NOTA TÉCNICA ALUSIVA AO ESTUDO PUBLICADO PELO MINISTÉRIO DA MULHER, DA FAMÍLIA E DOS DIREITOS HUMANOS

2019-05-30
1- O documento sugere que a Logoterapia e Análise Existecncial (LAE) teria surgido a partir da experiência de Viktor Frankl como prisioneiro nos campos de concentração. Na realidade, Viktor Frankl inaugura um novo pensamento no âmbito da psicoterapia a partir do seu diálogo com a psicanálise de Freud e a psicologia individual de Adler, quando publica artigos e profere conferências sobre uma nova ótica antropológica. Ademais, antes de ser encaminhado para Auschwitz, como prisioneiro comum, Frankl tinha escrito os fundamentos da sua análise existencial no seu manuscrito intitulado Ärtzliche Seelsorge. Esse manuscrito se perdeu durante a sua estada nos campos de concentração, e foi reconstruído, pelo autor, de forma taquigráfica e publicado após a sua libertação. Dessa forma, a sua experiência neste momento trágico da história pode ser considerada como uma validação vivencial do próprio pensamento do autor. 2 – O texto refere-se a Scheler e a Hartman como autores que analisaram processos psíquicos e que influenciaram Frankl. De fato, tais autores já apontavam a dimensão espiritual do ser humano numa perspectiva filosófica, entretanto, Frankl foi mais influenciado por Max Scheler, sobretudo no que tange a fenomenologia dos valores. A LAE se inspira neste filósofo para adentrar na ontologia dimensional, apontando que os fenômenos noéticos, que distingue os homens dos animais, se originam em uma instância especificamente humana (noológica). Em nenhum momento Viktor Frankl utiliza o substantivo noesis, conforme sugere o documento do referido Ministério. Nesse sentido a LAE tem por escopo a reumanização por meio da ampliação e/ou expressão desta dimensão noológica, mas, em hipótese alguma, poderia ser compreendida ou reduzida apenas com o senso religioso. 3- O estudo também sugere que o suicídio decorre apenas por uma dificuldade em encontrar sentido e responder livremente. Entretanto, Frankl reconhece a complexidade deste fenômeno e não o reduz a frustração existencial, mas reconhece que o seu caráter multifatorial; sobretudo quando sugere que a depressão pode ter diversas origens: psicogênica, somatogênica e noogênica. Entretanto, tendo por base o aforismo de Nietzche, “quem tem um por que viver suporta quase todo como”, o autor compreende que ter consciência de um sentido no aqui e agora seria o principal fator de prevenção do comportamento suicida. Apenas de forma ampla, a LAE compreende o suicídio como um dos sintomas do vazio existencial (além da agressão e drogadição) e alerta para sua origem sociogênica de uma sociedade líquida, na terminologia de Zygmunt Bauman. O vácuo existencial se expressa por um desinteresse pelo mundo e/ou uma sensação de apatia, tédio e falta de valor na vida. Acrescentam-se ainda dois sintomas: o conformismo e o totalitarismo, fazer o que os outros fazem ou querer o que os outros querem. Nos casos de depressão endógena, a sensação de vazio seria um dos sintomas e não a sua causa. 4- O documento ainda afirma literalmente que “tal necessidade de sentido acerca da vida é um impulso especificamente humano arraigado no psiquismo”. Não obstante, Frankl não compreende a vontade de sentido nem como um impulso, nem originário do psiquismo, posto que todo fenômeno humano tem sua origem na dimensão noológica, conforme pontuado anteriormente. Se a pessoa fosse impulsionada para o sentido, seria, em última instância, determinada por este mesmo impulso, o que negaria toda a liberdade de escolha defendida pela LAE. Ademais, a liberdade da vontade é um conceito muito caro para a LAE, o que obviamente não nega os condicionamentos da existência, afinal, o ser humano não é livre de condições, mais é livre para se posicionar e escolher até mesmo perante as ideações suicidas. 5 – O documento aponta a eficácia da LAE citando apenas uma pesquisa realizada no contexto iraniano. Embora seja válido os resultados desse estudo, os autores não mencionam nenhuma das pesquisas já realizadas e publicadas no contexto brasileiro por grupos de estudos especializados na temática da LAE (como, por exemplo: Luz, J. M. O.; Murta, S. G.; Aquino, T. A. A. Avaliação de Resultados e Processo de uma Intervenção para Promoção de Sentido da Vida em Adolescentes. Temas em Psicologia, v. 25, p. 1795-1811, 2017 e Aquino, T. A. A.; Silva, J. P. ; Figueiredo, A. T. B. ; Dourado, E. T. S. ; Farias, E. C. S. Avaliação de uma proposta de prevenção do vazio existencial com adolescentes. Psicologia: Ciência e Profissão, v. 30, p. 146-159, 2011). 6 – No que tange as iniciativas que podem ser abordadas em termos de políticas públicas, o documento sugere propostas que abarcam as dimensões: social, espiritual, biológica e psicológica, o que seria condizente com a LAE. Entretanto, acaba reduzindo a dimensão espiritual ao religioso, deixando de contemplar as duas características especificamente humanas desta dimensão: a autotranscendência (amor e consciência) e o autodistanciamento (humor e heroísmo), além do potencial criativo e prospectivo do ser humano que desvelam sua busca de sentido. Embora se reconheçam os efeitos terapêuticos da religiosidade, conforme sugerem às pesquisas atuais em espiritualidade e saúde, Frankl sempre defendeu a autonomia da psicoterapia frente à religião. Dessa forma, a LAE reconhece que nenhum sistema de psicoterapia pode ser serva (ancila) da teologia. 7- Um empreendimento realizado pelo próprio Viktor Frankl, inspirado no trabalho do seu pai no Ministério de Assistência Social da Áustria, foi fundar Centros de Aconselhamentos para a Juventude, o que resultou na redução da taxa de suicídio na cidade de Viena. Esta iniciativa consistia em uma escuta psicológica gratuita realizada por profissionais da área da psicoterapia que acolhiam as demandas da juventude, o que seria plenamente exequível adaptar esta mesma prática para o contexto brasileiro. A LAE pode ser considerada relevante para contribuir com esse cenário, porém, há necessidade de zelo com os fundamentos teóricos que não se confundem com a religião. Assim, compreende-se que uma política pública direcionada para grupos mais vulneráveis ao suicídio é de extrema relevância, mas deve ser implementada com precisão científica e conceitual e com práticas baseadas em evidências em nosso próprio contexto sociocultural.