordeste); área coco (área costeira do nordeste); área dos autos (em todo o país, com núcleos específicos em Sergipe e Alagoas); área de samba (dos estados da Bahia para São Paulo); área de moda-de-viola (de Goiás, Mato Grosso ao norte do Paraná); área do fandango (área costeira do sul); área gaúcha (zona bovina do Rio Grande do Sul); área da modinha (incluindo principalmente as áreas urbanas mais antigas) e o ciclo das canções infantis encontrado em todas as áreas.
A música popular, até a metade do século XX, era caracterizada pela sua transmissão oral e função lúdico-religiosa, limitada a comunidades ou áreas culturais mais ou menos homogêneas e rurais em geral, seu conceito aproximava da noção de cultura tradicional. A música erudita se opunha à popular por ser de tradição urbana e letrada. No entanto, as tradições musicais orais e comunitárias começaram a ser designadas como música folclórica a partir da consolidação dos meios de comunicação e a música popular passou a compreender as gravações musicais veiculadas pela mídia. Para Ulhôa Carvalho (1997), na folclórica, produtor e consumidor se confundem – em geral, não são atribuídas autorias às músicas – e na popular, o produtor e o consumidor são estabelecidos distintamente – quem faz as músicas ou as interpreta não é quem as consome.
Uma última abordagem para identificar música brasileira, na opinião de Ulhôa Carvalho (1997), é a perspectiva temporal e baseada nas chamadas fases do nacionalismo. Nesse contexto, a música brasileira reflete os acontecimentos históricos e vai se desenhando como um aglomerado de estilos puros e derivados, muitos deles influenciados por tendências e estilos de outros países até se chegar aos dias atuais. O nacionalismo é visto aqui como um conceito que une a cultura local e a música que é produzida pela comunidade, como reflexo das experiências vividas em sociedade (BOLHMAN, 2003). Nessa perspectiva, “uma primeira fase na música erudita, começando com a Semana de 1922 e se fortalecendo com os modernistas em torno de Mario de Andrade; e uma segunda fase deflagrada pelo movimento da Bossa Nova e radicalizada pelos tropicalistas na área da música popular” (ULHÔA, 1997, p. 87). Neste contexto, a música brasileira é identificada como sendo a música do dia-a-dia, ligada à tradição, que toca nos bares e que circula preferencialmente pelos meios de comunicação. Nas instâncias de música dessa segunda fase se destacam estilos como: samba, choro, MPB, música regional – nordestina, mineira, gaúcha – Bossa Nova, Tropicália, Rock Brasileiro, Vanguarda Paulista e nova MPB.
3 Metodologia
A fim de corroborar as formas de classificação e características de música brasileira identificadas na literatura, foi estabelecido um estudo qualitativo com usuários especialistas sobre o tema. A perspectiva adotada foi etnográfica porque, de acordo com Mattos (2011), pressupõe a cultura como um sistema de significados mediadores entre as estruturas sociais e as ações e interações humanas.
Esses usuários especialistas atuam no mercado profissional e foram instigados a conceituar a música brasileira e apresentar suas características intrínsecas tentando distingui-la das músicas estrangeiras, segundo a perspectiva de Andrade (1972). Os elementos qualificadores não levaram em conta apenas aspectos estilísticos, mas também outros mais amplos, como questões sociais, modos de transmissão e de registro, compositores, intérpretes, indústria da música, globalização, entre outros.
A coleta de dados foi feita com entrevista semiestruturada baseada na Análise do Domínio (HJØRLAND, 2002; HJØRLAND e ALBRECHTSEN, 1995), de modo a permitir que os participantes pudessem, a partir da percepção das suas necessidades informacionais, conceituar e classificar a música brasileira sem a preocupação de lembrar como ela é representada, tratada e organizada em sistemas de recuperação de informação musical. Para contemplar o repertório citado, foram escolhidos vinte e dois especialistas, selecionados por meio da amostragem “bola de neve”, na qual as referências dos participantes iniciais geram novos informantes (VINUTO, 2014). Dos entrevistados, 18 eram do sexo masculino e quatro do sexo feminino, sendo sete pianistas, seis violonistas, três cantores, dois contrabaixistas, dois bateristas, um flautista e um gaitista. Além de todos serem intérpretes (instrumentistas e cantores), vários eram também compositores e arranjadores de música brasileira. Além disso, alguns eram produtores musicais e outros já atuavam como produtores fonográficos.
As entrevistas foram realizadas entre abril e maio de 2017, com contato inicial feito por mensagens no aplicativo WhatsApp. Um dia antes da entrevista, uma mensagem de lembrete foi enviada com a solicitação para a escolha de três exemplares de música brasileira relacionadas à produção do músico. Os entrevistados receberam um número de acordo com a ordenação alfabética do nome artístico acompanhado da letra P, com letra maiúscula.
Para esse levantamento foi construído um roteiro semiestruturado com questões elaboradas para que o entrevistado pudesse, a partir da percepção de sua prática profissional, chegar às necessidades de informação e suas características – sem a preocupação de fazer alusão aos sistemas de recuperação da informação. As entrevistas foram estruturadas em duas partes. Na primeira parte as perguntas foram relacionadas ao (i) perfil demográfico e profissional dos entrevistados, e (ii) às demandas informacionais à partir da atuação profissional com a música brasileira. Na segunda parte, a fim de contornar o mosaico de classificações e definições possíveis para a música brasileira e dar mais precisão aos resultados desta pesquisa, foi solicitado aos entrevistados que fizessem uma descrição levando-se em conta o acervo que eles manipulavam no dia-a-dia de trabalho, à luz das definições encontradas na literatura. Em seguida, para o recorte proposto, eles foram convidados a identificar as (i) formas de classificação mais evidentes, e (ii) as características essenciais do recorte tais como a gênese, classificação e outros atributos relevantes desse acervo musical.
O tempo mínimo de duração das entrevistas foi de 28 minutos e o máximo de 1 hora e 31 minutos. A marcação para as entrevistas considerou o espaço de pelo menos duas horas de intervalo entre duas entrevistas no mesmo dia. Do total de entrevistas, 21 aconteceram com encontros presenciais e apenas uma ocorreu online porque o músico não se encontrava presente no período em que as entrevistas foram realizadas.
A análise de dados foi etnográfica – uma vez que foi considerado o aspecto da relação da cultura nas definições que envolvem música brasileira em que o conceito de cultura e o da análise holística são tomados nesta perspectiva. A análise de dados seguiu uma abordagem similar à teoria fundamentada ou Grounded Theory (GLASER, 2004), na medida em que houve uma intercalação entre os dados coletados na entrevista anterior e o devido ajuste de roteiro para realização da entrevista seguinte, embora não tenham sido feitas as codificações de modo sistemático, como a teoria preconiza. Na transcrição foram anotadas à margem direita os elementos relevantes sobre o domínio que iam surgindo no discurso dos músicos.
4 Identificação de um recorte de música brasileira
Conforme sugerido na Seção 2, a caracterização da música brasileira não é algo trivial e é objeto de opiniões às vezes contraditórias em função do que está sendo observado. No entanto, houve consenso entre os entrevistados em dizer que as músicas brasileiras possuem diferenças em relação aos acervos estrangeiros e usaram argumentos variados, tais como a forma de interpretação ou o uso de improvisações. Para um respondente
O Brasil absorveu músicas de diferentes culturais, mas a maneira como a música é feita pelos brasileiros é diferente de qualquer lugar no mundo. Existe um sotaque que pode ser reproduzido por músicos estrangeiros por meio da cópia oral e visual (dos gestos) de um intérprete brasileiro. Mas, a improvisação é algo que pode mostrar o estilo do músico – se tem sotaque brasileiro ou não (P5, p. 12. Grifo nosso).
Para alguns entrevistados, somente a música tocada por brasileiros, mesmo tendo influências musicais externas, pode ser considerada autêntica, pois os estrangeiros não conseguem tocar a música brasileira de maneira orgânica e natural apesar de uma perfeita execução dos ritmos brasileiros. Um entrevistado afirmou que
Um dia um dinamarquês me disse: “eu nunca vi tanto swing (...) Ele falou: “vocês têm o que a gente não tem e procura. A gente tenta fazer igual, mas não sai. É como colocar um computador para tocar um samba, não sai” (P19, p. 9. Grifo nosso).
Em função da estratégia metodológica adotada, os entrevistados foram convidados a apresentar uma descrição de música brasileira com base nas experiências vividas no trabalho profissional. No recorte apresentado, foi possível perceber aspectos relacionados (i) ao local de origem (por exemplo, regiões ou estados brasileiros), (ii) à temporalidade (fases do nacionalismo), e (iii) por suas características internas (que inclui música urbana, rural, indígena, folclórica, etc.). É importante ressaltar que os entrevistados não foram instigados a esses tipos de classificação e, mesmo assim, acabaram optando por descrever uma música que tem mais “cola” com o repertório das músicas da segunda fase do nacionalismo e que tem a ver com a música do dia-a-dia, considerada como uma música popular. Este conjunto de repertório foi identificado pelos músicos e na literatura como a música popular mais sofisticada e elaborada que reflete uma prática e uma concepção de popular não comercial. É produzida e distribuída como bem de consumo, distanciando-se da música folclórica ou dos fenômenos ligados às tradições culturais e religiosas, e aproxima-se das “raízes” rústicas regionais (ULHÔA, 1997).
A parte demarcada da Figura 1 reflete, em alguma medida, espectro de músicas que melhor representa a música brasileira que os especialistas manipulam. Nessa figura, é apresentado um gráfico de dispersão de instâncias de músicas brasileiras, espalhadas entre as dimensões de nacionalismo – o caminho encontrado para estabelecer os limites dessa música –, e de gêneros que compõem o acervo de músicas brasileiras ao longo dos anos, embora outras formas classificatórias também tenham sido consideradas (e não explicitadas na figura). A quantidade maior de instâncias após o gênero bossa nova dá a entender que o conjunto de músicas manipulado tem mais a ver com a segunda fase do nacionalismo.
Figura 1 – Contorno estabelecido para caracterização da música brasileira
Fonte: Elaborado pelos autores.
Muitos dos entrevistados definem a música brasileira como algo mais próximo às manifestações culturais que não são ensinadas nas academias e somente os músicos imersos nestas tradições sabem e conhecem bem as referências. Portanto, é possível demarcar o corpus de músicas brasileiras porque (i) as sutilezas da execução desta música brasileira só é possível perceber pela audição; (ii) a música escrita não é o principal meio de registro dessa música; (iii) não é possível escrever todas as variações de sua execução, uma vez que os músicos brasileiros não repetem uma execução exatamente como foi tocada antes; e (v) o aprendizado envolve “tirar a música de ouvido”, ou seja, tocar a partir de uma gravação. Por sua vez, os ritmos brasileiros que compõem os gêneros musicais foram considerados elementos principais para distinguir a música brasileira das demais músicas ao redor do mundo.
Quadro 2 – Lista de termos relacionados ao ritmo do recorte de música brasileira
Termos |
Descrição |
Influência |
Artistas ou grupos musicais que influenciam um artista e sua obra. Na assimilação das influências, o artista é reconhecido por desenvolver um estilo pessoal de criação e/ou de interpretação |
Levada |
Inclui a condução da música que é feita com a prática simultânea dos ritmos executados nos instrumentos musicais que compõem um acompanhamento de uma canção, por exemplo. No caso da música instrumental e elaborada, a levada pode incluir toda a textura contendo os instrumentos musicais ou a voz (que também atua como instrumento) ou, ainda, na música elaborada, em que as notas da melodia são pensadas como notas que complementam os acordes |
Referência |
Compreendem as obras musicais de artistas ou grupos musicais que inspiram a composição ou a performance de outros artistas ou grupos musicais. Pode, se original, relacionar-se a um ritmo mais regional ou “puro”, e fusion, quando se trata de uma fonte (artista ou grupo) que combinou determinados estilos. Remete aos estilos, às sonoridades, às estruturas e às conduções harmônicas que foram feitas para uma determinada formação (instrumental e/ou vocal), por exemplo. |
Síncope |
É caracterizada pela execução de som em um tempo fraco, ou parte fraca de tempo que se prolonga até o tempo forte, ou parte forte seguinte. Em alguns casos esse deslocamento é representado em uma partitura como duas novas da mesma altura, contendo uma ligadura (pequena linha curva que une as notas) e causa uma acentuação rítmica que pode ser percebida como o swing que soa para caracterizar com naturalidade o ritmo brasileiro. |
Sotaque |
Próxima do significado com a palavra estrangeira swing, é o cruzamento do ritmo com um contexto cultural, ou seja, interpretá-lo de maneira mais específica de uma região ou grupo que executa aquele ritmo dento de sua cultura, o que inclui as acentuações. |
Swing |
É a maneira de interpretar um determinado estilo mais próximo do seu original (região ou grupo que executa aquele estilo dento de sua cultura), o que inclui as acentuações. É quando a performance pode ser reconhecida como pertencente a determinado estilo por um ouvinte (com algum grau de qualificação para aquele estilo). |
Fonte: Elaborado pelos autores com base nos respondentes.
O Quadro 2 contempla uma síntese dos termos que foram utilizados pelos entrevistados para descrição das características desse recorte de música brasileira. Tomando os termos dessa tabela é possível traçar a opinião dos entrevistados sobre elementos que descrevem a música brasileira: (i) aproximam do repertório reconhecido como pertencente ao universo das músicas populares; (ii) envolvem um processo de elaboração de arranjos de composições originais para o registrar a performance gravada; (iii) incluem melodias lídio-dominantes que se desenrolam quase sempre no contratempo e que, quando cantadas, são quase que declamadas; (iv) englobam ritmos sincopados conectados aos regionalismos que refletem os sotaques próprios de cada região brasileira; (v) incorporam uma harmonização elaborada, a exemplo daquela que é feita pelos bossa-novistas; (vi) integram improvisações aos arranjos que ocorrem em seções específicas e também permeiam a performance de toda a música; (vii) abarcam timbres que muitas vezes são adaptados dos instrumentos musicais regionais e são tocados lembrando os aspectos originais desses instrumentos no âmbito de cada estilo musicais; (viii) abrangem canções além de composições instrumentais ou arranjos instrumentais dessas canções; e (ix) contêm letras poéticas com temas variados e do cotidiano que revelam situações vividas relacionadas à natureza e aos aspectos geográficos, raciais, sociais e políticos locais. Características estas que encontram reverberação nas concepções e nos aspectos estéticos, estruturais e interpretativos elencados por Brasil Rocha Brito e Júlio Medaglia (CAMPOS, 1974). As subseções a seguir apresentam as classificações e características do recorte de música brasileira identificado pelos especialistas.
4.1 Gêneros e outras formas de classificação
Os entrevistados consideraram o gênero como algo que exprime um repertório específico que tem conexão com algum ritmo relacionado à raiz da cultura brasileira, embora se saiba que essa classificação é questionável porque existem arranjos que combinam mais de dois gêneros. Ou seja, embora seja percebida a dificuldade para exprimir exatamente o enquadramento de uma música brasileira como pertencente a um conjunto específico, existe algum legado de tradição cultural nesse agrupamento. Além disso, por vezes os compositores foram destacados como representantes de um determinado gênero, dando ênfase a figura do arranjador e do intérprete proeminente, a saber:
(...) a gente consegue beber da raiz e se misturar ao mesmo tempo. Como é difícil falar dentro da MPB de um estilo, porque não é forró, não é samba, não é bossa nova, não é jazz, é tudo isso (...) é algo tão brasileiro (P14, p. 19. Grifo nosso. ).
(...) começou em meados de 1850 (sic) mas foi a partir do Pixinguinha que você reconhecia como uma música brasileira mesmo e consolidou num gênero musical. Surgiu no Rio de Janeiro, mas como todo mundo ia para lá em busca de trabalho, pessoas de todo o Brasil contribuíram. O choro tem um pouquinho de cada lugar do Brasil (P9, p. 9-10. Grifo nosso).
Tom Jobim, que era um pianista, abraçando o violão, porque o violão e a voz, e o homem, e a mensagem, é uma simbiose. Ganha uma força no cenário brasileiro que vai começando a criar quase que um gênero (P10, p. 15. Grifo nosso).
Além disso, percebeu-se que a classificação do repertório brasileiro em função de gêneros musicais pode ser difícil, mesmo do ponto de vista de um músico especialista, demonstrando a relevância de se considerar a música em seus diferentes contextos culturais, geográficos, históricos etc.) e valorização das classificações colaborativas feitas pelos próprios usuários (de preferência considerar especialistas ou fãs). Essa característica sugere que a oferta de contexto para além do atributo gênero musical é indispensável para explicar o seu conceito a partir da conexão com outros conceitos como levada, swing, referências e influências.
Por outro lado, a classificação de músicas brasileiras em erudita e popular não atende às demandas informacionais do conjunto de especialistas entrevistados nesta pesquisa. Para eles, o fato de considerar a música erudita com maior complexidade de execução ou de pensá-la como uma arte mais elaborada não classificam satisfatoriamente os repertórios brasileiros. Percebe-se, também, que com o passar do tempo, uma música popular pode-se tornar erudita ou se tornar popular quando é regravada por um artista de outra geração. Um entrevistado comentou:
Porque eu acho que essa questão que tem de música erudita, é como uma fala de erudição, aquela música bem elaborada, que se tem um nível de reflexão e de conhecimento, tal, aquelas coisas dos gêneros das músicas. Mas, a música popular também é difícil, ela é, muitas vezes, complicadíssima, [...] se for pensar a nível de erudição (a música brasileira) é tão difícil quanto a erudita. Mas, é porque se aceitou isso, principalmente a academia, na minha opinião é bom deixar isso frisado (P5, p. 14-15. Grifo nosso)
O letramento musical formal já não é característica apenas dos músicos eruditos, fazendo com que a prática musical “erudita” se confunda com a “popular”, uma vez que sua concepção ou execução podem atingir níveis de complexidade semelhantes. Nos relatos, alguns tipos de música popular brasileira se confundem com a erudita porque sua produção envolve muita elaboração, como por exemplo:
(...) O choro é uma música erudita. É no sentido de refino, de ter algo melódico e rítmica naquela música. Você consegue registrar a música inteira, tem uma preocupação na melodia e harmônica (...), uma preocupação composicional (P9, p. 20. Grifo nosso).
Quando me refiro à MPB eu penso por esse lado da música produzida no Brasil e que seja de cunho popular. (...) eu poderia colocar no momento de hoje o Pixinguinha como música erudita. Vamos pegar a mais famosa dele, Carinhoso, quando a Marisa Monte canta vira MPB e quando é o choro é erudito. Então, é uma definição que eu acho muito difícil de fazer. (P7, p. 13. Grifo nosso).
Embora os entrevistados tenham discordado em algum nível das formas tradicionais de classificação (por gênero e pelos conceitos erudito e popular), eles apresentaram outras categorias, consideradas úteis e não excludentes entre si. As formas mais relevantes que surgiram no levantamento estão destacadas a seguir.
4.1.1 Músicas que são os “clássicos” e as “pop”
Músicas que são os “clássicos” são aquelas que ultrapassam a época em que foram compostas e são ouvidas ou regravadas em muitas épocas até os dias atuais, e as passageiras são aquelas que aparecem e rapidamente são as mais ouvidas por um tempo determinado, mas desaparecem em pouco tempo, conforme depoimento a seguir:
(...) modões são esses clássicos dos anos 60, 70 que se popularizaram, que naquela época era um outro contexto. (...) Já percebi que essa música chamava sertanejo universitário, que são os hits das rádios, vem e passa logo. (...) tirávamos 12 músicas e dentro de três muitas dessas músicas já estavam ultrapassadas (P1, p. 2. Grifo nosso).
4.1.2 Música elaborada e comercial
A música elaborada – também entendida como a música elitizada que tem algum registro escrito, de melodia com cifra ou parciais de arranjos – é aquela feita para um público de “iniciados”, ou seja, são músicos ou intelectuais ou, ainda, jovens influenciados pelas preferências musicais de seus pais. A música comercial ou chamada de mais “simples” é aquela que, em geral, os únicos registros são as gravações ou algumas letras com cifras providas por sites de músicas e tem um apelo para o público mais leigo. Assim,
Quando temos o contato com o jazz, bossa nova e blues, vemos que é uma música bem mais elaborada, mais trabalhada. (...) eu vejo a música popular, a MPB – vamos falar de bossa nova, samba, samba de raiz como Cartola, samba jazz, essa coisa do Cesar Camargo... essas músicas instrumentais, vamos chamar de jazz brasileiro; choro. Acho que é um gênero que se tornou mais elitizado, então eu colocaria dentro da caixa daqueles que são iniciados [que têm] uma forte influência dos pais que sejam músicos instrumentais, ou que já tocaram alguma coisa, ou que ouviram aquilo, ou influência de escolas de música e centros de formação musical (P1, p. 10. Grifo nosso).
Algumas características que distinguem a música elaborada daquela mais comercial e de entretenimento podem ser percebidas, principalmente, no arranjo quando (i) a harmonia caminha junto com as notas da melodia; (ii) os acordes são rebuscados, ou seja, incluem mais dissonâncias como as extensões de 9as, 13as, etc.; (iii) alguns estilos são mais representativos; e (iv) os músicos possuem mais conhecimento formal, ou seja, sabem escrever e ler partituras. Um entrevistado comentou que:
(...) uma música brasileira [que] a gente pode dizer um pouco mais elaborada, mais bem escrita, escrever composições e harmonias mais bem pensadas, mais bem arranjada, coisas do Jobim, do Chico Buarque, do Vinícius, têm um pouquinho do jazz. (...) Se você vai fazer MPB, choro, as músicas são mais sofisticadas, em termos harmônicos, geralmente o pessoal tem mais formação e escreve essas coisas. Mas quando você vai trabalhar no contexto de músicas de pop e rock e tal, o pessoal não escreve nada. Eles passam para você a música, você tira de ouvido (P3, p. 4. Grifo nosso).
Percebe-se que alguns estilos têm maior preocupação em buscar elementos da cultura brasileira e das temáticas cotidianas com maior elaboração dos elementos intrínsecos, enquanto outros estilos seguem tendências de consumo por um grande público, com os elementos musicais ficando em segundo plano. Para Ulhôa (1997), talvez este fenômeno ocorra porque o significado das músicas não está na sua origem, mas no seu uso. Significa dizer que, embora os estilos carreguem uma certa carga de prestígio e da sua utilização no cotidiano, a legitimação de um estilo está além da maneira como é adotada por grupos hegemônicos; inclui a marginalização do que é diferente ou do que as músicas têm em comum e a desqualificação estética. Implica dizer que músicas melodramáticas são “bregas” ou que músicas de grupos emergentes são “popularescas” ou, ainda, que as músicas ouvidas por um grande público heterogêneo sejam comerciais.
4.1.3 Música instrumental e canções
As músicas brasileiras podem ser essencialmente instrumentais ou terem vozes que fazem o papel de um instrumento musical, ou seja, compõem a textura musical emitindo palavras isoladas ou até frases. Incluem-se também as orquestrações para grupos grandes ou pequenos, populares (big band ou diferentes formações de conjuntos instrumentais, como trio, quarteto, etc.) ou eruditos (orquestras clássicas, grupos de câmara de cordas, etc.). As canções incluem as músicas com letras em que a elaboração dos arranjos deve privilegiar o texto. Assim:
(...) teríamos música instrumental, música com letra; dentro da música instrumental temos música pop, mais comercial, e música mais cult, menos comercial (P4, p. 11. Grifo nosso).
Seriam as músicas orquestradas (...) seria uma categoria. Tem as músicas que são composições minhas, que têm orquestra também, mas eu vejo como uma outra categoria, que seria de voz, cantada e tal (...) Aí têm as instrumentais, têm as cantadas e têm as de violão, que eu faço os arranjos, mas no violão. É instrumental também, mas não é orquestrada, são arranjos violonísticos (P8, p. 11. Grifo nosso).
Pelo primeiro relato é percebida a existência de uma canção brasileira de cunho mais comercial. No entanto, há de se considerar as letras mais poéticas citadas nos relatos sobre a música “elaborada”. Neste caso, de acordo com Souza (2008), seriam os estilos que possuem maior sofisticação nas letras, como é o caso das parcerias musicais de vários compositores, como aconteceu entre Vinícius de Morais, Tom Jobim, Baden Powell, Carlos Lyra, Edu Lobo e outros.
4.1.4 Músicas com ou sem improvisação
As músicas que têm mais liberdade para improvisação são aquelas que, em geral, são escritas com cifras. O grau de liberdade pode variar dependendo da composição ou do arranjo. As músicas mais próximas às “eruditas” e que possuem o registro escrito da composição e podem ser tocadas a partir desse registro. Deve-se cuidar para que as práticas musicais da tradição daquela música não se percam de maneira a excluir inteiramente o desenvolvimento da criação do intérprete, como no caso do choro. Entretanto, segundo dois entrevistados:
(...) mas aí você não pode padronizar isso como música popular, eu vou te explicar por quê. A “popular”, ela é uma escrita mais resumida, vamos dizer assim, mais simplificada, para você poder... Porque é uma escrita facilitada a partir da cifra e da melodia para que você possa ter a liberdade de criar em cima, porque ela é uma cifra voltada para essa coisa da música que tem mais a improvisação e tal (...) (P5, p. 16, Grifo nosso).
O popular tem essa liberdade maior. O erudito geralmente a gente segue a partitura e vai para alguma interpretação (P21, P. 2. Grifo nosso).
4.2 Características essenciais
Além das classificações sugeridas para o corpus de músicas brasileiras identificado, os entrevistados também apontaram algumas peculiaridades relativas ao conceito de obra, arranjo, formas de registro e divulgação de músicas, além dos atores envolvidos no processo criativo desse recorte. Esses elementos estão descritos a seguir.
4.2.1 Arranjo como elemento central
No recorte de música brasileira, o arranjo é elemento central e assume papel fundamental em conjunto com a composição. De fato, os entrevistados consideraram que, na música brasileira, toda composição tem um arranjo e todo arranjo é baseado em uma composição. Nesse caso, ambos são obras intelectuais, porque envolvem um processo criativo intenso. Por sua vez, o arranjo é visto como algo que faz parte tanto do processo de composição original como de um processo derivado da obra de um outro compositor. O conceito de arranjo como mencionado pelos entrevistados é correspondente ao discutido por Aragão (2001) como sendo pertencente à produção da música popular.
Como parte do processo de composição, os arranjos são as obras autorais em que o compositor é, muitas vezes, o próprio arranjador que se inspira na cultura a qual está imerso e possui liberdade – no âmbito dos parâmetros de seu estilo influenciado pelo meio cultural – para escolher a estrutura, o gênero, a harmonização, entre outros. Como uma criação a partir de uma obra já registrada de outro compositor, o arranjo não é uma nova composição, na maioria dos casos, embora existam vários arranjos diferentes de uma mesma obra feita pelo próprio compositor. Segundo um entrevistado,
O compositor não precisa necessariamente ser arranjador, embora alguns sejam. (...) concebe, escreve, imagina e ouve um trabalho coletivo. Normalmente as músicas nascem apenas com uma melodia, uma música com um instrumento harmônico, então voz e violão, ou a melodia e o piano (P12, p. 4. Grifo nosso).
Em muitos casos, o compositor não é mencionado nas informações que aparecem junto a uma gravação, principalmente no contexto da web – as músicas ficam conhecidas como pertencentes a um intérprete ou uma banda, que acabam estabelecendo arranjos para uma determinada composição. Portanto,
O compositor, muitas vezes, fica em segundo plano, porque a gente acaba conhecendo muito mais o interprete, o cantor que canta a música. Essa música é do Titãs, do Capital, e, muitas vezes, o compositor nem é citado. (P2, p. 4-5. Grifo nosso).
4.2.2 Arranjos, composições, referências e versões
Quando se está produzindo algo a partir de uma composição existente, o arranjador busca referências relacionadas aos elementos da cultura brasileira que deseja utilizar – que remetam ao estilo da composição original, dependendo da ideia de concepção do arranjador. De qualquer modo, essa busca sugere que as composições são ideias musicais que possuem versões, materializadas em arranjos, alguns mais próximos da versão original e outros geradas à partir dessa ideia original.
Para o trabalho de composição, o que o compositor utiliza como ferramenta são as referências musicais obtidas a partir de suas experiências de muitas audições. Neste caso, o manuseio dessas referências pode ser mais livre e permitir maior nível de experimentação, porque ele não tem a obrigação de atender à preferência musical de alguém que lhe fez uma encomenda. Um entrevistado apontou que
(...) quando você está compondo, porque composição é um negócio seu, a referência é só sua. Às vezes, alguma coisa que eu ouço me dá ideias, ouço uma coisa, “que legal a ideia desse cara, vou explorar isso”. Ou, às vezes se eu quero fazer o que, para mim, é meio raro, “quero fazer uma música especificamente nesse estilo”. Composição realmente é você criar a sua coisa da sua cabeça, enfim. (...) Eu sento lá, ou bolo uma melodia, ou pego uma sequência de harmonias, vou experimentando. Eu não tenho muita linha para isso, é mais uma experimentação mesmo (P3, p. 16. Grifo nosso).
Percebe-se que o compositor vai atrás de referências que remetem aos estilos, às sonoridades, às estruturas e às conduções harmônicas que foram feitas para uma determinada formação (instrumental e/ou vocal), por exemplo. Essas referências servem como um “baú” de ideias para o compositor, além de otimizar e agilizar o seu trabalho e são obtidas a partir de um estilo incorporado por um intérprete específico ou de uma gravação de uma performance específica.
4.2.3 Relação entre arranjos, harmonização e melodia
É necessário identificar as melodias de composições originais nos arranjos e a relação que se estabelece entre arranjos de uma mesma composição ou entre obras de um mesmo compositor. Isso se deve ao fato da existência de variadas versões que uma mesma composição pode apresentar dependendo do seu favoritismo. Por exemplo, versões de traduções de letras ou daquelas que foram compostas incialmente como instrumentais e depois foram-lhe acrescidas letras transformando-as em canções e acrescentaram a elas outro título. Do ponto de vista da criação, a composição geralmente envolve uma ideia original que é elaborada a partir de um tema melódico instrumental ou lhe é atribuído uma letra transformando-a em canção.
As harmonizações estabelecem relações com os gêneros musicais a exemplo daquelas relacionadas à Bossa Nova ou com sonoridades que remetem à uma mesma “sensação” ou “sentimento” (mood). A discriminação de um arranjo estabelecerá a correspondência com as demais atividades musicais a exemplo de uma adaptação ou de uma transcrição.
A identificação das melodias de composições nos arranjos e a relação que se estabelece entre os arranjos de uma mesma composição foi percebida nas entrevistas. Além disso, foi mencionada a necessidade de identificação dos instrumentos musicais “originais” relacionados a um dado gênero musical de modo a compará-los às adaptações que lhes foram conferidas em outras gravações.
Por sua vez, o compositor é alguém que não necessariamente também assume a função de arranjador e suas obras nascem a partir de uma melodia e uma sequência harmônica que, em geral, é escrita sob a forma de cifras acima da melodia grafada em um pentagrama. As ideias originais, por sua vez, são caracterizadas por, pelo menos um tema melódico e, em alguns casos, também pela canção.
4.2.4 Canção como principal produto musical
As canções são consideradas como produto principal desse recorte de música brasileira. Os arranjos instrumentais de canções consideram a melodia como a base para o arranjo e ela é tratada como mais um instrumento musical da atividade composicional. No recorte de música brasileira, as harmonizações consideram a voz como um instrumento musical e exerce um papel diferente daqueles estilos em que existe uma clara distinção entre o cantor e o acompanhamento instrumental. Ambas as especificações estão presentes nessa música como destaque para a primeira especificação.
Por vezes, o registro escrito inclui as letras sem a partitura convencional e são acompanhadas de cifras e divisão dos compassos, indicando a métrica da música, como é o caso dos songbooks editados por alguns compositores brasileiros. Além disso, para as gravações, as partituras vão desde melodia e cifra até uma partitura que contenha as partes instrumentais ou o ritmo escrito, dependendo do perfil dos músicos que participam da gravação. Dois entrevistados comentaram que
(...) antes [da Internet] ia na loja de música e comprava o songbook mesmo e estudava (P17, p. 6).
Muitas vezes os músicos nem fazem questão de anotar uma cifra nem nada. Dependendo da experiência, do background, já rola uma letra cifrada, uma partitura mais elaborada, um arranjo mais fino... vai desde esse contexto até um arranjo mais refinado, e você precisa realmente de fontes (P11, p. 4. Grifo nosso).
4.2.5 Recursos musicais comunicados por registro gravado
Para todas as composições são realizados arranjos para fins do registro gravado, mesmo para aquelas performances que são feitas pelo próprio compositor ou que não são registradas em partituras. No recorte apresentado, o arranjo tende a ser comunicado por estratégias que privilegiam a difusão primária a partir de gravações. Portanto, o áudio é o principal meio considerado para o registro gravado e a difusão da música brasileira.
É comum não existirem registros escritos para os arranjos. Nesses casos, os acordos para a performance que será registrada em uma gravação são feitos verbalmente ou por meio de esboços individuais ou lembretes escritos com notações até não convencionais próprias a quem as registrou. Pode ainda existir uma partitura “guia” contendo desde melodias, cifras, letras, até convenções rítmicas e estrutura (introduções, número de compassos, repetições, trechos de improvisos, entre outros). Por outro lado, as partituras existem quando são feitos arranjos para grandes conjuntos os quais músicos eruditos ou que não possuem a prática nos estilos que exigem improvisação e os arranjadores são pagos para realizarem o trabalho, ou para fins didáticos.
Destaca-se que, no caso do arranjo que é feito para a primeira gravação de uma composição, os direitos autorais do arranjador são conexos, ou seja, ele é reconhecido como parte do conjunto de pessoas e intérpretes que fazem parte dessa performance gravada. Muitas vezes, o nome do arranjador não é mencionado ou é citado como sendo responsável pela produção musical.
Os músicos relataram ainda que a música brasileira que faz parte de suas carreiras profissionais foi apreendida por meio da tradição oral. Significa dizer que a maneira que os músicos assimilam essa música brasileira, que faz parte de seu universo profissional, se dá também por meio do áudio. É ressaltado por vários deles que essas gravações fazem parte da herança musical transmitida principalmente pela família. Um entrevistado apontou que
Eu comecei bem cedo, por influência do meu pai, principalmente, que é músico, de ouvido, popular, ele também aprendeu sem partitura, sem nada. E aprendi nessa mesma linha, ouvindo discos, aprendendo as primeiras músicas sempre de uma maneira muito autodidata (P9, p. 12. Grifo nosso).
As partituras das músicas brasileiras conceituadas pelos entrevistados estão registradas por meio de melodias escritas em notação convencional com cifras, que são letras que representam os acordes ou a harmonia que acompanha aquela linha melódica. No entanto, a partitura parece ter um papel de menor relevância na divulgação, se comparada às gravações, e geralmente são usadas para tirar as dúvidas quando o músico está tentando copiar uma música “de ouvido” ou um recurso para o aprendizado inicial de uma música, mas seu uso é limitado porque empobrece a interpretação. Dois entrevistados mencionaram que
Você precisa, de fato, ter sensibilidade, esse ouvido capaz de reconhecer essas sutilezas. Porque eu não conheço um material que substitua a audição, não tem como, na música popular principalmente (P9, p. 4. Grifo nosso).
(..) A partitura era só um meio de me esclarecer sobre a gravação. Então, essa é a finalidade da partitura, na maioria dos casos pra mim (P9, p. 17. Grifo nosso).
4.2.6 Papéis e o arranjo coletivo
Nas entrevistas foram identificadas algumas atividades vinculadas à atuação profissional dos entrevistados. O arranjador é um agente que possui muita ênfase nesta música brasileira de tradição mais oral. O papel que desempenha inclui a realização de trabalhos por encomendas de músicas específicas por cantores, maestros ou grupos musicais, por exemplo. Em geral, quando a encomenda envolve a gravação da música, esse trabalho é escrito ou mais bem esquematizado de maneira a agilizar a execução no estúdio de gravação. O arranjador também não necessariamente acumula o papel de produtor musical, embora isso possa ser comum quando quem contrata conhece a experiência desse profissional no campo da produção.
A principal função desse agente é enriquecer a obra original de um compositor que, a princípio, se reduz a uma melodia e um instrumento harmônico. O profissional que atua na música brasileira desenvolve esta habilidade de fazer arranjos depois de algum tempo de experiência como intérprete e pela necessidade de atender às gravações em estúdios ou às encomendas para situações específicas, como uma apresentação em um evento relevante ou um festival de música, um casamento. As competências profissionais incluem a capacidade de prever auditivamente a combinação das partes instrumentais separadamente, além de desenvolver-se como maior maestria o arranjo em estilos específicos de música brasileira. Um entrevistado afirmou que
Eu encaro o arranjo como a roupagem que você dá para uma composição. A rigor, a composição é só melodia e harmonia. O que o arranjador faz? Ele pega uma melodia, uma harmonia, e coloca de uma maneira a ser apresentada para alguém. Ele cria uma estrutura para mostrar essa música. Por exemplo, “vamos fazer uma introdução, apresentar o tema A, o tema B, (...), aí vamos fazer Coda pra fechar”. O arranjador faz a arte final da apresentação da canção. Nesse aspecto, ele leva em consideração as características da música, se a música tem letra, se é uma bossa nova, (...) (P3, p. 12-13. Grifo nosso).
O intérprete, em geral, acompanha os artistas, atende eventos de quaisquer naturezas e enriquece sua práxis por meio da vivência em locais que cultivam diferentes estilos da música brasileira. Pode trabalhar na perspectiva de instrumentista – quando se limita a explorar questões mais técnicas de um instrumento musical ou repertórios específicos – ou de músico – quando possui várias frentes de atuação como acompanhante, arranjador, músico que toca em diversas formações.
O produtor musical atua na escolha das músicas que farão parte de um álbum, colabora no arranjo que será gravado exercendo, por vezes, as duas funções – arranjador e produtor – principalmente na gravação de uma música que envolve pouco recurso, gerencia a execução do arranjo, conduz os ensaios, gerencia a performance dos músicos, supervisiona a execução de uma gravação ou de um show e acompanha o processo de gravação – mixagem e masterização.
Há também o produtor fonográfico que possui mais uma visão de mercado, tecendo estratégias de marketing e de venda. Nesta perspectiva, decide sobre o álbum a partir de uma estilística e de uma linguagem voltada para um público-alvo, escolhe os arranjadores que imprimem nas músicas o estilo adequado a esse público. Além disso, atua, por vezes, como o arregimentador na escolha dos intérpretes mais especialistas naquele determinado estilo desejado. Isto foi comentado por um dos entrevistados:
O produtor musical ele não necessariamente é o arranjador. Arranjador é quem escreve arranjo. Produtor é quem pensa mais em mercado, dá uma visão estilística, linguística, pensa no público alvo, pensa em estratégias de marketing (P12, p. 10-11. Grifo nosso).
Além destes agentes, alguns outros foram mencionados por alguns entrevistados como o técnico de áudio que realiza a mixagem ou a masterização e o hitmaker que é alguém que lança músicas muito populares que fazem sucesso.
5 Discussão e análise dos dados
O recorte de música brasileira identificado nesse levantamento parece compatível com as características do estilo conhecido como música popular, em oposição ao que se denomina música clássica ocidental, considerando a definição estabelecida por Van Malssen (2014). Trata-se de uma música que tem atributos internos e externos que, em grande medida, coincidem com as proposições feitas por organismos de padronização, mas que merecem ser revistos para a devida adequação às peculiaridades citadas. Por outro lado, para ser considerada como informação (Downie, 2003) imersa no dia-a-dia, sugere-se aprimorar os investimentos na aplicação de modelos multi-entidade a este domínio, já que estes permitem colocar os objetos de informação de músicas brasileiras em contexto, relacionando-os entre si e com objetos extramusicais (CRUZ, 2008).
Quando o próprio compositor é o arranjador, as ideias musicais resultam de sua imersão em um dado contexto cultural e há maior liberdade para a criação com base nesse contexto. No caso em que o arranjador é outra pessoa, a sua criação pode ser limitada (mas não restrita) às referências originais do compositor ou de outras feitas por diferentes intérpretes ou grupos musicais. Essa identificação não somente auxilia no agrupamento das arranjos relacionadas à uma mesma obra, mas também no agrupamento de arranjos mais próximos à composição original ou à uma interpretação específica – o que promove maior aderência aos contextos culturais.
O retorno dado pelos músicos sugere que a imersão na cultura é um dos fatores que leva um intérprete a identificar-se como um “porta-voz” dessa cultura. Por outro lado, nos relatos foi percebida a divisão da música brasileira em sintonia com a globalização: (i) uma música “de registro” que continua a se conectar com a música de raiz e possui certa elaboração, pois cada vez que é tocada para um público mais seleto seus intérpretes podem modificar o seu arranjo; e (ii) uma música de entretenimento que se populariza na divulgação para um público mais amplo. Estilos como a música sertaneja, o axé e o pagode, mesmo tendo alguma conexão com as músicas “de raiz” em algum momento, se popularizaram e tiveram um apelo mais comercial ou de entretenimento. A bossa nova, o choro, o frevo ou o xaxado são estilos menos “popularizados” e feitos para um público menor e não possuem um apelo tão comercial. Podem-se considerar as músicas regionalistas que, em nenhum momento, tiveram uma divulgação para muito além de suas comunidades. Percebe-se que o trânsito entre alguns estilos, em alguma época podem ser considerados como música comercial e em outras se tornam mais regionalistas, como é o caso de alguns da música baiana (o axé, por exemplo).
É relevante destacar que, embora não haja consenso de que realmente o que se ouve é uma música que tem sua autenticidade comprovada nos elementos de uma raiz cultural bem expressa no sotaque, parece importante, do ponto de vista de organização, que haja explicitação de aspectos contextuais que envolvem o intérprete no contexto da gravação daquele álbum de músicas brasileiras, ou seja, se aquele intérprete teve algum contato com a cultura brasileira no que diz respeito às manifestações musicais que compõem os ritmos que executa nas gravações do seu álbum. A este respeito, os músicos profissionais orientam a indicação das fontes originais que possam auxiliar aqueles que querem ter alguma imersão na cultura que envolve a música brasileira. Napolitano e Wasserman (٢٠٠٠, p. ١٦٨) advogam sobre uma autenticidade que não deve ser compreendida como remetendo a um “original”. Por outro lado, a análise dos dados coletados sugere que seja feita uma distinção de uma música que realmente representa a cultura brasileira para fins de preservação de patrimônio – sem desprezar a contribuição de estrangeiros na pesquisa e na divulgação dessa cultura.
Do ponto de vista prático, em termos de classificação, as formas propostas foram acatadas, mas outras foram listadas e esses elementos podem ajudar a caracterizar melhor o acervo de músicas brasileiras. Interessante observar que o conceito de gênero, tido como um dos principais elementos para classificação de músicas, não é a referência principal para músicos especialistas, diferente do que ocorre com usuários leigos. Cabe portanto, pensar em alternativas de classificação para além das que tem sido tradicionalmente propostas.
Quanto à sua gênese, o conceito de obra para o recorte identificado parece muito mais difícil de se definir do que o que está proposto no FRBR e essa visão é corroborada por autores como Le Boeuf (2005), Miller e Le Boeuf (2005) e Schmidt (2012). Neste levantamento, percebe-se que uma determinada composição é formada por uma ideia musical original, representada por um tema melódico e/ ou uma letra. Por sua vez, essa ideia musical é materializada em diferentes versões, algumas instrumentais e outras com letras. Além disso, uma composição não precisa necessariamente conter uma letra e uma composição que nasceu com letra pode derivar arranjos gravados que não envolvem o texto cantado original ou mesmo ser formado por letras diferentes da concepção original. Por sua vez, uma versão de ideia original pode ser um arranjo (escrito ou improvisado) ou uma expressão de performance, que é a execução da versão em questão uma vez que mesmo uma composição original é apresentada na forma de uma primeira versão de arranjo. Essas informações sugerem que sistemas de recuperação de músicas brasileiras devem permitir alternativas de navegação para além dos metadados tradicionais propostos em bibliotecas universitárias. Do mesmo modo, é preciso uma atenção maior quando se for utilizar sistemas baseados no WEMI/FRBR, de modo a acomodar conceitos como arranjo, composição, canção, versões e referências típicos das músicas brasileiras.
Por outro lado, foi identificado nesta pesquisa que os compositores têm necessidades de busca por diferentes versões de uma composição e fazem uma gradação entre os diversos arranjos colocando alguns mais próximos da versão original e outros mais distantes. Essa característica sugere que sistemas de recuperação de músicas brasileiras devem considerar essas nuances no desenho de metadados e padrões bibliográficos. Em contrapartida, as consultas de usuários não especializados, de acordo com pesquisa de Cruz (2008), parecem mais preocupados em recuperar uma determinada versão de execução de uma música gravada e costumam se basear no intérprete ao invés de usarem o compositor como parâmetro de busca. Em outras palavras, o intérprete e os arranjadores passam a ter importância igual ou superior ao compositor da música gravada e isso pode ser um elemento diferencial em bibliotecas digitais e sistemas de informação que tratam esse tipo de acervo.
Em um registro gravado, seja ele uma música isolada ou um agregado de músicas, como um CD ou DVD, há vários colaboradores e essas informações se mostraram importantes para os entrevistados. Portanto, é relevante identificar formas de acesso adequadas contendo todas as informações sobre os participantes da criação intelectual (registro gravado) de modo adequado e compatível com as necessidades dos usuários. Kishimoto e Snyder (2016), publicaram um artigo no qual relatam os problemas de criação de pontos de acesso propostos no RDA para o atendimento de músicas populares, nos quais atores como arranjadores, intérpretes, gravações específicas e outras peculiaridades devem ser tratadas. Nessa mesma linha, Van Malssen (2014) faz uma separação de músicas populares em relação a outros tipos de música, identificando particulares que também foram identificadas no recorte apresentado, dando a entender que esse corpus musical carece de uma representação formal para garantir o correto tratamento para efeito de organização e preservação digital.
Um outro aspecto importante identificado no recorte é a predileção pelo formato áudio gravado em relação ao formato escrito tanto para o registro de ideias musicais, como para formação de acervos. Portanto, na visão dos entrevistados, embora uma música possa ser expressa em formato escrito, esse não parece ser a prioridade para músicas brasileiras, a não ser em casos específicos. Essa visão difere, por exemplo, da perspectiva RISM4, que é uma iniciativa que nasceu para o tratamento de músicas registradas em formato impresso.
Por fim, os diversos papéis e funções identificadas na produção de arranjos de música brasileira sugerem uma revisão das estratégias de catalogação e autoria musical, de modo a incluir agentes que normalmente são deixados em um nível menor de importância, como parece ser o caso do intérprete, do produtor musical e fonográfico, além de outros não citados.
6 Considerações finais
Este artigo apresentou as características de definição de um recorte de música brasileira, com ênfase em repertórios mais populares, como uma síntese da pesquisa realizada por Silva (2017). Os resultados demonstraram as especificidades da informação musical que apontam um recorte da música brasileira com características peculiares à sua produção que envolve um processo de elaboração de arranjos para fins de registro gravado. Embora muitos dos conceitos apresentados pareçam comuns às músicas populares de outros países, a adequação das características dessa música a outro contexto musical precisa ser investigada.
Estas peculiaridades sugerem (i) o uso de modelagens que permitam descrever a informação na perspectiva dos eventos que produzem a música; (ii) categorização do arranjo como obra que contém variadas versões; (iii) análise das derivações de obra a partir da identificação de referências (comparação com outras obras) e influências de outros artistas na criação; e (iv) compreensão dos gêneros musicais em uma perspectiva ontológica que envolve os aspectos relacionados à sua denominação, origem, evolução, interpretação e influências estrangeiras.
Embora o estudo não tenha sido exaustivo, os resultados ressaltam a importância de se considerar a particularização da música brasileira a partir da visão de especialistas a respeito do binômio música e cultura e em não aceitar adaptações de padrões internacionais a essa corpus musical. Parece que, antes da adoção de modelos bibliográficos genéricos, é importante a realização de recortes necessários à compreensão mais profunda do grande panorama da música brasileira para fins da organização de informação. Muito dessa percepção advém das constatações sobre as demandas informacionais não atendidas pelos especialistas da área, sugerindo a construção metadados, modelos bibliográficos e sistemas de recuperação musical mais compatíveis com o acervo em questão.
A título de sugestão, políticas públicas específicas sobre o patrimônio musical brasileiro podem ser criadas para estabelecer (i) padrões de catalogação adequados à música brasileira a partir do estudo da arquitetura dessa música; (ii) propor adequações das propostas internacionais na perspectiva dos músicos brasileiros – não adotar adaptações para a informação musical brasileira fornecidas por instituições estrangeiras, além de (iii) sugerir quais seriam os critérios que agregam os elementos da cultura brasileira para a organização e o tratamento dessa informação nos contextos diversos de aplicação, incluindo a web semântica.
Em estudos futuros pretende-se avançar em pesquisas com identificação de outros agrupamentos de música brasileira com suas especificidades e compará-los ao recorte encontrado nesta pesquisa, incluindo a investigação de outros grupos nativos e especialistas, como audiófilos, teóricos e analistas de música, musicólogos, etnomusicólogos, entre outros, para compreender suas perspectivas a respeito da informação musical brasileira e os caminhos a serem percorridos de modo a prover estratégias de organização, preservação e curadoria da música popular brasileira em consonância com a cultura e a tradição nacional.
Referências
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1 Professora do Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia de Brasília, Brasil. ORCID https://orcid.org/0000-0002-1834-2805. E-mail: jurfsilva@gmail.com
2 Professor Adjunto da Universidade de Brasília, Brasil. ORCID https://orcid.org/0000-0001-5640-773X. E-mail: fwcruz@unb.br
3 Professor Titular da Universidade de Brasília, Brasil. ORCID http://orcid.org/0000-0002-5725-9932. E-mail: murilobc@unb.br
4 Mais informações em: http://www.rism.info/organisation.html.
relato de pesquisa