Revista de Ciências Sociais - Política & Trabalho

Programa de Pós-Graduação em Sociologia

Centro de Ciências Humanas, Letras e Artes

Universidade Federal da Paraíba

Publicação semestral do PPGS/UFPB

57 - Junho/Dezembro de 2022

ISSN 1517-5901 (online)

CONSELHO EDITORIAL

César Barreira (Brasil), Christian Azais (França), Cynthia Lins Hamlin (Brasil), Edgard Afonso Malagodi (Brasil), Emília Araújo (Portugal), Howard Caygill (Reino Unido), Frédéric Vandenberghe (Brasil), Jacob Carlos Lima (Brasil), Joanildo A. Burity (Brasil), José Arlindo Soares (Brasil), Julie Antoinette Cavignac (Brasil), Lee Jonathan Pegler (Holanda), Marie-France Garcia-Parpet (França), Paulo Henrique Martins (Brasil), Regina Novais (Brasil), Rubens Pinto Lyra (Brasil), Sandra J. Stoll (Brasil), Theophilos Rifiotis (Brasil), Vera da Silva Telles (Brasil), Zhou Zhiwei (China).

EDITORIA

Maurício Rombaldi, UFPB, Brasil

Miqueli Michetti, UFPB, Brasil

COMITÊ EDITORIAL

Miqueli Michetti, UFPB, Brasil

Mauricio Rombaldi, UFPB, Brasil

Sérgio Botton Barcellos (coordenador do PPGS) UFPB, Brasil

Patrícia Alves Ramiro (vice-coordenadora do PPGS) UFPB, Brasil

Editora-assistente

Ana Carolina Costa Porto (Bolsista Fapesq-PB)

Assistente editorial

Iolivalda Lima Estrêla (Doutoranda PPGS/UFPB)

REVISORA

Ana Carolina Costa Porto (Bolsista Fapesq-PB)

DESIGN GRÁFICO

Projeto gráfico da capa: Sérgio Estrêla Júnior

Fotografia: Markus Spiske. - Disponível em: https://unsplash.com/photos/PIJwPMtzBI0

Diagramação: Brunos Gomes

A apresentação de colaborações e os pedidos de permuta e/ou compra devem ser encaminhados ao PPGS/UFPB:

Universidade Federal da Paraíba – Programa de Pós-Graduação em Sociologia

Centro de Ciências Humanas, Letras e Artes – Bloco V – Campus I – Cidade Universitária CEP 58.051-970
João Pessoa – Paraíba – Brasil – Telefax (83) 3216 7204 - E-mail: politicaetrabalho@gmail.com

POLÍTICA & TRABALHO

Revista de Ciências Sociais

Publicação do Programa de Pós-Graduação em Sociologia

da Universidade Federal da Paraíba

(Campus I - João Pessoa)



Número 57

Junho/Dezembro de 2022

ISSN 1517-5901 (online)

Programa de Pós-Graduação em Sociologia - UFPB

indexação

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)

Biblioteca Central - Campus I - Universidade Federal da Paraíba

CENTRO DE CIÊNCIAS HUMANAS, LETRAS E ARTES

Diretora: Mônica Nóbrega

Vice-Diretor: Rodrigo Freire

PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM SOCIOLOGIA

Coordenador: Sérgio Botton Barcellos

Vice-coordenadora: Patrícia Alves Ramiro

Revista de Ciências Sociais - Política & Trabalho está licenciada

com uma Licença Creative Commons - Atribuição-NãoComercial 4.0 Internacional.

Qualquer parte desta publicação pode ser reproduzida, desde que citada a fonte PPGS/UFPB.

R449 Revista Política e Trabalho / Programa de Pós-Graduação em

Sociologia – Vol. 1, n. 57 (jun./dez. 2022). João Pessoa, 2022.

275p.

1517-5901 (online)-1. Ciências Sociais. 2. Política. 3. Trabalho.

UFPB/BC CDU: 32

UNIVERSIDADE FEDERAL DA PARAÍBA

Reitor: Valdiney Gouveia

Vice-Reitora: Liana Filgueira

Pró-Reitor de Pós-Graduação e Pesquisa: Fernando Guilherme Perazzo Costa

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SUMÁRIO

Editorial

DOSSIÊ

OS DESENHOS DAS CRIANÇAS NOS ESTUDOS DA INFÂNCIA

APRESENTAÇÃO | Emilene Leite de Sousa, Flávia Ferreira Pires, Fernanda Müller, Maria Amoras.

O DESENHO DAS CRIANÇAS E A ANTROPOLOGIA: reflexões a partir das crianças Xikrin do Bacajá | Clarice Cohn

ENTRE MATAS E RIOS: o cotidiano da infância Tenetehar-Tembé pelas crianças | Vanderlúcia Da Silva Ponte, Maria Amoras, Joyce Ramos da Silva

“NÓS QUEREMOS DESENHAR!”: possibilidades de participação e produção de dados em uma pesquisa com crianças moçambicanas | Marina Di Napoli Pastore

“ESTE É MEU NOME NA CHIBI!”: Notas sobre desenho e conhecimento entre os Calon | Edilma do Nascimento Souza

O DESENHO NAS PESQUISAS SOCIOEDUCACIONAIS COM CRIANÇAS | Francine Borges Bordin

LINHAS QUE FALAM: rotas (re)desenhadas no percurso de uma etnografia com crianças | Ivana Martins da Rosa, Manuela Ferreira

DESENHOS ENTRE MUNDOS: elementos para pesquisar e tentar compreender as crianças a partir de seus pontos de vista | Marcia Gobbi

ARTIGOS

UBERIZAÇÃO DO TRABALHO E PRECARIZAÇÃO DA VIDA | Marina Batista Chaves Azevedo de Souza, Isabela Aparecida de Oliveira Lussi

VIOLÊNCIA URBANA E VULNERABILIDADE SOCIAL COMO PARTE DO TRABALHO DE ENTREGADORES POR APLICATIVOS | Ana Patricia Sales, Francisco Sales, Elaine Albino da Silva, Luisa Donati

PROFESSORES UNIVERSITÁRIOS TEMPORÁRIOS NO SETOR PÚBLICO E A TENDÊNCIA DE “DESESTABILIZAÇÃO DOS ESTÁVEIS” | Kelen Bernardo, Maria Aparecida Bridi

AS POLÍTICAS EDUCACIONAIS NA DOCÊNCIA: uma revisão das publicações do Endipe entre 2010-2020 | Valdirene Hessler Bredow, Maristani Polidori Zamperetti

DESIGUALDADES DO EMPREGO NUM TEMPO DE CRISE: Setores da economia criativa no Brasil, nos anos 2010 | Sandro Ruduit Garcia

WEBER PELO CRIVO DA CRÍTICA ANTICOLONIAL | Lucas Trindade da Silva

RESENHAS

GREVES DE MASSA NO SUL GLOBAL E RENOVAÇÃO TEÓRICA NOS ESTUDOS DO TRABALHO | Patrícia Vieira Trópia

A REIVINDICAÇÃO DO QUE NÃO PODE SER DESCARTADO | Márcio Moneta

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CONTENTS

Editorial

DOSSIER

CHILDREN’S DRAWINGS IN CHILDHOOD STUDIES

PRESENTATION | Emilene Leite de Sousa, Flávia Ferreira Pires, Fernanda Müller, Maria Amoras.

CHIDREN’S DRAWINGS AND ANTHOPOLOGY: research findings with Xikin of Bacajá children | Clarice Cohn

BETWEEN FORESTS AND RIVERS: the daily life of Tenetehar-Tembé childhood through children | Vanderlúcia Da Silva Ponte, Maria Amoras, Joyce Ramos da Silva

“WE WANT TO DRAW!”: possibilities for participation and production of data in a research with Mozambican children | Marina Di Napoli Pastore

“THIS IS MY NAME AT CHIBI!”: Notes on design and knowledge among the Calon | Edilma do Nascimento Souza

DRAWING IN SOCIO-EDUCATIONAL RESEARCH WITH CHILDREN | Francine Borges Bordin

LINES THAT SPEAK: (re)drawn routes in the course of an ethnography with children | Ivana Martins da Rosa, Manuela Ferreira

DRAWING BETWEEN WORLDS: elements for researching and trying to understand children and their points of view | Marcia Gobbi

ARTICLES

UBERIZATION OF WORK AND PRECARIOUSNESS OF LIFE | Marina Batista Chaves Azevedo de Souza, Isabela Aparecida de Oliveira Lussi

URBAN VIOLENCE AND SOCIAL VULNERABILITY AS PART OF THE WORK OF DELIVERS BY APPLICATIONS | Ana Patricia Sales, Francisco Sales, Elaine Albino da Silva, Luisa Donati

TEMPORARY FACULTY IN THE PUBLIC SECTOR AND THE TREND OF “DESTABILIZATION OF STABLES”| Kelen Bernardo, Maria Aparecida Bridi

EDUCATIONAL POLICIES IN TEACHING: a review of the publications of Endipe between 2010-2020 | Valdirene Hessler Bredow, Maristani Polidori Zamperetti

EMPLOYMENT INEQUALITIES IN A TIME OF CRISIS : Creative economy sectors in Brazil in the 2010s | Sandro Ruduit Garcia

WEBER THROUGH THE SIEVE OF ANTICOLONIAL CRITIQUE | Lucas Trindade da Silva

REVIEWS

MASS STRIKES IN THE GLOBAL SOUTH AND THEORETICAL RENEWAL IN LABOR STUDIES | Patrícia Vieira Trópia

THE RECLAIMING OF WHAT CANNOT BE DISCARDED | Márcio Moneta

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EDITORIAL

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Miqueli Michetti1*

Maurício Rombaldi*

A edição 57 da Revista Política & Trabalho apresenta o dossiê Os desenhos das crianças nos estudos da infância, organizado por Emilene Leite de Sousa (UFMA), Flávia Ferreira Pires (UFPB), Fernanda Müller (Unirio) e Maria do Socorro Amoras (UFPA). A partir de uma proposta que reflete sobre os desenhos tanto como técnica de pesquisa quanto como um elemento central para a análise etnográfica, o dossiê é constituído por sete artigos inéditos, mais uma apresentação redigida pelas organizadoras. As pesquisas que fundamentam os trabalhos apresentados analisam antropologicamente diferentes objetos e são realizadas em uma gama diversa de situações, incluindo desenhos de crianças indígenas, moçambicanas, ciganas e citadinas, no Brasil e em Portugal. Ao se debruçar sobre universos como aldeias, comunidades tradicionais, ruas e escolas, os trabalhos sustentam a relevância e a adaptabilidade analítico-metodológicas do uso de desenhos feitos por crianças em distintos contextos. Ao refletir sobre a produção dos dados por esse meio e demonstrar seus múltiplos usos, assim como suas limitações, o dossiê se apresenta como uma contribuição importante à metodologia de pesquisa com e sobre crianças.

Esta edição também é composta por mais seis artigos recebidos em fluxo contínuo e duas resenhas. Segue-se ao dossiê uma série de trabalhos sobre precarização das condições de trabalho em vários setores, que, com diferentes metodologias e enquadramentos teóricos, traçam um abrangente panorama sobre essa problemática no Brasil contemporâneo. O primeiro trabalho, de escopo mais geral, tem por título Uberização do trabalho e precarização da vida. Nele, Marina Batista Chaves Azevedo de Souza e Isabela Aparecida de Oliveira Lussi analisam as condições de trabalho experimentadas por entregadores por aplicativo do Nordeste brasileiro. Por meio de etnografia urbana que toma por base a observação participante realizada em João Pessoa (PB), as autoras apontam condições de vida precoces, precárias e desestruturantes como determinantes da inserção e permanência na chamada uberização, o que traz impactos negativos em dimensões como saúde, educação e relações sociais.

Na sequência, o artigo Violência urbana e vulnerabilidade social como parte do trabalho de entregadores por aplicativos, de autoria de Ana Patricia Sales, Francisco Sales, Elaine Albino da Silva e Luisa Donati, apresenta pesquisa com trabalhadores que prestam serviços de entrega de comida para o que chamam de “empresas-plataforma” e retrata as situações de risco e violência existentes no cotidiano do trabalho dos “entregadores”, em especial acidentes de trânsito e assaltos. A pesquisa, realizada em 2021 na cidade de Natal (RN), demonstra como a “violência urbana” é vivida por tais trabalhadores em situações de vulnerabilidade social, distanciamento do trabalho, tensão e ansiedade.

Aos dois estudos sobre entregadores seguem-se outros dois sobre o trabalho docente. O artigo de Kelen Bernardo e Maria Aparecida Bridi, Professores universitários temporários no setor público e a tendência de “desestabilização dos estáveis”, analisa as condições de trabalho de professores universitários contratados na modalidade de “temporários” em sete universidades estaduais do Paraná, de 2002 a 2017. A partir de entrevistas com representantes sindicais das instituições concernidas, evidencia-se o aumento dessa forma precária de vínculo trabalhista, que implica instabilidade contratual e o não acesso a direitos historicamente característicos da categoria.

Fundamentando-se em outro corpus analítico e procedimento metodológico, As políticas educacionais na docência: uma revisão das publicações do Endipe entre 2010-2020 traz questões convergentes ao questionar as implicações que as políticas educacionais denominadas neoliberais trouxeram para o trabalho e a formação de professores. Valdirene Hessler Bredow e Maristani Polidori Zamperetti revisam as publicações dos Anais do Encontro Nacional de Didática e Prática de Ensino (Endipe) e concluem que os programas, reformas e planos de trabalho implementados de acordo com tais políticas precarizam e intensificam o trabalho docente, trazendo consequências até mesmo para a identidade e a subjetivação dos docentes.

Ainda sobre os temas do trabalho e do emprego, o artigo seguinte, de Sandro Ruduit Garcia, nos convida a refletir sobre os impactos da crise econômica sobre os empregos em setores ligados à chamada “economia criativa” no Brasil. Desigualdades do emprego num tempo de crise: Setores da economia criativa no Brasil, nos anos 2010 mostra que, enquanto empresas e empregos desses setores cresceram na primeira metade dos anos 2010, eles se retraíram e estagnaram depois disso, com prejuízos também para a qualidade do emprego. Por meio de análise documental de políticas industriais e bases oficiais de dados estatísticos, o autor indica que a crise mais geral da economia brasileira se combinou com uma inflexão na política setorial, afetando desigualmente certos estratos do emprego em economia criativa, em especial nas regiões Norte e Nordeste, nas grandes empresas, nos vínculos de ensino fundamental e médio, nos jovens e no sexo feminino.

No artigo que encerra a sessão de fluxo contínuo, Lucas Trindade da Silva instiga-nos a olhar para Max Weber a partir da “crítica anticolonial”. Baseado em pesquisa teórica que une inquirimento externo e abordagem imanente, Weber pelo crivo da crítica anticolonial destaca limitações fundamentais da obra do autor alemão, nomeadamente no que diz respeito ao caráter da modernidade, ao purismo da abordagem tipológica de fenômenos socio-históricos e, ainda, ao eurocentrismo que marca a apreciação do Outro sociocultural em Weber.

Fechamos essa edição com duas resenhas. Em umas delas, Patrícia Vieira Trópia avalia o livro Mass strikes and social movements in Brazil and India: popular mobilization in the Long Depression, lançado em 2019 por Jörg Nowak. Greves de massa no sul global e renovação teórica nos estudos do trabalho expõe as contribuições da obra, ainda sem tradução no Brasil, sobre “ações de rebeldia” de trabalhadores metalúrgicos na Índia e operários da construção civil no Brasil no “contexto recessivo pós-crise de 2008” e argumenta pela contribuição mais ampla que o livro de Nowak representa a uma “nova teoria das greves”.

A resenha feita por Márcio Moneta do livro de Kathleen M. Millar, lançado pela Duke University Press em 2018, é o arremate dessa última edição de 2022. A reivindicação do que não pode ser descartado perpassa premissas teóricas, conceitos centrais, metodologia acurada e sagacidade analítica da antropóloga norte-americana, sem negligenciar alguns aspectos problemáticos de sua perspectiva, que não incorporaria o acúmulo de interpretações sociológicas sobre a sociedade brasileira. O destaque do livro sobre os trabalhadoras(es) coletoras(es) de material reciclável no Aterro Metropolitano de Jardim Gramacho, na cidade de Duque de Caxias (RJ) estaria na habilidade de compreender uma “forma de viver” com valores próprios, que não são abarcados por perspectivas normativas que equacionam dignidade e trabalho estranhado assalariado. Assim, ao mesmo tempo que a obra encontra a tônica do dossiê em termos de inquietação antropológica, ilumina à contraluz a leitura dos artigos sobre precarização do trabalho e vulnerabilidade social.

Boa leitura, e que venha 2023!


1* Editores da Revista Política e Trabalho e professores da Universidade Federal da Paraíba.

ISSN 1517-5901 (online)

POLÍTICA & TRABALHO

Revista de Ciências Sociais, nº 57, Junho/Dezembro de 2022, p. 9-11

Dossiê

Os desenhos das crianças

nos estudos da infância

OS DESENHOS DAS CRIANÇAS NOS ESTUDOS DA INFÂNCIA

CHILDREN’S DRAWINGS IN CHILDHOOD STUDIES

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Emilene Leite de Sousa (UFMA)

Flávia Ferreira Pires (UFPB)

Fernanda Müller (Unirio)

Maria Amoras (UFPA)

Desde Mead e Bateson (1942), a técnica de elaboração de desenhos foi legitimada como importante ferramenta de pesquisa na antropologia. Embora não seja a primeira delas, Balinese Character foi considerada a obra mais “exemplar e sistemática” ao tratar texto e imagem na disciplina (SAMAIN, 2000, p. 1465). Atualmente, talvez o que buscamos no tratamento e na sistematização de texto e imagem em pesquisas sobre e com crianças seja a natureza da “análise etnográfica”, e não o “meio”, que pode se dar a partir de entrevistas, fotografias, conversas informais, observação sistemática, grupos focais, questionários ou desenhos. (REGITANO; TOREN, 2019, p. 297).

As pesquisas sobre crianças no Brasil têm utilizado os desenhos com a intenção de acessar a produção simbólica das crianças, tornando-se comumente descrita nos capítulos metodológicos de trabalhos de conclusão, dissertações e teses, artigos diversos sobre os mais heterogêneos temas e contextos. No entanto, esses desenhos estampam as páginas do corpus das monografias e não são contemplados em análises mais detidas. Assim, há um descompasso entre o reconhecimento da importância da técnica, sua utilização em campo e o desaparecimento dos desenhos nos trabalhos, escamoteados nos anexos ou não submetidos às publicações. Ainda, quando conseguem visibilidade, em muitos trabalhos, os desenhos aparecem como técnica meramente ilustrativa, como argumentam Sousa e Pires (2021).

Por outro lado, reconhecemos os desenhos das crianças como uma importante fonte na produção de dados e uma técnica legítima, lembrando que sua eficiência é comprovada especialmente quando associado a outras técnicas de pesquisa para a elaboração de etnografias (PIRES, 2007). Além de tudo isso, a técnica parece agradar aos sujeitos da pesquisa. Igualmente, permite que nos aproximemos das crianças, teçamos redes de interação, ao mesmo tempo em que acessamos os seus pontos de vista.

O presente dossiê nasce da constatação de que, embora a técnica tenha se tornado comum nos estudos de infâncias, dos quais a antropologia faz parte, os desenhos são pouco problematizados nos artigos encaminhados às revistas que circulam pelo país. Diante disso, reúne trabalhos que não só consideram desenhos como importante técnica de pesquisa em campo, ou seja, como meio, mas também como um catalisador fundamental para a análise etnográfica, tal como defendido por Toren (REGITANO; TOREN, 2019). Além disso, os trabalhos nos expõem, primeiramente, a circulação de objetos, coisas e informações – papel branco, canetinhas, lápis, giz de cera, etc. – oferecidos pelas pesquisadoras nos mais diferentes contextos, seja da aldeia, da escola, no chão da calçada de um bairro. E mais importante: a circulação dos próprios desenhos, que não ilustram meramente os artigos, mas compõem, junto com palavras, a descrição das experiências de pesquisadoras e crianças. Os desenhos podem ser uma representação vigorosa para compreender as profundezas da vida social, não restrita necessariamente às crianças.

Igualmente, o dossiê objetiva dar uma contribuição aos estudos das infância e à metodologia da pesquisa com e sobre crianças, com foco na utilização da técnica do desenho, demonstrando seus usos e a produção dos dados por meio dela e de suas limitações. Ademais, dará início à desconstrução de aspectos que rondam os usos dos desenhos como: a) redução de sua importância a mero artifício de interação entre pesquisador e interlocutores; b) pouca habilidade dos cientistas sociais em lidar com desenhos; c) não reconhecimento da técnica como eficaz na produção de dados.

Os trabalhos são resultados de pesquisas que comprovam a eficácia da técnica e a potência da análise quando se trata da elaboração de desenhos por crianças na pesquisa antropológica. Eles descrevem o processo de confecção e revelam as circunstâncias e contextos em que a técnica se tornou primordial para desnudar uma dada realidade ou tratar um dado objeto, o que não teria sido obtido por outra via. A elaboração dos desenhos incluiu crianças indígenas, moçambicanas, ciganas e citadinas (no Brasil e em Portugal), na condição de alunas, em universos como aldeias, comunidades tradicionais, escolas, ruas. Essa variedade de contextos, situações e objetos de análise demonstraram o vigor do uso de desenhos como uma importante técnica de pesquisa, adaptável para os mais distintos contextos. Inaugurando o dossiê, Clarice Cohn em “O desenho das crianças e a Antropologia: reflexões a partir das crianças Xikrin do Bacajá” analisa tanto desenhos “espontâneos”, elaborados pelas crianças Xikrin – individualmente ou em grupo em situações que buscavam os materiais junto à pesquisadora –, como desenhos elaborados na escola, quando, no período de aulas, recebiam um enunciado e os realizavam sozinhas. Vanderlúcia Ponte, Maria Amoras e Joyce da Silva nos brindam com “Entre matas e rios: o cotidiano da infância Tenetehar-Tembé pelas crianças” abordando os significados e sentidos dessa infância indígena a partir da utilização do desenho como meio e análise etnográfica. Marina Pastore é autora de “Nós queremos desenhar!: possibilidades de participação e produção de dados em uma pesquisa com crianças moçambicanas” que mostra como as crianças assumem o protagonismo e a participação social a partir de suas criações artísticas. Edilma do Nascimento Souza escreve “Este é meu nome na Chibi!: Notas sobre desenho e conhecimento entre os Calon”, no qual crianças ciganas Calon de Mamanguape (PB) problematizam infâncias e educação. Francine Bordin pensa “O desenho nas pesquisas socioeducacionais com crianças” em uma pesquisa que teve os desenhos infantis como sua principal técnica. Ivana Martins da Rosa e Manuela Ferreira discutem multivocalidade e pesquisa através de “Linhas que falam: rotas (re)desenhadas no percurso de uma etnografia com crianças”, uma etnografia com crianças entre 6 e 14 anos nos espaços públicos abertos de uma comunidade piscatória do norte de Portugal. Finalmente, Marcia Gobbi apresenta em “Desenhos entre mundos: elementos para pesquisar e tentar compreender as crianças a partir de seus pontos de vista” as possibilidades e lacunas dos desenhos utilizados como ferramentas documentais.

Como organizadoras do dossiê, agradecemos o apoio da Revista Política & Trabalho, especialmente na figura de Ana Carolina Costa Porto, às autoras, pareceristas e todos e todas envolvidos nessa aventura que é a publicação de um periódico acadêmico no Brasil de parcos recursos para a educação e para a ciência.

Boa leitura e bons desenhos para todas nós!

Referências

BATESON, Gregory; MEAD, Margaret. Balinese Character: A Photographic Analysis. New York: Academy of Sciences, 1942.

PIRES, Flávia. Ser adulta e pesquisar crianças: explorando possibilidades metodológicas na pesquisa antropológica. Revista de Antropologia, São Paulo, v. 50, n. 1, p. 225-270, jan./jun. 2007.

REGITANO, Aline de Paula; TOREN, Christina. Como nos tornamos quem somos: entrevista com Christina Toren. PROA - Revista de Antropologia e Arte, Campinas, v. 9, n. 1, p. 295-304, 2019. Disponível em: Acesso em: 10 out. 2020

SAMAIN, Etienne. Os riscos do texto e da imagem - Em torno de Balinese character (1942), de Gregory Bateson e Margaret Mead. Significação: Revista De Cultura Audiovisual, Campinas, n. 14, p. 63-88, 2000. Disponível em: https://doi.org/10.11606/issn.2316-7114.sig.2000.90617 Acesso em: 03 mar. 2015

SOUSA, Emilene Leite; PIRES, Flávia. Entendeu ou quer que eu desenhe?: os desenhos nas pesquisas com crianças e sua inserção nos textos antropológicos, Horizontes Antropológicos, Porto Alegre, v. 27, n. 60, p. 61-93, 2021. https://doi.org/10.1590/S0104-71832021000200003 Acesso em: 12 abr. 2022.

ISSN 1517-5901 (online)

POLÍTICA & TRABALHO

Revista de Ciências Sociais, nº 57, Junho/Dezembro de 2022, p. 13-15

O DESENHO DAS CRIANÇAS E A ANTROPOLOGIA:

reflexões a partir das crianças Xikrin do Bacajá

CHIDREN’S DRAWINGS AND ANTHOPOLOGY:

research findings with Xikin of Bacajá children

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Clarice Cohn1*

Resumo

O texto discute algumas experiências de pesquisas antropológicas com crianças com o uso do desenho como metodologia. Apresentando e discutindo duas experiências seminais, as de Margaret Mead com os Manu e a de Christina Toren em Fiji, aponta as diferenças de metodologia de produção, coleta e análise dos desenhos. Parte então para a experiência etnográfica da autora junto a crianças Xikrin da Terra Indígena Trincheira-Bacajá, explorando as diferenças entre os desenhos feitos para ela e a ela presenteados, em que a ênfase se deu na liberdade na sua produção, as crianças escolhendo tempos, lugares, agrupamentos, temas, cores, materiais e usos do papel, e uma tarefa escolar em que deviam desenhar “sua cultura”. Ao final, retoma-se uma discussão metodológica comparativa.

Palavras-chave: Antropologia da criança. Xikrin. Xikrin do Bacajá. Mebengokré.

Abstract

In this article diverse experiences of drawings by children as a methodology of anthropological research are discussed. Presenting two seminal experiences, that of Margaret Mead among the Manu and the one from Christina Toren in Fiji, it is pointed out differences among the resulting drawings, their collection and analyses. The ethnographic experience by the author with Xikrin children of Terra Indígena Trincheira-Bacajá, Brazil, is then presented, in exploring differences between drawings in which the children had autonomy on the choices of times, places, groupings, themes, materials and uses of the paper, made and given as gifts to the ethographer, to those made as a school task, in which they had to “draw their culture”. In closing, the text presents a methodological and comparative analyses.

Keywords: Anthropology of children. Anthropology of childhood. Xikrin. Mebengokré.

A antropologia da criança e a interlocução em pesquisa

A antropologia da criança é atualmente um campo consolidado, embora por muitas décadas pesquisas antropológicas tenham, a não ser por raras experiências, mantido as crianças como figurantes ou marginais nas pesquisas. Interlocutoras valiosas desde sempre, o que pode ser visto pela frequência com que antropólogos e antropólogas as citam em suas introduções aos textos, e em especial a suas monografias – aquelas introduções tão importantes em que pesquisadores demonstravam sua autoridade de fala e escrita (CLIFFORD, 1986) –, como as suas mais frequentes companhias, e as que lhes mostraram pela primeira vez muito do que era


1* Clarice Cohn é professora associada do curso de Ciências Sociais e do Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social da Universidade Federal de São Carlos (UFSCar). Pesquisa com os Xikrin do Bacajá há três décadas, abordando temas variados que incluem as crianças, as infâncias, aprendizagens e educação escolar indígena. E-mail: clacohn@ufscar.br

ISSN 1517-5901 (online)

POLÍTICA & TRABALHO

Revista de Ciências Sociais, nº 57, Junho/Dezembro de 2022, p. 16-34

necessário e fundamental para viver naquele frequentemente outro ambiente em que foram viver e buscar conhecer, elas não obstante logo desapareciam da análise, que dava lugar à observação, convivência e interlocução com adultos (COHN, 2019, 2021). De fato, a antropologia foi marcada desde o início não só por uma atenção privilegiada aos homens, debatida desde a década de 1980 pela antropologia feminista (STRATHERN, 1988), como por um adultocentrismo (LOPES DA SILVA; NUNES, 2002). Foram décadas até que a antropologia voltasse seus olhares para além do mundo masculino e dos mais velhos, até efetivamente chegar às crianças como interlocutoras capazes e interessantes (COHN, 2005). Efetivamente, mais do que tão capazes quanto qualquer outro(a) interlocutor(a), o trabalho de Toren (1999), escrito originalmente em 1993, argumentava que, para muito além de mais um interlocutor em pesquisas, as crianças são fundamentais em qualquer pesquisa antropológica, inclusive porque – e ela o demonstra em uma análise comparativa muito interessante de casos – podem revelar o que é obliterado pelos adultos. Assim, demonstra, uma pesquisa que não dialogue com elas será sempre uma pesquisa incompleta, ou que pode falhar em entender mais plenamente o mundo de que e com quem fala. O fato é que pesquisas e debates recentes têm demonstrado, efetivamente, que as crianças têm muito a ensinar à antropologia, e a contribuir com (todo e qualquer) estudo antropológico (PIRES, 2010, COHN, 2021)1.

Mas a questão metodológica – como dialogar com crianças? – sempre se manteve. Diversas experiências têm sido feitas neste sentido (RIFIOTIS et al., 2021), e têm demonstrado a variedade de possibilidades de diálogos com crianças em pesquisas. No entanto, a questão de como ser adulta e pesquisar com crianças (PIRES, 2007) não deve ser minimizada, ou deixada de ser colocada. Em princípio, não deveria ser um problema para um campo de estudos e pesquisa, a antropologia, que nasceu se definindo como o estudo da alteridade; mas o fato é que, das mais clássicas às mais inovadoras provocações a esse respeito, têm, ainda, com frequência, deixado de lado a questão do diálogo com as crianças.

Este texto parte do princípio de que o diálogo com as crianças – como aliás atestado logo acima – pode ser múltiplo e profícuo de muitos modos. Ou seja, recusa, de princípio, a ideia de que abordagens alternativas devem ser buscadas por uma questão de inabilidade de fala, articulação ou elaboração conceitual das crianças – a não ser, evidentemente, as muito pequenas, que ainda não falam; mas mesmo essas, como lembra Toren (1989), desde sempre interagem significativamente com o mundo ao seu redor. No entanto, apresentamos aqui uma contribuição de como a elaboração de desenhos com as crianças pode revelar, ela também, múltiplas possibilidades de diálogo.

Desenhos têm sido utilizados em pesquisas antropológicas desde há muito, e não só com crianças – lembre-se do modo como eles revelaram ao antropólogo Roberto da Matta o modo como os Apinayé permaneciam concebendo sua aldeia como circular embora à época habitando uma aldeia construída em formato de “ruas”, como se diz no Norte do Brasil, a partir de um pedido para se desenhar a aldeia e o desenho que recebeu daquela aldeia, vista por ele como uma fileira de casas, como circular (DA MATTA, 1976), ou da análise das diferenças dos desenhos das mulheres Xikrin e do xamã Nhiakrekampin nas análises de Vidal (1991), ou os desenhos Waujá analisados por Barcelos Neto (2002). Mais recentemente, desenhos têm sido reconhecidos como uma prática efetiva de registro e análise (INGOLD, 2007, 2011a, 2011b, 2013; AZEVEDO, 2016). Mas, efetivamente, as pesquisas com desenhos com crianças têm se mantido e se mostrado instigantes na antropologia (SOUSA; PIRES, 2021; GONÇALVES, 2021). Em minha própria pesquisa com as crianças Xikrin do Bacajá, eles se mostraram muito reveladores (COHN, 2000, 2017), em especial das possibilidades abertas de diálogo com a antropóloga, mas também, como buscarei demonstrar abaixo, dos diálogos que tiveram lugar nas escolas, com não-indígenas, em que articularam com muito refinamento uma certa noção de cultura indígena que, astutamente, perceberam como uma oportunidade privilegiada.

Mas gostaria de, antes de falar dessas minhas pesquisas, abordar um pouco dessa história de como os desenhos vieram a fazer parte deste campo que hoje se configura como a antropologia da criança.

As experiências de Margaret Mead e Christina Toren de coleta de desenhos

Em fins da década de 1920, Margaret Mead realizou pesquisas entre as crianças Manu, que ela apresentou em um livro de sucesso publicado em 1930 (MEAD, 1985), em que introduz o leitor à vida e à educação dessas crianças para realizar então uma reflexão sobre a educação, sua universalidade, e as potencialidades de mudança no sistema educacional estadunidense. Suas pesquisas tinham por mote a questão que ela apresenta ao fim do volume, em um anexo, a posteriori: saber como o animismo se apresenta, em uma sociedade que definia como animista, em suas crianças. Os temas da fantasia e das capacidades fantasiosas das crianças perpassam todo o volume em que discute o mundo das crianças Manu, especialmente em suas considerações sobre o modo com que são criadas e educadas. Fiel à distinção entre o inato e o adquirido, modo privilegiado de análise para a escola de cultura e personalidade de que era parte fundamental (COHN, 2005), Mead apresenta um mundo em que as crianças não seriam imaginativas e fantasiosas, como seus conterrâneos tenderiam a universalizar a partir da experiência da infância na sociedade norte-americana, mas, ao contrário, voltadas à exatidão e ao detalhe preciso.

Essas conclusões vão sendo construídas a partir de uma diversidade de dados, fruto de uma extensa observação participante – mas um dos pilares de sua argumentação vem da análise dos desenhos produzidos, a seu pedido, pelas crianças Manu. Parecia-lhe especialmente interessante analisar a produção de desenhos por crianças que crescem em uma sociedade sem tradição pictórica alguma, em que até os entalhes que enfeitam as canoas são produzidos por seus vizinhos. Para aproveitar ao máximo a inexistência de um padrão pictórico ou gráfico anterior, Mead cuidou para fornecer os meios para o desenho sem pré-estabelecer o modo de desenhar – cuidando inclusive para que adultos não se engajassem nessa produção que, tal como nos conta, as crianças abraçaram com entusiasmo, de modo a evitar a aparição do que poderia se tornar um “padrão adulto” a engessar ou padronizar o desenho infantil. Tudo estava a ser inventado no que dizia respeito à representação do mundo em papel e lápis, e todo cuidado era pouco para garantir que as crianças a inventassem por si só, sem interferências externas.

Recolhidos e catalogados os desenhos, com informações sobre o sexo e a idade das crianças e observações feitas pela antropóloga, Mead passa a analisá-los. De fato, comentários sobre os desenhos aparecem de tempos em tempos ao longo de sua análise, não constituindo um tópico à parte. Aparecem, principalmente, no item que trata das relações das crianças com o sobrenatural – porque, argumenta, ao lado do que seria uma pouca importância dada a histórias, que não seriam contadas às crianças por que, disseram os Manu à antropóloga, elas não se interessariam por histórias, os jogos mesmo lhe parecendo pouco imaginativos, carentes de personagens e tramas, marados por um gosto pelo detalhe exato e pela verdade. Os desenhos das crianças Manu, com suas figuras e seus temas simples, davam testemunho a uma curiosidade e a um interesse reveladores de inteligência, assim como ao gosto pelo exato e à capacidade mnemônica, mas não de algo que se pensava universal, ou natural: a imaginação fantasiosa infantil.

Essa conclusão, tecida a partir da análise dos desenhos produzidos pelas crianças aliada à observação de seu cotidiano, de seus jogos, de suas andanças pela aldeia e das relações que cultivavam, é confirmada em uma técnica complementar – a de interpretações de manchas de tintas pelas crianças. Aqui, ao contrário de dar às crianças os instrumentos para desenhar e total liberdade para criar, Mead pede às crianças que interpretem as figuras formadas por manchas de nanquim em um papel, como no conhecido teste de Rochard. Aqui também, elas são pouco imaginativas, dando à antropóloga “apenas respostas precisas: ‘é uma nuvem’, ou ‘é um pássaro’” (MEAD, 1985, p. 97). Não animando objetos como fazemos com a lua, argumenta Mead, essas crianças não animam também as manchas de tinta, vendo nelas de novo coisas muito simples.

De fato, isso vem a confirmar a tese (que apresenta, no apêndice, como hipótese) – de que a imaginação fantasiosa não é um fenômeno da natureza humana, do desenvolvimento cognitivo, universal, mas um dado cultural, relativo. O argumento – em um debate que, desnecessário dizer, é testemunha de seu tempo – é de que, em uma sociedade em que o mundo adulto é povoado de espíritos, as crianças, que os recusam, são dadas à verdade dos fatos e à exatidão, até o que seria o trunfo final da sociedade – lembremos aqui de sua inserção na Escola de Cultura e Personalidade –, em que seriam convertidas em adultos, e aí sim em animistas. As crianças Manu, em seus desenhos ou nas análises das manchas de tinta, revelam-se à antropóloga menos imaginativas do que seriam se a fantasia fosse um dado natural ou parte do desenvolvimento infantil – tendo pendores mais científicos que imaginativos, em uma inversão do mundo dos adultos paralela à que o pendor à fantasia das crianças ocidentais realiza.

Décadas mais tarde, Christina Toren, tendo por base uma outra antropologia e outras questões, em que se passa a questionar o valor analítico mesmo de termos como sociedade ou cultura, propondo mesmo sua substituição por socialidade (STRATHERN, 1996; TOREN, 1996; REGITANO; TOREN, 2019; WAGNER, 1981), dedica-se em sua pesquisa com crianças em Fiji ao uso dos desenhos como método de coleta de dados. Treinada em psicologia e tendo outras questões a responder, utiliza-se dos desenhos das crianças de um modo um tanto diverso do de Mead2. Toren busca entender os sentidos que as crianças de Fiji dão ao mundo em que vivem, partindo de uma análise e descrição detalhada desse mundo. Ela argumenta que a hierarquia é um tema central em Fiji, e que as relações de senioridade, de gênero e políticas devem ser vistas como manifestações diversas desse mesmo tema, expressas em reuniões, na igreja, rituais, políticas, em sua inscrição espacial. Sendo assim, os desenhos que elabora com as crianças têm por tema a hierarquia e sua inscrição no espaço3.

Uma primeira diferença em relação a Mead é, portanto, o fato de que os desenhos são meios de pesquisa para elaborar uma questão pontual e definida, qual seja, a percepção e a concepção de hierarquia das crianças. Uma segunda diferença é que a pesquisadora aproveita os contextos em que pode elaborar desenhos com as crianças, que já conheciam essa modalidade de expressão e neles a exerciam, como o que lhe é dado pela escola. Assim também, quando busca as interpretações das crianças sobre esse tema, prepara desenhos representando situações diversas, registrando assim as interpretações que as crianças lhes dão sobre o que veem representado, e suas reações.

Os desenhos que analisa são realizados no ambiente escolar e em um contexto “controlado”, em que a antropóloga atribuía às crianças algumas tarefas, e as separava, para que o desenho de uma criança não influenciasse a composição do de outra. Logo após desenhar, as crianças faziam um relato sobre o desenho. Aí então eram entrevistadas sobre o que haviam desenhado, respondendo a perguntas pontuais.

Sua pesquisa com as crianças, por meio de desenhos, e informada por uma etnografia cuidadosa e profunda que a precede, tendo por hipótese que os desenhos das crianças revelariam, a partir da disposição espacial, a hierarquia, já que essa surge da composição de ranking, senioridade e gênero e distribui as pessoas no espaço, de acordo com um eixo acima/abaixo, em diversos eventos coletivos – refeições, reuniões na igreja, rituais de kava, reuniões políticas. Essa é uma questão de alcance analítico regional – como afirma posteriormente, “esse achado me permitiu desafiar a teoria de que a hierarquia fijiana estava baseada [apenas] em uma distinção de rank entre chefes e o povo” (TOREN, 1993, p. 463). E isso, afirma, só pode fazer porque buscou entender a percepção da criança sobre essas situações, sobre a hierarquia e as posições relativas, sobre gênero e senioridade.

Para isso, cria enunciados em que tenta testar sua hipótese, relacionando hierarquia e espaço, em contextos diversos, e acrescentado as variáveis que constroem a hierarquia. Por essa análise, e discutindo como as crianças constroem uma noção de hierarquia e de posicionamento relativo em sua expressão nos desenhos, Toren (1990, p. 196-197) busca verificar a relação entre os eixos acima/abaixo e a constituição da hierarquia em diversos contextos – e para isso analisa a “micro-história” do processo cognitivo, ou seja, a atribuição de sentidos a esse eixo e à hierarquia, em sua composição de senioridade, gênero e ranking, pelas crianças. Sua análise dos desenhos toma então esses temas por mote – como os eixos e quem ocupa tais posições; a percepção das crianças sobre gênero e sua relação com a hierarquia; a percepção das crianças das diferenças nos contextos e nos tipos de reunião – e as idades e gênero das crianças. Para efetivá-la, Toren transformou esses desenhos em esquemas, em que reproduz a espacialidade e as categorias sociais usadas pelas crianças e seu posicionamento no eixo vertical (desprezando, afirma, a perspectiva, que, concluiu, não fazia parte dos desenhos, e que diferia de acordo com a criança e a idade do desenhista), de acordo com as idades, e dividindo-os em tipos de acordo com as distinções sociais realizadas, revelando como as crianças inseriam em seus desenhos os critérios de hierarquia para distribuir as pessoas.

Esses dados são complementados posteriormente por entrevistas com as crianças sobre desenhos preparados pela antropóloga e que representam uma série de situações em que a hierarquia é posta e inscrita espacialmente. As crianças eram entrevistadas em grupos ou individualmente, e suas reações e respostas anotadas, em “um exercício de investigação mais que um experimento definitivo” (TOREN, 1990, p. 196), mas que a auxiliaria a confirmar seus dados. Nesses desenhos esquemáticos, distribuía pessoas em pé e sentadas, e pedia, a partir de enunciados, que as crianças descrevessem quem seriam essas pessoas ou completassem os desenhos.

Suas conclusões são várias e ricas e trazem nuances de acordo com o gênero das crianças e o tema discutido pela autora a cada item – um viés “igualitário” nas relações de gênero, uma maior definição sobre “quem senta acima” do que sobre “quem senta abaixo”, uma flutuação entre identificar ou diferenciar rapazes e mulheres nos espaços das reuniões. No entanto, guardemos uma, como ilustração: “meninos diferenciam status masculinos mais finamente do que meninas; meninas diferenciam status das mulheres mais finamente do que meninos...”. (TOREN, 1993, p. 463). Isso não deve, no entanto, obliterar o fato de que o que mais teve efeito para uma antropologia da criança é que essa inversão dos sentidos tal como construídos pelas crianças fijianas são reveladoras do mundo em que vivem os fijianos, sendo tão completa e legítima como qualquer outra.

Mais do que isso, ela afirma o valor para toda análise antropológica, e não apenas a que se dedica às crianças, de perceber o ponto de vista das crianças, que se torna revelador do mundo tal como vivido por aqueles que são objeto das reflexões antropológicas. Se a inversão de sentido é tão eficaz para informar o comportamento e as ações quanto o sentido atribuído pelos adultos, é porque ela é tão verdadeira quanto e, portanto, expressa tão bem quanto o mundo concebido e vivido. Desse modo, ouvir as crianças é completar uma percepção sobre o mundo que ficaria efetivamente incompleta se só se ouvisse os adultos.

Duas antropólogas, duas antropologias, dois usos diversos dos desenhos das crianças. Mead aposta na espontaneidade da composição das crianças, e no ineditismo da tarefa; como em outros trabalhos seus, busca a relatividade da experiência infantil e, como nos conta, a relativização da extensão do animismo às crianças ou a universalidade da imaginação fantasiosa infantil. Toren aposta, ao contrário, na coleta controlada de dados, trabalhando com as crianças em um contexto específico, o ambiente escolar, e a partir de tarefas muito bem estabelecidas, entrevistas e coleta de relatos, de modo a melhor apreender a interpretação das crianças sobre a hierarquia e as situações desenhadas e entender a construção de suas percepções sobre o mundo em que vivem, tomando-a como tão legítima como qualquer outra percepção sobre o mundo.

Os desenhos das crianças Xikrin

Em minha pesquisa com as crianças Xikrin, coletei também desenhos, que elas fizeram em situações diversas. Como havia feito Mead, mantive sempre um tanto de papel em branco, um estojo rico de lápis de cor e estojos de giz de cera que as crianças às vezes pediam para fazer desenhos. Nesse caso, não só não lhes fornecia temas, como eram elas a pautar as ocasiões e o contexto: reuniam-se em grupos ou vinham sozinhas, me abordavam longe de casa ou me procuravam quando me viam trabalhando em meus papéis, em uma série de combinações possíveis. Além desses desenhos, que chamei em outro trabalho de “espontâneos” (COHN, 2000), analisei também desenhos produzidos na escola, em que, ao contrário, as crianças recebiam um tema a desenvolver, que deviam fazer sozinhas, sem comunicação com os colegas, e durante o período da aula.

Diferentemente dos manu, os Xikrin têm uma rica tradição pictórica e enfatizam a estética e, nela, a pintura corporal como um modo de expressão que é também uma ética (VIDAL, 1991). O grafismo é muito elaborado, e os motivos compõem um sistema de sentidos. Os Xikrin não têm, porém, uma tradição de representação figurativa, conhecida, fora da escola, apenas pelos trabalhos do xamã Nhiakrekampin que, nos anos em que colaborou com Lux Vidal em suas pesquisas, elaborou, em papéis da antropóloga e consumindo suas canetas, uma série de desenhos ilustrativos da atividade xamânica, da caça e pesca, e representações de mitos e seus personagens (VIDAL, 1991).

A atividade de pintura é, para os Xikrin, um atributo e uma tarefa femininos. As pinturas inscrevem-se nos corpos, que são pintados por mães, irmãs, avós ou companheiras de sessões de pinturas, e revelam a condição e a situação da pessoa. A pintura corporal varia de acordo com o sexo e a idade ou de acordo com a situação – ritual ou cotidiano, modo de participar do ritual, saúde ou doença, resguardo por nascimento de filho ou neto, por doença ou luto. A composição da pintura corporal revela um sistema comunicativo refinado (VIDAL, 1991; TURNER, 1995), e a padronização nos corpos adultos é contraposta apenas pela liberdade de pintura nos corpos das crianças pequenas, em que as mães demonstram sua habilidade como pintora e seu cuidado para com a criança (VIDAL, 1991; COHN, 2000).

O papel foi introduzido no Bacajá pela escola, e não era novidade quando lá cheguei, assim como o desenho. Antes mesmo das atividades escolares, Vidal tinha colecionado uma série de pinturas corporais elaboradas pelas mulheres em papel com a tinta do jenipapo e o pincel feito por elas com um filete do tronco do babaçu. Quando elas reproduziam no papel as pinturas corporais, faziam-no de modo a representar o corpo e os motivos que o tronco, cada membro e a face recebem, representando assim o próprio corpo, preenchendo o papel completamente e replicando a disposição do motivo no corpo (VIDAL, 1991). Até a chegada da escola, os experimentos do xamã Nhiakrekampin, com caneta esferográfica, e das mulheres registrando os motivos da pintura corporal no papel com jenipapo eram únicos e já muito diversos entre si.

Se a pintura corporal é uma atividade feminina e se volta a motivos geométricos que se referem a elementos da natureza, o desenho em papel permitiu – desde o início do meu diálogo com elas, e diferente dessa experiência que acabei de narrar separada por décadas e vivenciada por Lux Vidal com os Xikrin do Cateté – às crianças de ambos os sexos criar a partir do modo figurativo. Pintando frequentemente motivos da pintura corporal, as meninas experimentam também a modalidade figurativa, embora a diferença de gênero continue marcada pelo fato de que os meninos não se dediquem aos motivos de pintura corporal, nem mesmo no papel, e pelo modo como as meninas fazem conviver os dois estilos, abstrato e figurativo, no papel. Mais recentemente, tendo a escola se tornado uma realidade mais cotidiana para as crianças Xikrin do Bacajá, e nela se praticado muitos desenhos como atividades didáticas, muito se tem revelado (BELTRAME, 2013) e está ainda a se revelar.

Neste texto, que retoma minha análise na dissertação de mestrado (COHN, 2000), vou contrastar dois modos de produzir desenhos das crianças Xikrin do Bacajá na década de 1990: aquela em que buscavam os papéis e lápis que eu havia levado com os desenhos feitos na escola. De fato, me parece relevante ressaltar que, de modo um tanto imprevisto, acabei por ter em mãos uma coleção de desenhos que misturam as metodologias que apresentei acima. Isso porque, quando as crianças, nessa minha estadia de pesquisa em campo em 1993, descobriram que eu tinha essa provisão que parecia interminável de materiais de desenho, vinham me procurar, de modo espontâneo, e em uma organização de tempos, espaços e agrupamentos delas mesmas, para se dedicar a desenhar, me presenteando então com seus desenhos. Neste sentido, levei, ou busquei levar, às últimas consequências o modo Xikrin de viver e conceber a infância (COHN, 2000, 2002, 2013), respeitando – como se deve fazer em uma aldeia Xikrin – sua liberdade de movimentos e suas escolhas de conformação de grupos e agrupamentos. Como se verá, isso resultou em desenhos absolutamente livres, em que a antropóloga não tem, e nem buscou ter, informações sobre a idade das crianças envolvidas, que eram em si múltiplas, e nem interveio nas suas intensas colaborações nos desenhos uns dos outros, nas seleções de temas, cores, e no uso do papel como suporte.

Por outro lado, acompanhar uma atividade escolar, em que as crianças eram mantidas isoladas e tinham que produzir desenhos individualmente com um tema sugerido, que elas também me presentearam4, me permitiu analisar produções com maior controle de temas e usos considerados adequados do suporte-papel – incluindo-se aí a ausência de cores, dado que às crianças não era reconhecida, neste contexto, a habilidade de colorir o que deveria ser contornos definidos e formas. Abordo, portanto, aqui, duas situações: a dos desenhos que chamei de espontâneos feitos por coletivos de meninos e a tarefa escolar.

Os desenhos “espontâneos” dos meninos

Na antiga aldeia do Bacajá, no início da década de 1990, quando vinham me pedir papel e lápis, os meninos já chegavam em grupos. Sentados juntos, discutiam o que fazer, escolhiam as cores, um começava, os outros comentavam, e logo estavam todos concentrados desenhando5. Em diversas atividades coletivas dos meninos, eles decidem o que fazer antes e todos fazem a mesma coisa, um padrão de comportamento típico e que é observável, em vários contextos, também em adultos6. É assim, por exemplo, quando resolvem moldar pedaços de madeira macia em forma de espingardas, com as quais depois brincam de caçar. Se a espingarda feita por determinado menino (ou, dependendo da idade, por um irmão mais velho) guarda certa singularidade em forma, tamanho e realismo, não há dúvida de que todos estão fazendo a mesma coisa. Com o desenho, a escolha de cada um de temas e cores tem maior espaço – se todos estão desenhando, e é essa a atividade coletiva, cada qual pode escolher o que desenhar. Mas permanece um caráter coletivo nas discussões a respeito da performance e das escolhas de cada um; no resultado final, observando-se o conjunto dos desenhos, pode-se ver que vários dos temas se repetem.

Em geral, os meninos se preocupam em ter ao menos duas cores: uma para delimitar o traço, outra para colorir, a fim de preencher o interior. No mesmo papel, reúnem vários motivos: casas, animais, plantas, caminhões, aviões, helicópteros, barcos e algumas atividades. Os animais, por exemplo, podem vir acompanhados de seu caçador; um peixe no rio pode ter a seu lado um homem no barco com uma vara, ou pode ser representado já fisgado pelo anzol.

Quanto às atividades representadas, as mais comuns são a caça, a pesca e o futebol. Nesse último caso, desenha-se o campo com os jogadores posicionados em cada lado e diferenciados pela cor das camisas, em um arranjo de início de jogo. É curioso notar, ainda, que apenas a minoria desses desenhos trazia uma representação da aldeia; quando ela existe, porém, é sempre vista de cima, em seu formato circular, na forma de um círculo com as casas em seu redor, em uma visão que é típica aos diversos grupos Jê, como bem demonstrou, conforme citado acima, Da Matta para os apinayé (1976, p. 61-68); alguns trazem discriminados os caminhos para o rio, para a pesca e para as roças, a pista de pouso e o próprio rio, que cercam a aldeia. Mas no geral os desenhos não criam um ambiente, e seus diversos elementos, distribuídos no papel, não se comunicam entre si, a não ser de dois em dois, como no caso da caça e seu caçador, ou do peixe no rio e o pescador – mas esses mesmos conjuntos estão também no meio de uma variedade de outros motivos e situações. Sua distribuição também parece ser aleatória, e uma pessoa que queira ver os diversos elementos se vê obrigada a girar o papel. Os meninos incorporam ainda alguns elementos gráficos que, suspeito, foram aprendidos na escola – como cubos, sempre pintados tendo cada face com uma cor, ou gatinhos que são desenhados como professoras de escola gostam de fazer.

Esses meninos estão, essencialmente, desenhando seu kukradjà, no sentido de um fazer, um modo de fazer, um se fazer, a si e aos demais, e as coisas feitas. Este conceito, kukradjà, um dos mais complexos e abrangentes no mundo Xikrin, abarca tanto o que faz de uma pessoa Xikrin, sendo também um componente da pessoa, como o modo de fazê-lo, e tudo que é feito por pessoas Xikrin e seus coletivos (COHN, 2006). Neste caso, enfatizam a abertura constante desse conceito amplo e que abarca o mundo e o próprio modo de ser e de fazer (e ser feito) mebengokré, que abordamos abaixo. Ou seja, trazem ao papel aquilo que lhes interessava em seu mundo vivido, no mundo ao seu redor – de modo a fazer dialogar atividades as mais diversas, meios de transporte os mais diversos, em uma interessante tradução indígena, Xikrin, do mundo tal como experimentado por eles naquele momento.

Desenho de um cachorro

Descrição gerada automaticamente com confiança média

Uma imagem contendo toalha

Descrição gerada automaticamente

Os desenhos na escola: a tarefa de desenhar sua cultura

Para os Xikrin, o modo correto, belo, de ser (mei), como aponta Vidal (1991), é uma ética como também uma estética. Ele configura um modo de existência, o ser Mebengokré, e é feito por e de kukradjà. Esse, que é um conceito amplo para os Xikrin, abarca tanto os produtos – pessoas, coisas, coletivos, conhecimentos – como o processo e os meios de fazê-los (COHN, 2006). Além do mais, para manter sua eficácia e produtividade é, e tem que ser mantido sempre, mutante, de modo a fazer sempre novas pessoas, coisas e coletivos belos – sendo o enfraquecimento da sua capacidade de mutabilidade, ou seu congelamento, de um lado, ou de outro, seu superaquecimento, que levaria a uma espécie de ponto sem retorno, de outro, os maiores medos dos Xikrin atualmente, seja no Bacajá (COHN, 2006), seja no Cateté (GORDON, 2005). Em seu amplo campo semântico, é esse o termo escolhido para traduzir aquilo que os não indígenas chamam de cultura – isto é, diferentemente de outros indígenas que, como aponta Carneiro da Cunha (2014), preferem não traduzir a palavra cultura, usando-a em português, as e os Xikrin do Bacajá referem-se frequentemente às diferenças percebidas em relação a seus outros como diferenças no kukradjà, e explicitamente traduzem esse termo para o português como cultura. No entanto, como todos os indígenas atualmente, os Xikrin têm se visto com o campo de força que vem da relação com os não indígenas e com o Estado nacional. A identificação étnica, a identificação territorial e um modo também particular de identificação cultural – em uma concepção do que seria ser indígena, em geral, ou Xikrin, em particular –, um modo jurídico, estatal, de ser e ser concebido, é um campo gravitacional que tem que ser sempre enfrentado justamente por levá-los a tender ao congelamento, que impediria a diferenciação constante que os faz e refaz como mebengokré.

Também as crianças enfrentam essa tensão. Uma vez, seus professores não-indígenas propuseram como atividade em sala que elas fizessem desenhos sobre “coisas tradicionais”, “de sua própria cultura”, ditos assim, em português. Distribuídos papéis e lápis pretos, as crianças se viram com o seguinte desafio: imaginar o que seria sua própria cultura aos olhos dos professores. Esse é um aspecto crucial de sua tarefa: desenhando no espaço escolar, desenhavam para seus professores que, evidentemente, tinham uma ideia muito clara sobre o que seria sua cultura. Cada criança resolveu esse dilema de um modo diferente, mas algumas recorrências se fizeram perceber. Em primeiro lugar, uma distinção de gênero: as meninas desenharam pinturas corporais, o que tem se constituído como quase uma tradição pictórica feminina kayapó ou mebengokré, no suporte papel, desde que Lux Vidal e Gustaaf Verswijver coletaram desenhos feitos em papel com jenipapo e o pincel de palmeira pelas mulheres Xikrin do Cateté e Mekrangotire. De fato, elas as desenharam com uma liberdade de traços e motivos gráficos que as distinguem dos desenhos de mesmo tipo realizados pelas mulheres. Se essas utilizaram o espaço do papel de modo a representar nele o corpo pintado e desenharam motivos de acordo com os padrões estéticos dessa modalidade de pintura, transpondo diretamente para o papel seus princípios estéticos, as meninas dividiram esse espaço em quadrados que continham um ou mais motivos, o que seria impensável na pintura corporal, dando-se maior liberdade de experimentação e inovação. Mas sua escolha temática era clara: de sua cultura, expuseram o que há de mais feminino em sua tradição pictórica, a pintura corporal.

Os meninos tiveram maior liberdade de escolha temática. Alguns desenhos mostravam uma coleção de objetos: máscaras rituais, maracás, cocares, bordunas, canoas, adornos de algodão e miçanga, arcos e flechas, machados. Claro, um tradicionalista extremista logo pontuaria que essa coleção não é ela mesma tão tradicional assim: por exemplo, as máscaras são utilizadas no ritual de mesmo nome, de origem karajá, e canoas só passaram a ser utilizadas desde que abandonaram os igarapés para habitar as margens dos grandes rios. Mas, como demonstro em Cohn (2006), os Mebengokré não são tradicionalistas nesses termos e as escolhas dos meninos responderam muito bem aos anseios de seus professores, presenteando-me com uma verdadeira coleção etnográfica.

Um outro conjunto de desenhos tem como estratégia narrativa representar ações e atividades: máscaras rituais dançando, homens ornados tocando o maracá em pares, um grupo pescando, gente indo pegar água, rapazes trazendo as palmas de buriti para a reunião dos homens, uma pessoa levando o filho ao rio para banhá-lo. Criam assim situações que apresentam a vida aldeã, o modo mebengokré de conviver e viver: uma escolha bastante afeita ao que me parece uma concepção mebengokré de kukradjà, e portanto um modo privilegiado de representar “sua cultura”. Esses desenhos guardam algumas particularidades frente ao que denominei “desenhos espontâneos”, de tema livre, feitos fora da escola, para mim. Nesses, poucas vezes se criam situações, e os elementos são organizados pelo papel ao girarem-no para acrescentar novos elementos (o desenho escolar segue uma orientação vertical, respeitando o formato do papel na exata forma da leitura). Os temas e elementos representados mudam também: dentre os preferidos, animais, como a onça, o tatu, peixes; o campo de futebol com seus jogadores e a bola; a aldeia em seu formato circular; barcos a motor; aviões; e uma casa em que pessoas são vistas em um cômodo banhando em seus chuveiros... Para professores da escola, nada de animais: quando seres animados são representados, são pessoas, em seus afazeres cotidianos, dançando no ritual, pescando, caçando. Para os professores, também, nada de objetos não-indígenas – que, no entanto, são largamente desenhados quando se lhes dá a liberdade de desenhar qualquer coisa que lhe cative a atenção e o interesse. E, para professores, situações e contextos claros e explicitados. De fato, sugiro, entre outras coisas, que a comparação dos desenhos assim produzidos nos remete à distinção feita por Manuela Carneiro da Cunha entre a cultura e a cultura aspeada, ou “cultura”, essa tradução da cultura que é uma ação política e que remete a uma resposta às ideias sobre o que é (ou não) ser indígena, dado que a espontaneidade dos desenhos produzidos pelas crianças que só dependiam de mim para fornecer os materiais nos apresentam um certo recorte do mundo e seus interesses, a cultura, digamos, mas a tarefa escolar, explicitamente o desenho de sua cultura, a “cultura”, proposto em português por professores não indígenas, sugeriram uma resposta gráfica radicalmente diferente. O desafio das crianças, de apresentar em forma de desenho sua cultura para os professores não-indígenas, nos mostra um outro exercício a partir dessa tensão, vivida, no Bacajá como em tantas aldeias do país, desde cedo.

Imagem em preto e branco com texto preto sobre fundo branco

Descrição gerada automaticamente com confiança média

Conclusões: metodologias e questões analíticas

Os desenhos das crianças nos colocam face a duas questões: uma mais metodológica, que concerne meios e modos de coletá-los, e outra mais analítica, que tem por trás concepções sobre o modo como as crianças entendem e dão sentido ao mundo. As experiências relatadas mostraram-nos que os desenhos são reveladores do modo como a criança vê sua inserção no mundo, e o próprio mundo em que se insere, a partir das diversas modalidades de coleta.

Dois modos de reunir desenhos de crianças em pesquisa foram aqui apresentados: em um primeiro, apenas os instrumentos de desenho em papel eram fornecidos às crianças, e lhes era dada total liberdade criativa; no segundo, os temas eram sugeridos às crianças, e entrevistas eram realizadas para que a interpretação das crianças, expressa nos desenhos, melhor se revelasse à pesquisadora. Esse segundo método permite uma classificação dos desenhos em uma tipologia de respostas a uma questão de fundo. Em minha própria pesquisa, trouxe à análise desenhos realizados em diferentes contextos, aqueles em que têm maior liberdade de composição e eleição de temas e outros que, realizados em ambiente escolar, tiveram fornecido o tema a ser elaborado.

Parece-me que a questão não é decidir se uma pesquisa em antropologia ganharia mais se tratasse desenhos de crianças produzidos em um ambiente mais ou menos controlado. Ao contrário, parece-me que as experiências já realizadas permitem concluir que todas essas possibilidades – inclusive aquela em que professores “impõem” um tema e os meios de sua realização – podem ser reveladoras à(ao) antropóloga(o) do modo como crianças elaboram e concebem o seu mundo. Evidentemente, o modo como os desenhos foram produzidos e reunidos pelo(a) pesquisador(a), assim como as conversas que esse(a) teve com as crianças desenhistas, deve pautar a análise, que pode ser mais ou menos conclusiva, mais ou menos pontual. No entanto, parece sim claro que desenhos feitos com liberdade pelas crianças e conversas informais e circunstanciais podem ser tão reveladores quanto desenhos que correspondem a tarefas e entrevistas montadas com técnica. A questão de fundo está para além da abordagem, de um pressuposto analítico – é a de que cabe ao (à) antropólogo(a) aproveitar do desenho o que ele revela da perspectiva de quem o desenha: o ponto de vista da criança sobre o mundo em que vive, ponto de vista esse que, como vimos, pauta sua ação neste mundo, o que é prova suficiente de sua eficácia interpretativa e de seu valor.

Referências

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Recebido em: 16/03/2022

Aceito em: 26/08/2022


1 Este texto traz em si uma longa história de elaboração e debates, e, portanto, muitos agradecimentos a fazer. Em primeiro lugar, às crianças xikrin, que não só se entusiasmaram nesta atividade, à época novidade, do desenho no papel, mas me presentearam com eles. Logo à minha orientadora de mestrado, Lux Vidal, que me sugeriu que levasse papéis, lápis coloridos e lápis de cera em minha primeira viagem “solo” a campo, o que se revelou, como se verá, um grande sucesso, e por sua sensibilidade em me auxiliar na análise desses desenhos. Para além da dissertação resultante, o desenho como metodologia de pesquisa com crianças foi debatido na VI Reunión de Antropología del Mercosur, em 2005, em Grupo de Trabalho coordenado por Antonella Tassinari e Ângela Nunes, a quem agradeço; depois, no Colloquium “Anthropologie et éducation” na Sorbonne, em 2015, a quem agradeço à organização, Pierrot Allain, Isabel Carvalho e Chantal Medaets; em 2016, o debate foi retomado no Séminaire d’Anthropologie Américaniste, e agradeço a Bonnie Chaumeil, Isabelle Daillant, Anath Ariel de Vidas pelo convite, e em todos os eventos à audiência pelo debate. Agradeço em especial a Phillipe Erikson, Andrea Szulc, Fernanda Rifiotis Cruz, Christina Toren e Antonella Tassinari pelos diálogos contínuos sobre o tema, e a minhas e meus orientandos e alunos que colaboraram com a compreensão da riqueza do mundo que os Xikrin nos apresentam. Agradeço, in memorian, a Aracy Lopes da Silva, que me convidou a pesquisar com crianças, Peter Gow, o primeiro etnólogo a se engajar na proposta, e, in memorian, Bep-tok Xikrin, que “me pegou para criar” e sem quem nada disso seria possível.

2 Evidentemente, não se deve esquecer que Mead mantinha, como colegas da Escola de Cultura e Personalidade, diálogos com a psicologia, que foram inclusive inovadores na antropologia (COHN, 2000, 2002); a diferença que se aponta é a dupla formação de Christina Toren, como psicóloga, inicialmente, e depois antropóloga.

3 Toren tem revisitado esse debate, mas enfatizo aqui a importância de seu trabalho primeiro; para essas novas elaborações, cf. Toren (2007) e Fians (2013).

4 Até muito recentemente, as crianças nem guardavam nem levavam às casas, ou a aldeia, os desenhos produzidos na escola, frequentemente os jogando ao redor do prédio escolar (BELTRAME, 2013); neste momento da pesquisa em que eu colecionava tantos desenhos, lhes pareceu – ou me parece – interessante doá-los a mim.

5 Aqui retomo uma discussão desses desenhos elaborada em Cohn (2000, p. 165-172), em que muitos desses desenhos também podem ser vistos.

6 Fisher (1991) aponta como “associações masculinas” e “femininas” esses momentos em que se decide o que fazer no dia a cada amanhecer.

ENTRE MATAS E RIOS:

o cotidiano da infância Tenetehar-Tembé pelas crianças

BETWEEN FORESTS AND RIVERS:

the daily life of Tenetehar-Tembé childhood through children

____________________________________

Vanderlúcia da Silva Ponte1*

Maria Amoras**

Joyce Ramos da Silva***

Resumo

Este artigo fundamenta-se no argumento socioantropológico de que as crianças são agentes sociais. Buscou-se analisar o cotidiano da infância Tenetehar-Tembé visando a compreender como a criança se desenvolve, cresce, isto é, torna-se um adulto Tenetehar-Tembé. A pesquisa valeu-se do uso de desenhos como perspectiva metodológica que orientou a perscrutar a agência das crianças na organização social, cultural e política dos seus grupos. As análises evidenciaram a participação ativa da criança Tenetehar-Tembé na manutenção do seu território, como foi possível observar nas relações cotidianas da aldeia, como é o caso do compartilhamento dos espaços coletivos de tomadas de decisão, de trabalho, das festas, da vida doméstica e dos processos ritualísticos junto aos adultos. Reconhecer-se como indígena, para os Tenetehar-Tembé, depende do aprendizado sobre a vivência cotidiana no território, como expressaram nos seus desenhos. O processo, portanto, de tornar-se adulto e Tenetehar-Tembé demarca a importante relação das crianças com os mais velhos e com os demais seres da natureza na atualização do repertório ancestral que mantém a continuidade do grupo no tempo. Mas, para isso, elas transformam os sistemas configurados pelos adultos e imprimem neles a sua autonomia. Esse processo é compreendido pelos Tenetehar-Tembé como uma estratégia política que fortalece a luta pela garantia da permanência do grupo.

Palavras-chave: Infância. Criança Indígena. Tenetehar-Tembé. Desenho, territorialidades.

Abstract

This article is based on the socio-anthropological argument that children are social agents. We sought to analyze the daily life of Tenetehar-Tembé childhood to understand how the child develops, grows, that is, becomes a Tenetehar-Tembé adult. The research used drawings as a methodological perspective that guided the investigation of childrens agency in the social, cultural and political organization of their groups. The analyzes evidenced the active participation of the Tenetehar-Tembé child in the maintenance of their territory, as it was possible to see it in the daily relations of the village, as is the case of sharing collective spaces for decision-making, work, parties, domestic life and ritualistic processes with adults. Recognizing oneself as indigenous, for the Tenetehar-Tembé, depends on learning about everyday life in the territory, as expressed in their drawings. The process, therefore, of becoming an adult and Tenetehar-Tembé marks the important relationship of children with their elders and with other beings of nature in updating the ancestral repertoire that maintains the continuity of the group over time. But, for that, they transform the systems set up by adults and imprint their autonomy on them. This process is understood by the Tenetehar-Tembé as a political strategy that strengthens the struggle to guarantee the permanence of the group.

Keywords: Childhood. Indigenous Child. Tenetehar-Tembé. Drawing. Territorialities.


1* Antropóloga, professora adjunta II da Faculdade de História e do Programa de Pós-Graduação em Linguagens e Saberes da Amazônia (PPLSA) e do Programa de Pós-Graduação em Educação Escolar Indígena (PPGEI/UEPA/UFPA/Ufopa/Unifespa) e líder do Grupo de Estudos e Pesquisas Interculturais Pará- Maranhão (GEIPAM). E-mail: vantutorapa@gmail.com

**Antropóloga, professora do curso de graduação e pós-graduação em Serviço Social da Universidade Federal do Pará (UFPA). Líder do grupo de pesquisa Interfaces: relações étnico-raciais, gênero, geração e corpo em territórios Amazônicos. E-mail: samoras@ufpa.br

*** Graduada em História pela Universidade Federal do Pará e pesquisadora do Grupo de Estudos e Pesquisas Interculturais Pará- Maranhão (GEIPAM). E-mail: joyce.silva@braganca.ufpa.br

ISSN 1517-5901 (online)

POLÍTICA & TRABALHO

Revista de Ciências Sociais, nº 57, Junho/Dezembro de 2022, p. 35-59

Introdução

Este trabalho analisa o cotidiano da infância Tenetehar-Tembé da Terra Alto Rio Guamá pelo ponto de vista das crianças para compreender como se desenvolvem, crescem, isto é, como se tornam um adulto Tenetehar-Tembé. A aproximação com a temática surge de diversas experiências das pesquisadoras com o universo das crianças em diferentes contextos e realidades, mas no caso das crianças Tenetehar-Tembé a pesquisa emerge por meio das atividades de campo no âmbito das pesquisas do Grupo de Estudos e Pesquisas Interculturais Pará-Maranhão (GEIPAM/UFPA) com as populações indígenas e quilombolas na região de fronteira entre o Pará e Maranhão.

Entre esses estudos, apresenta neste texto reflexões para o desenvolvimento de uma pesquisa em andamento sobre “Etnicidade, territorialidade e infância: a produção de territorialidades e etnicidades por crianças indígenas e quilombolas”, realizada em parceria com o Grupo de Estudos Educação, Cultura e Infância (Geici/UFMA/2022). A pesquisa em andamento, ora referida, parte da compreensão de que a agência das crianças indígenas e quilombolas é fundamental para a preservação de seus territórios, pois produzem territorialidades e etnicidades, impulsionando também a ação de seus grupos na luta pela preservação do território. Para isso, busca compreender os processos de construção de saberes nas sociedades indígenas e quilombolas, especialmente no que diz respeito às crianças nas relações de aprendizagem. Sua intenção, desse modo, é apreender a inserção delas no seio do grupo e sua relação com o território a que pertencem.

Para dar conta dessa relação das crianças e de suas territorialidades, este artigo traz reflexões obtidas junto às crianças Tenetehar-Tembé nas suas relações cotidianas, nas quais seus corpos agenciam apropriações de seus territórios na experiência da infância no processo de se tornar um Tenetehar-Tembé que, imprescindivelmente, deverá preservar o seu território para a perpetuação dessa comunidade.

Tal como Sousa (2018), este estudo considera a autonomia das crianças e, também, não acredita na autonomia de um universo infantil para analisar a agência infantil no contexto das crianças Tenetehar-Tembé, sustentando o argumento de que a agência das crianças deve ser levada à sério e analisada como forma de compreender as questões estruturais e sistêmicas de uma dada sociedade ou a organização social geral das culturas em que essas crianças estão inseridas.

A noção de agência aqui reivindicada fundamenta-se em Giddens (2003), ao enfatizar a capacidade dos indivíduos de intervir e imprimir mudanças nas suas relações. Nesse sentido, consideramos a capacidade da criança de produzir processos autônomos na experiência social e de ser propositiva na condução da vida, mesmo sob as mais diversas formas de coerção e subalternização. Justificamos, deste modo, a inserção dessa investigação no campo de estudos socioantropológicos da infância, ou seja, daqueles que – ao observar que as crianças, em diferentes idades, sustentam conceitos relativos ao mundo social – argumentam que a cognição é social e historicamente construída, daí a não passividade na recepção dos valores e atributos sociais e na condução daquilo que lhes dizem respeito (LOPES DA SILVA; MACEDO; NUNES, 2002; COHN, 2005; PIRES 2011).

Deste modo, a infância considerada como uma forma estrutural e as crianças Tembé pertencentes a um povo de traços específicos são premissas que orientam este estudo a fazer a opção por uma abordagem da infância como construção social, pautada no questionamento da universalidade da infância e do universo infantil e na defesa da sua autonomia, pluralidade e diversidade. Um posicionamento político que visa a libertar a criança do determinismo biológico, ao inserir uma epistemologia própria da infância nos domínios do social (COHN, 2000a; 2000b; 2000c).

O percurso metodológico

A pesquisa se valeu dos desenhos das crianças, sendo uma perspectiva metodológica presente nos estudos clássicos da antropologia que ilumina as pesquisas atuais a também perscrutar a autonomia infantil na organização social, cultural e política dos seus grupos. A intenção foi a de compreender a agência infantil dos Tenetehar-Tembé e suas relações no mundo social e sociocósmico. As nossas primeiras investidas no campo nos mostraram um rico repertório das crianças com os desenhos e suas habilidades para assim retratar o que pensam e fazem em seu cotidiano.

Como os estudos de Lagrou (2007), Vidal (2001) e Lagrou e Verlthem (2021) têm mostrado, a pintura corporal é uma linguagem por meio da qual os povos indígenas comunicam suas relações e traduzem seus sentidos de mundo com outros seres do cosmo, sendo as crianças muito cedo inseridas nesse universo e adquirindo com facilidade habilidades para a pintura corporal e o grafismo. Assim, o domínio dessa habilidade é parte do processo de tornar-se um Tenetehar-Tembé.

O emprego, portanto, das fotografias e dos desenhos mobilizados na obtenção dos dados imagéticos não comparecem neste texto como mera ilustração e, sim, como texto de uma escrita compartilhada entre crianças interlocutoras e pesquisadoras. O uso de fotografias, fotografar, técnica utilizada há tempos nos estudos antropológicos desde Malinowisk, Lévi-Strauss, Mead e Bateson, vem ocupando um lugar de grande importância na construção do saber antropológico.

A fotografia de quem desenha e a fotografia do desenho não comparecem como alternativa à escrita deste texto nem, como diz Achutti (2003, p. 01-06), tem a intenção “de promover um ‘duelo’ entre texto e imagem, mas antes sublinhar o fato de que, mesmo sendo o texto fundamental, a sua associação a outras formas narrativas só pode enriquecer os enunciados antropológicos”. Neste sentido, a intenção maior é a de que o desenho da criança compareça como um dos seus importantes atos de autonomia comunicativa.

O emprego de desenhos das crianças nos textos antropológicos também foi uma técnica muito explorada por Mead e, mais recentemente, por Toren. No presente, entre tantos outros autores que se dedicam às discussões sobre a presença dessa forma de texto das crianças em pesquisas de diversos campos das ciências sociais, Sarmento (2011) tem contribuições relevantes em termos teóricos e metodológicos. Valemo-nos, portanto, dessas orientações do referido autor na condução da técnica investigativa.

Sarmento (2011, p. 36) compreende que “os desenhos são decorrentes de processos culturais de aprendizagem de regras de comunicação, com os conteúdos e as suas formas”. Assim sendo, tomamos como pressuposto a ideia de que “a teoria simbólica nos ajuda a interpretar os desenhos das crianças como atos de inserção de uma cultura na forma comunicativa da expressão visual”. Sarmento (2011, p. 55) também convida a pensar: “O desenho da criança é, afinal, o desenho de um mundo”.

Assim compreendido, buscamos o desenho das crianças para nos possibilitar compreender significados e sentidos da infância. Logo, foi importante considerar o que observa Toren (2006): a autonomia da criança é relativa, pois aprende sobre o mundo que a cerca, toma conhecimento e age sobre ele a partir das relações sociais que estabelece com os outros membros da sua comunidade, estejam eles dispostos horizontalmente ou verticalmente, sejam adultos ou crianças. Assim, o processo de tornar-se, evidenciado nos estudos de Toren (2004), nos mostra a pessoa inserida em suas relações sociais com as outras na produção de significados e sentidos, sendo o modo como o indivíduo constrói sua história (“making history”).

A experiência de pesquisa com as crianças Tenetehar-Tembé teve início 2018, por meio do projeto “Saberes da Floresta: interações interculturais em processos educativos”1. A inserção do projeto nas aldeias da referida pesquisa, portanto, ocorreu como desdobramento da pesquisa de doutorado de uma das pesquisadoras2, que ao aprofundar seus vínculos com os Tembé foi convidada a produzir material didático para a escola. Através de oficinas de pintura buscávamos retratar o cotidiano das crianças nas aldeias. Geralmente, em atividades com adultos, entrevistando as mulheres, ou em reuniões de planejamento nos projetos de extensão, as crianças solicitavam participação em nossas reuniões. Entendendo essas demandas das crianças, começamos a incluir nas atividades dos projetos de extensão as oficinas de desenho com as crianças, já que elas pediam para desenhar e pintar e diziam querer “brincar” com as nossas bolsistas. Participavam dessas oficinas em torno de 7 a 8 crianças, entre meninos e meninas, elas ficavam muito livres para desenhar o que quisessem, sendo-lhes oferecido papel, lápis de cor e lápis de cera. Por vezes, elas traziam jenipapo3 também.

A principal finalidade da atividade era que as crianças pudessem retratar o ambiente e as práticas que elas vivenciavam cotidianamente por meio de desenhos, dado que nosso propósito central por meio da pesquisa com as crianças era entender como elas produziam suas territorialidades (GALLOIS, 2004). Acompanhamos as crianças nas suas andanças pelo território – no rio, na mata, na escola, nas brincadeiras, nas festas e em outros espaços que nos permitiram frequentar, porque elas estão sempre presentes em todas as atividades das aldeias. Por vezes, algumas dessas crianças nos orientavam em campo, apontando os lugares, nos conduzindo até o rio, nos acompanhando de uma aldeia para outra, ou participando conosco em reuniões e festas rituais, como na festa do wira’u haw (ritual que demarca a passagem da menina para vida adulta).

Realizamos em torno de 4 (quatro) viagens de campo, desenvolvidas em distintos momentos: uma atividade de campo para produzir material paradidático para a escola, em que produzimos 3 (três) cartilhas sobre os saberes (de forma que os desenhos das crianças foram incluídos nesse material), uma viagem para acompanhar a festa do moqueado ou wira’u haw, outra atividade de campo para acompanhar o aprendizado das crianças da escola no acampamento na mata4, e uma última ida à campo para apresentar os resultados do material paradidático avaliado pelos Tembé. Geralmente, as crianças ficavam nas oficinas com as e os bolsistas, enquanto as pesquisadoras conversavam com as mulheres e as lideranças, mas em outros momentos, como em reuniões, festas, rituais e acampamentos nas matas, elas ficavam junto às pesquisadoras, o que facilitava entender os significados de seus desenhos e suas experiências.

A abordagem temática do material paradidático seguiu as sugestões dos professores e das professoras da escola e das lideranças, temas, aliás, muito presentes no cotidiano das crianças, como a ação das karuwaras, os saberes da pesca e da caça, a cura por meio das ervas medicinais e as pinturas corporais. As crianças Tembé, desde tenra idade, conhecem e vivenciam todos esses eventos tematizados nas cartilhas, razão pela qual pareceu-nos importante inclui-las em sua confecção. A escolha dos desenhos ocorreu a partir da relação com o território, forma de linguagem da criança, que salienta maior relevo ao seu mundo, e a sua participação na construção de suas territorialidades.

Novas viagens5 de campo foram programadas para as aldeias no ano de 2020, mas todas foram suspensas devido à pandemia do covid-19, considerando que a entrada nas aldeias está interrompida até os dias atuais. Apresentamos neste trabalho o material coletado nessas experiências em campo com as crianças para refletir sobre como as crianças se pensam e traduzem seu cotidiano. Para isso, coletamos fotografias, desenhos, entrevistas e analisamos o filme sobre o cotidiano Tembé disponível no Youtube6, produzido pelo GEIPAM, em 2017. Mas, optamos por trabalhar apenas com os desenhos e as fotografias, dando centralidade aos desenhos por entendermos que eles comunicam e narram de forma direta como as crianças se pensam e traduzem seu mundo, como Sarmento nos possibilita refletir.

Na primeira sessão deste artigo, buscamos analisar como se traduz a infância para os Tenetehar-Tembé. Retratando o cotidiano das crianças nas aldeias, destacaremos, principalmente, nesta sessão, como as crianças se constituem na relação com os outros seres da natureza e como produzem seus corpos permanentemente. Procuraremos dar conta do cotidiano das crianças em diferentes espaços e relação com os adultos e as karuwar(s). Na segunda sessão, daremos ênfase à perspectiva das crianças acerca de seu mundo e como elas próprias se vêm no universo das aldeias. Com base em seus desenhos, analisaremos como a criança é ativa e ocupa centralidade nas relações com os adultos, de forma que, pouco a pouco, ela vai adquirindo autonomia, se apropriando e produzindo suas territorialidades.

As infâncias e as crianças Tembé em seu cotidiano nas aldeias

O etnômio Tenetehar, de origem Tupi, significa o “ser íntegro, gente verdadeira, ou povo verdadeiro”. Segundo a mitologia Tenetehar, eles são um povo primordial, a encarnação perfeita da humanidade. Os Tenehetar estão subdivididos em dois subgrupos, os Guajajara e os Tembé. Os Tembé mencionados neste estudo estão localizados no estado do Pará, na Terra Indígena do Alto Rio Guamá (TIARG), fixados na antiga Reserva Indígena do Alto Rio Guamá (RIARG), nome empregado na década de 1940 para demarcar a transição cultural dos povos indígenas e o processo de assimilação adotado pelas políticas de cunho colonialistas. Estabelecida no nordeste do estado do Pará, entre a margem do Rio Guamá e à margem esquerda do Rio Gurupi, limite sudoeste do estado do Pará com o Maranhão, a TIARG compõe uma área de e 279.897,70 hectares, correspondendo a um conjunto de 30 aldeias, aproximadamente, sendo cada uma dessas aldeias independentes e com autonomia entre si, ao longo dos referidos rios.

O termo infância, tal como interiorizamos, fruto do domínio do pensamento europeu sobre o nosso território colonizado, vem do latim Infans que significa – o que não fala ou é incapaz de falar7. Durante o século XX, surgem teorias que concebem as crianças como sujeitos de direitos e deveres. Com isso, alguns estudos começam a se debruçar sobre o tema, principalmente no campo da psicologia, que apresenta resultados do ponto de vista da aprendizagem. Esses estudos partem da noção de que as crianças vivenciam etapas em seu desenvolvimento que ajudam na sua formação psicoemocional e motora. Essa noção etária e linear da infância nos leva a alguns questionamentos, dentre outros, o questionamento sobre se o desenvolvimento da criança ocorre por etapas para todas as crianças e se a noção de infância se dá da mesma maneira para as diferentes sociedades e culturas.

Segundo Kuhlmann Junior (1998, p. 16), no dicionário da língua portuguesa, a infância é considerada como período de crescimento no ser humano e vai até a puberdade. De acordo com o art. 2º do Estatuto da Criança e do Adolescente, (Lei n.8.069, de 13 de julho de 1990), são consideradas crianças todas as pessoas que têm até doze anos incompletos (BRASIL, 1990). Dentre os vários instrumentos que estabelecem os direitos da criança e garantem seu desenvolvimento e proteção, se encontra a Constituição Federal Brasileira de 1998, que determina prioridade à proteção da infância e da criança, além da garantia de seus direitos, um dever tanto da família, como também do Estado.

O reconhecimento da criança como sujeito de direitos em lei específica, no contexto da nossa sociedade, constituiu-se a partir de muitos anos de luta e embates entre os movimentos sociais, o Estado e a sociedade, além de debates acadêmicos em que se buscava assegurar os direitos das crianças pelo Estado.

Problematizar a história da infância que nos foi imposta, aquela tecida pela cultura do colonizador, nos permite novas perspectivas sobre o assunto, e alarga os nossos horizontes de pensamentos e reflexões, já que ao nos reportarmos às crianças e às infâncias sempre tomamos como referências os estudos de uma cultura branca, adulta, burguesa, urbana e europeia, ou seja, de universos infantis muito distantes das realidades amazônicas e dos contextos culturais indígenas. Isso nos faz pensar que as crianças com as quais convivemos e conhecemos se orientam por outras epistemologias e filosofias diversas do mundo ocidental (AMORAS, 2014; AMORAS; MOTTA-MAUÉS, 2016). A infância é tida como uma condição do ser criança, portanto, é carregada por uma gama de experiências vividas por elas em diferentes lugares e contextos (KUHLMANN JUNIOR, 1998).

A infância, sem dúvida, vem tomando cada vez mais notoriedade entre os temas de investigação das ciências sociais. Desta forma, este trabalho busca contribuir com reflexões que desconstroem visões universalizantes sobre a infância para entendê-la no contexto em que está inserida. O universo infantil, nesse sentido, não é um reflexo do mundo adulto, e muito menos está isolado, pois se move nas relações geracionais e intergeracionais e com os demais seres da natureza por meio das singularidades e autonomias próprias das crianças. Isso significa dizer que as crianças em contextos diversos mobilizam diferentes formas da infância e, inclusive, de deixar de ser criança.8

Ao tomarmos as crianças e suas interações como foco de pesquisas, percebemos de imediato, em contato direto com elas, que elas são, ao mesmo tempo, produtos e produtoras da cultura. Aspecto que têm sido amplamente debatidos há mais de três décadas no interior da antropologia, como sistematizou Cohn (2005, p. 35): “esses sentidos têm uma particularidade, e não se confundem e nem podem ser reduzidos àqueles elaborados pelos adultos; as crianças têm autonomia cultural em relação ao adulto”. Com isso, podemos notar como as crianças são influenciadas pelo saber do adulto e como elas também influenciam a construção do seu saber, reforçando a ideia de que elas são atuantes na produção e mobilização das epistemologias e cosmologias dos seus grupos.

Quando nos reportamos às crianças indígenas da América Latina e, em particular, da Amazônia brasileira, logo somos desafiadas a romper com certas estruturas de pensamento e teorias homogeneizantes que nos orientam a imaginar a infância sob o estatuto da filosofia e da sociologia ocidental, aquele que lhe imputa universalismos, padrões e naturalizações dos processos de desenvolvimento, do crescer, do tornar-se adulto, ou seja, o chamado “mundo da criança” das crianças latinas, amazônidas, negras e indígenas, é um mundo prenhe de colonialidades (POZZER, 2018; CHAVEIRO; MINELLA, 2021). Cabe perguntar quem se autodenomina dono do corpo-território9 dessas crianças?

Pesquisadoras, como Tassinari (2007), Cohn (2000, 2002, 2005), Sousa (2014), entre outras(os) tão importantes, têm feito o esforço para desconstruir compreensões hegemônicas sobre as crianças e, particularmente, sobre as crianças indígenas brasileiras e seus diversos povos. A partir dos estudos dessas autoras, vimos que o desafio de compreender crianças em territórios diversos se impõe, porque quando nos reportamos às crianças Tembé, assim nos referiremos a elas daqui em diante, percebemos que ainda no ventre materno direcionam a vida dos adultos para as decisões que podem afetar toda a aldeia. Desde a gestação, uma série de transformações ocorrem na vida dos pais e da aldeia de um modo geral que marcará a centralidade da criança em diversos momento da vida.

A notícia da gravidez impõe aos pais da criança uma série de restrições, como as alimentares, comportamentais, sociais, mas também muitas medidas de prevenção e cuidado com os banhos, chás, garrafadas e puxações do ventre materno. A parteira, tão logo a mulher se reconhece grávida, é acionada, dando direção na condução da gestação, mas também da posição correta do feto. Dizem os(as) Tembé, que a criança é “reimosa”10, por isso, certos cuidados devem ser direcionados a ela. Quando perguntados aos Tembé porque as crianças são “reimosas”, eles explicam afirmando que ela atrai os espíritos da floresta, as Karuwar(s). Isso significa dizer que o corpo da criança está sendo produzido, porque na concepção Tembé, o corpo é o tempo todo trabalhado, por isso, ele vai se consubstanciando pela experiência diária, no cotidiano da aldeia.

Então, o que se come, o que se faz, mas também os lugares por onde se anda são determinantes na relação com os espíritos que vão performando o corpo da criança Tembé, mas de outros povos indígenas da Amazônia também (BELAUNDE, 2006). Assim, comer caititu, quando se está grávida, pode ofender o bebê, que reage, tornando o caçador “panema”11, mas também ao se banhar no rio, no horário impróprio, o bebê pode atrair “a mãe d’água” porque a mãe do bebê ultrapassou um lugar pertencente à “dona do rio”12, um ser muito poderoso que pode matar o bebê, por isso, os pais devem também evitar fazer muito esforço, sobretudo a mulher, porque pode prejudicar a criança e a mãe na hora do parto.

Como vimos, desde o ventre materno, a criança muda a rotina dos pais que passam a obedecer a muitas restrições, mas também muitos cuidados para que a gestação transcorra bem e a criança nasça saudável. Tomar as garrafadas, fazer os banhos e asseios, puxar a barriga com a parteira é uma rotina que as grávidas passam a obedecer com rigor, pois são esses remédios, puràg, como dizem os Tembé, que podem amenizar o poder reimoso da criança, por isso se esses cuidados não são assegurados, a mulher grávida e o bebê podem prejudicar toda aldeia, como o plantio e manejo da roça, o preparo e construção de canoas, os instrumentos de caça e pesca do marido, dentre outros.

Ao nascer, os cuidados que cercam o bebê são redobrados, seguem dieta alimentar severa para os pais, o resguardo de 40 dias (sem se expor ao sereno e sair de casa), extremo cuidado para que as roupas do bebê não fiquem fora de casa, já que há o risco de seu corpo ser afetado pelo espírito da lua, que pode provocar “quebranto” no bebê. Por isso, logo, as crianças são protegidas com penas de arara em suas cabeças, aderidas com cera de mel ao cabelo, ou pequenas pulseiras vermelhas e pintura de jenipapo em seus corpos. Dizem os Tembé que nesse momento da vida, o espírito da criança não está completamente colado em seu corpo, e há o risco do espírito de bicho (do mato, do rio, e da constelação celeste) se encantar pela criança e levá-la para morar no mundo das Karuwar(s).

Na perspectiva Tembé, todos os seres que vivem e convivem com eles, seja da mata do rio e do céu, têm humanidade como os Tembé, por isso podem afetar os corpos e a vida dos indivíduos. Todos já foram gente e viviam como vivem os Tembé, mas mudaram de corpo, de perspectiva (VIVEIROS DE CASTRO, 1996) no decorrer dos tempos. Então, proteger as crianças com pena de arrara pode evitar de o “bicho” se encantar pela criança e levá-la consigo, já que a pena desvia o olhar para outro ser (bicho). Assim, todo esforço dos pais é feito para manter o espírito da criança em seu corpo e não ser alvejado pelas karuwar(s).

Aprender a usar o jenipapo é uma habilidade que as crianças devem adquirir desde cedo. Os pais permitem que a criança faça a sua própria pintura corporal, o que significa aprender a lidar com o que eles chamam de “ciência”, pois o jenipapo é um ser muito perigoso e poderoso e é o espírito da lua, “ser inexplicável”, como refere Bewãri, pajé da aldeia Sede. Segundo o mito Tembé, a lua era um ser masculino e namorava com uma mulher. Todas as noites ele vinha copular com ela, mas ela não sabia sua identidade, então, a mulher foi pedir conselho para sua avó, que a orientou a passar jenipapo em sua face no momento em que ele fosse deitar-se com ela. Assim ela o fez, mas, ao amanhecer do dia todos ficaram sabendo tratar-se de seu sobrinho. Tão envergonhado ficou o rapaz que ele pediu para o beija-flor levá-lo ao céu, mas, ao subir ao céu, ele vingou-se da mulher, produzindo várias flechadas que a atingiram, provocando-lhe a menstruação. A lua foi transformada em Zahy, por essa razão os Tembé explicam o formato da lua e a pintura do jenipapo.

Elvira Belaúnde (2006), ao coletar diversas versões do mito de Zahy afere tratar-se da memória primordial do incesto, relacionando-o com conhecimento, o desejo de saber (de saber quem é o amante) e o parentesco, já que o mito possibilita a exogamia e a vingança do sangue, elemento xamânico que marca a relação com os espaços cosmológicos, como é o caso da lua. Entre os Tembé, é o espírito da lua, o jenipapo, que marca, na inscrição corporal das crianças, o aprendizado sobre o mundo sobrenatural, o que nos faz pensar que seus corpos são lugares de territorialidades. Territorialidades entendidas aqui como formas de apropriações do espaço, mediatizadas pelas relações culturais, não se trata de estabelecer fronteiras, mas relações entre seres, fluidez no universo sociocósmico, como sinaliza Gallois (2004, p. 40), “(..) a apropriação interdependente de limites étnicos e territoriais é necessariamente uma construção em aberto, e por isso não é necessariamente vivida enquanto um ‘encapsulamento’ definitivo”.

Apesar de “enclausuradas” em um território delimitado pelo estado brasileiro, as crianças Tembé vivenciam inúmeras territorialidades, o que pode significar, tal qual aferiu Gallois (2004, p. 40), “que os limites étnicos não correspondem aos limites territoriais”. Desse modo, tão logo as crianças aprendem a andar, elas são submetidas à festa da criança, ritual em que as crianças preparam seus corpos para o convívio com os espíritos. Assim, é preciso cantar, fazer o mingau para a criança e preparar seu corpo com jenipapo. Esse ritual possibilita que ela se habitue com o cheiro e os efeitos desse ser em seu corpo, pois com poder xamânico forte, o jenipapo pode causar danos ao seu corpo e não deixar que o espírito da criança permaneça em seu corpo. Então, pintar-se com jenipapo, cantar e aprender a manuseá-lo é um aprendizado imprescindível para a criança e para qualquer indivíduo Tembé se manter estável no mundo sociocósmico e não se transformar em Karuwar.

Após a festa da criança, os cuidados para evitar determinados espaços e alimentos é fundamental, por isso as crianças seguem com restrição alimentar, resguardos e proibidas de circular nos rios e matas. No entanto, após o jenipapo sair de seus corpos, passam a acompanhar os pais em todas as atividades da aldeia. Entre os Tembé não há uma separação radical entre o mundo da criança e o mundo do adulto, nem tão pouco, a atenção dos cuidados infantis é uma atribuição unicamente dos pais. De um modo geral, todos da aldeia se tornam responsáveis pela criança, ainda que ela seja o tempo todo ensinada a tornar-se independente e autônoma. Não há, exatamente, um rigor nessa aprendizagem, nem uma exigência direcionada para que ela aprenda, ela, simplesmente, é acompanhada pelos pais em tudo que eles fazem.

Ir à roça, ao rio, participar das festas e rituais, acompanhar os pais em reuniões, acampamentos na floresta e rios, ir à cidade e assistir ao jogo de futebol faz parte da rotina diária das crianças. Não há uma exigência de que elas façam alguma tarefa e ajudem os pais em qualquer circunstância que seja, mas elas são livres para aprender a fazer o que os pais fazem. Então, podem brincar de plantar mandioca, de ralar macaxeira, de pescar no igarapé ou na beira no rio, de pular o Kaê Kaê13 e participar das festas e rituais.

Também às crianças é dado aprender as regras e apropriação dos espaços. Há algumas restrições de lugares e horários aos quais elas devem aprender a evitar. As matas e rios são considerados lugares das Karuwar(s), por essa razão as crianças devem sair sempre acompanhadas dos pais e nos horários apropriados, nunca ao meio-dia e às 18 h da tarde. Segundo os Tembé, há o risco da criança, mas dos adultos também, de serem acometidas(os) por “flechada de bicho”, podendo adoecer e adquirir outra alteridade.

Ao mesmo tempo, a criança é livre para brincar com outras crianças, o que não significa que ela não está sendo vigiada por algum adulto, pois o espaço da aldeia é amplo de possibilidades a explorar, já que o brincar é uma maneira dela adquirir habilidades e treino para a vida adulta. Brincar também pode significar fazer festa, dançar, se pintar e interagir com as Karuwar(s), pois nos rituais, as crianças têm seus corpos pintados para “brincar” com elas.

A rotina das crianças tem uma relação com o dia a dia na aldeia, o que significa ir para a roça, se é lá que os pais trabalham, para o rio, se as mães forem lavar roupa, ou ir à escola, se já tiverem idade escolar. No entanto, nem sempre a escola obedece a um calendário rígido, pois são incorporados no calendário escolar as festas, os rituais, os acampamentos nos rios e matas e a festa cultural da aldeia. Da mesma forma, o calendário pode ser afetado em decorrência dos conflitos territoriais, quando os Tembé se consideram em “missão” e fazem a vigilância de seu território ou manifestação política na cidade, momentos em que as crianças acompanham os pais também.

A mudança de menina(o) para mulher ou homem não tem um demarcador de idade preciso, mas depende do primeiro ciclo menstrual para as meninas e da mudança de voz para os meninos, em que ambos precisam passar por um rigoroso ritual. Isso demarca novos aprendizados e diferentes papéis sociais. Ao menino é exigido que se torne um bom caçador; um guerreiro da aldeia, que saiba ser um bom cantor e obter os domínios da pesca; já à menina, que assuma muitas responsabilidades como mãe e mulher e assim saiba bem cuidar da roça, do artesanato, da casa, da pintura, das festas, entre outros atributos.

Nos dias atuais, muitos jovens já saem das aldeais e vão estudar nas universidades, uma vez que poderão assumir outras tarefas e ser inseridos nos serviços públicos que foram introduzidos nas aldeais, podendo tornarem-se professores, enfermeiros, técnicos de enfermagem, agentes de saneamento e agentes comunitários, motoristas, merendeiras, serventes, entre outras funções. Assumir essas novas funções, no entanto, não desvinculam os pais e os(as) jovens de outras tarefas consideradas da “cultura Tembé”, nem tão pouco exclui as crianças de circularem nesses espaços.

No ritual da menarca, os(as) jovens são pintados(as) novamente com jenipapo e vivem três momentos essenciais para adquirem os atributos que o grupo social espera deles(as). O primeiro momento é chamado de “tocaia”14, quando a menina é pintada de jenipapo – isolamento social a que a menina é submetida ao menstruar – é uma recomendação que todas as meninas devem passar, uma vez que o sangue para os Tembé tem função xamânica e pode prejudicar a mulher se não ficar em resguardo e dieta alimentar severa.

A festa do mingua, quando a menina prepara seu corpo com pintura corporal da lua e da onça e serve mingau da mandiocaba doce para os convidados, demarca transformações. Esse ritual é considerado remédio, pois espera-se que o corpo da mulher se constitua forte e preparado para uma boa gestação e parto. E, também, que adquira, em contato com as Karuwar(s), os atributos da fertilidade, da vida, poderes considerados por excelência da lua.

A festa do wira’u haw, ou festa do moqueado, é um banquete ritual de caça servido aos convidados na “brincadeira”. Esse ritual tem complexidade diversa, o que não será possível tratar aqui, mas, de forma geral, ele prepara os(as) jovens com canto, dança, xamanismo e dieta alimentar, para que, em contato com os diferentes espíritos, as Karuwar(s), adquiram as capacidades da onça e da lua. As meninas têm o corpo todo banhado de jenipapo, adquirindo a aparência desse felino animal, e os meninos, recebem a pintura da guariba em sua face.

As mulheres têm grande liderança e força entre os Tembé. D. Célia, capitoa da aldeia Teko-haw Ka’a pitehar, refere que veio da onça a força adquirida pelas mulheres, e associa ao ritual do wira’u haw a incorporação desses atributos como coragem e bravura, dizendo que é a mulher “quem dá a direção”, pois, são elas que dão força aos homens. Homens e mulheres da aldeia aprendem desce cedo a constituírem-se em relação constante com diversos seres que compõem a cosmologia Tembé, por isso, tornar-se homem ou mulher é também construir relação instável entre o mundo das karuwar(s) e dos indivíduos Tembé. É por meio dessa relação, com esses seres, que seus corpos vão se performando, sendo nesse universo cosmológico de conflitualidade, inconstância e coesão, que as crianças aprendem que o território (resultado das territorialidades) produz todas essas relações. Sendo, portanto, o modo como elas vão territorializando os espaços, dando-lhes significado e sentido, que se aprende como é ser Tembé, como mostraremos a seguir, por meio de seus desenhos.

As crianças e seus desenhos: aproximações e interlocuções

As fotografias apresentadas nesta sessão foram produzidas em 2018, nas Aldeia Sede e Pino’a. As imagens (imagem 1, imagem 2 e imagem 3) foram feitas durante a oficina com as crianças, que também tinha como finalidade retratar o cotidiano nas aldeias em momentos distintos. A imagem 01 foi realizada na aldeia Sede, quando coletávamos informações para a produção das cartilhas, a imagem 02 foi produzida durante o acampamento na mata, próximo à aldeia Pino’a quando as crianças desenvolvem por uma semana as atividades escolares para aprender sobre a caça e a vida dentro da floresta. A imagem 03, por sua vez, foi também produzida na aldeia Sede, por ocasião da devolutiva do material didático sobre os saberes.

Imagem 01 – Oficina com crianças

Fonte: GEIPAM. Desenho produzido através da Oficina do Projeto de Extensão “Saberes da Floresta: interações interculturais em processos educativos”, Aldeia Sede. 2018. Fotografia: Pedro Tobias.

Imagem 02 – Crianças na produção de seus desenhosMulher com criança no colo

Descrição gerada automaticamente com confiança baixa

Fonte: GEIPAM. Desenho produzido através da Oficina do Projeto de Extensão “Saberes da Floresta: interações interculturais em processos educativos”, Aldeia Pino’a. 2018. Fotografia: Pedro Tobias.

Imagem 03 – Oficina com as crianças

Menina segurando bicho de pelúcia

Descrição gerada automaticamente com confiança baixa

Fonte: GEIPAM. Desenho produzido através da oficina do Projeto de Extensão “Saberes da Floresta: interações interculturais em processos educativos”. Aldeia sede. 2018. Fotografia: Pedro Tobias.

Ao analisarmos as três primeiras imagens, podemos observar que os desenhos expressam como as crianças se veem na aldeia. Na imagem 01, identificamos a presença da floresta e das plantas compondo o dia a dia das crianças. O ambiente doméstico, como a casa, sempre é reportado associado aos elementos da floresta, como árvores, plantas e animais. Em quase todas as cenas dos desenhos aparecem os grafismos do povo Tembé. Como referido na sessão anterior, as crianças desde pequeninas são estimuladas a pintar o próprio corpo com jenipapo, um aprendizado necessário para a convivência com as Karuwar(s), que vivem nas matas e rios, o que nos mostra como esse universo das Karuwaa(s), presente nos grafismos, é um elemento importante de interação com o corpo das crianças, que, no momento em que se pintam, aprendem sobre seu universo cosmológico. Na imagem 02, podemos identificar o grafismo da taboca e da cobra, pinturas que retratam a lua e a jiboia, seres importantes na cosmologia Tembé, que têm força xamânica nos rituais e podem “chamar as karuwar(s)”.

Desenho 01 – Evento da pesca

Texto preto sobre fundo branco

Descrição gerada automaticamente com confiança média

Fonte: GEIPAM. Desenho produzido através da Oficina do Projeto de Extensão “Saberes da Floresta: interações interculturais em processos educativos”, Aldeia Pino’a. 2018. Autor: Kawahane Tembé

Desenho 02 – Evento da pesca

Fonte: GEIPAM. Desenho produzido através da Oficina do Projeto de Extensão “Saberes da Floresta: interações interculturais em processos educativos”, Aldeia Pino’a. 2018. Autor: Richael Tembé.

É possível observar que os rios nos desenhos 01 e 02 estão relacionados ao evento da pesca, que demarca um momento importante no cotidiano da vida das crianças, que desde a tenra idade aprendem como se inserir nesse universo. O rio, assim como a pesca, é cercado de perigos. Seres como a “mãe d’agua” podem atacar os indivíduos e deixá-los sem direção, perdidos nos rios, desmemoriados, com possibilidades de acessar outras alteridades e passar a conviver com os seres do fundo, por isso, as crianças brincam de pescar nos igarapés ou próximo da beira dos rios e aprendam que entrar nos rios exige preparo e cuidado com o corpo.

Percebemos como as crianças manifestam o seu cotidiano através dos desenhos, seja pelo desenho da casa na floresta, desenho das árvores ou ações que estão presentes em seu cotidiano, como dormir no mato, como elas fazem quando ficam acampadas na floresta, elementos que se mostram como importantes nessa realidade em que estão inseridas. Podemos com isso confirmar que os desenhos das crianças se afirmam como uma estratégia importante e um recurso metodológico rico para a compreensão de que as crianças e as infâncias só podem ser entendidas em contextos específicos. Assim, as oficinas de pinturas realizadas com as crianças Tembé nos possibilitaram conhecer como elas entendem e agem nesse cotidiano e a realidade em que estão imersas.

Desenho 03 – Aldeia e floresta

Imagem de desenho infantil

Descrição gerada automaticamente com confiança baixa

Fonte: GEIPAM. Desenho produzido através da oficina do Projeto de Extensão “Saberes da Floresta: interações interculturais em processos educativos”, Aldeia Sede. 2018. Autor: Kawahane Tembé.

No desenho 03, observamos como o cotidiano da experiência do acompanhamento é significativo para as crianças, pois, conforme retrata a figura 03, as crianças e seus familiares dormem na mata e passam a utilizar esse ambiente como um espaço doméstico, estendendo a aldeia para a floresta adentro. O desenho da rede entre as árvores revela como as crianças percebem a floresta, revelando o ambiente da aldeia como um espaço que interage com a mata, podendo ser uma extensão da casa, do espaço familiar, mas também um lugar perigoso, identificado como do “curupira”, por isso, as crianças devem saber lidar com os segredos da caça, conhecer as plantas que os animais comem e saber respeitá-las. Percebemos, assim, como as crianças são agentes conhecedoras da realidade em que estão imersas.

Como exemplo disso, tivemos uma série de desenhos – que serão mencionados a seguir – que remetem às plantas frutíferas que fazem parte dessa realidade Tembé: o açaizeiro, o abacaxizeiro, a planta de favaca, a árvore de graviola, o buiuçu. Há ainda os desenhos que rementem ao ritual do wiru’haw, importante cerimônia xamânica que marca as transformações na vida dos(as) jovens Tembé. Destacamos esses desenhos que retratam essas plantas, as pinturas usadas nos rituais, na caça e na pesca, porque eles foram muito frequentes nos desenhos das oficinas.

No cotidiano das crianças Tembé, é muito comum o manuseio das plantas, pois são elas que ajudam os pais a colher no quintal as diferentes plantas/ervas para os chás e garrafadas. Esse aprendizado é direcionado tanto aos homens quanto às mulheres, pois ter o domínio e os conhecimentos de cada espécie é imprescindível tanto para o caçador, que precisa saber que tipo de planta atrai e alimenta os animais, como para as parteiras, erveiras e raizeiras, que cuidam da saúde de todos da aldeia. As crianças não só aprendem a identificar as plantas de uso medicinal, como as que servem de alimentos, sendo o fruto do açaí, da graviola, do abacaxi, da banana muito presentes nos quintais e roças das aldeias. Geralmente, a classificação das plantas se dá pela identificação do cheiro e textura e não pela espécie.

Nos desenhos 06, 07 e 08 podemos identificar como a festa do wira’uhaw está presente e tem uma centralidade na vida das crianças. Elas identificam o desenho da guariba, pintura corporal dos meninos durante a festa do moqueado (como podemos comparar na imagem 06 na festa do wira’uhaw), aprendendo desde cedo seu significado. Durante as festas, as crianças participam ativamente das “brincadeiras”; elas pulam (dança ritual da guariba) nos colos dos pais ou seguras em suas mãos, mas também em pares com outras crianças, como fazem os adultos, se pintam com jenipapo, passam a defumação do breu na ramada (espaço onde acontece o ritual) e pegam Karuwar(s).

Desenho 06 – Grafismo do rapaz na festa Wyra’ u haw

Lousa branca com texto preto sobre fundo branco

Descrição gerada automaticamente com confiança média

Fonte: GEIPAM. Desenho produzido através da Oficina do Projeto de Extensão “Saberes da Floresta: interações interculturais em processos educativos”, Aldeia Sede. 2018. Autora: Luana Tembé.

Desenho 07 – Pintura da guariba

Texto, Carta

Descrição gerada automaticamente

Transcrição do desenho: Boca de macaco: Ka’i. Usado mais nos homem na festa da moça. Fonte: GEIPAM. Desenho produzido através da oficina do Projeto de Extensão “Saberes da Floresta: interações interculturais em processos educativos”, Aldeia Sede. 2018. Autora: Luana Tembé.

Desenho 08 – Menina na festa wira’uhaw

Transcrição do desenho: Menina moça; é usada na festa da moça. Pintura de proteção dos bichos da mata e da água. Fonte: GEIPAM. Desenho produzido através da oficina do Projeto de Extensão “Saberes da Floresta: interações interculturais em processos educativos”, Aldeia Sede. 2018. Autora: Luana Tembé.

Acompanhamos esses momentos e percebemos que durantes as danças e os canto rituais algumas crianças ficam quase desfalecidas no colo dos pais, segundo o pajé, elas estão com as Karuwar(s) em seus corpos. Disse-nos Bewãni que é importante que as crianças saibam lidar com elas, por isso elas não podem se produzir muito, o que significa que o grafismo da criança não pode ser bem traçado e com contornos bem definidos como nos adultos, sendo preferível que elas próprias se pintem, pois a beleza estética da pintura corporal atrai as Karuwar(s) e como as crianças estão com os corpos em formação (o espírito não está totalmente colado em seus corpos) elas correm o risco de as karuwar(s) levarem seus espíritos.

Imagem 04 – festa Wira’uhaw

D:\LAS - Festa da moça\IMG_3902.JPG

Fonte: GEIPAM. Imagem Festa Wira’uhaw. 2019. Aldeia Sede. Fotografia: Pedro Tobias.

Os rituais, por exemplo, se apresentam como parte importante na vida social e sociocósmica Tembé, pois, “são períodos ritualísticos necessários para criar processos que desencadearão uma boa condição física, saúde e, consequentemente, uma longevidade dentro de seu universo material e simbólico” (COELHO, 2014, p. 62).

Os meninos e as meninas que participam do ritual têm seus corpos pintalados com grafismo, com a tinta do jenipapo. As meninas têm seus corpos totalmente pintados, semelhantes à onça preta, e os meninos com a pintura da guariba e da meia-lua em seu peitoral. Essas pinturas têm todo um significado, pois nos corpos em transformação, como é o caso das jovens púberes e dos jovens rapazes que mudam de voz, o intuito é que eles adquiram as potências e capacidades desses animais em suas vidas para que cresçam fortes, corajosos e hábeis, como a guariba. Da menina se espera que seja uma mulher de iniciativa, corajosa, brava e saiba conduzir sua família e demarcar o território como fazem as onças, do homem, que desenvolva a habilidade da caça e da cantoria, qualidades que o faz ser um bom caçador.

As crianças Tembé possuem conhecimento sobre seus rituais e práticas desde muito cedo, ou seja, são conhecedores das festas, das plantas, da caça, da pesca, e dos locais que podem frequentar, pois são sabedoras dos segredos das matas e rios, e conhecem os lugares em que os espíritos ou Karuwar(s) podem lhes atacar. Exposto isso, notamos que elas aprendem através das suas vivências dentro do território, e essas vivências estão ligadas às práticas dos saberes ancestrais.

Durante uma semana, há realização do acampamento na floresta, do qual participam crianças, professores – indígenas e não indígenas – e alunos indígenas. Nele, os mais velhos repassam os conhecimentos sobre a caça, extração de frutas, pesca, mitos e os conhecimentos tradicionais aos mais novos. Por meio dos mitos, rituais e eventos na mata e nos rios, as crianças aprendem ativamente, agindo no território, experimentando e repetindo o que os adultos fazem, mas também reinterpretando essas experiências. Nas palavras da Ana Paula da Silva Rocha15, moradora da Aldeia Pino’a:

Bom, esse acampamento ele é muito importante até pela tradição de nunca se perder a tradição, [...] que não deixe se perder, então por isso, primeiramente é importante por isso não deixar se perder e ensinando as crianças né, as crianças vão crescendo já com esse costume, com essa tradição então eles nunca vão deixar se perder, aí por isso que eu acho importante que eles vão aprendendo mais pra não se acabar.

Com as imagens 05 e 06, queremos mostrar como esse aprendizado é prático e ativo, e como a criança participa diretamente desse aprendizado. Nestas duas imagens, mostramos dois momentos vivenciados pelas crianças durante o acampamento, a primeira imagem se dá no âmbito da caça, realidade que elas já presenciam desde cedo, e a segunda é o ato de colher o açaí, fruto que é muito comum na Amazônia, servindo como fonte de alimento. Ambas as imagens são retratadas nos desenhos das crianças, como podemos ver no desenho 09 em que há uma criança caçando o tatu, e no desenho 04, a árvore do açaí, revelando a inscrição desses eventos em seus pensamentos e em seus corpos.

Imagem 05 - Após a caça

Uma imagem contendo pessoa, ao ar livre, comida, mesa

Descrição gerada automaticamente

Fonte: GEIPAM. Acampamento 2018 – Aldeia Pino’a. Fotografia: Pedro Tobias.

Imagem 06 – A colheita do açaí

Homem em cima de árvore

Descrição gerada automaticamente com confiança média

Fonte: GEIPAM. Acampamento 2018 – Aldeia Pino’a. Fotografia: Pedro Tobias.

Desenho 09 – Representação do caçador

Fonte: GEIPAM. Desenho produzido através da Oficina do Projeto de Extensão “Saberes da Floresta: interações interculturais em processos educativos”, Aldeia Sede. 2018. Autor: Wewew Tembé.

O que podemos entender com esses desenhos? E o que eles retratam? Podemos dizer que, por meio dos desenhos, as crianças criam uma linguagem própria de como se veem no mundo para compreender como o mundo lhes é apresentado. No entanto, elas (as crianças), de alguma forma, reconstroem esse mundo, dando-lhes sentido e explicação. É uma forma muito criativa de produzir seus próprios corpos e criar as inscrições do mundo nele, pois o grafismo e a pintura corporal, enquanto linguagens, produzem traduções diferentes da oralidade e da escrita acerca da inscrição do mundo no corpo.

Podemos, assim, dizer que a criança inscreve e traduz o mundo em seus corpos. Quando ela desenha no papel esse corpo, é o corpo territorializado que está sendo inscrito, já que o mundo indígena é constituído de muitos seres invisíveis, que também estão presentes em seus pensamentos, interagindo com as crianças e produzindo seus corpos como pessoa e território, como fazem as karuwar(s) entre os Tembé.

Considerações finais

O cotidiano das crianças Tenetehar-Tembé é permeado de práticas e convivências sociais e culturais nas quais a criança é preparada para se tornar adulto desde a infância, acompanhando os mais velhos no meio social – em reuniões e em processos ritualísticos (COELHO, 2014). Toda essa experiência depende do seu reconhecimento enquanto indígena e logo depende do território para desenvoltura dessas práticas, que se tornam de extrema importância no atual contexto em que vivemos – acometido das invasões de suas terras, conflitos com grandes proprietários de terras, diminuição do espaço territorial.

São conflitos que se originam no período colonial e que foram se estendendo ao longo dos séculos, gerando inúmeros obstáculos à circulação dos indígenas no território brasileiro (PONTE, 2016). Este trabalho, portanto, pretendeu ser uma contribuição a mais aos estudos que têm feito o esforço para mostrar que a infância não é vivida de forma universal e que as crianças indígenas também não são únicas, são diversas. Neste caso, as crianças aqui retratadas estão dentro de um meio social e sociocósmico em que a cultura se diferencia da dos não indígenas.

As práticas dentro da aldeia, circundadas por matas e rios, movimentam os processos ritualísticos que se apresentam de forma vital para a compreensão da concepção de infância para os Tenetehar-Tembé. Nesse sentido, é importante reforçar esse campo teórico reafirmando que, para o reconhecimento dos sentidos de infâncias, é preciso considerar as crianças concretas, localizá-las nas relações sociais e cosmológicas, reconhecê-las como produtoras da história e levá-las à sério nas pesquisas.

Isso significa dizer que a infância, apesar de sua aparente universalidade e de toda a sua defesa internacional como um direito inalienável das crianças, não se realiza de igual maneira em todos os setores sociais. Assim, ser criança varia entre sociedades, culturas e comunidades, pode variar no interior de uma mesma família e diferir de acordo com a estratificação social. Do mesmo modo, transforma-se historicamente a depender da definição institucional da infância dominante em cada época (PINTO; SARMENTO, 1997).

Por fim, esperamos ter contribuído com futuros estudos que se empenhem pela assertiva de que as crianças são sujeitos atuantes, partícipes da manutenção dos seus grupos no tempo. Por isso, são reprodutoras e produtoras do conhecimento, influenciam e são influenciadas pela cultura. E, o modo como as crianças Tenetehar se tornam um Tembé ensina-nos a vê-las como agentes importantes e fundamentais para a fortalecimento das lutas do seu povo pelo território tradicionalmente ocupado (GALLOIS, 2004).

Referências

ACHUTTI, Luiz Eduardo Robinson. Fotos e palavras, do campo aos livros. Revista Studium, 2003. Disponível em: www.studium.iar.unicamp.br/12/index_win.html Acesso em:12 de jul.2021.

AMORAS, Maria. “No Abacatal (também), uma Flor”: um estudo antropológico sobre a relação criança & trabalho. 2014. Tese (Doutorado em Antropologia) – Instituto de Filosofia e Ciências Humanas, Programa de Pós-Graduação em Sociologia e Antropologia, Universidade Federal do Pará, Belém, 2014.

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Recebido em: 15/07/2021

Aceito em: 06/12/2022


1Projeto de Extensão aprovado pelo Programa Institucional de Bolsas de Extensão (PIBEX EDITAL PROEX Nº 01-A/2018) em que Ana Victoria Santos da Costa, Joyce Ramos da Silva, Marcia do Carmo Sousa, Maria Madalena dos Santos do Carmo, Uarley Iran Peixoto e Pedro Tobias (técnico audiovisual do projeto) atuaram como bolsistas e voluntários, a quem muito agradecemos a colaboração e a participação.

2 Desde 2010, a pesquisadora Vanderlúcia da Silva Ponte desenvolve pesquisa juntos aos Tenetehar-Tembé. Essa vivência nas aldeias tem possibilitado muitos desdobramentos de pesquisa, extensão e ensino, e parcerias com outros(as) pesquisadores(as), razão pela qual a parceria com o Geici/UFMA deu maior relevância ao universo das crianças.

3 Jenipapo (Genipa americana), fruto muito frequente na Amazônia e muito utilizado pelos povos indígenas, que para os Tembé tem poder xamânico, sendo utilizado para pintura corporal e rituais.

4 Todos os anos, no verão, os Tembé desenvolvem uma atividade pedagógica da escola nas matas e nos rios. São momentos que estão presentes no calendário escolar da Escola Félix Tembé e servem para ensinar as crianças como conviver na mata e aprender a caçar e pescar. Serve também para que as crianças fiquem ao redor das fogueiras escutando os “causos”, que os Tembé traduzem como narrativas dos antepassados sobre diversos temas, como caça, pesca, os espíritos, os mitos, entre outros assuntos.

5 Tínhamos um planejamento, para o ano de ٢٠٢٠, realizar ٥ (cinco) viagens de campo. Essas idas a campo serviriam para coleta de dados.

6 Os Tembé – Cidadãos Brasileiros da Floresta. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=rpCA8pZnwX0

7 Na cultura latina, o termo infans era associado aos que não podiam participar da república (KOHAN, 2008).

8 Não podemos deixar de pontuar que o “adultocentrismo” ainda é uma matriz forte do pensamento colonial que coloca a criança em um lugar inferiorizado, que nada sabe, enquanto o adulto assume uma posição de poder e de saber, que a subalterniza.

9 Corpo-território é um conceito político que evidencia como a exploração dos territórios comuns e comunitários (urbanos, periféricos, quilombolas, indígenas e demais povos tradicionais) implica violentar e subalternizar o corpo de cada um e o corpo coletivo por meio da espoliação (HAESBAERT, 2020).

10 O sistema da reima já foi amplamente analisado na etnologia amazonense, sobretudo por Motta-Maués e Maués (١٩٧٨). Segundo esses autores, as populações classificam os alimentos considerados danosos ou não para o indivíduo em determinados períodos da vida, criando diferentes e complexas relações entre eles.

11 Na concepção nativa, o indivíduo perde a habilidade para a caça.

12 Dono refere-se aqui ao “modo generalizado de relação” presente na Amazônia, em que humanos e não humanos, pessoas e coisas, estabelecem de forma assimétrica posição de controle e predação (FAUSTO, 2008, p. 329).

13 Dança ritual que imita a guariba em momentos de caça.

14 Tocaia refere-se a um lugar isolado dentro da casa em que a menina fica restrita de contato, podendo interagir somente com a mãe e as mulheres mais velhas. Antigamente, esse espaço era construído afastado da casa, onde era feita uma cabana de palha. Podemos também associar a tocaia às armadilhas que os caçadores fazem para apreender as caças, já que as meninas também ficam presas dentro de casa.

15 Entrevista de Ana Paula da Silva Rocha, moradora da Aldeia Pino’a, durante o acampamento de 2018. A entrevista foi conduzida para que a entrevistada falasse um pouco da época em que ela era criança e da sua realidade (na roça, pesca).

“NÓS QUEREMOS DESENHAR!”:

possibilidades de participação e produção de dados
em uma pesquisa com crianças moçambicanas

“WE WANT TO DRAW!”:

possibilities for participation and production
of data in a research with Mozambican children

____________________________________

Marina Di Napoli Pastore1*

Resumo

Numa das comunidades ao sul de Moçambique, num lugar caracterizado principalmente pelas faltas de acesso e violação de direitos, as crianças assumem o protagonismo e a participação social a partir de suas criações artísticas, sendo o foco deste artigo. O desenho, compreendido como ferramenta metodológica e de ação das crianças, ocupa um lugar significativo e de entendimento da vida social, em coletivo, permitindo que as crianças abordem questões sobre seu dia a dia de maneira reflexiva, permeando os mundos em que as crianças se inserem. A partir de um trabalho etnográfico entre os anos de 2017 e 2018 na comunidade de Mabotine, Maputo, Moçambique, este artigo apresenta alguns dos desenhos feitos pelas crianças, em momentos da pesquisa, e sua relação com as percepções socioculturais, políticas e históricas, em reflexões e compreensões próprias e partilhadas.

Palavras-chave: Crianças moçambicanas. Desenho. Etnografia. Participação social.

Abstract

One of the communities in southern Mozambique, in a place characterized mainly by lack of access and violation of rights, children assume the leading role and social participation from their artistic creations, being the focus of this article. The drawn, understood as a methodological and action tool of children, occupies a significant place and understanding of social life, collectively, allowing children to address questions about their day-to-day in a reflexive way, permeating the worlds in which the children are in. From an ethnographic research between the years 2017 and 2018 in the community of Mabotine, Maputo, Mozambique, this article presents some of the drawings made by children, at times of research, and their relationship with sociocultural, political and historical perceptions, in reflections and understandings of their own and shared.

Keywords: Mozambican children. Drawn. Ethnography. Social participation.

Introdução

Este artigo é fruto de um trabalho de pesquisa a partir dos estudos das infâncias e suas contribuições teóricas, com campo etnográfico realizado ao longo dos anos de 2017 e 2018 em uma comunidade localizada na periferia de Maputo, em Moçambique. O foco da discussão é o desenho narrativo (BERTASI, 2019), em que há uma compreensão no “processo de produção gráfica da criança, na qual a intenção de pensamento e a sequencialidade presente em seu desenho são compartilhadas pela mesma a partir da narração oral” (BERTASI, 2019, p. 8).


1* Docente no Instituto Superior de Ciências de Saúde (ISCISA), Maputo (Moçambique). Terapeuta ocupacional, mestre e doutora em Terapia Ocupacional pelo PPGTO da UFSCar. Pós-doutora em Antropologia pelo PPGA da UFPB. Pesquisadora no grupo CRIAS-UFPB e no Núcleo Amanar (Casa das Áfricas). E-mail: marinan.pastore@gmail.com

ISSN 1517-5901 (online)

POLÍTICA & TRABALHO

Revista de Ciências Sociais, nº 57, Junho/Dezembro de 2022, p. 60-77

A partir dos estudos das infâncias, enquanto campo teórico, este artigo encontra os estudos da performance para compreender as produções e ações criativas de crianças contadas em histórias narradas e desenhadas, em percepções e realidades distintas, em que as crianças assumem o protagonismo na construção dos dados, que são elaborações compartilhadas e coletivas.

Durante o período de 2017 e 2018, em atividades voltadas às noções de cidadania e direitos, realizadas num projeto comunitário em Mabotine, as crianças desenharam suas percepções sobre os temas propostos, possibilitando outras formas de gerar conhecimentos e abordar formas de compreensão de realidades particulares e partilhadas, em que a violência era ora definida pelo Estado, na invisibilização dos lugares e de políticas de acesso, ora pelas vivências experenciadas pelas crianças.

A premissa deste artigo é dialogar e produzir um conhecimento construído em coautoria com as crianças, sobre suas vivências e percepções sobre os temas desenvolvidos para além dos modelos deficitários de infância em África, nomeadamente Moçambique (marcados pelas teorias e conceptualizações do norte), que dialogam com classes sociais e econômicas, geográficas, agência, gênero e potencialidades das crianças, bem como tornar visíveis as crianças, seus modos de vida e suas produções, que são invisibilizados, escondidos, desconhecidos ou simplesmente não existentes (nesses estudos hegemônicos).

A criança em sua ação criativa brinca e constrói performatividades (MACHADO, 2010). As histórias contadas, desenhadas, decorrem de percepção do mundo e, com frequência, são vivenciadas como poéticas em presentificações performáticas: “quem representa uma história a toma para si, faz da história do outro a sua, acrescentando elementos e apropriando-se de questões que não participam no dia a dia daquela realidade (LAGE, 2018). Representar é ato de poder, hierárquico, em que sempre há um subalterno” (PASTORE, 2020, p. 16). Pensar as histórias e as construções pelos desenhos das crianças, a partir de temáticas específicas, é abrir o diálogo para outras vozes e expressões, em que as histórias contadas são marcadas por contextos, vivências e modos expressivos de ações que colocam as crianças no protagonismo e na participação não apenas dos dados, mas da vida.

Quando as crianças criam ações e formas de fazer, a partir daquilo que elas conhecem ou se tornam conhecidas pelas experiências vivenciadas, elas exercem sua participação, desejos e cidadania enquanto sujeitos sociais e criam formas de partilhar suas vozes, pontos de vista e da vida social e coletiva, não apenas pelo diálogo, mas também pelos ritmos, passos, gestos; quando as crianças criam dinâmicas e levam o pesquisador aos espaços em que o brincar ocorre ou pode ocorrer, elas não apenas integram os estudos, mas se tornam participantes ativos e ativamente criativos de suas próprias narrativas, integrando e construindo dados, teorias e formas de se pensar e conduzir a pesquisa que estejam alinhadas com seus modos de vida (MYERS, 2010).

Bertasi (2019, p. 18) afirma que

Toda criança, desde muito pequena, vai deixando marcas no decorrer de suas vivências artísticas. Para algumas pessoas que não percebem sua importância, elas são apenas traçados sem sentido. Contudo, cada marca vivenciada pelas crianças é permeada de pensamentos e torna-se repertório para uma próxima experiência, e estas para uma próxima e, assim, sucessivamente. Ou seja, a cada nova experiência, as já vividas apoiam as atuais, como um ciclo sem fim.

Dialogando com Bertasi, este artigo busca a produção das crianças a partir e através das experiências compartilhadas, em que o desenho é compreendido como criação, expressão e saber infantil, em poéticas e sensibilidades que produzem pensamentos e reflexões. O desenho é aqui assumido como criação e linguagem, em processos de ação e interação.

Metodologia e contexto da pesquisa

A pesquisa de campo, ancorada pela etnografia, foi realizada no bairro de Luís Cabral, periferia da cidade de Maputo, capital do país moçambicano. Enquanto pesquisadora e integrante do grupo de colaboradores do projeto desde 2014, a minha relação com a comunidade sempre foi de proximidade e encontro, numa tentativa de conhecer a realidade contextualizada e produzir formas de estar que sejam ancoradas com a experiência.

A ideia de produzir desenhos partiu das crianças, quando questionadas, já em 2014, o que gostariam de fazer enquanto atividade do projeto. Compreendendo o meu papel como terapeuta ocupacional e o meu estar ali visando à produção de projetos de vida e de cidadania, cujo foco era a participação das crianças em suas vidas cotidianas, conversamos sobre temáticas propostas dentro do planejamento anual e, assim, delimitamos o que abordaríamos. Em decorrência dos casos de violência ocorridos na comunidade, a ideia era trabalhar a percepção das crianças sobre elas mesmas e sobre o bairro através daquilo que elas viam, e não o que era imposto como regra.

Dentre os temas propostos, decidimos que pensaríamos em formas de narrar, pelo desenho ou poesia (escolha das crianças), quem elas eram, como viam suas famílias e relações no espaço de casa e da comunidade, e como entendiam o espaço que habitavam. As relações sociais presentes também marcavam formas de estar e criar no local.

A autorização para o uso dos desenhos se deu por parte das crianças, num acordo em que eu, pesquisadora, ficaria com as fotos de suas produções, e elas com um caderno de desenhos produzido ao final dos encontros grupais no ano de 2018, como parte da devolutiva da pesquisa realizada.

Embora fizesse parte de um trabalho maior, que também foi um dos campos do doutorado, esta pesquisa se fez de forma pontual e em colaboração com os integrantes do projeto. Para além de dados produzidos, é importante frisar o papel social desta pesquisa e do trabalho desenvolvido na comunidade em questão, que acontece para além da minha presença no grupo, e é um dos poucos movimentos em prol das crianças e seus direitos ali. O projeto foi pensado na e com a comunidade, em relações com o chefe da comunidade e associação de pais, buscando a participação das crianças também nas formas como o projeto vai decorrendo, ao longo dos anos, numa busca de exercício de direitos das e cidadania pelas crianças.

“A história do meu bairro por aquilo que desenho”: caminhos da pesquisa

A comunidade de Mabotine, localizada em Maputo e mais conhecida como “Drenagem”, é um lugar pouco conhecido pela maior parte dos moçambicanos e residentes da capital moçambicana. A região situa-se próxima ao mar e é uma zona de manguezal, que era, inicialmente, um acampamento de pescadores. Nos anos 2000, a comunidade sofreu um processo de remoção de habitantes por conta de cheias que assolaram o território, mas que foram retomando o lugar aos poucos, anos depois, sendo também um lugar de permanência para pessoas vindas por migração de diversas áreas do país, desde a época da guerra civil (1976-1992) até os dias atuais.

Geograficamente, está localizada numa via de acesso à principal estrada da capital, que liga Moçambique à África do Sul, e antes do pedágio que liga Maputo à Matola. Suas habitações são dispostas de forma irregular, com inúmeras faltas, dentre as quais estão o saneamento básico, a luz e a água encanada. Dentre as pessoas que lá habitam, encontram-se milhares de crianças que, de certa forma, acabam por ser invisibilizadas perante as políticas de acesso (TELES; MUIANGA; BRÁS, 2011; TELES; NIPASSA, 2011).

Na comunidade existe um projeto desde 2013, em parceria com a Universidade Eduardo Mondlane, intitulado “Munthi Wa SwiVanana” que, em português, significa “Casa da Criança”. Com a presença de 120 crianças matriculadas, o espaço fornece reforço escolar, aulas de idiomas, de dança, canto, entre outros. Durante a pesquisa de campo ao longo dos anos de 2017 e 2018, um dos trabalhos desenvolvidos com as crianças, numa reconstrução de suas vivências, teve como foco principal a utilização de desenhos, a pedido das crianças, como forma expressiva de lidar com determinadas situações, como as questões de violência e suas relações com o bairro. A etnografia permitiu buscar “o brincar e a construção dos saberes como um dos meios de perpetuação e produção cultural, da qual a criança não é apenas agente ativo, mas sujeito social, consciente e que cria, no brincar e na brincadeira, formas de estar, transformar, transcrever e traduzir o meio ao qual habitam” (PASTORE, 2020, p. 141).

Buscar as crianças e seus protagonismos implica conhecer as diversas infâncias e possibilidades de ser criança a partir de múltiplas faces, vozes e ações. Compreender as atividades significativas das crianças a partir dos seus espaços de pertencimento era um desafio pois, mesmo as crianças constituindo a maioria da população moçambicana, estudos e pesquisas que vão ao encontro delas e de suas potências e vivacidades ainda são raros.

Em lugares em que a oralidade possui um referencial importante, outras formas de se obter e produzir os dados é também um desafio. Foi durante um diálogo sobre a concepção do bairro e da comunidade que as crianças foram mapeando o local como um lugar de pertencimento, reconhecimento e produção de vidas.

Durante um momento de conversa com as crianças sobre o bairro surgiu a indagação sobre o nome Mabotine. Embora sem conhecimentos aprofundados sobre tal nomeação, algumas narrativas foram produzidas, ora narradas, ora desenhadas, sobre as definições daquele lugar. Uma delas é trazida abaixo:

Mabotine significa barco. Não, significa rio. Pode ser barco no rio. Já viste o rio ali atrás, né. Tem muitos peixes. Muita gente vem aqui pegar peixes. É daí o nome Mabotine. Mas nem podemos nadar nesse rio, dizem que é sujo. Mas nadamos, quando ninguém vê… Já podemos desenhar né? Vou desenhar Mabotine, hás de poder mostrar… (CADERNO DE CAMPO 2, 2017).

As conversas e trocas foram produzindo, ao longo do tempo, percepções múltiplas e polifônicas, fazendo surgir a necessidade de colocar de outras formas o que o verbal não dava conta de narrar. Foi quando as crianças sugeriram que pudessem “falar pelos desenhos” e mostrar aspectos de suas vivências no bairro e de suas relações por meio de suas criações.

Ao assumir as crianças como produtoras de cultura e colaboradoras ativas no processo artístico-cultural, considerei a dinâmica dialógica e assumi o compromisso, junto a elas, de pensar os desenhos e as temáticas que envolviam suas relações com as famílias, com a comunidade e com o bairro, através do desenho. Desse modo, a relação, que se estabeleceu no estudo, buscou a horizontalidade de poder, ancorada na teoria da dialogia. A construção de conhecimento, dentro de relações horizontais entre as pessoas nele implicadas (FREIRE, 1987), favorece ambiente para proposições fundamentais advindas de inquietações do “existir-no-mundo”, “fazendo a história com a criança” (FREIRE, 1989, p. 13).

Pensar tais questões com as crianças, em um processo democrático e coparticipativo, levou à junção de pequenos grupos, com cerca de 35 crianças cada, durante um período de 4 meses nos anos de 2017 e 2018. Com 35 crianças, as temáticas envolvidas foram “quem eu sou”; “qual meu sonho”; “minha família”; “meu bairro”; “meu dia a dia”; “violência”; “tema livre”. O estudo juntou cerca de 90 desenhos ao longo desses anos, dos quais cinco são trazidos para a discussão.

É agora que desenhamos?”: a expressão das crianças no correr do lápis

Figura 1: Vista sobre Maputo – aeroporto

Lousa branca com texto preto sobre fundo branco

Descrição gerada automaticamente

Fonte: Arquivo pessoal da pesquisadora. Desenho de Boaventura. 2018

Num dos primeiros encontros destinados à produção dos desenhos, o tema levantado foi sobre a concepção das crianças sobre o bairro. Boaventura (12 anos) trouxe, em seu desenho, uma visão sobre Mabotine a partir do macro: sua situação e localização nos arredores do lugar, os acessos e serviços que existem ali. Para Boaventura, “não tem como falar só de Mabotine, sabes. Se vivemos todos em Maputo. Sabes que o aeroporto é cá perto? Será que as pessoas nos veem como vemos os aviões? Devem nos ver bem miúdos!”.

Machado (2010), ao dialogar com Merleau-Ponty, afirma que as crianças “possuem uma imensa capacidade de aderência às coisas”, utilizando-se do “dom da imaginação” para envolver os presentes e participantes da cena, agregando suspense, curiosidade, exercício de paciência e imaginativo ao processo em construção, tornando vívido o “exercício dos modos de ser e estar da criança”, em que o jogo e as relações estão presentes, numa situação de “liberdade para a criação” (GARROCHO, 2008 apud MACHADO, 2010, p. 121).

O desenho de Boaventura, seguido do diálogo com o grupo de crianças, levanta algumas questões: quais são as percepções que as crianças têm sobre o que está ao seu arredor? Seriam as crianças partes separadas do meio no qual vivem ou contempladores e coabitantes das estruturas com as quais interagem? Cohn (2005, p. 14) afirma que “a experiência da criança e do ser criança é cultural e só pode ser apreendida em contexto”.

O desenho de Boaventura nos faz pensar nisso: quais são os traços particulares e coletivos que permeiam os seus mundos, mesmo que negados pelo Estado ou por quem faz as políticas? Do mesmo modo que as crianças veem os aviões, as chegadas e partidas, as pessoas que estão nessas passagens também veem, ou querem ver, as crianças? O que esse ir e vir traz para as crianças e como afeta seus cotidianos?

Ao compreendermos que “as imagens gráficas das crianças são pensamentos coloridos” (STACCIOLI, 2018, p. 72), e que, como afirma Bertasi (2019, p. 19) “podem ser imprevisíveis, se misturar e apresentar soluções inovadoras”. Boaventura e algumas outras crianças soltavam a imaginação e diziam “se aprendemos que, na escola, os desenhos contavam histórias de povos passados, esses vão contar a nossa. É assim que seremos vistos”. Através dos desenhos, as crianças foram não apenas mostrando seus posicionamentos quanto ao lugar em que viviam, mas trouxeram, nas narrativas, as formas como queriam virar história.

Gobbi (2014, p. 152) defende que “desenhar pode prover a existência, a descoberta e a invenção de mundos. Enseja modos e maneiras de ver, apropriar-se e elaborar coisas”. Por isso, quando a criança desenha não experimenta apenas “o ato de desenhar em si, como também a experiência de ver. Desenhar é, de certa forma, ver. Materializar o que é visto com todos os sentidos e a partir das relações com o outro” (GOBBI, 2014, p. 152). Em Mabotine, as crianças experienciavam pensamentos em traços distintos.

Para Bertasi (2019, p. 28), ao dialogar com Staccioli (2011), é no desenho da criança que as representações possíveis são imprevisíveis, “podendo ser misturadas, entrelaçadas, criativas, banais, mostrando assim, a elaboração complexa da criação, que vai além de esquemas e modelos adquiridos, permitindo um mergulho na mente de quem desenha”

Figura 2 – “Mabotine é assim!”

Desenho técnico

Descrição gerada automaticamente com confiança média

Fonte: Arquivo pessoal da pesquisadora. Desenho de Sidolfe. 2017

Sidolfe, também com 12 anos, tinha uma visão mais de dentro de Mabotine. Seu desenho mostra as casas, os caminhos, as cores e as vivências de quem, de dentro, participa do dia a dia cotidiano e corriqueiro dali. Sidolfe retrata uma Mabotine quase fiel aquilo que os olhos veem: casas de caniço (palhotas), ruas que perpassam as casas, uma estrada que corre do lado de fora. Mas seu desenho tem algo mais vívido: as árvores e o verde em uma quantidade abundante. Ao perceber que o desenho era olhado com indagação, logo disse “não seria mais bonito se tivesse mais verde aqui? Sabe, desenho só fica bonito com cor. Devíamos colorir. Veriam mais cá se fosse assim” (CADERNO DE CAMPO 2, 2017).

A fala do Sidolfe refaz uma linha de raciocínio que não obedece ao sistema do lógico ou cronológico, mas do momento em que as coisas acontecem, e no qual o desenho, como forma de expressão artística, cria modos de dizer sobre os espaços de jeitos outros. Estudar a infância significa estar conectado à realidade local, conhecer e reconhecer os valores e culturas existentes, que delineiam os modos como a criança é vista e percebida (PASTORE, 2020)

Segundo Angela Nunes (1999, 2003), a infância constrói seus sentidos a partir de olhares e interpretações de indivíduos sociais e culturalmente localizados, sendo, de tal modo, um fenômeno plural e relacional. Estudar uma sociedade sem levar em conta as categorias sociais e geracionais é invisibilizar modos de criação e percepção que as crianças, com estes desenhos, nos apontam outras direções. Deste modo,, a meu ver, um entendimento (embora não anunciado) da criança e do seu papel a partir de relações micro e macrossociais e das estruturas que a cercam, cujas visualizações são permitidas pelos desenhos.

O esforço da reflexão aqui é o de compreender e discutir como as questões no sistema micro e macrossociais acabam também por interagir com os mundos das crianças e com suas percepções, numa compreensão de infância em que as crianças não são vítimas ou vilãs, mas participantes; e como estes olhares outros, traduzidos em formas de desenho, acabam por trazer as crianças como protagonistas de suas histórias e com possibilidades de agir no mundo ao qual pertencem, partilham, transformam e são transformadas.

Pensar em como as crianças, nas relações que estabelecem entre si e nas formas de ação social que constroem nos espaços-tempos, constituem suas culturas e são também por elas constituídas (BORBA, 2007); atores sociais não por interpretarem um papel que não criaram, mas por criarem diversos papéis e modos de ser e fazer enquanto vivem em sociedade (COHN, 2005).

Os desenhos anteriores possuem suas confluências e pluralidades, partilhando de um sentimento comum da invisibilidade e do que gostariam que fosse. Ao compreender as crianças como produtoras de culturas e interferindo diretamente no seu modo de estar no mundo, os desenhos nos fazem visualizar outros modos de dizer e de interpretar os desejos e sentimentos não verbalizados.

Figura 3 – “Mabotine é uma mistura de cores. Só falta pintar”

Uma imagem contendo cavalo

Descrição gerada automaticamente

Fonte: Arquivo pessoal da pesquisadora.
Desenho de Marília, Hélia e Sinoca. 2018

“Mabotine é alegria. Olha lá, já viu como brincamos aqui? Usamos muitas cores, sabe por quê? Porque é assim que vemos. Mabotine tem cor, mas só para quem vê. Aqui é lugar de viver. Vivemos aqui. Gostamos daqui. Podemos ler uma história agora?” (CADERNO DE CAMPO 3, 2018).

Cohn (2005, p. 19) nos faz refletir que “(...) não são os valores ou as crenças que são os dados culturais, mas aquilo que os conforma. E o que os conforma é uma lógica particular, um sistema simbólico acionado pelos atores sociais a cada momento para dar sentido a suas experiências”. Ao nos depararmos com vivências e experiências outras, passamos a entender que é necessário encarar a vida das crianças em sua realidade complexa, com potências e críticas.

Há, nesse movimento das crianças, uma noção sobre o micro e o macrossocial no qual habitam, permeiam e com o qual conseguem intervir, ou ao menos nos fazer pensar: que realidade são essas que caminham numa direção contrária daquilo que a mídia, imprensa, políticas e programas sociais têm colocado sobre a não existência de uma infância ou de lugares outros para as crianças, por não estarem dentro de um estereótipo imposto sobre o que é ser criança ali (IMOH, 2016).

Atentar-se a um processo interativo das crianças com os desenhos e suas criações, com os materiais disponíveis e com o que há ao redor permite-nos conhecer, ou estar disposto a, as formas como as crianças colocam o pensamento e as suas histórias, das quais elas são protagonistas. Estar atento a esse processo de interação das crianças com os desenhos, com os materiais e com os pares, permite conhecer como as crianças colocam em forma o pensamento e as histórias que surgem a partir dessa materialização do invisível (CAPPELLETTI, 2009; BERTASI, 2019).

Ao entendermos que as crianças não só habitam as sociedades e comunidades, mas também interagem e interferem nelas como tal, desenvolvem processos de adaptação, apropriação, reinvenção e reprodução realizadas por elas próprias, conseguimos dar outros rumos àquilo que é tido como universal.

Cunha e Gonçalves (2015) discutem o quanto a criança e o brincar, podendo ser entendido aqui como o desenhar e as demais formas de expressão, representam essa origem a da possibilidade de fazer acontecer. Para os autores, “não obstante, o pequeno ser e os gestos lúdicos também têm a capacidade de fazer acontecer a heterogeneidade, a multiplicidade, a complexidade, a mobilidade, o caminho” (CUNHA; GONÇALVEZ, 205, p. 12).

Apresentar a criança ao mundo em pequenas doses dando valor positivo aos atos performativos, e construir coexistências de culturas e sua difusão, propicia situações potencialmente criativas, além da compreensão da infância como relacionada “ao novo e um campo fértil para o surgimento de antiestruturas, no sentido sociológico do termo” (MACHADO, 2010, p. 164).

Figura 4 - Chega de violência!

Lousa com desenho

Descrição gerada automaticamente com confiança média

Fonte: Arquivo pessoal da pesquisadora. Desenho de Hélio. 2017

Ao pensar a heterogeneidade das crianças e os modos como assumem a vida, as experiências e suas representações, há também interpretações sobre seus locais que vão ao encontro das visões sobre a falta da infraestrutura, dos não lugares e também das suas relações com a violência e seus mundos. Creditar novos olhares para as produções e participação das crianças não é negar as estruturas sociais existentes, mas permitir novos olhares sobre problemas estruturais que, muitas vezes, acabam por definir as crianças em não lugares.

O desenho intitulado “basta de violência” surge na vivência de grupo em que as crianças deveriam retratar suas famílias. Não apenas Hélio trouxe a violência doméstica, como outras crianças também. Ana, de 8 anos, durante a conversa em roda, disse que “toda família se briga, bate, se xinga. Ih, como magoa”. Os cenários de violência, que até então não haviam aparecido de forma tão direta, começaram a surgir naquele instante.

Ao assumir as crianças como parceiras e criadoras de dados, conhecimentos, cenários e tantas outras potências e potencialidades, passamos a assumi-las como atores sociais plenos e, portanto, competentes para a formulação de interpretações sobre seus mundos e modos de vida, e como reveladores das realidades sociais nas quais se inserem. As formas como as violências são vivenciadas acabam por ser expressas nos desenhos e isso nos aciona um alerta sobre o que olhar e como dialogar sobre essas questões com as crianças. Esse desenho foi disparador de rodas de conversa, não apenas com as crianças, mas com os familiares, ampliando o trabalho do projeto para as famílias.

Segundo Soares, Sarmento e Tomás (2005, p. 54), reconhecer a criança como “sujeito de conhecimento, e não de simples objeto, instituindo formas colaborativas de construção do conhecimento nas ciências sociais que se articulam com modos de produção do saber empenhados na transformação social e na extensão dos direitos sociais”, permite a produção de espaços criativos e de possibilidade reflexiva, em que se tem as culturas infantis como principal ponto de partida e chegada para o entendimento das crianças e infâncias, de suas produções de cultura e saberes próprios, partilhados pelos contextos que as cercam.

Canevacci (2013, p. 76) afirma que, quando um determinado contexto de pesquisa “exprime uma multiplicidade de mensagens e de fontes, se deve desenvolver um método adequado, isto é, que multiplique os pontos de vista, de observação, levantamento e transcrição do objeto”. Pactuando com essa ideia, Barros e Mariano (2019) defendem que “a construção da reflexão pela construção de narrativas fílmicas, fotográfica ou desenhada permite a composição e a justaposição, também, na escrita, pluraliza o texto e amplia os campos de aproximações entre etnografias realizadas em temporalidades e espacialidades distintas” (BARROS; MARIANO, 2019, p. 3). Foi através dessa metodologia que buscamos não apenas compreender a produção das crianças, mas os meios de solucionar questões silenciadas.

Mabotine é um lugar áspero e de violências diárias: falta saneamento básico, escolas, atendimento médico, social; faltam acessos. Mas, poder refazer e recriar aquele espaço, a partir dos desenhos, era dar nova vida também ao lugar em que as crianças vivem, ressignificando, a partir da experiência singular e coletiva de cada uma das crianças, trazendo para a pesquisa a voz, os olhares, as mãos, as ideias, as noções de geografia e história, do espaço, da vida.

Quando as crianças desenham e ousam pintar com cores fortes é como se elas fizessem um protesto ao cinza que se tem ali. Ou melhor: ao não colorido que permeia suas casas. Azia (13 anos) disse que “pintar é como poema: pensamos em mudar as coisas, reconstruir a elas, pelo traço do lápis”. E se reconstruir for também revolucionar? Poderíamos compreender o desenho como uma metodologia da revolução: trazer para dentro o que se quer marcar, exprimir as suas marcas e deixar a liberdade sobressair quando a realidade não é suficiente. Ferreira-Santos (2019), ao falar sobre a vida para além dos muros de concreto, disse que “a gente passa a ser muito mais revolucionário quanto menos a gente fala sobre revolução. Mas faz. Com as duas mãos… Isso é vida: quando a pessoa está criando.” (FERREIRA-SANTOS, 2019, n.p). Afirmaria, então, que as crianças fazem revoluções, cotidianas, criando.

No desenho de Hélio, e de outras crianças, há denúncias importantes sobre as questões sociais e as diversas faltas e violências que vivenciam, e os modos como elas ressignificam tais assuntos. Há violências e silenciamentos estruturais que permitem a reprodução de outras violências, e quando as crianças denunciam essas experiências é preciso rever todo um sistema que lida com as crianças e com maneiras de reforçar esse silenciamento ou criar estratégias para agir a partir daquilo que as crianças nos contam e, literalmente, desenham.

Em Moçambique, com a coexistência de identidades e etnias de diversas matrizes, com intensificação das questões da diferença e dos meios em que as crianças vivem (áreas urbanas, periferias, periurbanas, rurais, norte, sul, centro etc.) e das desigualdades, há a exigência de novas formas de se trabalhar, discutir e criar teorias crítico-reflexivas sobre as infâncias e seus lugares. Precisamos reforçar estudos e pesquisas feitos com e para as crianças moçambicanas, em diálogos e dialogia, horizontalidade e presença de outras vozes e olhares na produção de dados.

É preciso conhecer como vivem as crianças, onde moram, como constroem as relações entre pares, como são construídas as relações familiares, as condições de moradia, os meios de subsistência e de sobrevivência, as estratégias familiares e comunitárias. Do mesmo modo, precisamos de atenção às representações de gênero e gerações. Necessitamos de uma concepção teórica, metodológica e de prática que entenda as crianças como atores sociais, que produzem culturas e que mantêm a inter-relação entre crianças-famílias-grupos-contexto. É preciso olhar para as culturas e produções das crianças e das infâncias para, então, começar a pensar nelas enquanto sujeitos de direitos.

A noção de “protagonismo infantil” é iniciada neste debate a partir do entendimento das crianças enquanto produtoras de cultura, com agência na sociedade, numa relação horizontal, em que os desenhos ganham vida e amplifica-se um debate em que a criança é também considerada autora de sua própria vida, com suas produções concretas e poéticas, permeadas pelo ato e ação de desenhar (HARTMANN; ARAÚJO, 2020).

As vivências e realidades das crianças em determinado contexto, assim como a própria infância e modos de operar, é plural. Podemos assumir as crianças também a partir da arte cotidiana que elas produzem que, para além de expressar, faz parte da formação enquanto pessoa, podemos entender que, então, “talvez, antes de sermos pessoas, somos artistas. Porque uma pessoa só existe verdadeiramente quando transforma algo (...). A criança, ao brincar, transforma. A cria, ao brincar, é artista. A criança, ao brincar, faz arte… vida” (CUNHA; GONÇALVES, 2015, p. 13). Conforme fui vivenciando os mais diversos modos de ser e estar, fui compreendendo a noção de um real partilhado, numa realidade também imaginária, e o modo como os fazeres das crianças me levavam, e têm me levado, a buscar a infância enquanto trocas culturais, numa expressividade do ser criança através do lúdico. O desenho de Virgínia, último trazido nestas reflexões, remete a essas questões.

Figura 5 – “Viemos do mesmo lugar, só caímos em rios diferentes”

Lousa com desenho

Descrição gerada automaticamente com confiança baixa

Fonte: Arquivo pessoal da pesquisadora. Desenho de Virgínia. 2018

Ao serem indagadas pelo tema “de onde minha família vem”, as crianças ficaram confusas. Expliquei a elas, então, como a minha família chegou ao bairro ao qual habito, em São Paulo (bairro da Mooca, de origem italiana, localizado na zona centro-leste da cidade): os meus avós maternos saíram da cidade que habitavam no sul da Itália, navegaram por 2 meses nos mares e, então, chegaram em São Paulo, estabelecendo-se no bairro da Mooca. Após ouvirem a história, as crianças foram desenhar suas histórias. Dentre os desenhos, Virgínia me apresentou este acima. Eu ri e disse “sua família também saiu da Itália? (representada pela bota)”, Virginia me disse “sim. Se viemos do mesmo lugar, só caímos em rios diferentes. Podia ser da Mooca, mas acabei em Mabotine”. O desenho de Virgínia, junto a sua narrativa, nos aponta a direção de uma visão sobre o espaço em que habita, as relações com o mundo exterior e as formas como a criança, num processo de ser e agir no mundo, inventa e reinventa a si, os lugares e as relações através do movimento, da vontade, da espontaneidade, da imaginação e da criatividade.

Há uma vertente dos estudos da performance que remetem ao interesse atento “por marcas identitárias que remodulam e ressignificam sujeitos, considerando seus corpos e suas narrativas com base em diferentes papéis sociais que exercem e/ou lugares sociais que ocupam”, compreendendo, enquanto ponto central, a performance “como fronteira entre arte e vida, na qual há lugar para resistências, diferenças e críticas culturais” (GONÇALVES; GONÇALVEZ, 2018. p. 141). Ao compreendermos as histórias que as crianças contam e suas formas de expressão, pautadas, neste caso da Virgínia, pelo desenho e uma narrativa, compreende-se as crianças também como sujeitos performáticos, artistas no cotidiano da vida, envoltas pela imaginação e criação.

Bertasi (2019, p. 19), ao dialogar com Derdyk (2015), afirma que “desse modo, o mundo pode estar em todos os lugares para a criança e ela, por sua vez, pode estar em todos os lugares do mundo (DERDYK, 2015)”. Para ela, o mundo e as coisas do mundo podem ser diferentes do que conhecemos, e através de seus desenhos temos acesso a muitos desses mundos. Em seu desenho, Virgínia não apenas acessou outros mundos, como me trouxe de volta a um deles, e me fez adentrar a tantos outros.

Quando Lage (2018) assume uma perspectiva entre a forma estética e a artística, a partir da compreensão da obra enquanto ação e acontecimento, podemos olhar para as crianças como criadoras e desenhistas, em traços que denunciam e partilham experiências a partir de composições do dia a dia e das estruturas sociais que vivem, dando vida e vazão àquilo que encontram nas situações específicas de tempo e espaço, compartilhadas em visões micro e macrossociais (IMOH, 2016). Essa compreensão é igualmente a de Machado (2010, p. 117) em sua convicção de que “a criança compartilha o mesmo mundo do adulto: vê, percebe, vive o mundo em sua própria perspectiva, sim, mas nunca ensimesmada ou reclusa em um “mundo da criança”: vivemos o mesmo mundo, convivemos no mesmo mundo”.

Nessa mesma direção, Gobbi (2004, p. 19) defende que “as crianças incluem um mundo em outros mundos ao desenharem”. Ao observarmos os desenhos das crianças somos também convidados a “uma realidade que tanto nos encanta como por vezes nos deixa perplexos, ante o modo frequentemente inesperado com que o real surge transfigurado pelos traços inscritos no papel” (SARMENTO, 2011, p. 54). O olhar das crianças, em seus desenhos, nos dá acesso a diversas relações presentes e passadas, intergeracionais e ancestrais, de formas de ver e viver a vida (atual e passada).

Como discute Kramer (2002, p. 43), “tratar das populações infantis em abstrato, sem levar em conta condições de vida, é dissimular a significação social da infância”. É preciso atentar todo o tempo para a construção da concepção da criança enquanto sujeito da história e da cultura. Dentro do seu “faz de conta”, as crianças criam e produzem a partir de lógicas que podem ser não formais, ou seja, variam em termos de tempo, de espaço, em modificações, com improvisos e na criação de enredos e narrativas consideradas teatrais, performáticas, de cenas cotidianas. Há uma capacidade para a transformação que, incorporada à cultura compartilhada, possibilita outras formas de ler o mundo e de imaginar lugares que busquem outros horizontes (MACHADO, 2010; CRAPANZANO, 2005).

Os referenciais que as crianças iam criando foi uma das coisas que também despertou minha curiosidade em diversos momentos. O que as crianças nos mostram quando usam de imaginação e criatividade para expressar momentos do presente e situações de violência e, em outros momentos, situações que nos fazem entrar em estado de suspensão e de reconhecimento de interdisciplinaridade também nessa criação? Quando as crianças trazem todas as racionalidades expressas no desenho e nos questionamentos de suas ações, elas abrem caminhos para pensar as formas que vão significando questões que envolvem política, economia, direitos, cidadania, história, biologia, entre outros. As crianças expressam, também no desenho, suas insatisfações e desejos, nos dão pistas e abrem possibilidades de diversos diálogos para se questionar as metodologias que temos utilizado e a participação das crianças dentro das pesquisas.

Há um devir da infância que, tempos atrás, já era questionado e que, em contexto, deve ser pensado e retomado se pretendemos pensar em pesquisas de(s)colonizadoras, adotando também perspectivas que sigam a mesma linha. Quando em 1931, Mauss já questionava o fato das crianças serem consideradas seres “primitivos”, há um direcionamento para que as áreas dos estudos das infâncias apontem para pesquisas que superem essa ideia e sua generalização, e que há outras racionalidades que não a linguagem verbal e escrita, fechadas em códigos, para entendê-las; as artes e suas diversas linguagens podem ser um caminho, como as outras linguagens e racionalidades que as crianças vem trazendo e que precisamos, enquanto pesquisadores, ser capazes não só de olhar, mas de validar (PASTORE, 2020, p. 306).

O desenho de Virgínia puxa o debate para uma temporalidade específica, partilhada, mas que, numa perspectiva ampliada, nos leva a uma compreensão histórica de mundo que, mesmo não anunciada, nos remete às disciplinas de história e geografia, e de um período em que todos vieram do mesmo lugar1, mas que, por questões tectônicas, houve separação e a designação, ao longo dos milhares de anos, do mundo em sua configuração atual. Embora não fosse algo que tenha sido levantado no momento do desenho e da explicação, há saberes que Virgínia incorpora que, misturados com sua imaginação, abrem diversas possibilidades de exploração e compreensão de mundos pelo ato de desenhar. Luciana Hartmann e Hanna Araújo (2020) agregam ao debate as noções de memória e história que, nas performances das crianças musicalizadas em ritmos e brincadeiras, produzem cultura e processos de criação artística compartilhados; ao pensarmos essas questões para o desenho, a proximidade se torna visível, e o diálogo com as demais linguagens, uma possibilidade.

Essa capacidade de transitar entre os momentos do riso, das responsabilidades, do julgamento, da crítica e do brincar é o que permite à criança o status quo de ser: feliz, alegre, brincalhona, com responsabilidades, direitos e deveres (SILVA, 2010). Nos desenhos, as crianças denunciam momentos difíceis e anunciam tantos outros, permitindo que as vivências e experiências sejam construídas e construtoras de quem elas são, e dos modos como podem ser e agir nos mundos em que se inserem. Poder desenhar suas experiências é também uma forma de perceber e participar do mundo.

Considerações finais

Ao desenharem, as crianças traçam, colorem e denunciam as estruturas sociais, hierárquicas, e que variam de acordo com as experiências e vivências de quem desenha (SILVA, 2010). Contar e narrar os fatos através do desenho é forma lúdica que as crianças foram achando de se expressarem e produzir, nas poéticas sensíveis, compreensões sobre a vida e seus cotidianos. A compreensão do ser criança – enquanto “capacidade que se mantém sempre viva no ser, e que na biografia de uma pessoa vai se tornar mais ou menos visível, dependendo da atitude da mesma frente à vida” (SILVA, 2010 p. 127) – nos desenhos e produções individuais ou em conjunto, engloba coletividades e críticas dos seus entornos, numa releitura a partir da expressão. A poética da vida, traduzida e transcrita nos cotidianos, apresenta diversas formas de apresentação. Não apenas o desenho ganha forma, mas as imaginações e reflexões ganham também dimensões de elaboração e conhecimento em realidades mobilizadas e mobilizadoras de transformações.

Ao defender que o desenho é “um pensamento visual”, Staccioli (2011, p. 29) nos leva a uma elaboração que requer escuta, olhar, presença, encontro, interpretação, precisão e imprecisão, racionalidade distinta e tantas outras abstrações. Não podemos olhar os desenhos das crianças sem que haja uma contextualização e, mais que isso, sem que elas próprias nos convidem para suas interpretações e traduções de mundos indizíveis.

Para Bertasi (2019, p 29), “é imprescindível que, ao olhar as produções das crianças, toda a complexidade de pensamento investida durante o processo de criação seja valorizada e respeitada”. Compreender o desenho como metodologia de pesquisa é também possibilitar a participação das crianças em diversas formas, saberes e fazeres dos dados e suas análises.

Ouvir o que as crianças têm a dizer, permitir vivências outras, em que o lúdico e as expressões artísticas possam fluir, num encontro com as infâncias, pluralidades, diversidades e singularidades, é permitir que o cotidiano das crianças, suas experiências e modos de experenciar e vivenciar os mundos, em seus mais diversos contextos, nos possibilite teorizar e agir no e com o entendimento delas, e com elas em relação a questões de mudanças políticas e sociais.

Uma polifonia de métodos que amplia a dialógica e torna-a, segundo Canevacci (2013, p. 77), “visível, audível para subjetividades ‘outras’: estas podem ser não-humanas, não só animais, plantas, paisagens, mas também coisas, inclusive coisas reificadas. […]. A perspectiva polifônica descentra as subjetividades […], não projeta as perspectivas do eu sobre o outro”. Com base nesse entendimento, podemos pensar o desenho como ferramenta metodológica, e o seu papel e lugar nas pesquisas com crianças e estudos das infâncias possibilitam colocar em cena, ao mesmo tempo, diferentes legitimações, alteridades, diversidades e pluriversos possíveis e plausíveis, em que a criança é, em todas elas, protagonista, participante e criadora.

Referências

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Recebido em: 01/07/2021

Aceito em: 05/12/2022


1Era Paleozoica

“ESTE É MEU NOME NA CHIBI!”:

Notas sobre desenho e conhecimento entre os Calon

« THIS IS MY NAME AT CHIBI!»:

Notes on design and knowledge among the Calon

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Edilma do Nascimento Souza*

Resumo

Quando pensamos na pesquisa com crianças, logo surgem inquietações e propostas de traçar métodos complementares na realização da etnografia. A técnica do desenho é uma das mais utilizadas entre os pesquisadores que trabalham com crianças em diferentes contextos sociais. Neste artigo, apresento um debate sobre a utilização do desenho como técnica de pesquisa entre crianças ciganas do ramo Calon1, e sobre a maneira como elas ressignificam a utilização desse recurso de pesquisa. O trabalho de campo foi realizado em períodos intercalados entre os anos de 2013 e 2018, com famílias ciganas Calon, residentes no município de Mamanguape (PB). Através da observação participante e realização de grupos focais com as crianças Calon2, em que apliquei a técnica do desenho temático, foi possível perceber que a utilização dos desenhos, além de possibilitar o alcance dos objetivos da pesquisa, tornou-se um elemento para elas apresentarem seus conhecimentos em contraste ao meu. Desta maneira, o desenho como técnica permitiu compreender as noções sobre infância e educação entre as crianças ciganas e extrapolou o alcance da pesquisa, quando passou a ser utilizado pelas crianças na demonstração de seus conhecimentos sobre a linguagem materna (a chibi3). Apontada por algumas crianças em seus desenhos, a chibi foi explorada dentro de um mecanismo que demonstrava o conhecimento Calon em contraponto ao conhecimento não cigano. Portanto, este texto trata de apresentar, a partir da experiência etnográfica, a importância da técnica do desenho como um elemento de significados ilimitados entre as pessoas envolvidas na pesquisa.

Palavras-chaves: Crianças ciganas. Calon. Desenho. Conhecimento.

Abstract

When we think of research with children soon arise inquietudes and proposals to trace complementary methods in the realization of ethnography. The technique of drawing is one of the most used among researchers who work with children in different social contexts. In this article I present a debate on the use of drawing as a research technique among Calon gypsy children, and on the way the children give new meaning to the use of this research resource. The fieldwork was carried out in interspersed periods between the years 2013 and 2018 with Calon gypsy families, residing in the municipality of Mamanguape -PB. Through participant observation and conducting focus groups with Calon children of the locality, where I applied the thematic drawing technique, it was possible to realize that the use of drawings in addition to enabling the achievement of the research objectives, it became an element for children, present through it, their knowledge in contrast to mine. In this way, drawing as a technique enabled an understanding of the notions of childhood and education among gypsy children and went beyond the scope of the research, when it began to be used by the children to demonstrate their knowledge of the mother tongue (chibi). Indicated by some children in their drawings, the Chibi was explored within a mechanism that demonstrated Calon knowledge in counterpoint to non-Gypsy knowledge. Therefore, this text aims to present from the ethnographic experience the importance of the drawing technique as an element of unlimited meaning among the people involved in the research.

Keywords: Gypsy children. Calon. Drawing. Knowledge.

Questionamentos iniciais

A relação da pesquisa com crianças ciganas surge com o objetivo de dar continuidade à pesquisa com e a partir das crianças, que foi suscitado na minha formação, ainda durante o período da graduação. Fui inspirada pelos trabalhos da professora doutora Flávia Pires, a quem devo o legado de pesquisa com crianças e da qual tive a honra de ser orientanda na graduação. A pesquisa se deu no contexto do semiárido paraibano com crianças beneficiárias do Programa Bolsa-Família e que estavam inseridas no ambiente escolar, com o objetivo de compreender a elaboração de um círculo virtuoso proporcionado pelo recebimento do auxílio de transferência de renda (SOUZA, 2011). Dessa maneira, estivemos no município de Catingueira, no ano de 2010, realizando pesquisa de campo com famílias e crianças da localidade.

Foi nesse momento que mergulhei inicialmente na pesquisa com crianças, com a metodologia desenvolvida pela equipe da pesquisa: realizamos dinâmicas de grupos focais, questionários semiestruturados, desenhos temáticos e redação. Assim, iniciei o percurso de trabalho etnográfico com crianças. Ao dar seguimento ao trabalho de pesquisa com crianças de povos e comunidade tradicionais, a infância cigana se colocou como um caminho possível e potente cientificamente de ser compreendido a partir da pesquisa etnográfica.

Em 2013, entro no contexto etnográfico da pesquisa com famílias ciganas que têm seu território localizado no município de Mamanguape, localidade no litoral norte paraibano e que é reconhecido como território Calon.

Após quatro meses vivenciando o campo, sentia a necessidade de aplicar algumas técnicas de pesquisa com as crianças ciganas para compreender os seus pontos de vista. Mas a tentativa inicial foi sempre postergada, por tentar seguir ao máximo uma prática de observação direta, numa perspectiva de me envolver etnograficamente na perspectiva de experienciar a vida Calon na prática. É a partir deste contexto, carregando na bagagem os ensinamentos e experiências anteriores, que inicio a pesquisa com crianças ciganas, em que vou construindo a relação entre pesquisadora e pesquisados. Desse modo, busquei elaborar uma nova relação, apontando alguns desafios para realização da pesquisa, que foi também norteadora para pensar as potencialidades e participação das crianças no cotidiano de suas famílias.

A infrequência escolar, bem como a ausência do letramento e da aproximação com materiais como lápis e papel, era uma realidade para seis das oito crianças com as quais eu estava me envolvendo através da pesquisa etnográfica, ao passo que os desafios foram potencializando a criatividade e forma de conhecimento dessas crianças.

A ansiedade de compreender a não relação entre escola e crianças até aquele momento vedava meus olhos para compreender que as práticas de aprendizagem vigentes na dinâmica da vida Calon não passavam pelos elementos que eu reconhecia como essenciais. Foi a partir de um debate sobre o trabalho, apresentado na III Jornada de Pesquisa sobre Infância e Família, sobre métodos de pesquisa, que atentei para outras possibilidades. Até aquele momento minha inquietação passava pelo questionamento de como produzir dados a partir da elaboração de desenhos e redação com crianças que não frequentavam ou nunca frequentaram a escola. Com um pressuposto completamente errôneo, eu limitava a capacidade de diálogo e produção aos métodos e instrumentos que eram, apenas, só mais uma forma de linguagem. Saí daquele espaço de debate com algumas provocações que acabaram por direcionar o objetivo da pesquisa, que foi compreender a noção de infância naquele contexto, como o início do caminho para pensar outras questões e descobrir a maneira de realizar pesquisa com os métodos sobre os quais eu tinha conhecimento. Compreendi ali que o limite da pesquisa estava na pesquisadora, em minha maneira de conhecer e produzir conhecimento, na forma de acessar o outro e no meu limite de me comunicar. Voltei ao campo e reconfigurei meu olhar, permitindo, assim, aprender com as crianças ciganas suas maneiras de acessar tais elementos e de que forma elas me ensinariam sobre conhecimento e a vida cigana. Os desenhos se colocavam como uma proposição metodológica pertinente para compreender o cotidiano das crianças e seus significados.

Para tecer esse caminho, elaborei esse diálogo escrito em três passos, o primeiro é conhecer o contexto das crianças ciganas, o segundo conhecer as crianças e a infância Calon e, depois, conhecer, pelos desenhos, a vida cigana, ou seja, de que modo a utilização do desenho como técnica de pesquisa entre crianças ciganas Calon permitiram ressignificar a utilização desse recurso de pesquisa.

O território da pesquisa, o rancho4 cigano em Mamanguape (PB)

Localizado na região norte do litoral paraibano, o município de Mamanguape está a 62 km de distância da capital paraibana. Seu território ocupa 340 534 km², e o censo do IBGE de 2013 estimou a população em 43.678 habitantes. O município tem a densidade demográfica de 124,23 hab./km². A economia está alicerçada na produção agrícola da cana de açúcar. O município tem uma forte presença histórica de usinas de açúcar e outros derivados dessa cultura. A economia tem forte expressão em extração vegetal, silvicultura e outros cultivos agrícolas, bem como a pesca, graças à localização do rio Mamanguape.

A presença de ciganos passou muito tempo de forma despercebida, tendo até invisibilidade aqui na Paraíba, algumas vezes por estratégia dos próprios ciganos, outras vezes por falta de conhecimento dos não ciganos. Nos municípios pesquisados em que observamos a presença de ciganos na Paraíba, percebeu-se que há conhecimento da população não cigana sobre a existência dos ciganos nas localidades. No caso de Mamanguape, quando indaguei aos moradores locais não ciganos sobre a presença de ciganos na localidade, afirmaram: “–Aqui têm ciganos sim! As ciganas são diferentes, você não é cigana, você não fala como elas”. Além de ter conhecimento da presença desse grupo na região, percebi que os mamanguapenses não ciganos sabem diferenciar uma cigana de uma não cigana, ao menos conseguem distinguir alguns traços diacríticos, como a forma de falar.

O município de Mamanguape pode ser considerado como um local estratégico do território Calon, pois está no meio da rota das redes que ligam os ciganos do Vale do Mamanguape aos de outros estados ou municípios paraibanos. Além de uma localização estratégica, os ciganos que lá estão conhecem muitas pessoas da localidade, têm amizades com os mamanguapenses não ciganos e com gestores públicos. A relação, de uma maneira geral, é considerada boa, são tidos como “bons vizinhos”. Algumas crianças ciganas frequentam escolas públicas e particulares.

No município de Mamanguape, os ciganos estão localizados na rua dos ciganos, que é constituída por um conjunto de oito casas que se subdividem em dez ranchos5. Há mais quatro casas de ciganos espalhadas por outras ruas do município. Devido ao fluxo contínuo, não podemos mensurar um número exato de Calon na localidade, mas podemos estipular que há cerca de oitenta ciganos Calon vivendo por lá.

Os ciganos que estão arranchados em Mamanguape dizem que estão na cidade há cerca de 15 anos, tendo habitado diferentes ruas, num movimento de partidas e voltas ao munícipio de Mamanguape. Segundo o relato de Mércia6, “Os ciganos já moraram pelo menos em quatro ruas diferentes, e eles sempre viajam. Teve dia que acordamos e eles já tinham partido, voltaram meses depois e foram morar em outra”. Percebi que esses deslocamentos acontecem de forma esporádica para uns e mais rotineiras para outros, mas que esses deslocamentos não retiram o pertencimento dos ciganos àquela localidade. As viagens e mobilidades ocorrem por diferentes fatores como venda das casas, visita a parentes, mudança de localidade para fazer negócio, ou outras formas de negociação com o próprio imóvel de moradia, como troca de casa (rancho) por algum automóvel e dinheiro.

No território Calon de Mamanguape, é possível identificar as relações entre pessoas ciganas de duas famílias extensas, que se constituíram basicamente através de acordos ou arranjos matrimoniais e apadrinhamentos. É neste contexto que iniciou a relação de pesquisa com oito crianças ciganas que viviam no território, duas residiam no estado de Pernambuco, mas tinham presença frequente em Mamanguape. O período da pesquisa se estendeu entre os anos de 2013 e 2018, entre estadas de curta duração (finais de semana) e mais longas (até quinze dias).

A pesquisa etnográfica com famílias e crianças ciganas

Priorizando o diálogo com pessoas ciganas Calon, o recorte da pesquisa envolve a escuta e participação das crianças Calon. A metodologia utilizada no período de pesquisa em campo, esteve inspirada na prática da observação direta (MALINOWSKI, 1975) e etnográfica como aponta Mayall (2005). A etnografia é ressaltada como sendo um método de excelência na pesquisa com crianças.

Na participação direta, eu acompanhava o cotidiano e os dias de eventos e festejos entre adultos e crianças. A essa dinâmica denominei como etnografia itinerante, por ter estabelecido o campo no envolvimento entre muitas idas e vindas, sobre vários caminhos e contextos. Num dia eu estava no litoral paraibano e no mesmo dia seguia com os ciganos para o brejo, na semana seguinte estávamos nós, em territórios potiguar, um mês depois estava em outro estado do Nordeste. Denomino essa etnografia como itinerante por ter sido desenvolvida a partir do ritmo de vida dos próprios ciganos que nos recebiam em suas casas/ranchos para passarmos alguns dias (algumas vezes horas, outras, dois dias, cinco dias, quinze dias). A própria estadia em campo era numa frequência que se ajustava ao calendário dos ciganos. No caso da pesquisa no território dos Calon do litoral norte, o trabalho de campo foi desenvolvido entre dois pesquisadores da antropologia (eu e Renan Monteiro7).

A prática de pesquisa que foi sendo desenhada durante esses anos com os ciganos Calon foi definida como uma etnografia itinerante e envolvida. Aliado ao método da observação participante, para a produção dos dados empíricos, utilizei algumas técnicas como o método do grupo focal com entrevista com roteiro semiestruturado com adultos e crianças. Com as crianças, no momento da realização do grupo focal, também utilizei as técnicas de desenhos livres e temáticos (PIRES, 2007) para compreender como as crianças significam a ideia de ser Calon no contraponto do ser juron/jurin/juren8 no espaço de suas residências e no espaço da escola. Nesse processo, foi possível também refletir como as formas de participação vão se delineando de maneiras distintas, como o acesso à escola e elementos norteadores de uma lógica escolar, questão que embasa o debate deste texto.

Ainda no tocante às questões metodológicas, utilizo a ideia de “deutoaprendizado”, citado por Otavio Velho (2006), referindo-se a Gregory Bateson, que enfatiza a necessidade de o antropólogo “Aprender a aprender”, acreditando que essa é uma característica primordial do seu fazer, ou seja, aprender a viver no contexto do outro, aprender outras dinâmicas de vida e aprendizagem.

Neste percurso, vali-me, também, das contribuições de Favret-Saada (2005), que nos ensina a beleza de “deixar-se afetar”, que seria deixar-se contaminar pelo universo da pesquisa, por sentimentos, sensações, atitudes nativas, ou seja, colocar-se na posição do “outro” sem pretender se transformar nele. Ser afetada foi um fato ocorrido durante esses meses de pesquisa, quando retornava para casa e sentia falta, saudade das crianças, das conversas e das histórias, enfim, do convívio com os ciganos. Foi assim que dei continuidade à pesquisa com as crianças e permiti compreender, dialogar e aprender com suas participações em atividade de grupos focais. Sob a influência das ideias de Pires (2007) e Cohn (2005), que retratam a utilização de desenhos e perguntas informais na pesquisa com crianças, estabeleci as técnicas aplicadas em campo e as recoloquei em perspectiva na relação entre pesquisadora e pesquisados, adulta e crianças, juron e Calon.

O emprego da técnica de desenhos e redação foi barrada, no primeiro momento, pela não familiaridade das crianças com a escrita. A redação não teve como ser aplicada em razão do não letramento de algumas crianças. Destaco que a questão da inserção nas escolas entre os ciganos acontece num período posterior ao período das crianças não ciganas, e esse fator, no primeiro momento, surgia como uma problemática. Porém foi a partir da técnica dos desenhos que “aparentemente” consegui me relacionar de forma mais horizontal com as crianças ciganas.

É a partir dos desenhos e da explicação dada pelas crianças que chegamos ao ponto de vista delas sobre algumas questões. Conforme Pires:

Ao desenhar sobre um tema proposto, as crianças colocam no papel o que lhes é mais evidente. Nesse sentindo, o desenho é um material de pesquisa interessante para captar justamente aquilo que primeiro vem à cabeça, aquilo que é mais óbvio para a criança. Porém quando combinado com a observação participante é que os dois instrumentos potencializam a sua utilidade. (PIRES, 2011, p. 41-42).

É importante enfatizar que a afirmativa trazida por Pires (٢٠١١) corrobora o debate de outros pesquisadores da área dos Estudos Sociais da Infância, assim com Cohn (٢٠٠٥), Sousa e Pires (٢٠٢١), Pires e Santos (٢٠٢١), Mendonça (٢٠١٨), Monteiro (٢٠١٥) entre outros pesquisadores que utilizam a técnica da aplicação de desenho, compreendendo o desenho como uma expressão e uma maneira de comunicação das crianças, tão potente quanto a escrita. A compreensão dos desenhos a partir das narrativas das próprias crianças traduzem a ilustração que outrora poderia ser considerada como abstrata, mas ganha argumento a partir da elaboração realizada pela criança.

Os desenhos na pesquisa foram realizados de forma mais pontual durante a realização do grupo focal com as crianças ciganas, participaram oito crianças com a idade variada entre dois e dez anos. O grupo focal9 aconteceu em dois dias de atividades, manhã e tarde, no espaço do terraço de um dos ranchos/casas.

A princípio, o objetivo era conhecer como as crianças elaboram na socialidade – em seus cotidianos de socialização numa perspectiva da educação Calon – elementos representativos sobre a noção de infância cigana e do ethos Calon. Com a imersão em campo, considerei quais as categorias utilizadas por esse grupo para definir quem é e quem não é criança.

Como iria retratar alguns aspectos da infância se não sabia que infância é essa? Tassinari (2007), Nunes (2003), Silva & Nunes (2002) e Cohn (2013) dimensionam a importância de se conhecer as concepções de infâncias existentes no Brasil. Desta forma, conhecer como a infância é pensada pelos ciganos em Mamanguape e de que maneira as crianças identificam este período da vida foi o eixo norteador dos desenhos.

O poder argumentativo das crianças ciganas sobre o significado dos desenhos, e as definições sobre o que elaboram, demonstra a importância dessa socialidade entre adultos e crianças na formação da pessoa Calon e no que chamamos de educação Calon. Assim, este artigo recupera a experiência inicial de estar em campo com crianças ciganas, a partir da prática de pesquisa e da elaboração criativa das próprias crianças e de como, a partir dos desenhos, chegamos à perspectiva de transversalidade de saber e de mudanças de perspectivas sobre conhecimento, enfatizando a forma decisiva por meio da qual as crianças participam de seus cotidianos.

Os desenhos das crianças e seus modos de produzir conhecimento sobre a vida Calon

A atividade de pesquisa que envolvia o grupo focal não foi, de imediato, atrativa para as crianças ciganas. Embora todo entusiasmo por parte da pesquisadora, nem todas as crianças, assim consideradas, corresponderam com o mesmo entusiasmo, as crianças consideradas como crianças pequenas (bebezinho(a), criança pequena e criança crescida).

Realizei durante dois dias o grupo focal com as crianças que desejaram participar. Confesso que, após alguns dias de trabalho de campo, questionei-me como conseguiria realizar a pesquisa a partir de tal recurso metodológico, pois não sabia se elas sabiam desenhar. Mas ressalto que essa primeira questão partia das minhas habilidades, dos meus limites de compreensão e da noção sobre o que é desenhar.

Os rabiscos que traçaram as folhas naqueles dias e a dinâmica do diálogo transportaram as noções sobre desenhar, sobre representações e imagem. Tal como dito por Azevedo (2017)10, durante uma oficina de desenho como técnica etnográfica, não existe desenho certo ou errado, assim como atenta Pires (2007), o desenho é a forma que a criança nos representa aquilo que ela significa entre abstrato e concreto.

Com as crianças participantes, conseguimos realizar vários desenhos livres e 40 desenhos temáticos, que tinham como objetivo compreender a infância cigana Calon a partir do ponto de vista das crianças envolvidas na atividade.

No primeiro dia em que distribuí folhas e lápis, deixei que elas desenhassem à vontade. Abaixo uma síntese dos desenhos temáticos trabalhados a partir das seguintes perspectivas: 1) “Coisas de Cigano”; 2) “Ciganos x Juron”. Esses dois temas foram trabalhados no nosso segundo dia de grupo focal, e tiveram como objetivo compreender, a partir do ponto de vista das crianças, suas respectivas noções e representações. Pedi a autorização das crianças para utilizar os desenhos em trabalhos acadêmicos, como este.

Coisas de cigano

Os desenhos abaixo apresentados foram realizados a partir do tema “Coisas de cigano”. Indiquei às crianças que desenhassem coisas que lembrassem a cultura cigana ou uma pessoa cigana, que eles logo identificaram como “coisa de cigano”, que os ciganos gostam, e o resultado foi o seguinte:

Figura 1: Desenho A “Um Cigano com seu carro e som

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(Por L. Menino de 8 anos de idade)

Figura 2: Desenho B “A barraca cigana”

https://lh4.googleusercontent.com/JWxHiKcKYnIvCB6jX1FSGxU7BblgbFE1n8iYIw7F8Ez5_lDypm8PXFk9QF8RX-FvlzZwmZtgbpuWjV9tOAit_q9GhQsxNHECnZDjyiE6B6W7DzvvRtK-KXAlw0Zw8rFeIl2N1WuamNbCzIvIJZFtdAvdFwboRHnRUhXyRuvcwkm4vcXoAuB_-0VFjCfG1pHtZK8xuNI7rA

(Por J., menina de oito anos de idade)

Figura 3: Desenho C “Linguagem cigana e carro com som pesado”

https://lh5.googleusercontent.com/aw_0WDyun4KEWFsyazK0GUCssSLGzA_wjLVt77BiqTS2xT6KLFPqi1xr4IU1raJm6VrrolBVui5Z06Ik_G1hN9nyH29CPU02nkonH92ZlggV7ylEFsGYz6INvDi7oD9DlgL-FS80-J6KCPHN6xoZRmbpcdPRpYSduSxQS68vNMto85n3t4JU_hOgP_4VxEPdyil6OYf1Mw

(Por D., menino de dez anos de idade)


Figura 4: Desenho D “Uma menina cigana e animais”

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(Por K., menina de quatro anos de idade)


Figura 5: Desenho E “O carro envenenado”

https://lh4.googleusercontent.com/Spovr8DnVnBKcQPSkoYts8NwVXyCrdp0wmr5xYfzRp59Ole7noM_yfbGbR-iNrranH4MqSNjYWbczEsBr0PokVrhOTffhkpN4ehT8BWiLX-f9xSWLkRr0WYCGatzDrnmiM0vP2UjbWtYH1Cbmjtdp7Xr9ExV-ipKxavSh9lhLfR8MResFr3N1HldZmQDLMwcmBEjQ4fxVA

(Por K., menino de nove anos de idade)

Os desenhos foram coloridos e representativos dos seus cotidianos; trouxeram imagens de aparelhagem de som (grandes), desenhado por um menino cigano, o que nos mostra o quanto é significativo, na perspectiva de meninos Calon, ter a posse de um aparelho de som, que por sua vez está ligado também à importância da música e da sonoridade para os ciganos.

A barraca também é muito representativa do modo como as crianças aprendem a ver as “coisas de cigano”, em oposição às coisas dos juron. O fato de ter sido desenhado por uma menina, levou-me a refletir como alguns pontos da estrutura familiar (social) entre os Calon vão sendo estruturados, indicando o fato de as mulheres estarem mais ligadas ao universo doméstico que os homens. Já a relação com a natureza e com os animais também nos mostra a ligação das meninas e meninos com o espaço dos ranchos e a lógica de aprendizagem da autonomia, responsabilidade e do cuidado na criação de aves domésticas, prática presente na vida dos Calon desde muito cedo.

Dentre os desenhos, a língua cigana (chibi) foi desenhada por uma das crianças crescidas, porém a seguir veremos a língua dos ciganos, a chibi, no desenho.

Figura 6:  Desenho F “Língua cigana- a chibi”

https://lh5.googleusercontent.com/LDkA8i8AZ_MA-7AYbLXbz9pqejOEdLKtSfo3l48-k5Xf38yJ3F4l_jNdTQKZbJSTktdqA-oWDJl1jdEn0qI6v10hSD1-zfUc1WhfzS8cWrDoVLQb2o12f9-RdfNCa4MHVOsRU7QbM4aXrOAQY1h8bPW5uaDW812amwFM6DJ3rv0qkX5UaT9n3J_7VIC3Cqih77xjIjGg5g

(Por K., menino de nove anos de idade)

Esse desenho se apresentou de forma surpreendente. Quando pedi ao menino que o desenhou para falar sobre o seu desenho, ele me devolveu a seguinte indagação: “-Lê Edilma, Tu não sabe lê!”. De imediato, eu lhe respondi que eu sabia ler, mas não conseguia ler o que ele tinha escrito, ou melhor, desenhado. Ele logo olhou para mim e perguntou, “Tu sabe, por que tu não consegue ler?” Eu respondi que não conseguia, e ele logo me disse: “-Isto aqui é nossa linguagem, coisa que só cigano sabe!”, Ele gritou eufórico para a mãe, dizendo: “-Mãe! Mãe! Edilma é uma menina, ela nem sabe da nossa linguagem, eu escrevi meu nome e ela não sabe, ela não consegue ler”

Por um minuto, aquele menino mostrou como são variadas as maneiras de produzir, representar e significar conhecimento, que a escrita deve ser compreendida como uma das formas de linguagem do desenho. De fato, foi um momento fantástico porque, embora no dia anterior eles me pedissem para lhes ensinar a ler o português, naquele momento verifiquei o quanto o menino de nove anos valoriza seus conhecimentos coletivos: a chibi, língua cigana, que é tida como um elemento secreto e de pertencimento unicamente de pessoas ciganas, invertia ali nossa condição de quem ensina e quem aprende, mostrando-me esse saber que eu não possuía e que ele possuía. Ao mesmo tempo, o desenho também trouxe a inquietação para refletir sobre as formas de comunicação, pensar a formação de uma língua, os signos que são atribuídos dentro de uma estrutura semântica e fonética.

Na sequência veremos os desenhos temático a partir da questão Calon x Juron.

Calon X Juron

Juron

Figura 07: Desenho G “O mundo dos Calon e dos Juron”

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(Por D., menino de dez anos de idade)

Figura 08: Desenho H “A casa do Juron e Rancho de Cigano”

https://lh5.googleusercontent.com/2NaRjC0Gh3QS8UNfeuURx03HwiOJ-IMmCtUtcqpJSgTAVSmHYxUYHaSyEI-fP5zQyZ6jspxdmSpAgrJXwKk7eUNA4JQEwfAjYrlLC-TJwD8FRXkhmGDVGF0IS_hAUdYaOaanzcrpK8C0o5V_NEgnuzoleKtrdz9GtLsypoy8_Eoe6XRJ-G-XlF5MDO4Ki3ALiKmL32QDKw

(Por D., menino de dez anos de idade)

Figura 09: Desenho I “Cigano com relógio de ouro e Juron pobre”

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(Por L., menino de oito anos de idade)

Figura 10: Desenho J “O rancho cigano, Cigano com colar de ouro e relógio de ouro, cigana com saia e ouro, Juron e Jurin sem ouro. Ouro é coisa de cigano.”

https://lh4.googleusercontent.com/_hdayvjnqELfyk3wfhUc2BT9Hr_LOHDXaY8hWEoVVUh8Q7qX3Ix3LknGWVrqybV5XFFKopwvL3mVo_OM74saj4wvZV3LE8MdLxYsCGoz3HMCWLROf2UHGfQAXAT-krdxiMSkQmucpbCv7xsDppDfT-_4ll_HMPMXnEHfnT1wAv9xY_dK_AyidmmpUtwTzOnXN-xOYpHQ4A

(Por J., menina de oito anos de idade)

Figura 11: Desenho K: O rancho cigano, a fogueira, um galo, os Calon de ouro e a calin tem uma coroa de ouro. Os Juron não usam ouro.

https://lh5.googleusercontent.com/T6PDi65Bp4mO1kVj7Y7ZbPv3gY67fKm4Fm0SlkDXrZDRmZw5Nk1ZHSRJvCAB1GJjhWYd5t-qoV4prVM6bdviJOaejYm3hRR9CHsAFzOa1zdWei_9qBjQKs6FPHxV7mqOVPNgKbgJZNUNxfJMc4w0ZPRB0RvtoXh6TBJStwHBRX0_PGaT08jYkwpB-0lPEgcxQo04qBWxCg

(Por Jb. Menina de oito anos de idade)

Nesta segunda sessão de desenhos temáticos, a precisão das diferenças marcadas entre os Calon e os Juron foi expressa através do ouro e da moradia. Quando perguntei às crianças o significado dos ranchos em seus desenhos, as autoras dos desenhos 10 e 11 me afirmaram que os ranchos seriam as famílias, o lugar das famílias ciganas. Já nos desenhos 07 e 08, o menino D. desenhou respectivamente um mundo onde vivem juntos Calon e Juron e depois os ranchos, identificando o lugar de morada do cigano, mostrando que os Juron moram sempre em casas e os Calon moram em barracas. Eu o indaguei sobre sua moradia, e ele me respondeu: “- Eu moro nessa daqui”, e apontou para uma casa de Juron. Então eu logo lhe perguntei: “E tu é Juron?” Ele me respondeu: “Não! Mas a gente tem os ranchos assim, e tem os ranchos de barraca, e nas barracas só nós que moramos”.

Como podemos perceber, as crianças ciganas moram em casas de alvenaria, o que não se diferencia da condição de moradia da sociedade envolvente, mas a presença das barracas, tanto no cotidiano como na memória coletiva, mostra uma relação diferenciada entre tempo e espaço para os ciganos, com valores culturais que os distinguem dos juron.

A relação com o espaço dos ranchos, a ideia de um maior contato com a natureza e de mais liberdade, em comparação com o mundo juron, também pode ser notada nos desenhos. Os carros, para os meninos, foram bem contemplados quando sugeri os temas para os desenhos, assim como o ouro, elementos vistos como “coisas de cigano, da preferência dos ciganos”.

À guisa de conclusão

A pesquisa com crianças ciganas trouxe a compreensão de que a infância Calon é um período de sucessivas etapas que compreende a proteção, um período de maior imersão nas práticas e trocas da aprendizagem na educação Calon e, também, mais no fim da infância, um período de liminaridade, isto é, de transição para a vida adulta, quando meninas e meninos começam a experienciar atividades que serão base para a vida futura dessas pessoas Calon (MONTEIRO, 2015, 2019). Essa noção de infância apresenta-se, de maneira geral, como uma produção de infância entre os Calon na Paraíba e remete também a compreensão de uma entrada mais tardia na escola.

Os adultos ciganos valorizam e estimulam seus filhos a estarem na escola, mas isso costuma acontecer mais tardiamente em comparação com o ingresso na vida escolar de crianças não ciganas.

A noção de infância vai sendo diferenciada a partir da maneira como as crianças vivem o cotidiano, não existem delimitações etárias, mas a demarcação social. O casamento, neste caso, marca o rito de passagem da infância para a vida adulta.

Foi através da imersão no trabalho de campo e dos desenhos que cheguei às noções de pertencimento e identificação, elaboradas pelas crianças. Esclareço que não trago todos os desenhos realizados pelas crianças, nem os desenhos de todas as crianças.

A imagem que mais me trouxe insight durante todo o percurso etnográfico foi o desenho 06, a expressão do desenho da chibi, que foi, também, um mecanismo que me mostrou que aquela criança demonstrava ser detentora de um conhecimento que eu não tinha. O desenho se tornou grafia e palavra, e essa relação de negociação em campo com as crianças levou-me a concluir inicialmente que os desenhos são uma ponte de negociação entre os diversos conhecimentos; não só um elemento a ser utilizado na pesquisa com crianças, mas também uma técnica que sacode esse domínio do recurso da escrita x desenho, na elaboração de conhecimento científico.

Os desenhos apresentaram os significados das crianças, enfatizando o quanto seus cotidianos estabelecem fronteiras e significados diferentes na produção desses elementos. A língua, o ouro, as formas de morar, as viagens, os sons; e valores, como amor e respeito, estão sempre presentes nas narrativas das crianças ciganas em Mamanguape (PB). A forma como as crianças experienciam a prática do desenho, dimensionam os fatores que são experienciados em sua educação prática. Nesse caso, especialmente com as crianças ciganas, vejo a necessidade da pesquisa com as crianças fora do contexto escolar. Não se trata de pensar ou defender a escola como um não lugar, mas de que é preciso compreender a socialidade de vida de qualquer grupo em si, antes de tentar compreender a relação dele com outras instituições, valorizando sobretudo seus conhecimentos, saberes e formas de relacionar o mundo Calon e juron.

Referências

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Recebido em: 11/07/2021

Aceito em: 12/12/2022


1* Professora adjunta no colegiado de Antropologia da Universidade Federal do Vale do São Francisco (Univasf). Doutora em Antropologia Social pela Universidade Federal de Santa Catarina, mestre em Antropologia pela Universidade Federal da Paraíba, bacharela em Ciências Sociais pela mesma universidade. Atualmente é pós-doutoranda em Antropologia Social na Universidade Federal do Rio Grande do Norte, onde tem se dedicado à pesquisa sobre compreensão dos impactos da pandemia da covid-19 entre famílias ciganas no Nordeste brasileiro, a partir de uma perspectiva do campo das regulações sociais e morais na esfera da saúde e educação. Atua no Comitê de Antropólogas/os Negras/os, na Comissão de Educação, Ciência e Tecnologia e no Comitê de Antropologia e Saúde, todos da Associação Brasileira de Antropologia/ABA. E-mail: edilma.nascimento@univasf.edu.br

Calon é a denominação dada para pessoas ciganas que têm uma narrativa histórica de trajetória de chegada até o Brasil vindas dos territórios ibéricos (Portugal e Espanha) (MONTEIRO, 2015).

2 Agradeço às crianças Calon por tantos aprendizados.

3 Termo utilizado para denominar a língua cigana pelos ciganos Calon na Paraíba.

4 O termo “rancho” é utilizado para denominar o território de moradia dos ciganos ou as casas (estrutura física) onde residem.

5 Espaço de moradia ocupado por cada família nuclear.

6 Interlocutora não cigana, residente na localidade.

7 Renan Jacinto Monteiro é mestre em antropologia pelo Programa de Pós-Graduação em Antropologia da Universidade Federal da Paraíba.

8 Termo utilizado na língua cigana (chibi) para denominar a pessoa não cigana.

9A realização do grupo focal também foi desafiante, pois só consegui reunir as crianças para tentar realizar esse grupo após sete meses de estadia em campo.

10 Oficina sobre desenho e etnografia, ministrada pela professora doutora Aína Azevedo, no Departamento de Ciências Sociais da Universidade Federal da Paraíba.

ISSN 1517-5901 (online)

POLÍTICA & TRABALHO

Revista de Ciências Sociais, nº 57, Junho/Dezembro de 2022, p. 78-98

O DESENHO NAS PESQUISAS SOCIOEDUCACIONAIS COM CRIANÇAS

DRAWING IN SOCIO-EDUCATIONAL RESEARCH WITH CHILDREN

___________________________________

Francine Borges Bordin1*

Resumo

Neste texto, objetiva-se pesquisar os desenhos produzidos por crianças que estavam na etapa final da educação infantil. Para tanto, os dados de análise provêm da dissertação intitulada “‘Não é de verdade, é só um desenho’: de que nos falam os desenhos infantis?”. Como perspectiva teórica, utiliza-se a sociologia da infância, principalmente o conceito de reprodução interpretativa proposto por Corsaro (2011). A metodologia da pesquisa teve por base a pesquisa de campo de viés antropológico, utilizando o desenho como principal método de comunicação com as crianças, com registros no diário de campo. Os dados da pesquisa evidenciam o simbolismo do desenho das crianças, paralelo às questões sociais e culturais apresentadas por elas. A observação da produção dos desenhos infantis, bem como a interação junto às crianças, evidenciou suas capacidades de construir ideias e conceitos sobre determinados temas, muitas vezes além daquilo proposto pela pesquisadora. As atividades com desenhos se mostraram uma forma de comunicação eficiente entre pesquisadores e crianças e como um propulsor para apresentarem as suas ideias sobre as temáticas pesquisadas.

Palavras-chave: Infância. Sociologia da infância. Desenhos infantis. Pesquisa com crianças.

Abstract

This text aims to research the drawings produced by children who were in the final stage of early childhood education. Therefore, the analysis data comes from the dissertation entitled “‘It’s not real, it’s just a drawing’: what do children’s drawings tell us about?”. As a theoretical perspective, the Sociology of Childhood is used, mainly the concept of interpretive reproduction proposed by Corsaro (2011). The research methodology was based on field research with an anthropological bias, using drawing as the main method of communication with children, with records in the field diary. Research data show the symbolism of children’s drawings, parallel to the social and cultural issues presented by them. The observation of the production of children’s drawings, as well as the interaction with the children, demonstrate their ability to build ideas and concepts on certain topics, often beyond what the researcher proposed. The activities with drawings proved to be an efficient form of communication between researchers and children and as a propellant to present their ideas on the researched themes.

Keywords: Childhood. Sociology of childhood. Children’s drawings. Research with children.

Introdução

Este texto é resultado da dissertação intitulada “‘Não é de verdade, é só um desenho’: de que nos falam os desenhos infantis?” (BORDIN, 2014), defendida no mestrado em educação da Universidade Federal de Pelotas, sob orientação da Profa. Dra. Denise Bussoletti. Objetiva-se aqui apresentar alguns aspectos da referida pesquisa, buscando enfatizar o uso do desenho infantil na pesquisa com crianças.

Partiu-se da consideração da infância enquanto uma categoria social, conforme proposto pela sociologia da infância. Dessa forma, este estudo buscou se inserir na relação entre educação infantil e sociologia da infância, tendo como objeto de pesquisa os desenhos produzidos por crianças na etapa final da educação infantil.

Como questões propulsoras de pesquisa, indagava-se: Qual a contribuição que os paradigmas teóricos da sociologia da infância trazem para compreender os desenhos das crianças? E como tratar metodologicamente essa temática sociológica dentro da educação a partir do aporte sociológico?

A pesquisa de campo foi realizada na Escola Municipal de Arte-Infância Ruth Blank, na cidade de Pelotas, durante os meses de outubro a novembro de 2013, com crianças entre 5 e 6 anos. Eram em torno de seis crianças, três meninas e três meninos. A escolha por essa escola se deu por ser a única escola pública da cidade com foco no desenvolvimento artístico das crianças. O grupo onde a pesquisa foi desenvolvida era a turma de alunos em fase final da educação infantil, todos pertencentes à mesma turma disponível para participar da pesquisa.

Os desenhos foram produzidos no ambiente da sala de aula, em mesas circulares que possibilitavam a interação entre as crianças e entre a pesquisadora, no horário escolar, durante dois encontros semanais de cerca de uma hora cada. A sala era composta por diferentes materiais artísticos, livros, fantasias. Muitas vezes, enquanto desenhavam, as crianças transitavam entre essas linguagens.

A pesquisa passou por aprovação do comitê de ética da Universidade Federal de Pelotas, bem como obteve autorização por parte da Secretaria Municipal de Educação de Pelotas (RS) e, ainda, o aval da direção da escola. Além disso, os pais receberam o convite para seus filhos participarem da pesquisa, bem como assinaram o termo de consentimento esclarecido. Após a autorização dos responsáveis, um termo semelhante foi apresentado às crianças, que desenharam seu consentimento nele.

Cada criança criou um apelido que foi utilizado como sua identificação durante a análise dos dados da dissertação, mantendo-se aqui neste artigo. Inicialmente, pretendia-se propor temáticas para as crianças desenharem, mas as interferências das crianças e os assuntos que elas abordavam nos encontros fez com que as temáticas fossem replanejadas a partir da fala delas mesmas.

Metodologicamente, utilizou-se o conceito de reprodução interpretativa, do sociólogo William Corsaro (2011), para analisar os desenhos produzidos pelas crianças, pois

O termo interpretativo abrange os aspectos inovadores e criativos da participação infantil na sociedade. Na verdade, [...], as crianças criam e participam de suas próprias e exclusivas culturas de pares quando selecionam ou se apropriam criativamente de informações do mundo adulto para lidar com suas próprias e exclusivas preocupações. O termo reprodução inclui a ideia de que as crianças não se limitam a internalizar a sociedade e a cultura, mas contribuem ativamente para a produção e mudança culturais. O termo também sugere que as crianças estão, por sua própria participação na sociedade, restritas pela estrutura social existente e pela reprodução social. Ou seja, a criança e sua infância são afetadas pelas sociedades e culturas que integram. Essas sociedades e culturas foram, por sua vez, moldadas e afetadas por processos de mudanças históricas. (CORSARO, 2011, p. 31-32).

Considerando os desenhos das crianças dentro dessa perspectiva, pode-se conhecer seu significado internalizado culturalmente, bem como compreender a cultura de pares infantil do grupo do estudo. A reprodução interpretativa é um processo de apropriação, ativa e criativa das informações do mundo adulto, realizado pelas crianças. Essa noção é composta por três tipos de ação coletiva: apropriação criativa de informações e conhecimento do mundo adulto pelas crianças; produção e participação das crianças em uma série de cultura de pares; e contribuição infantil para a reprodução e extensão da cultura adulta.

Essa apropriação do conceito de Corsaro (2011) ocorreu por se acreditar que através do desenho seja possível compreender ou pelo menos perceber como acontecem essas características da reprodução interpretativa. Pode-se perceber a apropriação do conhecimento feito pelas crianças, a interpretação e modificação das informações e a transformação dessas em desenhos com significados próprios e dignos de serem pesquisados por investigadores da educação e da sociologia. Dessa forma, a reprodução interpretativa de Corsaro (2011) se tornou indireta e diretamente produto e motor desta pesquisa, pois guiou o processo de pesquisa de campo com as crianças e conduziu aos resultados da pesquisa.

A sociologia de Corsaro (2011) e de Sarmento (2003) apontam os aspectos interativos das crianças na formação das culturas de pares e culturas infantis. Essas interações são constituídas por ações coletivas que criam e reforçam os laços sociais entre as crianças, possibilitando que elas criem formas de resistência ao mundo social que as envolve, em especial atenção à escola e aos métodos tradicionais de ensino (copiar, decorar, por exemplo).

Corsaro (2011) dá ênfase às ações das crianças enquanto constituidoras da sua teoria de reprodução coletiva. Acredita-se que essas ações podem ser reflexo das ações das crianças nas escolas. Tomando como ponto de partida a descrição das ações coletivas (CORSARO, 2011), considera-se esses três pontos relacionados à educação de crianças na escola: 1º) as crianças se apropriam de informações exteriores, geralmente expostas por adultos; 2º) através da interação entre pares, elas são capazes de modificar, criar e recriar essas informações; e 3º) essas novas informações contribuem para a reprodução e extensão da cultura adulta e infantil ao compartilharem suas representações. Portanto, essas ações se transformam em representações repletas de significados que permitem compreender o lugar da infância e da criança na escola.

A seguir, apresenta-se o suporte teórico deste estudo, seguido pelos dados coletados na pesquisa, as considerações analíticas e as considerações finais.

A sociologia da infância pensando a educação e os desenhos infantis

A sociologia da infância foi propulsora de toda esta pesquisa e abriu espaço para os conceitos aqui reunidos. Considerando a infância enquanto uma construção social e a criança enquanto um ator social, a sociologia permitiu que novas abordagens sobre socialização surgissem. Isso também possibilitou que novas pesquisas em diversos meios acadêmicos surgissem daí – é o caso desta pesquisa.

A partir disso, o conceito sociológico de reprodução interpretativa (CORSARO, 2011) foi norteador desta investigação. Suas características colaboraram para além da metodologia, mas também para a percepção da educação infantil enquanto formadora de capacidades e conhecimentos das crianças. Através desse conceito também é possível compreender a apropriação que as crianças fazem dos conteúdos educacionais propostos pelos professores e como transformam esses conteúdos em significados compreensíveis entre seus pares. Dessa forma, considera-se o desenho como um meio propulsor para compreender esse processo.

Assim sendo, as culturas da infância (SARMENTO, 2002, 2003) se desenvolvem em consonância com as culturas de pares (CORSARO, 2011). Um dos âmbitos de desenvolvimento dessas culturas é a escola e as relações que as crianças lá estabelecem. Para além desses âmbitos, a sociologia e a educação têm o mesmo nível de importância. Aqui, a escola é definida como o local de pesquisa, tendo em vista que a investigação se desenvolveu em uma escola de arte e infância.

Com isso, os desenhos se configuram enquanto uma produção simbólica (SARMENTO, 2011; GOMES, 2009) de um grupo social, bem como um meio de comunicação não verbal formador de artefatos sociais e culturais. Sua interpretação em âmbito educacional deve levar em conta o sujeito que o produziu, os valores culturais que carrega e, também, as condições sociais de produção e existência das crianças.

As considerações sobre desenhos infantis também permitem pensar a educação, na medida em que representam aspectos educacionais possíveis e necessários de serem repensados. Para Sarmento (2011), os desenhos são uma produção simbólica das crianças, constituindo-se enquanto um meio de comunicação não verbal. O desenho possibilita à criança comunicar aquilo que por meio da fala ela não comunica. Permite, também, aos adultos entrar no âmago da infância e compreender (ou pelo menos tentar) a situação da educação nas escolas. Mesmo que os desenhos não tratem diretamente sobre esse tema, de certa forma eles comportam elementos que permitem pensar a educação, sendo assim mais do que meros desenhos, mas testemunhos de uma cultura infantil (SARMENTO, 2011) e escolar que parte do olhar das próprias crianças.

Os desenhos também podem se configurar enquanto fontes indiciárias da infância (GOBBI, 2012). Fontes que indicam não apenas a situação social da infância, mas também a situação das crianças nas salas de aulas. Podem ser fontes indiciárias sobre a escola, visando a aperfeiçoar o trabalho docente e o envolvimento das crianças no processo de aprendizagem, focando não apenas no desenho enquanto produto final, mas no processo de desenhar.

Voltando ao aspecto interativo da produção de desenhos, Dias e Almeida (2009) apontam o desenho enquanto atividade propiciadora de interações sociais. Ressalta-se, mais uma vez, que interações sociais são importantes para o desenvolvimento infantil e para o desenvolvimento social e cultural das crianças, o que reflete diretamente no resultado do processo de ensino nas escolas. Através da interatividade, as crianças aprendem, ensinam e compartilham conhecimentos.

Dessa forma, os desenhos infantis são constituidores de novas identidades, adaptando as ideias de Ferrari (2012) sobre documentários ou aperfeiçoadores de identidades que estão continuamente se desenvolvendo. Essas identidades, por sua vez, desenvolvem-se nas mais variadas instituições, como a família, a comunidade e a escola, e na complexa relação entre adultos e crianças, em que suas ações (que podem ser representadas em seus desenhos) constituem e confirmam seu status perante o outro.

Dessa forma, as representações constroem e também revelam determinados discursos dos sujeitos desenhistas, corroborando a compreensão da infância e do lugar da criança na contemporaneidade, situando a infância enquanto possuidora de uma crítica cultural (SOUZA, 2000).

Isso posto, considera-se que o desenho torna possível aos adultos compreender um outro mundo possível e desconhecido, revelado pelas crianças. Os desenhos refletem um simbolismo ao mesmo tempo autônomo e condicionado socialmente. O desenho se configura, então, não como uma tradução do mundo da criança, mas como uma inscrição de um ato e de um sujeito específico.

A seguir, apresentam-se os desenhos produzidos pelas crianças participantes da pesquisa e as considerações sobre eles.

Observando os desenhos e as interações entre as crianças

Aqui procura-se expor os dados da pesquisa, ou seja, os desenhos e as conversas das crianças. Tendo em vista que não caberia aqui todos os dados, foi feita uma seleção dos desenhos considerados mais expressivos, bem como dos diálogos acerca desses. Dessa forma, os quadros a seguir objetivam mostrar um pequeno recorte de cada dia de encontro com as crianças, bem como de sua análise.

Quadro 1 – Temática 1

PRIMEIRO DIA E AS CRIANÇAS JÁ MODIFICAM O PLANEJAMENTO:

A PESQUISA GUIADA PELAS CRIANÇAS

DESENHO

DIÁLOGO/COMENTÁRIOS

Figura 1 – Reprodução do desenho produzido por Fernando.

Fonte: dados da pesquisa.

Fernando: ah no fim do arco-íris tem alguma coisa!

Pesquisadora: é? o que tem no fim do arco-íris?

Fernando: não sei... eu vi nos filmes que tinha ouro.

Pesquisadora: vocês acham que tem ouro no fim do arco-íris?

Fernando: eu acho... aí quando vê, eu acho o fim do arco-íris e cavo e cavo e acho o tesouro!!

Depois de alguns segundos, Fernando completa sua ideia: eu desenhei o tesouro... que tá bem aqui! E questiona a si mesmo: o que ele pode ser? ahh, um chapéu de ouro! (DIÁRIO DE CAMPO, 07/10/13).

A produção dos desenhos não mostra apenas o significado que eles carregam através das falas das crianças, mas as falas das crianças muitas vezes revelam as influências que elas carregam, conforme expresso por Fernando quando diz que viu nos filmes que tinha ouro no fim do arco-íris. Interessante também a capacidade que as crianças possuem de mudar de assunto ou transformá-lo rapidamente sem ter medo de verbalizar seus pensamentos. As crianças não têm medo de expressar suas visões e fazem com que os adultos se questionem sobre seu conhecimento enquanto verdade e certeza absoluta.

Quadro 2 – Temática 2

CONCENTRAÇÃO DISPERSA

DESENHO

DIÁLOGO/COMENTÁRIOS

Figura 2 – Reprodução do desenho

de Lisa.

Fonte: dados da pesquisa.

É sempre importante explicar para as crianças a importância que os desenhos delas possuem. Elas se demonstram impressionadas com o fato de que eu preciso dos desenhos deles e que irei estudá-los. Uma das meninas, a Lisa, se deslumbra e comenta: “Desse tamanho tu é aluna”, vinculando o tamanho ao fato de ser aluna ou não. Demonstram que alunos não são professores, professores são aqueles que passam o conhecimento e ensinam os conteúdos. Quando a situação se inverte e tem uma aluna entre eles, eles se surpreendem com o fato de que os adultos também estudam.

Diariamente se confirma o fato de que as atividades propostas devem ser rápidas, pois as crianças não param por mais de 30 minutos para desenhar. Contudo, apesar disso, elas desenham muito bem e são muito conscientes do que querem mostrar e falam sobre seu desenho o tempo todo, sem contar que ainda discutem, falam de outros colegas, disputam cores etc.; mas sem perder a sua capacidade simbólica ao desenhar.

Quadro 3 – Temática 3

A PRIMAVERA E ALGUNS ESTEREÓTIPOS

DESENHO

DIÁLOGO/COMENTÁRIOS

Figura 3 – Reprodução do desenho

de Fernando.

Fonte: dados da pesquisa.

Eis que eu questiono: mas alguém sabe o que é a primavera? Fernando responde: “eu sei! É quando os ursos dormem... ou quando eles acordam!” (DIÁRIO DE CAMPO, 11/10/13).

Fernando: Um urso laranja! Eu vou fazer o retorno dele! (com a canetinha laranja na mão).

Depois de alguns segundos, Fernando complementa: um urso laranja não existe!

Pesquisadora: por que não?

Fernando: só se ele for pré-histórico!

(DIÁRIO DE CAMPO, 11/10/13).

Durante as atividades propostas, algumas crianças expressam suas representações sobre o mundo e quando percebem que podem estar enganados buscam resolver de forma criativa. É o caso do Fernando que, ao perceber que nunca tinha visto um urso laranja, justificou que poderia ser pré-histórico. O desenho se mostra não apenas como uma forma de comunicação entre a criança e o adulto, mas também como um propulsor para as ideias das crianças, na medida em que permite o afloramento do simbolismo e das representações.

Quadro 4 – Temática 4

EU JÁ VI UMA PESSOA BOIOLA DE VERDADE”:

REPRESENTAÇÕES DE GÊNERO ATRAVÉS DAS CORES ESCOLHIDAS PELAS CRIANÇAS

DESENHO

DIÁLOGO/COMENTÁRIOS

Figura 4 – Reprodução do desenho

de Sofia.

Fonte: dados da pesquisa.

Sofia: eu não vou fazer a cara do Mosca21 rosa.

Pesquisadora: por que não?

Sofia: ele é menino!

Pesquisadora: e menino não é rosa também?

Lisa: não... se não vira boiola!!

Todas as meninas riem.

Pesquisadora: que horror... quem disse isso?

Lisa: eu já vi uma pessoa boiola de verdade na padaria... contando muito dinheiro!

Sofia: que nem guria!!

Lisa: só que era macho... só que tava com roupa de mulher! - Todas riem.

Professora interfere e pergunta: quem fala assim Lisa? É lá na tua casa que falam assim?

Júlia apenas ri e não responde... (DIÁRIO DE CAMPO, 14/10/13).

Esse pequeno diálogo leva a pensar sobre a representação de gênero, condicionada socialmente, feita pelas crianças. Afinal de contas, em muitos aspectos se percebe a influência direta dos adultos sobre as crianças. A transmissão de preconceitos e representações fica clara nesse exemplo. A menina sabia que não era algo a se repetir assim, mas, como toda a criança, não teve medo de falar, porém, depois com a pergunta da professora, se sentiu reprimida e não levou o assunto adiante. Estereótipos, como a cor de meninos e meninas, são compartilhados através dos desenhos das crianças. E, nesse caso, o estereótipo do boiola, como um macho com roupa de mulher, tomou corpo na fala das crianças.

Quadro 5 – Temática 5

A ÁRVORE MENINA E AS PLANTAS FELIZES

DESENHO

DIÁLOGO/COMENTÁRIOS

Figura 5 – Reprodução do desenho de Barbie.

Fonte: dados da pesquisa.

Barbie: eu vou fazer uma carinha na árvore.

Pesquisadora: por que uma carinha?

Barbie: tipo, fazer as plantinhas felizes porque vai ter sol e eu vou fazer uns risquinhos de chuva também!

Barbie: vai ser uma menina.

Sofia: o quê?

Barbie: a árvore!

(DIÁRIO DE CAMPO, 25/10/13).

Outra questão interessante que aparece em muitos desenhos é a humanização dos objetos, ou seja, objetos com olhos e boca, personificados e caracterizados pelas crianças. Pode ser uma forma de expressar seus sentimentos através dos desenhos ou apenas uma forma de caracterizar seus objetos ou personagens, mas também pode ser muito mais, um mundo a ser explorado, muito mais simbólico do que social. Barbie expressa em seus desenhos a necessidade de mostrar a felicidade de seus objetos e personagens. Algumas plantas felizes e uma árvore feminina podem ser uma maneira de se expressar e caracterizar seus desenhos. Isso exemplifica a importância do desenho infantil não apenas no contexto escolar, mas em qualquer contexto possível.

Quadro 6 – Temática 6

HALLOWEEN E SUAS POSSIBILIDADES

DESENHO

DIÁLOGO/COMENTÁRIOS

Figura 6 – Reprodução do desenho

de Fernando.

Fonte: dados da pesquisa.

Pesquisadora: que tanto tu tá desenhando aí Fernando, me conta?

Fernando: castor parte Pinóquio.

Pesquisadora: que misturança... tu inventou?

Fernando: acho que eu tenho que fazer mais alguma coisa aqui do Dia das Bruxas.

Depois de um tempo, Fernando esbrava: uma formiga gigante!

Sofia: agora eu vou fazer uma lua, tá de noite!!

Fernando: ah eu também fiz uma lua êêêê...

Pesquisadora: por que tem que ter uma lua?

Sofia: eu vou fazer de noite... acho que eu vou fazer um lobisomem junto... noite... lua cheia, lua cheia...

Pesquisadora: me conta o que tu sabe sobre a lua cheia?

Sofia: depois ele vira lobisomem.

Barbie: quando chega meia-noite.

Fernando: o gato se torna lobisomem... é que nem um cachorro!

Sofia: quando chega bem de noite, a lua cresce e depois vem o lobisomem.

Pesquisadora: e vocês já viram algum lobisomem de verdade?

Todas as crianças concordam.

Pesquisadora: já? (surpresa)

Fernando: já, na mata!

Sofia: eu já vi no parque, na casa do terror, eu me arrepiei!

Pesquisadora: mas ele era de verdade ou era uma fantasia?

Sofia: fantasia, pior... mas todo mundo ficou com medo.

Barbie: eu já fui no trem fantasma. A minha mãe falou assim: não vai ficar com medo. E eu: não né. E ela: tá bom. E eu entrei e o troço andando e eu: (fazendo cara de quem nem deu bola – não se assustou)... eu não tinha medo!

Sofia: pelo menos eu vi, sabe o quê?

Barbie: hã?

Sofia: um vampiro agarrou uma mulher e mordeu.

Pesquisadora: onde tu viu isso?

Érika: fantasiaaa! (gritando)

Pesquisadora: vocês gostam de fantasia, né?

Sofia complementa: lua cheia também tem mula.. éééé...

(DIÁRIO DE CAMPO, 31/10/13).

Essas crianças demonstram em seus diálogos e interações a capacidade do ser humano de criar histórias e mitos e passá-las de geração em geração, cada vez criando novas representações. Suas falas demonstram a riqueza de informações que elas possuem e o esforço que elas fazem pra coordenar suas ideias coerentemente. Para elas, o halloween demonstra a possibilidade de expressar suas fantasias e criar seus personagens, enriquecendo os elementos simbólicos da cultura infantil. Ainda, as crianças demonstram a diversidade de elementos que criam as suas concepções de mundo sobre o halloween e exploram suas possibilidades, permitindo que se possa pensar sobre seu simbolismo.

Quadro 7 – Temática 7

EU FAÇO MEU SOL DA COR QUE EU QUISER

DESENHO

DIÁLOGO/COMENTÁRIOS

Figura 7 – Reprodução do desenho

de Fernando.

Fonte: dados da pesquisa.

Fernando: tá chovendo aqui.

Éder: tá um calorão! e ainda tu coloca chovendo?

Fernando: mas aqui tá chovendo, ué! Não é de verdade, é só um desenho! Não é na realidade, né, Éder! É a última gota de chuva, e agora o sol vai aparecer!

Quando Fernando desenha o sol, Lisa comenta: o sol é amarelo Fernando.

Fernando: não, não é amarelo!

Pesquisadora: que cor é então, Fernando?

Fernando: eu faço meu sol de que cor que eu quiser!!! É de qualquer uma cor! (DIÁRIO DE CAMPO, 31/10/13)

O diálogo acima relata a fronteira entre a realidade e o desenho infantil na fala das crianças. Fernando tem plena consciência de que o que está desenhando não precisa possuir vínculo com o real, mas apenas com sua imaginação, deixando os colegas desconfortáveis com seu desenho. De certa forma, todas as crianças do grupo possuem essa consciência, mas é Fernando quem deixa mais evidente em suas falas e diálogos.

Fernando desenhou seu elefante colorido com uma gota de chuva que se transformou em meteoro. Quando algum pesquisador ou docente olharia para o desenho dele e entenderia todo esse contexto representado? Se não fosse o momento interativo com eles e de diálogo, provavelmente nenhum desenho de todo este trabalho de pesquisa faria sentido. Isso demonstra a importância de estar junto às crianças, de estabelecer relação de confiança com elas. É muito mais fácil planejar do que estar com as crianças. Portanto, o pesquisador interessado em pesquisar sobre/com as crianças tem que estar lá, tem que fazer parte do processo de produção dos desenhos infantis ou do que quer que seja. Apenas estando lá será possível compreender desenhos ou dados de pesquisa que muitas vezes parecem hieroglifos. Portanto, a pesquisa de campo e o diário de campo são imprescindíveis para pesquisas com crianças.

Quadro 8 – Temática 8

É DA MINHA IMAGINAÇÃO

DESENHO

DIÁLOGO/COMENTÁRIOS

Figura 8 – Reprodução do desenho

de Fernando.

Fonte: dados da pesquisa.

Fernando: vou fazer um sol... olha o meu sol... um sorriso no sol!

Pesquisadora: o sol tem sorriso?

Fernando: tem!

Pesquisadora: onde?

Fernando: não dá pra ver porque o sol não tá na rua, dã...

Pesquisadora: não tá na rua? Tem certeza? E esse baita sol que tem? Só não dá pra ver ele daqui.

Pesquisadora: e de perto dá pra ver o sorriso do sol?

Fernando: dá!

Pesquisadora: tu já viu?

Fernando: eu já vi três sol!

Pesquisadora: três sóis??

Fernando: é.. junto!

Pesquisadora: aonde? Aqui?

Fernando: não! Lá na minha casa, em cima de um morro.

Pesquisadora: e tinha três sóis?

Fernando: tinha!

Pesquisadora: por que tu acha que tinha três SÓIS?

Fernando corrige: SOL

Pesquisadora: SOL? Tá desculpa!

Fernando: é da minha imaginação!!! (DIÁRIO DE CAMPO, 06/11/13).

Já se tinha percebido a capacidade que Fernando possui de percorrer as fronteiras entre o mundo real e a imaginação, bem como que ele conseguia diferenciar isso de maneira explícita. Seus diálogos confirmam a ideia de que as crianças também sabem diferenciar seu mundo real e seu mundo simbólico, e que percorrer essas fronteiras é importante e necessário, pois permite à criança criar capacidades específicas ao seu desenvolvimento que possibilitam a permanência dessa criatividade, muitas vezes perdida na vida adulta.

Quadro 9 – Temática 9

SEMPRE É DESENHO LIVRE

DESENHO

DIÁLOGO/COMENTÁRIOS

Figura 9 - Reprodução do desenho de Lisa.

Fonte: dados da pesquisa.

Fernando: Sempre é desenho livre!

Pesquisadora: mesmo quando eu digo pra desenhar sobre alguma coisa?

Fernando: mesmo!

(DIÁRIO DE CAMPO, 07/11/13)

Enquanto pesquisadores, tem-se a ilusão de que os sujeitos de pesquisa seguirão à risca as orientações. Mesmo com uma proposta temática, as crianças se sentiam livres para desenhar e criar o que queriam, mas geralmente estava associado à própria temática. Fernando vem e quebra essas preconcepções desde o início do trabalho de campo até o último momento. Neste encontro, o menino afirmou que sempre os desenhos são livres.

Explorando os desenhos

O processo de simbolização das crianças está presente durante suas brincadeiras, desenhos e atividades diversas. O desenho enquanto uma expressão gráfica carrega elementos simbólicos e representacionais, bem como ele próprio. Desde o seu processo de produção, exige que as crianças utilizem sua capacidade simbólica para colocar no papel o que desejam comunicar. O processo de desenhar se configura como um processo simbólico porque vai ao alcance de ideias, crenças, vontades, ações e interações que as crianças trazem consigo e expressam durante suas produções gráficas.

É simbólico quando, através de um desenho, as crianças demonstram relações que apenas elas sabem explicar. Isso aconteceu muito durante a pesquisa de campo enquanto as crianças desenhavam. Quando uma criança cria uma história, seja sobre o arco-íris que é feito de gelatina e que guarda um tesouro no final (tesouro esse que pode ser um rinoceronte) ou sobre um urso laranja que por sua cor se caracteriza como pré-histórico, a criança está envolvida pelo simbolismo do arco-íris e do urso para criar seus personagens. O simbolismo também está presente no momento em que a criança expressa que a cor rosa não pode ser pintada em um menino porque esse pode vir a se tornar homossexual ou, conforme a fala da menina, “boiola”. É um processo simbólico que carrega estereótipos e preconceitos que estão presentes na sociedade, evidenciando o caráter social da representação.

O simbolismo também se corporifica quando as crianças afirmam que fazem o desenho como querem ou que mesmo com a intervenção de um adulto o desenho é sempre livre. É livre porque depende do processo simbólico delas, mas é condicionado à estrutura social onde está sendo produzido. É nesse sentido que o simbolismo também é social, porque ele permite às crianças essa autonomia simbólica, mas expressa a relação social do grupo estudado.

Os desenhos não são simbólicos apenas no nível subjetivo, eles também apresentam elementos objetivos, mas que carregam simbolismo na sua produção e ação. É o caso dos desenhos sobre halloween, em que os diversos personagens representados constituem um quadro de elementos simbólicos presentes nas culturas da infância, bem como demonstram a influência da cultura global sobre a cultura local e infantil, na medida em que o halloween é uma comemoração americana importada para o Brasil e que não mantém seu significado original. Ou seja, é uma data culturalmente apropriada e que passou por um processo representativo ou pela reprodução interpretativa (CORSARO, 2011), criando novos significados e rituais de acordo com a adaptação cultural local.

Outro momento em que a cultura local se expressa na fala das crianças é quando Fernando explicita o porquê de falar algumas palavras dando ênfase na vogal final. Ele explica que fala que nem o Guri de Uruguaiana, com o sotaque gaúcho bem definido, estabelecendo o tradicionalismo gaúcho desde crianças. Além de apropriar esse sotaque de um humorista gaúcho, ele confrontou com a fala de seus colegas afirmando sua reprodução interpretativa (CORSARO, 2011) e evidenciando sua valorização enquanto gaúcho. Ele manifesta suas raízes, sua cultura, sua narrativa, tudo perceptível através das ações coletivas entre os pares.

Além disso, através de seus desenhos, as crianças demonstram viver na fronteira entre o real e o imaginário, entre o mundo simbólico e o não simbólico, assumindo papéis nos seus desenhos sem deixar de serem elas mesmas, assim como nas brincadeiras, evidenciando o processo de reiteração do real enfatizado por Sarmento (2002, 2003).

Apenas compreender o processo simbólico dos desenhos infantis não é o suficiente. É necessário compreendê-los dentro do processo de ações coletivas e reprodução interpretativa. Destarte, quando as crianças brincam e planejam suas brincadeiras, as ações coletivas servem como um apoio à transformação e criação de regras, formando a base na qual a reprodução interpretativa (CORSARO, 2011) se manifesta. De certa forma, a reprodução interpretativa também está presente nos desenhos infantis, principalmente na interação propiciada pela atividade de desenhar. A seguir são destacados alguns elementos narrativos que possibilitam enfatizar isso.

Quando as crianças falavam sobre o arco-íris, esse processo ficou evidente. A primeira ação foi buscar expressar o que era o arco-íris, focando nas suas cores. A partir daí, cada criança adaptou essa ideia de acordo com seu conhecimento, para, em seguida, firmada por seu imaginário, confrontar com sua realidade simbólica. Ou seja, primeiramente o arco-íris se configurava como algo cheio de cor, com aquele formato côncavo. Em seguida, foi comparado a uma gelatina colorida, para, no final, trazer a ideia que o senso comum tem sobre o arco-íris: o tesouro. Se tem um tesouro no final do arco-íris, é compreensível que as crianças possam imaginar qualquer coisa em seu lugar, inclusive, um chapéu de ouro ou um rinoceronte. A imaginação não tem limites. Assim sendo, a reprodução interpretativa passa por esses processos de ações coletivas, em que, por meio da cultura de pares, as crianças ressignificam seus conhecimentos, evidenciando o imaginário infantil (SARMENTO, 2003).

Outro exemplo em que se percebe a reprodução interpretativa das crianças é quando Fernando escolhe desenhar um urso laranja. Na dúvida sobre a realidade de seu desenho, ele o confronta com seus conhecimentos e conclui: “Urso laranja não existe! Só se ele for pré-histórico” (DIÁRIO DE CAMPO, 11/10/13). A pesquisadora não possuía conhecimento sobre os ursos pré-históricos pra debater com a ideia do menino, mas seu raciocínio foi confrontar a informação que ele tinha com o seu desenho, criando um urso laranja pré-histórico, valorizado pela reprodução interpretativa (CORSARO, 2011).

As ações coletivas são formadas na cultura de pares entre as crianças. Os desenhos foram produzidos em meio às interações da cultura de pares. Logo, considera-se que os desenhos infantis (em grupo, conforme ocorreu na pesquisa de campo) são produtos das ações coletivas das crianças. Esses pequenos exemplos foram percebidos na interação entre as crianças como uma forma de buscar compreender o processo de construção dos significados dos desenhos infantis. E mais do que concluir onde se manifesta ou não, percebe-se que esse processo está oculto, sendo um processo em que as crianças buscam se apoiar para dar sentido aos seus desenhos.

Indo além das considerações de Corsaro (2011) sobre a reprodução interpretativa e as ações coletivas, as análises mostram que, a partir da apropriação criativa e ativa de qualquer informação feita pelas crianças, o processo de adaptação pelo qual essa informação passa não é somente objetivo, é subjetivo, na medida em que é simbólico e sustentado pelo imaginário infantil. Quando as crianças confrontam as informações adaptadas por eles com sua realidade, também não se pode considerar uma realidade social objetiva, mas sim uma realidade da qual elas podem ter conhecimento sem, no entanto, ser palpável aos adultos. Com isso, evidencia-se que as ações coletivas coexistem e dialogam na construção de conceitos sobre o mundo e não necessariamente se manifestam só objetivamente, mas constituem processos ocultos da mente humana, buscando aperfeiçoar seu conhecimento.

Os conceitos de simbolismo (SARMENTO, 2011) e reprodução interpretativa (CORSARO, 2011) aparecem relacionados nas análises anteriores, tendo em consideração a reprodução interpretativa como um processo simbólico realizado pelas crianças, podendo ser chamada de reprodução simbólica e interpretativa. Sendo assim, além de uma produção simbólica (SARMENTO, 2011; GOMES, 2009), os desenhos infantis também possibilitam inverter a forma pela qual se olha para as crianças (PAULA, 2008), deixando que seu olhar se manifeste nos seus desenhos e trazendo conhecimentos sobre elas, sobre o mundo e sobre nós mesmos e nossas preconcepções.

Os desenhos se constituíram enquanto marcas sociais da infância (GOBBI, 2012), bem como simbólicas. Sendo produzidos na cultura de pares, os desenhos também evidenciam a participação social das crianças (SILVA, 1998) durante suas produções. Assim como na pesquisa da antropóloga Mitchell (2006), o desenho, nesta pesquisa, também buscou se configurar como uma técnica de pesquisa centrada na criança, empoderando-a frente aos adultos. E, corroborando Dias e Almeida (2009), a atividade do desenho se configurou como uma mediadora de interações sociais, contribuindo para estabelecer e fortalecer seus laços culturais.

Com relação à visualidade do desenho infantil, conforme Ferrari (2012), ele se constitui enquanto cultura visual que possibilita construir novas infâncias e novos docentes. Isso porque através dos processos simbólicos (SARMENTO, 2011) e da reprodução interpretativa (CORSARO, 2011), os significados expressos pelas crianças criam novas infâncias, na medida em que ampliam o conhecimento sobre esse grupo geracional. Para concluir, além de uma metáfora visual (STACCIOLI, 2011) que permite explorar caminhos antes inexplorados, os desenhos também se constituem como uma metáfora social e simbólica da infância, abrindo espaço para que a infância e as crianças sejam pesquisadas através de seus desenhos.

O desenho nas pesquisas socioeducacionais com crianças – considerações finais

Tendo claro que o processo de desenhar é simbólico, percebe-se que esse processo carrega estereótipos sociais, levando a considerar um simbolismo social presente nos desenhos infantis. Esse simbolismo social tem duas faces: a primeira demonstra uma certa autonomia simbólica por parte das crianças e a segunda demonstra que é condicionado socialmente. Ou seja, ao mesmo tempo em que as crianças possuem autonomia simbólica ao desenhar, seus desenhos também estão condicionados à estrutura social da qual fazem parte.

Assim sendo, esta pesquisa possibilitou perceber que os desenhos das crianças podem suscitar a infância enquanto crítica da cultura (SOUZA, 2000) – compreendendo que os elementos representados podem levar a pensar para além das crianças desenhistas, mas também para a condição da infância enquanto categoria social –, bem como suas características culturais específicas (enquanto artefatos sociais e culturais).

A observação da produção dos desenhos infantis, bem como a interação junto às crianças, evidenciou suas capacidades de construir ideias e conceitos sobre determinados temas. Isso foi perceptível nas atividades sobre o arco-íris e sobre a primavera, através dos diálogos entre as crianças e da explicação que iam dando espontaneamente sobre seus desenhos: seja sobre o tesouro no fim do arco-íris que se transformou em um rinoceronte, seja sobre o urso laranja que se tornou pré-histórico. Esses exemplos mostram como as crianças criam suas percepções sobre o mundo e o quanto essas percepções são atravessadas por informações provenientes dos adultos, o que não anula a especificidade no modo de ver o mundo por parte dessas crianças.

Outro ponto importante é que a produção dos desenhos infantis também representa crenças culturais, bem como a influência cultural global sobre a cultura local e, do mesmo modo, a própria cultura local. Percebe-se, ademais, que através dos desenhos infantis as crianças partilham seus significados e os criam coletivamente. Esse é um processo que atravessa a produção dos desenhos durante a pesquisa e demonstra a complexidade de se analisar um desenho infantil, pois, apenas uma atividade com algumas crianças carrega, mesmo que ocultamente, muitas questões para problematizar.

Também é importante o fato de que as atividades com desenhos são uma forma de comunicação eficiente entre pesquisadores e crianças e servem como um propulsor para as ideias das crianças. Isso, consequentemente, permite o desenvolvimento do simbolismo e das ações coletivas entre as crianças. Durante a pesquisa de campo, percebeu-se que os desenhos permitem que as crianças comuniquem suas ideias abertamente sem correrem o risco de serem limitadas conforme a ideia de outra pessoa. Quando um pesquisador se coloca enquanto aprendiz com as crianças e utiliza os desenhos como uma metodologia de pesquisa comunicacional, as crianças se sentem valorizadas, bem como se sentem mais à vontade para conversar com um ímpar – um adulto que está invadindo seus espaços e querendo saber sobre suas vidas.

Percebe-se, então, a complexidade que a análise dos desenhos carrega, demonstrando que qualquer pesquisa sobre desenhos que se importe com a educação deveria levar em conta o contexto de produção na relação com os desenhos e não apenas os desenhos por si mesmos. Isso porque os desenhos por si mesmos não dizem nada, só falam quando estão inseridos no contexto e descritos de acordo com tal.

Por fim, os desenhos foram propulsores para as crianças participarem da pesquisa, desvinculando-as de metodologias fechadas, mas instituindo formas participativas dialógicas horizontais entre pesquisadora e pesquisados, abrindo espaço para sua participação na pesquisa de forma eficaz, o que se buscou demonstrar com os diálogos e comentários registrados no diário de campo, complementando as discussões teóricas propostas.

Referências

BORDIN, Francine Borges. “Não é de verdade, é só um desenho”: de que nos falam os desenhos infantis? 2014. 170f. Dissertação (Mestrado em Educação) – Programa de Pós-Graduação em Educação, Universidade Federal de Pelotas, Pelotas, 2014.

CORSARO, William. Sociologia da Infância. Porto Alegre: Artmed, 2011.

DIAS, Talita Pereira; ALMEIDA, Nancy Vinagre de. Atividade de desenho como mediadora de interações sociais entre crianças. Paideia, Ribeirão Preto, v. 19, n. 44, p. 313-322, set./dez. 2009. Disponível em: <http://www.scielo.br/paideia> Acesso em: 10 fev. 2013.

FERRARI, Anderson. Cultura visual e homossexualidade na constituição de “novas” infâncias e “novos” docentes. Revista Brasileira de Educação, Rio de Janeiro, v. 17, n. 49, p.107-120, jan./abr. 2012. Disponível em: <http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1413-24782012000100006&lng=en&nrm=iso/&tlng=pt> Acesso em: 12 fev. 2013.

GOBBI, Marcia. Desenhos e fotografias: marcas sociais de infâncias. Educar em Revista, Curitiba, n. 43, p.135-147, jan./mar. 2012. Disponível em: <http://www.scielo.br/scielo.php?pid=S0104-40602012000100010&script=sci_arttext> Acesso em: 15 set. 2012.

GOMES, Zélia. Desenho infantil – Modos de interpretação do mundo e simbolização do real. Um estudo em Sociologia da Infância. 2009. 187f. Dissertação (Mestrado em Sociologia da Infância) – Instituto de Ciências Sociais, Universidade do Minho, Braga, 2009. Disponível em: <http://hdl.handle.net/1822/11016> Acesso em: 10 mar. 2011.

MITCHELL, Lisa. Child-Centered? Thinking critically about children’s drawings as a visual research method. Visual Anthropology Review, v. 22, n. 1, p. 60-73, mar. 2006. Disponível em: <http://onlinelibrary.wiley.com/doi/10.1525/var.2006.22.1.60/abstract> Acesso em: 10 jan. 2013.

PAULA, Sandra. Análise Sociológica de Desenhos Infantis: uma nova perspectiva de análise para grupos de exclusão. In: ENCONTRO REGIONAL DE HISTÓRIA, 19., 2008, São Paulo. Anais do XIX Encontro Regional de História: Poder, Violência e Exclusão. São Paulo: ANPUH/USP, 2008. CD-ROM.

SARMENTO, Manuel Jacinto. Imaginário e culturas da infância. Texto produzido no âmbito das atividades do Projeto As Marcas dos Tempos: a Interculturalidade nas Culturas da Infância. 2003. Disponível em: <http://cedic.iec.uminho.pt/Textos_de_Trabalho/menu_base_text_trab.htm> Acesso em: 15 set. 2009.

SARMENTO, Manuel Jacinto. As culturas da infância nas encruzilhadas da 2ª modernidade. Braga: Instituto de Estudos da Criança: Universidade do Minho, 2002. Disponível em: <http://cedic.iec.uminho.pt/Textos_de_Trabalho/menu_base_text_trab>. Acesso em: 22 set. 2009.

SARMENTO, Manuel Jacinto. Conhecer a infância: os desenhos das crianças como produções simbólicas. In: MARTINS FILHO, Altino José; PRADO, Patrícia Dias. Das pesquisas com crianças à complexidade da infância. Campinas, SP: Autores Associados, 2011. p. 27-60.

SILVA, Silvia Maria Cintra da. Condições Sociais da Constituição do Desenho Infantil. Psicol. USP, São Paulo, v. 9, n. 2, p. 205-220, 1998. Disponível em: <http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0103-65641998000200008&lng=en&nrm=iso&tlng=pt> Acesso em: 15 set. 2012.

SOUZA, Solange Jobim (org.). Subjetividade em questão: a infância como crítica da cultura. Rio de Janeiro: 7 Letras, 2000.

STACCIOLI, Gianfranco. As di-versões visíveis das imagens infantis. Pro-posições, Campinas, v. 22, n. 2, p. 21-37, maio/ago. 2011. Disponível em: <http://www.scielo.br/scielo.php?pid=S0103-73072011000200003&script=sci_arttext> Acesso em: 15 fev. 2013.

Recebido em: 29/06/2021

Aceito em: 24/11/2022


1* Bacharel em Ciências Sociais, Mestre e Doutora em Educação, ambos pela Universidade Federal de Pelotas. E-mail: francine.bb1988@hotmail.com

21 Mosca é personagem da novela Chiquititas a que as crianças assistiam.

ISSN 1517-5901 (online)

POLÍTICA & TRABALHO

Revista de Ciências Sociais, nº 57, Junho/Dezembro de 2022, p. 99-116

LINHAS QUE FALAM:

rotas (re)desenhadas no percurso de uma etnografia com crianças

LINES THAT SPEAK:

(re)drawn routes in the course of an ethnography with children

___________________________________

Ivana Martins da Rosa*1

Manuela Ferreira**

Resumo

A pesquisa com crianças, buscando entender a sua compreensão dos mundos socioculturais, abre-se a procedimentos ético-metodológicos plurais para apreender as suas vozes, de entre os quais se podem incluir produções gráficas, como os desenhos. Circunstâncias e circunstantes, condições e materialidades, relações e processos presentes aquando das composições estéticas da subjetividade expressiva das crianças, constituem, na sua dimensão dialógica, outros modos de amplificar a escuta sensível delas e suas experiências e visões no/de mundo. Não tendo sido uma opção pensada a priori numa etnografia com crianças entre 6-14 anos nos espaços públicos abertos de uma comunidade piscatória do norte de Portugal, iremos debruçar-nos neste texto acerca de como, no decurso do próprio campo, se gerou e aconteceu a demanda de desenhos, para refletirmos acerca i) da interdependência dos modos de subjetivação expressiva das crianças, seus significados e contributos; ii) da pluralidade de modos de participações infantis, situados, flexíveis e com sentido para si. Dos processos de recolha e análise de desenhos sublinha-se o seu contributo para dar conta: da complexidade inerente à sua multivocalidade, na exploração das suas multicamadas, ora justapostas e aglutinadas, ora dissonantes ou afónicas, e do caráter não linear e não normativo de sentidos; da consequente reorientação de estratégias de observação etnográfica que, sob sua orientação, levou ao reposicionamento da participação da etnógrafa e à ampliação do olhar acerca do foco da pesquisa.

Palavras-chave: Etnografia com crianças. Desenhos. Multivocalidade. Participação.

Abstract

Research with children, seeking to understand their understanding of socio-cultural worlds, opens up to plural ethical-methodological procedures to capture their voices, among which graphic productions, such as drawings can be included. Circumstances and bystanders, conditions and materialities, relations and processes present at the time of the aesthetical compositions of the expressive subjectivity of the children, constitute, in their dialogic dimension, other ways of amplifying sensitive listening of them and of their experiences and visions in/of the world. Not having not been an option thought a priori in an ethnography with children between 6-14 years old in open public spaces in a fishing community in Northern Portugal, we will focus in this text on how, in the course of the field itself, the demand for drawings was generated and happened, in order to reflect about i) the interdependence of the modes of children’s expressive subjectivation, their meanings and contributions; ii) the plurality of modes of children’s participations, situated, flexible and with meaning for themselves. From the processes of collection and analysis of drawings, it is underlined their contribution to give an account: of the complexity inherent to its multivocality, in the exploration of their multilayers, sometimes juxtaposed and agglutinated, sometimes dissonant or aphonic, and of the non-linear and non-normative character of meanings; and the consequent reorientation of ethnographic observation strategies that, under its guidance, led to the repositioning of the ethnographer’s participation and broadening the perspective of the research focus.

Keywords: Ethnography with children. Drawings. Multivocality. Participation.


1* Professora de educação física da Prefeitura Municipal de Florianópolis, Brasil. Doutoranda na Faculdade de Psicologia e Ciências da Educação da Universidade do Porto, Portugal. E-mail: ivanamros@gmail.com

** Professora associada da Faculdade de Psicologia e de Ciências da Educação da Universidade do Porto, Portugal. Membro do Centro de Investigação e Intervenção Educativa. E-mail: manuela@fpce.up.pt

ISSN 1517-5901 (online)

POLÍTICA & TRABALHO

Revista de Ciências Sociais, nº 57, Junho/Dezembro de 2022, p. 117-134

Rota inicial: apresentação

“Sinto-me sozinha mesmo no meio de tantos turistas a circularem. Por um momento até pareço um deles, que procura observar com olhar estrangeiro o que está a amostra. Neste momento, as crianças, de quem já tenho alguma proximidade não se mostram, não estão por cá. Já circulei pelos lugares mapeados em que costumo encontrá-las: no parque, na chapa, no Pólo de Leitura, no Museu, mas nem sinal delas. Pelas ruas que cortam a comunidade também não estão. As casas, na sua grande maioria, estão fechadas e as cadeiras, posicionadas à porta, estão vazias. Pensando bem, durante as tardes que por aqui já passei, dificilmente vi crianças a circularem pelas ruas do meio da comunidade. Preferem circular pela rua da praia para ir de um lugar para o outro. E agora aqui estou, à beira da Junta de Freguesia, à espera e sentindo-me um tanto perdida no meio dos olhares de estranhamento de muitas pessoas da comunidade que entram no prédio para os seus afazeres e de tantas perguntas que rondam a minha cabeça. Onde estão as crianças? Estarão em casa? Saíram de férias? Não desejam estar à minha beira? Porque quase não as vejo circular por entre as ruas da comunidade ou mesmo a brincarem à porta das casas? Mas, de repente elas aparecem! Estão em bando, com andar apressado e falando alto. De longe me cumprimentam e gritam que estão indo a casa”. (Notas de campo, 01-08-2017).

A epígrafe que abre este texto e que compõe as notas de campo de uma pesquisa etnográfica com crianças entre 6-14 anos, realizada nos espaços públicos abertos de uma comunidade piscatória ao norte de Portugal, coloca em evidência o processo inicial de uma investigação interessada em conhecer e compreender os modos próprios de ocupação e apropriação dos lugares pelas crianças deste contexto. Uma cena que no início da estada em campo com as crianças era comum, diante do processo de “ganhar acesso”, da falta de aproximação e confiança na relação entre pesquisadora e sujeitos crianças.

Esse começar, sempre inaugural, adensa as incertezas “como no início das andanças em terras inexploradas” (MARQUES, 1997, p. 33), e a sua analogia com este campo de pesquisa coloca-se na sua provisoriedade e na precariedade da pesquisadora repensar o seu lugar a partir dos modos pelos quais mira as crianças e os seus mundos. Assim é o desafio de constantemente (re)desenhar os caminhos metodológicos numa etnografia em espaços abertos, em que a principal característica é a mobilidade, configurada pela constante circulação no terreno.

A etnografia como “fenômeno interdisciplinar emergente” (CLIFORD, 2016, p. 33) toma pelas mãos as culturas e os seus sistemas de significação e coloca em relevo uma autoridade etnográfica que se trama na “experiência subjetiva e sensorial” (PRATT, 2016) e na coexistência e compartilhamento com os outros – abandona a “autoridade etnográfica científica” de um discurso neutro e sem fissuras diante do “estar lá” (VASCONCELOS, 2000); uma autoridade monofônica, estéril de intersubjetividade (CLIFORD, 2016; PRATT, 2016).

O movimento etnográfico com crianças requer, então, tomar a alteridade como pressuposto básico de pesquisa para que possamos conhecer o que ainda não conhecemos, fazendo emergir a multiplicidade da infância (LIMA, 2015). Importa olhar cuidadosamente “de perto e de dentro” (MAGNANI, 2002) numa disposição de “estar-com”, de corpo inteiro (VASCONCELOS, 2000) para compor uma escuta sensível das vozes para, assim, traçar caminhos de pesquisa que superem a “neutralidade, objetividade e assepsia conceitual” (COSTA, 2002, p. 14). Como pesquisadoras impregnadas pelo terreno, num processo investigativo dialógico, polifônico e intersubjetivo, retiramos a figura inquisidora da verdade mediante um método adequado, antes construindo um conhecimento localizado e provisório.

Nessa experiência de aceder ao que se foi procurar também se instituem roteiros à posição do sujeito-pesquisadora que, movimentando-se pela “transgressão”, pode deslocar-se por terrenos movediços e colocar-se no lugar do não saber pelas limitações dos seus próprios conhecimentos sobre as crianças. O trabalho de reflexividade sobre a subjetividade da pesquisadora (ROSA; FERREIRA; LIMA, 2020), propositiva da pesquisa etnográfica, não recusa possibilidades criativas, éticas, estéticas de aproximação aos sujeitos e ao que têm a dizer. Na criação está entranhada uma problematização do campo que interroga o “já sabido” (CORAZZA, 2002), suspende o óbvio e convoca o compromisso epistemológico (FERREIRA; NUNES, 2014) e suas próprias limitações face às dinâmicas da investigação, numa disposição de “ser afetada” (FAVRET-SAAD, 2005) sem com isso aprisionar a produção do conhecimento na sua subjetividade (BARAD, 2007 apud SYROU, 2018).

Esse posicionamento epistemológico numa etnografia com crianças convoca o abandono do adultocentrismo que reduz o Outro/criança à “infantilização” e condição de imaturidade, tipificando relações intergeracionais hierárquicas. Trata-se de abrir a investigação de modo a declinar a autoridade como adultos pesquisadoras(es) (FERREIRA; NUNES, 2014), assumindo a reversibilidade do poder, numa “simetria ética” (CHRISTENSEN; PROUT, 2002) que reconhece o Outro/criança também como sujeito conhecedor.

Reitera-se assim a importância de uma escuta etnográfica sensível, que permita uma “poética cultural que seja uma interação entre vozes, entre elocuções posicionadas em que (...) a voz do escritor perpassa e situa a análise, e renuncia-se à retórica objetiva e distanciada” (CLIFORD, 2016, p. 44-45). Uma escuta que envolve “estar lá com” e em presença cuidadosa, que se permite sair de si para acolher o Outro/criança numa relação ética, estética e comprometida com a amplificação das diversas vozes que visibilizam o terreno. O desafio da escuta nas etnografias com crianças implica-se na aproximação que conseguimos estabelecer com elas, diante da “capacidade de hospitalidade da diferença nessa disposição relacional” (FOSTER, 2011 apud ROSA; FERREIRA; LIMA, 2020, p. 6). Escutar não pressupõe a benevolência adulta em “dar a voz” às crianças, nem em deixar as crianças falarem, mas em “explorar a contribuição única que as perspectivas das crianças podem proporcionar à nossa compreensão e teorização do mundo social” (JAMES, 2019, p. 221). Cabe então perguntar: como nos colocamos para escutar as crianças nas pesquisas? Amplificamos, silenciamos e/ou usamos as suas vozes apenas para confirmar os ditos? Damos conta da sua polivocalidade ou reduzimo-la a um solo?

Nesse movimento de pensar a pesquisa, em que o desejo é “sair-se do que se é, para criar outros possíveis de ser” (CORAZZA, 2002, p. 107), urge sair da inércia do olhar que habita a homogeneidade como modo confortável de estar diante das repostas já sabidas, ou de uma escuta aligeirada e, por vezes, distorcida – ao nos desentendermos com o que miramos nos contextos e desmontarmos o que foi fixado produzimos conhecimentos mais complexos acerca das infâncias e das crianças, e de si própria e sua adultez (FERREIRA, 2010).

Primeiros olhares, primeiras escalas

A comunidade de pesquisa etnográfica

As primeiras pistas do terreno desta etnografia com crianças em espaços públicos abertos surgiram enquanto procurava: “Onde estão as crianças?”:

Conduzida pelas águas do Rio Douro, na sua margem esquerda avisto um lugar. Terra à vista! Seria aqui a terra por mim procurada? De longe, muitos barcos ancorados e gaivotas livres no ar. Na aproximação do olhar fico a espiar o seu movimento, a sua efervescência. Crianças, jovens, adultos e idosos circulam de um lado para o outro. Vozes ecoam, cheiros exalam, cores transbordam. O vento sopra e balança as roupas em imensos estendais. Roupas que vestem as gentes desta terra. Roupas de gentes grandes e pequenas, umas ao lado das outras, sem separação, sem restrição. Intimidade privada na relação do convívio em comunidade. Roupas que dão pistas das terras pisadas por crianças. Completamente mareada por essa efervescência é que o meu encantamento acontece. Chego ao cais, terra firme, jogo minha âncora”. (Notas de campo, 06-11-2016).

Essa primeira mirada conduziu a minha escuta inicial nesse lugar em que as crianças andavam nas ruas, jogavam a bola, brincavam no parque, iam ao café, sozinhas, em companhia dos seus pares e/ou de adultos, vivendo suas infâncias com alguma autonomia e independência nos seus tempos livres. Um cenário completamente diferente do vazio de crianças nas ruas da cidade, que corrobora com Neto e Malho (2004) de que o espaço público, especificamente a rua, está a deixar de ser um local de interação entre as crianças. Falamos da comunidade da Afurada, onde predominam traços de uma identidade piscatória e a ambiência pitoresca de um passado radicado nas redes comunitárias, com certa liberdade de circulação e que continua a viver a rua como extensão da casa, segundo um modo de vida que se dá “à porta”. “À porta” conversa-se, assa-se o peixe, come-se e bebe-se; faz-se “barulho”1. Essas características, que realçam as origens piscatórias do lugar, caminham lado a lado, a par e passo, com um projeto de requalificação espacial da comunidade que procura preservar os vestígios da sua história e, assim, reconstruir outra territorialidade favorável aos interesses de turistificação. As transformações nesse cotidiano vêm promovendo a entrada de turistas nacionais e internacionais que chegam para usufruir dessa cultura local, o que renova seus modi vivendi e reflete um discurso da genuinidade em torno da atividade piscatória (ROSA; FERREIRA; LIMA, no prelo).

Foi-se construindo, portanto, uma pesquisa etnográfica andante, em movimento, que procurou aceder ao mundo-vivido, à complexidade das minúcias cotidianas, seus códigos simbólicos compartilhados, e compreender os seus modos de vida. No caminhar vagaroso da flâneuse, foi-se adensando o olhar para aquilo que se estende pelo terreno, diante do “pensamento reflexivo, aquele que pisa e repisa sobre os passos dados” (LOPES, 2002, p. 73). Na andança, a disposição de procurar “frestas” para estreitar relações e firmar uma efetiva aproximação e cumplicidade com todos(as) que lá habitam também adensa o seu olhar sobre os passos dados pela pesquisadora, inquirindo sistematicamente sua presença no campo. Neste aproximar, confiar e ganhar acesso, estamos sempre a (re)começar: todos os dias são dias de pedir licença para entrar e ficar; ainda mais tratando-se de uma pesquisadora estrangeira/brasileira a querer investigar crianças nas ruas de uma pequena comunidade piscatória portuguesa (ROSA; FERREIRA, 2019). Daí que o estar em campo, ter de se apresentar e dizer do interesse em pesquisar e o pedido de consentimento informado se estendesse a toda a comunidade que compartilha os cuidados das suas crianças.

À medida que ia adentrando e tendo permissão para ficar no contexto comunitário, fui acedendo, de modo muito cuidadoso e ético às crianças2, me apresentando, explicitando o interesse de estar com elas e conhecer os seus espaços de interações na sua comunidade3, e solicitando-lhes o “assentimento” para estar nos seus lugares de presença nos espaços públicos da comunidade. Capazes de decidir se queriam ou não participar da investigação (FERREIRA, 2010) as crianças ora convidavam para estar com elas em alguns espaços, ora me deixavam sozinha: confiabilidade e assentimento ocorreram paulatinamente. Assim, no papel de uma pesquisadora interessada fui construindo um desenho inicial de escuta, um mapa com linhas entremeadas pela presença das crianças, adultos e marcas deixadas pelos caminhos da comunidade. Um mapa que foi territorializando os espaços das crianças na comunidade, emoldurando as cenas iniciais como uma espécie de “apropriação” do terreno que, mesmo sem desejar, limitava a condução da investigação nas mãos da pesquisadora.

Por certo, na precariedade dos primeiros percursos, ressaltou um mapa em que as linhas projetadas priorizaram as marcas já dispostas e expostas da comunidade que, desenhadas pelos adultos, direcionavam para onde olhar, tornando-o obsoleto diante dos desencontros com as crianças em algumas idas ao campo. Não obstante, a inquietação e a oportunidade de voltar aos passos dados “para encontrar outras possibilidades de continuar em movimento” (CORAZZA, 2002, p.108) constroem outras perguntas, mobilizam outros instrumentos que podem traçar novas rotas com as crianças, gerando conhecimentos situados.

No ato de tropeçar e valorizar os eventos cotidianos, retomo então a epígrafe deste texto e as perguntas aventadas: onde estão as crianças? Em casa? Saíram de férias? Não desejam estar a minha beira? Por que quase não as vejo circular pelas ruas ou brincar à porta das casas? Nesta difícil tarefa de perguntar, procuro lidar com “estranhas perplexidades” (FERREIRA, 2010) e transitar de um posicionamento de aculturação para estar dentro e perto, junto com as crianças, compreendendo os sentidos e significados construídos nas suas experiências vividas.

As perguntas feitas no caminhar da pesquisa pelo estranhamento do familiar instituíram roteiros metodológicos em que os percursos atravessados exigiram juntar instrumentos, fazer bricolagens para alcançar como as coisas vão acontecendo pelas crianças – “é no andar da carroça que se ajustam as abóboras, também é no andar da pesquisa que ela se organiza, se reconstrói de contínuo, harmonizando seus distintos momentos” (MARQUES, 1997, p. 114).

Foi preciso debruçar-me sobre o lugar de onde estava a olhar e colocar sob rasura o mapa já traçado sobre os espaços das crianças na comunidade para que o seu desaparecimento nas escalas calculadas me convidasse a (des)informar os seus lugares. Nessa (des)informação e limitação em compreender pela observação e palavras o que as crianças diziam busquei outros canais de escuta de outros modos delas se dizerem – surgiram os desenhos como possibilidades aproximativas a um mundo infantil onde múltiplas linguagens coexistem (GOBBI, 2014) e intensificam, nas imagens, a “polifonia e dialogia” (BARTHES, 1990 apud SCHWENGBER, 2014, p. 269) nelas entrecruzadas.

Linhas, pontos, formas: os desenhos como escuta das crianças

Os desenhos despertam olhares cuidadosos para os modos das crianças comporem o mundo: os traços não se limitam à ponta do lápis e à linguagem visual – acompanhados das suas narrativas enquanto desenham, potencializam, de corpo inteiro, uma intensa criação de sentidos e significados (KINNUNEN; EINARSDOTTIR, 2013; GOBBI, 2012; EINARSDOTTIR; DOCKETT; PERRY, 2009), neste caso, sobre os modos próprios de ocupação e apropriação dos lugares na sua comunidade.

Como processos e não como produtos (KINNUNEN; EINARSDOTTIR, 2013), os desenhos são uma dimensão comunicativa em que as crianças se narram traçando seus mundos com linhas, pontos, cores, formas. À medida que desenham realçam gestos, movimentos, cores, cheiros; multivocalidades expressas em multicamadas que fazem ecoar suas vozes e trazem o caráter ontológico relacional para as cenas, ressaltando as diferenças impressas nos seus cotidianos e experiências vividas. Essa parece ser também uma possibilidade para que as crianças possam contar histórias ainda não (re)conhecidas que possuem (KINNUNEN; EINARSDOTTIR, 2013), desvendando significados compartilhados. Evidenciam, assim, as suas culturas infantis e relevam os atravessamentos das suas vidas e origens de classe social, raça, gênero, religião... inscrevendo-se como sujeitos históricos e sociais de direito (GOBBI, 2014). Assim, os desenhos apresentam-se como fontes documentais importantes (GOBBI, 2012) e dinâmicas, cujas pistas visuais ajudam a conhecer as infâncias dentro dos seus diferentes contextos de produção e a construir “olhares mais detalhados e práticas reflexivas sobre as relações sociais e como as crianças ordenam sua percepção de mundo” (GOBBI, 2012, p. 137-138).

Aliados à experiência de quem desenha, os grafismos podem transbordar o suporte bidimensional e ganhar a tridimensionalidade que incorpora as linhas que tramam a existência de cada autoria. Linhas molares, sedimentares e de fuga (DELEUZE; GUATARRI, 1995) tecem a existência humana e, neste emaranhado, emergem representações de mundos que permitem aprender acerca das culturas em que as crianças estão inseridas, por si reveladas. Essa complexidade do desenho convoca um olhar curioso, minucioso, demorado das linhas, cores e formas traçadas para estranhar, se deixar afetar, questionar o que se vê e dialogar com proximidade acerca das suas relações e dos modos de ocuparem os seus lugares (GOOBI, 2014). A linguagem gráfica se estreita então entre arte e ciência, e, no seu viés artístico, não apenas responde, mas está prenhe de perguntas que possibilitam a ampliação do conhecimento; que trazem consigo, precisamente, a novidade, e agitam o pensar requerendo para a pesquisa outro posicionamento diante daquilo que estamos a ver. Assim, este texto assume as linhas tracejadas pelas crianças nos seus desenhos para olhar os seus contextos socioculturais como emaranhados complexos de se estar no mundo. Os desenhos situados acompanham a reflexão desta escrita, não como apêndices ou ilustrações, mas como textos que “pertuba[m] o texto escrito, sendo capazes de iluminar outros sentidos” (SCHWENGBER, 2004, p. 268-269).

Desenhar e dizer-se: caminhos metodológicos

O desenho como meio gerador de dados não estava pensado a priori nesta etnografia. Ele surge derivado do desencontro do mapa desenhado pela etnógrafa, que deixava de fora lugares outros de usos feitos pelas crianças. Incluído na etnografia, o desenho se colocou como outra aproximação às crianças, de escuta atenta do que tinham a dizer sobre o que lá fomos procurar. Tal se deu pela observação das crianças no Pólo de Leitura da comunidade onde passavam algum tempo a desenhar e pintar, e também porque me perguntavam se tinha folhas e canetas para que pudessem passar o tempo desenhando em alguns encontros. Esse interesse, aliado ao seu prazer, foi o que impulsionou o uso deste mediador – o convite a desenhar suscitou a expetativa de que as crianças pudessem participar com maior intensidade da produção dos dados e, consequentemente, do conhecimento que deles advém sem que fossem “obrigadas” a seguir um protocolo que interessava apenas à pesquisadora. O desenhar não teve caráter impositivo nem tão pouco a exigência de finalização quando esse não era o desejo da criança; antes se buscou a sua participação assentida, preservando o seu potencial lúdico.

Mas, desenhar o quê? Tendo em conta o mapa das minhas primeiras impressões do terreno, localizando alguns espaços das crianças, e as perguntas que me suscitaram, pedi-lhes que desenhassem o mapa da comunidade com os lugares em que gostavam de estar – procurava compreender como elas criavam e vivenciavam os seus lugares na comunidade, ampliando conhecimentos dos seus modos de estar, a partir dos seus movimentos em contexto. Foram disponibilizadas folhas de papel branco com 2x1m para fazerem suas criações, estando em interlocução com todas as que desenhavam: ao mesmo tempo que os desenhos individuais traçavam as rotas do mapa dos seus lugares na comunidade, as relações estabelecidas realçavam também aspectos mais coletivos.

Como o espaço de investigação são os espaços públicos abertos, não dispúnhamos de nenhum lugar para desenhar senão o chão cimentado. Assim, a primeira experiência com o desenho se deu no chão em frente ao prédio do Mercado de Peixe da comunidade4. Nesse dia, inicialmente estavam com a pesquisadora três meninas que, ao serem convidadas a fazer o desenho, logo aceitaram. Foram elas mesmas que indicaram o local para estender o papel e organizar o espaço de modo que os materiais para desenhar fossem distribuídos entre as crianças que ali estavam.

O espaço de produção dos desenhos despertou a curiosidade das pessoas que por ali passavam que, por vezes, paravam para olhar, e também de outras crianças que fossem se aproximando para espreitar o que fazíamos e, a partir dali, irem compondo a pesquisa como participantes:

_ Atão, o que estão a fazer aí no chão? (Viviana5)

_ Estamos a desenhar, não estás a ver? (Mónica)

_ O que estás a desenhar? (Viviana)

_ Estamos a desenhar o mapa dos sítios que gostamos cá na Afurada. (Mònica)

_ Quem é esta senhora à vossa beira, Mónica? (Viviana)

_ Não sabes ainda? É a Ivana que anda por aí a ver as crianças a brincar. (Mònica)

_ Posso desenhar também? (Viviana)

_ És criança, então podes! (Mónica) (Notas de campo, 03-08-2017).

A autorização da Mónica para que Viviana pudesse desenhar revela a sua compreensão acerca do interesse de quem eram os protagonistas da pesquisa, És criança, então podes!”, marcando as vozes que se procuram escutar e legitimando seus lugares como atores sociais. Também quando responde, “É a Ivana que anda por aí a ver as crianças a brincar”, indica uma compreensão mínima do papel da pesquisadora e da pesquisa em curso, em que ela, como criança, toma parte. “Posso desenhar também?”, o pedido da criança que acaba de chegar, que se sente convidada a contar sobre os seus sítios, mostra como o desenho, enquanto forma de expressão, é um importante medium de escuta e proximidade das comunicações infantis. Ressalta-se assim, o valor da pesquisa eticamente informada e o seu entendimento pelos sujeitos para construírem um pacto de confiança e cumplicidade.

Os momentos para desenhar não tinham hora para começar e nem para terminar, senão o tempo da disposição das crianças em participar, sendo muito intensos: estar perto, sentada no chão, lado a lado, numa disposição de escuta de corpo inteiro, atenta às linhas que desenhavam e às narrativas que delas iam se constituindo, fortaleceu imensamente vínculos socioafetivos com as crianças.

A proposta de desenhar seguiu por duas semanas, em dias que as crianças requisitaram as folhas para desenhar o mapa. Não lhes impus essa atividade para não a aproximar da lógica escolar. Procurava atentar à sua vontade de colaborar com a produção dos dados na pesquisa. Quando estive no campo por três dias consecutivos sem que pedissem para desenhar compreendi que tudo que tinham para ser desenhado, mapeado, já lá estava.

(Re)desenhando as rotas: cartografar, projetar e arquitetar lugares seus

Os desenhos criados pelas crianças6 traçam, aos poucos, as rotas dos seus lugares, evocam lembranças, encontros, constrangimentos, compondo um acervo de conhecimentos que permite olhar de perto, com outras lentes e outra precisão para os seus contextos. O mapa com os lugares de eleição estica seus traços além-fronteiras da comunidade, com linhas que colocam em relevo, por direções variadas, seus modos de existência, sua produção cultural. Na imensa folha de papel, compartilham o espaço em que cada desenho se vai juntando, produzindo uma conexão de sentidos e significados que, compartilhados, alteram o modo de ver. As crianças contam os seus lugares por dentro, realçando o seu pertencimento sociocultural que também imprime o seu enredamento pela atividade piscatória:

_ Vou desenhar o barco no cais, pois a Afurada é terra de pescadores e varinas7 (Cristina).

_Isso mesmo! A minha mãe é varina e o meu pai é pescador! (Juliana).

_ Pois, o meu pai também vai à pesca e minha vó também é uma varina (Cristina).

Ouvindo a conversa das duas meninas, Ana Maria, em tom de voz bem alto, repete uma frase que faz parte do pregão das varinas enquanto vendem o peixe: Venha freguesa, venha vere, sardinhas fresquiiiiiinhas! As crianças riem da imitação e dizem que até parecia mesmo uma varina. Enquanto estão ali a desenhar, Verónica se aproxima, vai à beira da Juliana e pergunta: _ Juliana vamos à tua casa brincar?

Juliana interrompe o desenho e responde: _Não podemos brincar na casa agora, o meu pai está a dormir para ir ao mar (Notas de campo, 14-08-2017).

Desenho 1 – Mestre da Galileia

Fonte: Acervo da pesquisadora

Se no cais há possibilidade de encontro constante com essas práticas sociais, pelos barcos desenhados se reafirma simbolicamente o espírito dessa comunidade traduzida na frase pronunciada alto e bom tom, enquanto desenham: “Afurada é linda!”. Os barcos de pesca que navegam nas águas imaginárias dos seus desenhos abortam os limites do rio e ancoram em cada uma das suas portas. Daí que, “Não podemos brincar na casa agora, o meu pai está a dormir para ir ao mar!, forneça pistas para pensar diante do estranhamento de, em certos momentos, quase não se perceberem crianças a circular pelas ruas dentro da comunidade.

Nos dias em que acontecem os desenhos, outras crianças juntam-se para a feitura do mapa e novas rotas vão sendo traçadas. Marcos aproxima-se do grupo de crianças que desenha e, por alguns minutos, observa silenciosamente as produções já feitas. Em seguida senta-se numa das pontas da folha, pede o marcador verde e diz:

_ Olha, está a faltar um lugar muito importante neste mapa!

_ O que é Marcos? Pergunta Amélia.

_ Um ringue pra jogar a bola. Responde ele.

_És um tolinho! Cá na Afurada não se tem ringue. Responde a Amélia.

_ Não, mas bem que podia! No tempo do meu pai tinha um ringue bem ali, à beira dos tanques. Agora já não se tem mais, só um monte de carros! Dito isto, o Marcos, com o marcador verde, desenha o campo de futebol e escreve “Afurada” e, logo abaixo, “campo Coimbrões”. Amélia, ao perceber a escrita, novamente provoca o menino:

_ Ó Marcos, tás a desenhar o campo do Coimbrões e a escrever que é da Afurada?

_ É que gostava que cá na Afurada tivesse um campo igual ao Coimbrões onde fico a treinar. Assim não precisava de ter que ir até lá e os rapazes podiam jogar. Responde Marcos.

_ Só os rapazes poderiam jogar ou as raparigas também? Pesquisadora.

_ Só os rapazes! As raparigas ficam à beira do campo a fazer torcida, a gritar...estas coisas. (Notas de campo, 07-08-2017).

Desenho 2 - O ringue da Afurada

Desenho de uma pessoa

Descrição gerada automaticamente com confiança média

Fonte: Acervo da pesquisadora

O campo de futebol desenhado pelo Marcos entrecruza uma linha temporal dentro do espaço que atravessa passado, presente e futuro e denuncia o apagamento de uma importante atividade lúdica para as crianças e jovens de outrora da comunidade. Entre os relatos ouvidos dos adultos acerca do passado e da cultura lúdica da comunidade, o ringue era um espaço rico de experiências inter e intrageracionais; um espaço à beira-rio que, diante do processo de requalificação dos espaços da comunidade, passou a receber no tempo presente muitos visitantes e, com isto, priorizou acolher os carros daqueles que chegam. No cinzento calçamento que cobre o espaço do ringue, e veste de novo a comunidade, as infâncias são apagadas nos projetos de gentrificação; no enobrecimento do espaço, na assimetria de poder nas relações da disposição dos lugares.

Quando Marcos convoca a equipe composta só por rapazes, coloca as raparigas num lugar de expectadoras e animadoras de torcida, num papel de coadjuvantes do espetáculo partida de futebol. Na composição gráfica dos espaços preferidos das crianças, percebem-se algumas diferenças entre os desenhos e narrativas das meninas e dos meninos. A maioria dos meninos desenha a frente da Junta de Freguesia – e,, nas suas narrativas, jogar a bola é a principal atividade a fazer –, o mercado, os barcos e a chapa que é o lugar do rio onde ficam a nadar. As meninas desenham a Junta de Freguesia – mas como referência sinalizam o Pólo de Leitura localizado dentro do edifício –, o museu, a escola, o parque, a marina com as novidades que por lá chegam, o banheiro como um lugar interessante para estar por conta dos espelhos, a encosta, a floresta, o parque, tanques de lavar, a Praia do Ratinho. Esses lugares, em escalas geográficas, representam uma mobilidade mais sedentária para os meninos: pelas suas escolhas os lugares são bastante próximos uns dos outros e com certa “rotina” do que fazer. Já as meninas projetam uma escala de mobilidade mais abrangente de circulação: rompem, inclusive, as fronteiras da comunidade e posicionam-se nômades na exploração dos seus lugares.

Ana Maria senta-se de costas para o Mercado. Percebo que olha para frente e logo em seguida desenha. Faz esse movimento muitas vezes. Entre levantar de cabeça para olhar e, a seguir, desenhar, vai nascendo no papel uma casa. Sentei ao lado e perguntei que sítio desenhava:

_Tô a desenhar aquela casa lá na encosta, tá a ver?

_Qual delas? Pesquisadora

_Aquela que tem um portão cinzento, é a casa do homem mau. Responde a menina.

_Casa do homem mau? Quem é ele? Pesquisadora

_Não se sabe, mas a casa é mesmo grande e tem um portão que não abre. Ele deve entrar pra dentro da casa pelo telhado.

_Como sabes que não abre o portão? Pesquisadora

_Já fui muitas vezes lá em cima com o Felipe e nunca tá aberto. Ele deve ser mesmo muito mau, a andar sempre com aquilo fechado. Já foste lá? na rua da encosta? Pergunta a menina.

_Não, ainda não fui até lá. Pesquisadora

_ Tens de ir! É muito fixe! Lá é um dos nossos esconderijos. Tem um cachorro que fica a espiar, só com a cara no portão e quando late saímos a correr (risos). Lá de cima vemos toda gente a passar aqui por baixo, e pela frente da casa do homem mau, estamos sempre a correr de medo. É mesmo fixe! As senhoras não ficam a fazer barulho, tratam-nos bem!

_Parece ser mesmo um lugar muito fixe. Mas, porque disseste que lá tratam vocês bem? Aqui em baixo, não?

_Aqui as velhotas tão sempre a fazer barulho! Não se pode fazer nada que nos xingam.

(Notas de campo, 05-08-2017).

Desenho 3 - Casa do homem mau

Lousa com desenho

Descrição gerada automaticamente com confiança média

Fonte: Acervo da pesquisadora

Nas linhas projetadas sobre o papel, a menina externaliza suas experiências intersubjetivas desalojando o encantamento apriorístico da pesquisadora acerca dos seus lugares e relações, bem como da romantização da composição espacial agora exposta no terreno, reveladora da subordinação de um dever ser nas relações intergeracionais de ocupação do espaço em que o estar-junto não cabe na organização e arquitetura gentrificada (LIMA, 2017), provocando “barulho” com as idosas da comunidade.

O choque intergeracional diante dos usos divergentes dos espaços da comunidade oferece elementos importantes para pensar que a invisibilidade espacial das crianças também está atravessada pela busca de lugares “fixes” em que “as senhoras não ficam a fazer barulho, tratam-nos bem!” As linhas estendidas ampliam os lugares de circulação das crianças que saem das escalas visíveis na comunidade e transgridem as coordenadas permitidas para buscar “vazios” – outras coisas menos previsíveis que possam acontecer sem um roteiro determinado por GPS que institui apenas territórios oficializados. Não será à toa que a encosta da comunidade é considerada um esconderijo fixe, porque neste percurso o encontro com o que consideram inusitado desperta sensações que no espaço central da comunidade não são experimentadas. As rotas reprogramadas pelas crianças povoam universos imaginários que, diante da “Casa do homem mau”, abrem-se para o estranhamento e o desafio de se experimentarem, apesar de toda apreensão diante do desconhecido.

Entre as elaborações gráficas das crianças, chama a atenção a conversa entre Amélia e Andréia. Amélia desenha o restaurante “Armazém do Peixe”, recém-inaugurado e muito frequentado. Quando Andreia percebe o desenho da Amélia, questiona:

_ Amélia, já foste ao “Armazém do Peixe”?

_Não.

_Não, mas tás a desenhar este lugar.

_Porquê, não posso?

_Não, não podes! Não tens dinheiro para pagar nem uma água, quanto mais um prato!

_Não fui, mas gostava de ir.

_Olha Amélia, não percebes que é muito caro? Não vês toda gente a chegar em carros caros? Tu só andas assim com estas sapatilhas rotas, nunca tens dinheiro...

_Tenho sim, meu avô dá!

_Dá, dá sim! Dá lá uns cêntimos! Andas sempre morta de fome a pedir comida pra quem tá à tua beira e tua mãe nem quer saber!

Amélia, completamente constrangida, se cala e abandona a feitura do seu desenho. Ana Maria que acompanha a conversa fala: _Cala-te Andreia, não tens nada que ver com a vida da Amélia e ainda por cima ficas a defender esta gente que vem ao “Armazém do Peixe” e metem os carros no relvado!

Dito isto, a conversa se encerra e Ana Maria vai até a Amélia e convida-a para dar uma volta (Notas de campo, 11-08-2017).

Desenho 4 - Armazém do Peixe

Tela de computador com texto preto sobre fundo branco

Descrição gerada automaticamente

Fonte: Acervo da pesquisadora

O espaço segregado pela condição de classe social atravessa as relações intrageracionais. A desigualdade social levada a público constrange Amélia que, sem argumentos diante da exposição da sua vulnerabilidade econômica, silencia. Silêncio que perturba a pesquisadora diante da relação de pobreza exibida. O que é ser pobre na Afurada quando esse dado parecia despercebido frente à aparente homogeneidade do contexto? “Dá, dá sim. Dá lá uns cêntimos!” Por outro lado, chama a atenção a relação de poder impressa na fala da Andreia quando exerce a sua agência sobre Amélia, sem lhe dar margem para que possa ter o direito de expressar o seu desejo de experimentar o restaurante. A sua fala ostenta ainda uma desigualdade afetiva, quando expressa a sua impressão sobre a relação de Amélia com sua mãe, incitando pensar uma suposta fragilidade e negligência familiar, e induzindo para uma exclusão social pública.

Rotas redesenhadas: pesquisa que segue pelas mãos das/com as crianças

Os desenhos deixados pelas crianças na composição do mapa dos seus lugares foram (re)desenhando esta pesquisa. A escuta atenta sobre o que diziam desses lugares e as relações estabelecidas reescrevem as linhas desta etnografia, complexificando a observação do campo, do “estar lá com” em constante movimento. Na flexibilização das fronteiras da comunidade, apresentam outros modos criativos de se experimentarem que acontece no caminhar, “às voltas”, a construir os seus lugares, dando sentido às práticas cotidianas que (con)vivem com a topologia, num espaço em relação entre sujeitos e materialidades (LIMA, 2017). No deambular das marcas gráficas, inscrevem-se caminhantes que intencionam alcançar lugares para se experimentarem individual e coletivamente (FORTUNA, 2018), com maior liberdade, sem estarem condicionados à normatividade imposta pela gramática do espaço “anestesiado” /requalificado/gentrificado que parece se apartar da relação do lugar, no sentido antropológico de Augé (1994).

A mobilidade das crianças por lugares outros, caminhando pelas linhas de fuga, afetam sobremaneira os modos de olhar a sua relação com o espaço, que vai se mostrando mutável, em movimento (LEFÈBVRE, 2006), diante da necessidade de moverem-se para encontrarem lugares seus, e frente ao seu apagamento nos traçados dos planejadores dos espaços públicos urbanos. Sendo assim, os espaços deixam de ser apenas recetáculos de produção hegemônicos de corpos para tornarem-se lugares inacabados, heterotópicos (FOUCAULT, 2013), estando as crianças, nesta relação, completamente implicadas na sua permanente construção (LOPES, 2002).

O mapa, agora ampliado pelas crianças, vai revelando uma comunidade “invisível”, em que elas experimentam muitos tipos de lugares simultaneamente, e de modos muito particulares, dependendo de quem e do que está junto na experiência – as relações intersubjetivas não estão dissociadas das questões socioculturais, materialidades e relações de poder. Essa multilocalidade (RODMAN, 1992), experimentada a partir da mobilidade das crianças e da polissemia perante a relação que cada uma delas estabelece com cada lugar, atribui diferentes sentidos que se compõem de maneira contingente. A multilocalidade contribui então para atualizar o olhar diante dos lugares das crianças mapeados inicialmente pela pesquisadora, que as aprisiona e encerra no mesmo lugar, no que Appadurai (1988, apud SILVANO, 1998) vai chamar de ethnoscape.

“Onde estão as crianças?”, pergunta central mobilizadora do desenho como uma outra escuta diante daquilo que não conseguia ouvir nem ver, ancora uma rede complexa de atravessamentos que interseccionam as vidas das crianças desde os lugares que ocupam e falam (RODMAN, 1992). Multivocalidades expressas pelos desenhos reverberam, em suas camadas, vozes atravessadas por dimensões estruturais enredadas em jogos de poder. As relações intersubjetivas expressas carregam em si dimensões em que a diferença acaba por produzir desigualdades múltiplas e em que os percursos de ocupação e apropriação das crianças nos espaços da comunidade estão perpassados por esta construção identitária interseccionada. Logo, as novas rotas (re)desenhadas no mapa pelas crianças localizam também os marcadores sociais que as compõem: geração, gênero, classe social, território, comunidade... que são socialmente definidos e estruturantes das suas identidades. Nesta direção, saber onde as crianças estão implica documentar os seus lugares a partir dos seus atravessamentos e das suas agências na relação ontológica que estabelecem nos seus percursos.

Não basta apenas produzir, analisar e relatar os resultados de pesquisa; torna-se necessário refletir criticamente sobre os próprios processos pelos quais geramos dados e realizamos nossas análises tendo em conta os contextos em que as vozes são produzidas (SPYROU, 2018). Neste sentido, as novas rotas traçadas pelas crianças nos ajudam a pensar na interseccionalidade8 como ferramenta analítica sensível e ética para compreendermos as crianças e suas relações com o poder, não pela somatória dos atravessamentos, mas pela inseparabilidade estrutural dos seus marcadores sociais (AKOTIRENE, 2019). Trata-se de compreender a complexidade das estruturas que tangenciam as suas ocupações e apropriações dos espaços públicos abertos na comunidade da Afurada, desacomodando generalizações, recusando a homogeneização, reafirmando a alteridade como a lupa necessária para olhar as infâncias e as crianças de modo não binário e representacional (SPYROU, 2018).

Na projeção cartográfica agora (re)desenhada pelas crianças, outras legendas até então suprimidas juntam-se ao mapa e instituem outras estéticas espaciais: frente da Junta de Freguesia, Pólo de Leitura, rio, chapa, museu, encosta, esconderijos, parque, marina, banheiro da marina, tanques, floresta, Praia do Ratinho, casa do “homem mau”... Novas escalas e a possibilidade de povoar a multiplicidade imprimindo um intenso exercício de ver, ouvir e sentir como elas ocupam e se apropriam dos lugares da sua comunidade.

No declínio do que já julgava saber diante da escuta pelos desenhos e suas narrativas, as crianças passam a levar-me pela mão para dar “voltas” e mostrarem seus esconderijos, contarem alguns dos seus segredos, estabelecendo um canal de confiabilidade e ensinando que seus lugares podem ser pensados por linhas menos colonizadoras. Assim, a pesquisa toma outras rotas e reafirma que para “andar com os pés nas terras das crianças” (JÒDAR; GÓMEZ, 2002, p. 38) é preciso estar com elas.

Referências

AUGÉ, Marc. Não-lugares: Introdução a uma antropologia da sobremodernidade. Venda Nova: Bertrand, 1994.

AKOTIRENE, Carla. Interseccionalidade. São Paulo: Pólen, 2019.

CHRISTENSEN, Pia; PROUT, Alan. Working with ethical symmetry in social research with children. Childhood, London, v. 9. n. 4, p. 477-497, 2002.

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Recebido em: 05/07/2021

Aceito em: 16/11/2022


1 Expressão usada pelos moradores para designar brigas.

2 Neste texto, não será possível explicitar pormenorizadamente a aproximação com as crianças, mas, importa dizer que a entrada em campo da pesquisadora se deu no “Lavadouro Público” junto das mulheres da comunidade. Esse encontro inicial conduziu a outras mulheres e, aos poucos, até as crianças.

3 O assentimento das crianças foi-se dando à medida que as encontrava no percurso da pesquisa. Diante dos assentimentos, as famílias eram procuradas para consentir a sua participação.

4 Todos os momentos do desenho aconteceram, por escolha das crianças, em frente ao Mercado.

5 Os nomes das crianças são fictícios.

6 O mapa feito pelas crianças compõe-se de vários lugares. Neste texto, apresentamos alguns que contribuíram sensivelmente para alterar rotas nesta pesquisa.

7 Vendedora de peixes na rua.

8 Conceito cunhado por Kimberlé Crenshaw, a partir do movimento negro feminista (1989).

DESENHOS ENTRE MUNDOS:

elementos para pesquisar e tentar compreender as crianças

a partir de seus pontos de vista

DRAWING BETWEEN WORLDS:

elements for researching and trying to understand children

and their points of view

____________________________________

Marcia Gobbi1*

Resumo

Que perspectiva adotar em nossas pesquisas para se conhecer ou acessar os pontos de vista das crianças desde bebês? Pergunta pouco original, mas fundamental quando se quer enfrentar e produzir investigações acadêmicas com e sobre crianças. Neste artigo, confere-se principal atenção ao desenho como recurso metodológico que provoca aproximações entre pesquisadoras(es) e as crianças. Infere-se que o desenho possibilita maior acercamento dos pontos de vista de meninas e meninos, desde tenra idade, a depender do uso e relações estabelecidas entre todos os envolvidos no ato de desenhar e as muitas observações e práticas possíveis. Conhecer e aproximar-se dos pontos de vista das crianças implica profundas reflexões ao longo das pesquisas, exige tornar-se menos rígido e problematizar frequentemente concepções, por vezes, cristalizadas, em especial sobre infância e crianças e os desenhos por elas produzidos. Neste artigo, de modo sucinto, são apresentados autores que consideram os desenhos de crianças de diversas origens como fontes documentais; aponto a possibilidade de desenhos produzidos pelas(os) pesquisadoras(es) com as crianças e finalizo com considerações sobre o uso de desenhos em pesquisas realizadas e em andamento, e suas lacunas, agruras e algumas descobertas.

Palavras-chave: Crianças. Desenhos. Pesquisa. Ponto de vista.

Abstract

What perspective to adopt in our research to know or access the views of children from infancy? An unoriginal question, but fundamental when one wants to face and produce academic research with and about children. In this article, the main attention is given to drawing as a methodological resource that brings researchers and children closer together. It is inferred that from it derives a greater approach to the points of view of girls and boys, from an early age, depending on the use and relations established among all those involved in the act of drawing and the many possible observations and practices. Knowing and approaching children’s points of view implies deep reflections throughout the research, requires becoming less rigid and often problematizing conceptions, sometimes crystallized, especially about childhood and children and the drawings produced by them. In this article, in a brief way, authors who consider the drawings of children from several origins as documentary sources are presented; I point out the possibility of drawings produced by the researchers with the children and I finish with considerations about the use of drawings in researches carried out and in progress and its gaps, difficulties and some discoveries.

Keywords: Children. Drawings. Research. Point of view.

Uma imagem contendo ao ar livre, grama, em pé, pequeno

Descrição gerada automaticamente Fotografia: Beatriz Bitu Boss. Praça pública em São Bernardo do Campo. 

Quando encontramos os desenhos, nos encontramos.

Uma imagem contendo edifício, velho, rua, tábua

Descrição gerada automaticamente

Fotografia: Beatriz Bitu Boss. Praça pública em São Bernardo do Campo. 

Quando encontramos os desenhos, nos encontramos.

Uma imagem contendo texto, lousa, edifício, homem

Descrição gerada automaticamente

Fotografia: Beatriz Bitu Boss. Praça pública em São Bernardo do Campo. 

Quando encontramos os desenhos, nos encontramos.

Crianças, desenhos e pesquisa

Desenho como uma das técnicas de pesquisa para acessar o ponto de vista das crianças. Essa é a desafiadora proposta deste dossiê que nos remete de imediato a duas questões: que ponto de vista adotar quando queremos conhecer e compreender distintas realidades tal como percebidas, imaginadas e construídas com e pelas crianças? Seria o desenho uma ferramenta viável para conhecer seus diferentes pontos de vista e, a partir disso, aprender com elas e eles a/e pesquisar sobre variadas temáticas e questões que envolvem suas vidas em sociedade?

Trata-se de perguntas pouco originais, mas imprescindíveis. Por isso, tomei-as como motivo das reflexões do presente artigo. Conjuguei-as aos estudos sobre desenhos elaborados por crianças e adultas em diferentes contextos investigativos. Nessa diversidade de contextos, os desenhos passam a ter conotações diferentes e a existir como efeito do ponto de vista adotado também pelos sujeitos diversos. Diante desse desafio, e sendo conduzida por inquietações ao longo de décadas sobre a criação de desenhos pelas crianças, busco articular questões concernentes aos desenhos feitos por elas às pesquisas que os investigam para além de compreensões etapistas e essencialistas da infância. Discordo, então, dessa concepção que tende a universalizá-la e não considerar que seus pontos de vistas e perspectivas são elaborados a partir e dentro de relações de classe social, de gênero, étnicas, etárias e de raça que informam e são informados pelas crianças.

Entre outras compreensões, o desenho, neste artigo, é considerado mediador entre mundos e tempos, com isso, evoco sua condição de responsável por modificar questões, outras imagens e coisas, quando em relação a elas. Como bem sabemos, artigos e demais trabalhos acadêmicos resultam de recortes necessários para sua realização e finalização. Assim sendo, não pretendo apresentar um estado da arte sobre os estudos concernentes aos desenhos das crianças devido à vasta literatura produzida sobre o tema, especialmente nos campos teóricos da psicologia e da psicanálise. Ciente disto, resolvi enfrentar o problema posto na escrita deste artigo abordando ideias e propostas relacionadas a uma parte importante dos estudos sobre o desenho, colocando em relevo os campos de estudos urbanos, historiográficos, das artes e estudos sociais da infância.

Comecemos pela denominação desenho infantil. Embora bastante consolidada para qualificar os desenhos criados por crianças, essa denominação demanda algumas ponderações. O que está implicado à produção de pensamentos e práticas relacionadas ao desenho quando “infantil”? As atribuições usadas em muitas sociedades para identificar as crianças, especialmente de pouquíssima idade, tais como “imaturos”, “pueris”, “ingênuos”, “incompletos” estão atreladas à compreensão que temos de seus desenhos? Se “criança é tudo igual”, utilizando-me da provocação de Correia e Saraiva (2018), todas elas desenham e seus desenhos também seriam “todos iguais”? O lugar ocupado pelos desenhos e a maneira como os compreendemos reflete o que é preenchido pelas crianças e suas infâncias em nossas vidas? Trata-se de questões fundamentais quando pretendemos considerar desenhos e desenhos feitos por meninas e meninos como recurso metodológico de pesquisa com e sobre crianças, já que essa expressão bastante usual carrega muito do que se pensa e se diz sobre desenhos e sobre a infância de desenhistas ou não, e poderão forjar relações estabelecidas entre pesquisadoras, crianças e suas criações, em diferentes contextos.

Desenvolvo reflexões sobre as questões acima postas a partir da afirmação de Fulvia Rosemberg (1976) sobre a perspectiva adultocêntrica a qual somada a estudos mais recentes da sociologia da infância e antropologia da criança contribuiu enormemente com as pesquisas e demais práticas sociais envolvendo a infância. Essa afirmação provocou grande inflexão nos estudos da infância ao questionar a predominância da centralidade adulta nas relações com as crianças, desde bebês. Por ora, isso significa que uma das grandes contribuições é compreender as crianças como agentes e produtoras de culturas capazes de forjar outros modos de entender suas relações. É a partir dessa premissa que sustentamos a nossa análise acerca dos processos de criação infantil, ao tomar como produções e representações do mundo os seus desenhos. Assim, ensejo esforços para compreendê-las, e seus desenhos, pelo que são e não pelo que os adultos julgavam que deveriam ser, dessacralizando e desestabilizando concepções ainda arraigadas.

É possível afirmar que essa virada no entendimento do que são as crianças e no lugar até então ocupado por elas compromete e implica possiblidades e métodos de pesquisa não mais somente sobre elas, mas também com elas, desde bebês. Esses pensamentos em muito contribuíram para problematizar e modificar a forma como os desenhos feitos por crianças eram pensados e analisados ao lhes conferir outro status junto às pesquisas. Os desenhos passaram então a colaborar para o entendimento do que as crianças fazem, dizem, pensam e desenham e não só sobre o que pensamos e dizemos sobre elas. Embora não seja geral e obrigatório, o desenho é uma das linguagens e manifestações expressivas bastante frequentes entre crianças, o que pode proporcionar maior aproximação entre elas e pesquisadoras(es) adultas(os). Assim, torna-se possível compreender teoricamente como as crianças entendem o mundo, ou seus diferentes mundos vividos, produzidos e imaginados e as imagens produzidas, sejam visuais – como os desenhos – ou verbais – quando narramos desenhos que estão mentalmente em nós. Encontram-se em outro patamar, qual seja, o de formar e desenformar o outro dentro de nós, de quem o olha e se relaciona com eles.

O ponto de vista depende sempre da posição ocupada, e jamais é neutro, sendo construído em diferentes movimentos (VIVEIROS DE CASTRO, 2002). Partindo disso, retomo a pergunta feita inicialmente: como proceder para conhecer o ponto de vista das crianças tendo em vista que sua multiplicidade concreta desafia uma concepção universalista da infância? Ademais, os desenhos nos permitem esse entendimento e o acesso a esses pontos de vista?

Considerando a inexistência da neutralidade nas relações, proponho construir uma análise na qual o ponto de vista contemple mudanças de lugar e compreensão do outro e suas produções – justamente por se situar em uma relação. Além disso, entendo que é necessário reconsiderar a todo instante que assumimos uma posição de adulto ou de adulta, com tudo o que isso comporta, em relação à criança, o que remete a questionar se, por exemplo, elas compartilham conosco os mesmos entendimentos e ideias sobre desenhos. Esse fato permeia e constrói o ponto de vista adotado no ato da pesquisa, daí a urgência de problematizar os lugares ocupados e perspectivas adotadas no processo de construção de formas de olhar, se relacionar e compreender, neste caso, desenhos e crianças.

Ao pensarmos apenas sobre a elaboração dos desenhos por elas, vale notar que a posição do corpo adulto em relação à criança que desenha, as palavras ditas, anotações, disposição de materiais, a forma como são guardados ou expostos, denotam concepções e perspectivas praticadas. O objeto desenho, por vezes, é compreendido de maneira estática, quando pode ser compreendido como produto e produtor de relações sociais estabelecidas entre crianças e adultos e entre as crianças, desenhistas ou não. Eles carregam componentes históricos e sociais como artefatos culturais que também são, mas também, emoções e criações fortuitas. A imaginação é parte condutora dessas relações entre todos, e evoca amizades, inimizades, atos mais ou menos cúmplices ao longo do processo de feitura do desenho, numa complexa trama.

É grande a complexidade existente no ato de desenhar e no desenho propriamente dito, seja visual ou verbal, que remete a diversas compreensões, algumas das quais pretendo tocar aqui.

O campo de estudos que aborda os desenhos como fontes documentais abarca estudiosos de vários países e pesquisas sobre desenhos das mais variadas temáticas. Entre esses estudiosos, Juri Meda (2006, 2014) tem especial importância por conta de seus esforços e delimitação teórica. Outros autores trataram de desenhos relacionados a temáticas específicas, tais como a Guerra Civil Espanhola (CRUZ, 2012); períodos revolucionários em Cuba (NARDI, 1983), infância indígena zapatista (FRENTE ZAPATISTA DE LIBERTAÇÃO NACIONAL, 1998) e desenhos de crianças em Terezin (MEDA, 2014; BOSI, 1999) e coleções de desenhos em acervos (GOBBI, 2004).

Esses estudos, ao reconhecerem os desenhos como fontes documentais, orientam a produção de pensamentos sobre uma forma de acessar pontos de vistas de crianças em diferentes períodos históricos. Eles orientam a produção de pensamentos sobre uma forma de acessar pontos de vistas de crianças em diferentes períodos históricos ou, ainda melhor, o que lhes importava neles. Aqui o campo de pesquisa são os arquivos onde são guardados os desenhos, coleções particulares, catálogos.

Dentro dos limites deste artigo não será possível abordar como gostaria os desenhos produzidos por adultas e adultos, durante ou após a realização de trabalhos de campo. Mais recentemente, esses se aliam a abordagens que podem ser entendidas como recursos metodológicos de pesquisa na antropologia e em pesquisas na educação (OLIVEIRA, 2022). Outros estudos contribuem enormemente ao abordar a prática de uso dos desenhos como modo de apreensão do cotidiano e muito inspiram diferentes pesquisadores (SALAVISA, 2008; SALAVISA; ROSENGAARTEN, 2011).

O movimento chamado urban sketchers, que abarca pessoas de muitos países em diferentes continentes, não está presente neste artigo de modo explícito, mas nas inspirações deixadas por suas propostas de práticas do desenho na e da vida cotidiana produzidos em diferentes contextos por diversos grupos. Ele permite pensar sobre desenhos em pesquisas feitas por adultos, ensejando a construção de outras possibilidades de compreensão dos desenhos e seus usos, afirmando a importância do tempo lento para observação e imersão como modo de favorecer a aproximação e conhecimento de diferentes pontos de vista (KUSCHNIR, 2016; AZEVEDO, 2016), podendo envolver adultas(os) e crianças, algo ainda pouco pensado e proposto.

Criação de mundos possíveis: Desenhos e crianças

Ao longo de muito tempo acreditou-se que desenhos criados por crianças desde bebês resultavam de uma capacidade inata e essencialista. Atualmente, estudos sobre desenho e crianças ancorados em campos teóricos da educação e artes (STACCIOLI, 2021; DALLARI, 1998) permitem-nos afirmar que eles derivam de complexas elaborações, em que expressões de emoções, histórias vividas e imaginadas ocorrem dentro de determinadas condições sociais e culturais.

Sobre o contexto, vale ainda afirmar que se desenha a partir de, e com, materiais, técnicas, possibilidades corpóreas de movimentação e relações estabelecidas com o espaço e com pessoas de todas as idades. Dessa forma, a presença da escola, desde a creche, tem um efeito considerável sobre a prática do desenho e a compreensão – sobretudo pelas adultas – do que as crianças criam. Em sociedades letradas, há uma brutal diminuição da capacidade e desejo de desenhar na medida em que nos tornamos jovens e adultos(as). Trata-se de momento em que se identifica a predominância de processos escolares que colocam em relevo algumas linguagens, em especial a escrita, em detrimento de outras (DWORECK, 1998; FARNÉ, 2021). Soma-se a isso a concepção, que por muito tempo manteve-se em vigor, segundo a qual os desenhos infantis consistiam em fase inicial do desenvolvimento cognitivo das crianças. Esse caráter etapista condicionava expectativas, sobretudo adultas, a determinadas faixas etárias desconsiderando condições sociais e culturais em que elas se encontravam ao elaborarem, ou não, seus desenhos.

O ato de desenhar, por vezes, encontra-se relegado a alguns poucos momentos no dia a dia escolar. No cotidiano de vida extraescolar, em geral, desenhar é visto como mera ocupação do tempo e não como direito à expressão plástica e formas de observar e registrar as coisas do mundo. Isso tudo quando o desenho não é encarado pejorativamente como “coisa de criança”.

Esse não é o mote das reflexões contidas neste artigo, muito embora seja um pano de fundo bastante relevante. Pensar e defender o desenho como recurso de pesquisa para se conhecer pontos de vista das crianças implica questionar e ponderar sobre concepções de infância e de desenho que possuímos e como nos relacionamos com ambos. Junto à defesa dos desenhos como recursos dentro de abordagens metodológicas de pesquisa, é importante problematizar sua redução a meros objetivos formativos e avaliativos caracterizados pela memorização, cópia e padronização de formas de se relacionar com um mundo em que criar, refletir, observar tornam-se ações desimportantes.

No Brasil, no início do século XX, artistas modernistas fizeram uso dos desenhos como registros de viagens, seja das paisagens ou dos objetos vistos ao longo de suas incursões investigativas – tal como nas Missões de Pesquisas Folclóricas21 – por outros estados e cidades. As imagens desenhadas registravam os percursos feitos e serviam como fontes de diálogo e reflexão sobre o que havia sido visto. Ou seja, esses desenhos circulavam e não deveriam ser guardados, mas vistos e trocados entre todos. Que bom! Pois as informações podem ensejar o desejo de saber mais e, quem sabe, construir conhecimentos pelo, e com, o desenho.

Sublinha-se a importância dos modernistas, particularmente Mário de Andrade, por inaugurarem uma prática, no Brasil, que envolvia a circulação de desenhos e de ideias neles contidas. Com Mário de Andrade, apresenta-se uma questão importante, qual seja, a possibilidade de tratar documentalmente o desenho. Mário de Andrade, desde 1926 até 1945, ano de sua morte, desenhava e colecionava desenhos de crianças (além de desenhar com elas), principiando assim desenhos como formas para estar e conhecer as crianças.

Nesse sentido, a atitude andradiana de tratar crianças como sujeitos pode ser vista como um prenúncio da crítica às abordagens etapistas ou pedagógicas, assunto já tratado em Gobbi (2004). Essa curiosidade causada pelos desenhos e a opção de tê-los como uma linguagem importante quanto à sua capacidade de comunicação é algo que vale sublinhar por seu ineditismo. Os desenhos da coleção de desenhos infantis Mário de Andrade são verdadeiras fontes documentais sobre as primeiras décadas do século XX em São Paulo, não apenas pelos assuntos apresentados, mas também por conta do uso da folha/suporte, dos traços e cores que informam sobre um tempo de desenhar e um determinado período. A análise do conjunto dos desenhos permite-nos perceber, de modo concomitante, as transformações históricas dessa expressão plástica criada por crianças e as transformações da história segundo concepções infantis.

Ao seguir, ainda que brevemente, o percurso sobre desenhos e aprendizados de produzir e olhar como constructo para considerarmos as crianças na compreensão de sociedades (e, quem sabe, dos possíveis mundos que elas mostram e ocultam,) identifica-se, nas primeiras décadas do século 20, na presença dos desenhos e da livre expressão. Os desenhos e a livre expressão estavam relacionados aos princípios educacionais e culturais nas Escuelas al Aire Libre, no México. Nessa experiência mexicana, como identificou Ana Mae Barbosa (2015), havia o interesse de despertar nas crianças e jovens a capacidade de apreciação da arte mexicana e, com isso, aguçar o orgulho pelo país e contestar anos de educação para a subalternidade. Dessa forma, as práticas de desenho e pintura ganhavam originalidade que nos faz pensar que eles serviam a uma educação transgressora do ponto de vista político. Trata-se, então, do uso do desenho como modo de compreender a realidade em que os estudantes e a população estavam inseridos. Nesse caso, os desenhos se ofereciam como ferramenta oportuna para reconhecer-se e conhecer, entre outras coisas, questões relativas às diferenças racial e de classe social; isso posto não apenas no desenho elaborado, mas também para que o próprio elaborador se percebesse imerso nessas questões.

Tais proposituras e experiência invertem formas já cristalizadas de olhar e compreender a infância, na medida em que incluíam crianças de diferentes lugares e como agentes ativos de suas representações em uma diversidade de condições, tais como sua presença em processos escolares, colaborativos em coletivos urbanos e em luta por moradia e terra (GOBBI; PITO, 2020).

O historiador italiano Juri Meda afirmou que os desenhos infantis são as fontes menos consultadas entre os historiadores, sobretudo por sua carga icônica e de significados tão múltiplos. Há, inegavelmente, uma dificuldade técnica sobre imagens produzidas por crianças, justamente por conta de concepções que, muitas vezes, desvalorizam as criações. Juri Meda considera, contudo, que os desenhos feitos por crianças se encontram atualmente em processo de reconhecimento como fontes importantes para se entender processos históricos ou pelo menos ter deles novas perspectivas. Essa consideração é fundamental, pois inverte lógicas em que preponderaram a perspectiva adulta como único ponto de vista válido para se conhecer aspectos e entendimentos sobre a história, embora distantes temporalmente, sem o vivido de modo concreto por quem, hoje, olha de longe.

Narrativas históricas podem ser encontradas e consultadas nos desenhos, possibilitando modos de compreender as crianças em distintos períodos e contextos, e não só entender como elas percebiam e registravam acontecimentos históricos. José Antonio Gallardo Cruz (2012) afirmou que os primeiros desenhos publicados e entendidos com esse fim foram feitos por crianças durante a Guerra Anglo-Boer, na África do Sul (1899-1902), os quais, na acepção de Françoise Brauner, podem ser vistos como objetos-testemunho (CRUZ, 2012). Brauner, ao considerar a dimensão histórica dos desenhos, afirmou que eles se convertiam em fontes capazes de contar uma história visual da infância vítima de guerra.

Cruz (2012) fez um riquíssimo trabalho ao investigar e publicar mais de uma centena de desenhos de crianças no período de evacuação da Guerra Civil Espanhola. Por isso, ele salienta a importância de considerá-los como testemunhos de um período desde o ponto de vista das crianças, tratando os desenhos, portanto, como fontes documentais. Cruz classifica a coleção desses desenhos em convencionais e bélicos infantis, aqueles que expõem narrativas de guerra com tanques, trens, aviões, bandeiras e escritos. Encontramos, por exemplo, num deles os dizeres “niños avacuados que en el caminho tienem un ataque de la canalla fascista” (CRUZ, 2012, p.27). A observação das reproduções desses desenhos permite perceber que muitos conjugam a linguagem escrita com o desenho, como legendas ou mensagens, em consonância com o tom político presente na maioria delas. Nesse sentido, muito embora não conste a informação no livro de Cruz, o tipo de letra presente nos desenhos me permite inferir que parte dos desenhos tenham sido feitos por crianças já alfabetizadas.

Rafaela Chacón Nardi (1983), por sua vez, segue a linha do testemunho gráfico ao apresentar desenhos de crianças cubanas no período de 1970-1975. A autora apresenta o que denomina de “Cuba revolucionária” e conjuga os mais de uma centena de desenhos com algumas fotos registrando os processos de elaboração das crianças. Várias denominações dadas aos desenhos indicam o “momento en que va a nacer”, destacando-se a noção e a ciência da novidade presente nos desenhos das crianças. Logo na introdução, a autora afirma que uma coleção de desenhos infantis pode ser considerada como testemunho das relações estabelecidas pelas crianças com o mundo e com acontecimentos ao seu redor. O desenho, então, seria um índice do que se sucede às crianças e ao mundo. Eclea Bosi (1999) remete-se aos desenhos das crianças do campo de Terezin como referência para tratá-los como fontes documentais que evidenciam fome, misérias e sonhos. O conjunto de desenhos analisados por Eclea Bosi constitui-se de uma pequeníssima parte dos desenhos feitos pelas crianças em Terezin e produzidos em aulas junto à professora Frederieke Brandeis, sobre a tragédia nazista que estava em curso. Imagens de vida em campo de concentração, que, assim como as demais, permite-nos pensar, a partir das imagens feitas pelas crianças durante o nazismo, que, de alguma forma, a vida insiste e resiste mesmo em meio à barbárie.

O que conhecemos do zapatismo pelas crianças ou das comunidades de resistência de Chiapas? Alguns de seus desenhos foram compilados e compõem o livro Las voces del espejo: cuentos, poemas y dibujos del zapatismo para construir el futuro, (FRENTE ZAPATISTA DE LIBERTAÇÃO NACIONAL, 1998). Assim como no livro sobre Cuba, encontramos desenhos que convocam um futuro e, ao fazerem isso, provocam a pensar sobre um presente de agruras. Os editores, que não assinam seus nomes, fazem na apresentação do livro uma reflexão sobre o processo de sua criação. Eles defendem que, ao conjugarem oralidade ao desenho, seria possível sofisticar a escuta e aprender sobre resistir, sobre guerra, escola, saúde e fome. Afirmam também que o testemunho gráfico se converteu em testemunho de vida guardado em memória gráfica, ao mesmo tempo em que é projeção de futuro. A mesma perspectiva temporal está presente também no livro “Cabo Verde visto pelas crianças”, uma produção do governo cabo-verdiano que ressalta desenhos do processo revolucionário vivido no país. Não podemos deixar de notar a importância dada à infância e as impressões das crianças sobre esses distintos períodos e movimentos políticos e sociais.

Juri Meda (2006), a partir de produção de desenhos para concurso, ocorrido em 1938 em Morinaga (Japão), entre crianças japonesas, italianas e alemãs, ressalta a sua defesa dos desenhos infantis como documentos históricos. Dessa forma, ele organizou os desenhos submetidos ao referido concurso em exposição que aconteceu na cidade de Mantova (Itália), em 2006, cujo catálogo, chamado “I colori del buio” (As cores do escuro), traz cenas dos diferentes contextos vividos e produzidos pelas crianças nos anos 1930 no Japão, Itália e Alemanha. Meda defende a importância de fazer com que os desenhos circulem entre grupos, o que pode reconduzir a atenção para a capacidade expressiva das crianças como fonte para se pensar sobre guerras, revoluções, resistências, perda de familiares, em diferentes regimes políticos.

Numa perspectiva similar, temos ainda a produção italiana Lo Sguardo inocente (O olhar inocente), título da obra derivada de uma grandiosa exposição na cidade de Brescia, Itália, em 2000. Essa exibição, que contou com mais de uma centena de desenhos de crianças de diversos países, foi uma provocação para se pensar sobre a força existente nos desenhos e pinturas infantis, bem como, sobre os conteúdos dos trabalhos expostos desde a primeira década do século XX. Como afirmou Emmanuele Severino (2000), trata-se de como os desenhos reencontram o tempo perdido de modo a não esquecer as múltiplas percepções do passado, alcançáveis quando uma pluralidade de tipos documentais é conservada e valorizada. Desta forma, é possível afirmar que os desenhos olhados no presente são o passado que eles contêm e, com isso, é possível entender passado e presente nessas imagens visuais produzidas pelas crianças.

Essa breve reconstituição tentou demonstrar a trajetória da abordagem dos desenhos como fontes históricas, na medida em que são passíveis de nos informar sobre pontos de vista de crianças desde décadas atrás. Podemos, assim, entender fatos e transformações históricas a partir delas, bem como, dos próprios traçados e modos de abordar os assuntos. Com tudo isso em vista, fica-nos a curiosidade pelas metodologias possíveis para realizarmos as análises dessa manifestação infantil. As questões metodológicas são fundamentais, segundo Juri Meda (2014). Afinal, como estabelecer aproximações com os desenhos e seus assuntos quando as crianças não estão mais presentes? Meda destaca alguns pontos: considerar os contextos histórico e cultural em que foram produzidos, idade do autor ou da autora, condições de recepção e de elaboração, se resultam de solicitações adultas, em especial de professoras, ou se foram feitos de modo espontâneo.

Dessa forma, somo aos itens apresentados por Juri Meda, a análise dos suportes onde os desenhos foram elaborados, textura, cor, tamanho e demais condições materiais de produção. Além disso, é necessário observar também o gênero, raça e etnia de quem fez os desenhos, em que local e como estão guardados, e por quem ou qual instituição, pois isso proporcionará o entendimento do tema e valorização a eles conferida a partir da condição concreta das crianças.

Finalmente, temos, por ora, uma primeira resposta à pergunta motivadora da escrita deste artigo. Um dos pontos de vista a considerar é o daquele que trata dos desenhos como fontes documentais e, portanto, fundamentais não apenas à memória construída a partir da, e pelas, crianças. Trata-se, pois, de fontes a serem consultadas para se refletir, desde as crianças desenhistas e seus traçados, sobre transformações históricas e suas implicações. O desenho, mais que trazer o registro puro e simples, rememora a experiência (CABAU, 2016), pois a traz de volta acrescida de outros experimentos e propicia o encontro com os pontos de vista de quem os fez.

Desenhos como mediadores entre mundos: localizando o desenho em algumas pesquisas recentes

Os desenhos são fontes documentais e históricas também produzidos pelas crianças que nos colocam, e a elas, em diferentes tempos e temporalidades e nos informam sobre esses tempos. Mas, e quando estamos com as crianças no tempo presente pesquisando com elas, o que são os desenhos e como lidamos com eles? O que nos informam? Recentemente venho desenvolvendo pesquisas, nas quais os desenhos são usados como recurso metodológico, que envolvem crianças e mulheres em luta por moradia e moradoras de terrenos e edifícios ocupados. Isso resulta do envolvimento com essa manifestação gráfica das crianças em pesquisas em que os desenhos foram conjugados à oralidade (GOBBI, 1997). Ou então, na ausência da fala das crianças, os desenhos valeram por si mesmos de modo que a busca consistiu em investigações sobre o desenho nas tramas e contextos sociais e históricos em que foram produzidos (GOBBI, 2004). Envolvida nessas experiências, destaco brevemente dois episódios de pesquisas realizadas por mim e outro derivado de presentes-desenhos dados por uma orientanda de Iniciação Cientifica, buscadora de riscos e traços infantis e adultos pela cidade. Manifesto ciência sobre a necessidade de aprofundar as reflexões aqui contidas. Porém, o intento, dentro do possível, é que sirvam como mote para seguirmos com produções e considerações futuras sobre o tema.

Métodos e técnicas de pesquisas com, e sobre, crianças exigem que se aprenda a escutá-las e vê-las no campo onde se investiga. Desenhos são um dos recursos possíveis para valorizá-las e conhecer suas formas de ver e conhecer o mundo. Um bom começo é olhar o que já está desenhado, olhar o que está diante de nossos olhos e para o qual pouco nos atemos. O desenho é uma experiência singular de observação e, defendo aqui, de relações, já que muitos deles só farão sentido quando estamos com as crianças enquanto desenham, ou ainda, quando fizemos parte do contexto em que os desenhos foram criados. Esse fundamental exercício que pode ser auxiliado pelo ato de desenhar prepara para o que virá além do primeiro plano, olhar o entorno, apreendê-lo e registrá-lo de algum modo. Isso implica vasculhar o cotidiano, estranhá-lo, envolver-se e, por que não, questionar certa domesticação que pode implicar, entre outras coisas, não mais olhar, e apenas ver de modo aligeirado, ou fazê-lo em quadros já predeterminados.

O ato de desenhar, afirmou Berger (2011), força a olhar o que está diante de seus olhos e a vasculhar cenas ou objetos relacionando presente e passado de sua vida e do próprio objeto olhado, é um ato desafiador que exige aprendizado. Não se trata apenas de experienciar o desenhar em si e o desenho como produto apenas, mas observá-lo como ato que envolve o entorno – paisagem e pessoas – e o coloca como agente alterante do contexto e das condições em que está inserido. É preciso construir cumplicidade, não apenas com o desenho, mas com quem o faz. Quando estamos com crianças, mas não só, isso importa em demasia para o estabelecimento de diálogos e para além da fala que se espraia pelo e no corpo todo, já que as imagens estão situadas no olho que olha o suporte desenhado, mas também no corpo todo, nos braços e mãos que desenham, no nariz que o cheira, no bailado que o produz.

Não defendo a exclusividade da observação do desenho como recurso, mas sua conjugação com o que está à volta, e o processo que envolve sua feitura. Quando estamos com as crianças, isso também pode nos colocar nas cenas com elas, caso desenhemos juntos. Uma das principais questões é a relação entre pesquisadora e pesquisadas. Os traços do outro criança se emaranham aos nossos e a nós enquanto são criados. Com as crianças de muita pouca idade não só o olho é o intermediário que faz falar, pensar, mas o corpo todo, que, parado, se movimenta, está junto. O desenho passa a ser testemunho ao mesmo tempo em que é agente, pois sua presença e circulação podem alterar as relações entre as pessoas, produzindo conhecimento sobre o objeto desenho, e tudo o que comporta, e sobre as desenhistas crianças.

Praças, brechas, crianças: Cenas da produção de desenhos pelas crianças na vida cotidiana

Nós nos esbarramos em desenhos de crianças cotidianamente. Contudo, uma pergunta a mais se faz necessária: num mundo com tantas imagens e tantas em movimentos, é possível parar para ver e pensar em desenhos feitos por crianças? Eles estão nas brechas da cidade e de seus equipamentos, aparecendo pequeninos ou grandões, em paredes, ruas, portas, muitos espaços que são convertidos em lugares, ainda que momentaneamente, para aqueles que desenharam ou simplesmente passam e olham; ato esse que os faz presentes. Nas primeiras páginas deste artigo, temos fotos de alguns desenhos vistos em muros, nem tão conservados, de uma praça pública situada na cidade paulista de São Bernardo do Campo. O registro fotográfico que me chega como presente resulta de práticas de investigação de Beatriz Boss em sua pretensão de encontrar crianças no cotidiano em espaços públicos da cidade a partir de marcas deixadas por elas. São marcas indiciárias da infância no tempo presente, já que esses desenhos efêmeros, feitos a giz sobre a parede de cimento, vão embora com a chuva. A autoria dos desenhos é de crianças anônimas que pegavam toquinhos de giz que se encontravam na praça e desenhavam sem assiná-los. Foram vistos pela pesquisadora de modo furtivo em vários dias ao deambular pela mesma praça.

Do ponto de vista sociológico, trata-se de oportunidade para captar, conhecer práticas sociais e responder a elas. O ato de desenhar e olhar para o que fora desenhado – suporte e desenho – contribui para essa captação do cotidiano e as relações nele forjadas. Encontra-se aqui um desenho como perturbação de certa ordem arquitetônica e pública, que, ainda tencionando compreender as crianças e suas práticas, talvez não as tenha contemplado. As crianças aqui disputam os lugares e se apresentam neles pelos desenhos. Na praça, em São Bernardo, podemos ter uma espécie de mapa visual feito pelas e com as crianças, bem como, entender maneiras de lidar e agir sobre e no mundo. Inspirada em Tuca Vieira (2020), afirmo que não se trata de uma apreciação em sobrevoo, mas a permissão para as descobertas possíveis desde baixo e junto. Para se pensar a partir do ponto de vista do outro – neste caso, crianças e seus desenhos – visualizações, suportes e relações são fundamentais, pois produzem outras e várias imagens, com base no outro cujo ponto de vista é buscado. Seus desenhos funcionam como alavancas que permitem questionamentos sobre as relações e apresentam pontos de vista, inclusive, em relação ao espaço vivido e produzido pelas crianças, e os modificam ao produzi-los diversamente. Qual o possível de cidade oculto nos desenhos feitos pelas crianças – mas não só – em frestas e brechas, em ruas e praças?

Desenhos e a mediação entre mundos: Ocupações, desperdícios e cuidado

Em 2018, ao perguntar o que era desenhar a crianças moradoras de uma ocupação de terreno no extremo sul da cidade de São Paulo, recebi como resposta: “é gostoso e fazemos na escola, mas bem pouquinho”. A escola surge em meio à resposta chancelando a associação entre o ato de desenhar e o ensino formal. A “pouquinha” presença do desenho na instituição formal de ensino me leva a crer em seu caráter subalterno na escala de conhecimentos e práticas escolares.

O que me interessava nesse momento era entender o que é o desenho para as crianças que desenhavam, e de suas falas ele surge numa trama junto à escola. Ela imprime algumas experiências que não podem ser desconsideradas. Afinal, tenho nos desenhos um forte recurso metodológico em minhas pesquisas com, e sobre, crianças. Pergunta simples que me colocava não apenas com as meninas e meninos desenhistas, com os quais investigava questões concernentes às crianças em luta por moradia, mas que me balizava a continuar a fazer uso desse recurso ou não. A qualificação “gostoso” somada à frágil presença no cotidiano indicou-me que poderíamos continuar a desenhar e observar ao longo do processo.

Neste caso32, a expectativa deixara de girar em torno do produto. O desenho, como mencionado, mediava relações e se constituía nelas permitindo-me conhecer aspectos da luta por moradia com as crianças. Em outra ocasião, já em 2019, dando continuidade à mesma pesquisa e seus objetivos, tive a oportunidade de conversar com crianças moradoras de ocupação de edifício na região central da mesma cidade. Nesse segundo momento, não obtive uma resposta objetiva como a anterior. O desenho como mediador entre mundos – da pesquisadora e o das crianças em cada uma das ocupações pesquisadas – possibilitou conhecer aspectos do cotidiano e da luta propriamente dita, e mais, ao estabelecer e demonstrar a percepção de lugares ocupados por cada um de nós.

Nas situações aqui destacadas, ressalto que o desenho foi visto, ora como expressão de desperdício no contexto de carências na ocupação, ora fazendo ver relações de vizinhança em que mães moradoras demonstravam a produção de cuidados delas para com as crianças e entre as próprias crianças.

Num dos encontros noturnos de pesquisa, destinados à feitura de desenhos e pinturas com as crianças na ocupação situada na região central de São Paulo, a fala de uma das meninas presentes enquanto desenhava deu indícios sobre a percepção do meu lugar – destaco a relação entre pesquisa e pesquisado – e o dela ao dizer: “Você desperdiça muito! Olha o tanto de coisas que trouxe pra gente”. O desperdício esboçado pelo uso de materiais apresentados para o desenho, nada luxuosos, mas em grande quantidade, me fez compreender condições de vida e suas agruras, em que lápis, tintas e gizes de cera são entendidos como gasto sem necessidade. A ausência desses faz ver esbanjamento onde não há, e ainda mais, me fez pensar sobre a relação entre as expressões plásticas como direito, artes, desperdício, comida e desigualdades. O direito à moradia, reconhecidamente justo e urgente, remetia à ausência de outros direitos, tais como, o direito à arte, em todas as suas manifestações e para todas e todos, desde crianças. O desenho mediou essa conversa e reflexões entre os mundos que se apresentavam juntos, mas nem tanto, nessa noite de pesquisa, e deu o tom para outras percepções. Não se tratava, neste momento, de considerar os assuntos traçados sobre as folhas de papel, isso viria depois, mas ao longo do processo de desenhar as considerações feitas pelas crianças remetiam a outras percepções e compreensões do campo.

Ao conversar com dois garotos moradores da mesma ocupação da região central foi possível perceber o papel do desenho num dos grupos de crianças e adultos. A relação de vizinhança fazia-se presente. O desenho mostrava uma função sobre a qual eu não havia pensado: é produto e produz relações de cuidado entre parte da vizinhança em que uma mãe, chamada pelas crianças de desenhista, cuida de outras crianças e tem no desenho a linguagem que os une. Em sua casa, um quarto dentro de um edifício que fora hotel de luxo nos idos de 1954, reúne algumas crianças que nos apertos da vida desenham, conversam, desenham. O aprendizado das linhas que vão compondo traços diferentes, inscrevendo-se em cada uma das meninas e meninos do grupo desenhista, se dá no cotidiano ocupado na luta por moradia, conferindo-lhe outras dimensões de luta, outros significados para a luta, o que será mais bem abordado em outros textos. Os desenhos feitos pelos meninos não teriam sentido para mim nesse grau de complexidade, isso ocorreu ao estar com as crianças enquanto desenhavam, ou seja, por estar fazendo parte do contexto e condições de produção.

Desenho como método e ponto de vista

O que define o desenho como recurso metodológico válido para acessar o ponto de vista das crianças são os usos que conferimos aos desenhos e as concepções que temos sobre o que é ser criança. Esse é o ponto de vista de partida deste artigo. Parece uma observação óbvia, mas não é. Desenhar torna-se um meio de captar e registrar o que parece efêmero e contar, cada um a seu modo, as histórias dos ambientes em que nos encontramos, ou ainda, que criamos ou recriamos em linhas e traços. Os desenhos são documentos históricos, pois apresentam a soma de vivências, memórias de pessoas de diferentes idades que circulam em determinados espaços. Guardam, desse modo, a capacidade de desenquadrar a vida e elementos já cristalizados nela. O desenho perturba e nos açula, por isso ao ser utilizado como recurso metodológico em pesquisas com, e sobre, exige a percepção não idealizada de seu uso, bem como, das crianças, as desenhistas. Exigentes que são, essas manifestações expressivas demandam atenção, que permite apontar lacunas e equívocos, quando, por exemplo, deixamos de perguntar algo, de olhar determinados elementos e nos atentarmos a outros. Desse modo, quando estamos com bebês, ainda não falantes, o desenho, que parece conter apenas rabiscos incompreensíveis, exige sua conjugação com outras maneiras de compreensão, implicando considerações de condições de produção, contextos, datações, assuntos, materiais. Mas, nunca os deixar de lado à espera de figurações mais compreensíveis aos olhos adultos, o que remete à sua desqualificação.

Neste artigo, um dos pontos fundamentais não foi atingido: a maior presença de desenhos para serem olhados, com o intuito de refletir e produzir pensamentos sobre eles e sobre quem os fez. Optei por essa estratégia, ainda que desconfortavelmente, e apesar de meu gosto e da necessidade de difundir os desenhos. Entretanto, também é fundamental refletir acerca da produção do conhecimento e da escrita sobre os desenhos elaborados pelas crianças, assim, há que olhá-los, e por isso incluí três para iniciar a conversa. Eles medeiam e estão entre mundos. Fica o convite.

Referências

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Recebido em: 17/07/2021

Aceito em: 15/12/2022


1* Cientista social, mestre e doutora em educação, área de ciências sociais e educação. Professora da Faculdade de Educação da USP, pesquisadora inserida no campos dos estudos sociais da infância, atuando especialmente com crianças e mulheres, o urbano e as relações com a educação.

21 Expedição científica organizada por Mário de Andrade, em 1938, quando chefe do Departamento de Cultura do Município de São Paulo. A “missão” consistia em gravar e filmar manifestações culturais das regiões norte e nordeste do Brasil. Há riquíssimo acervo de cadernos com desenhos, em destaque de Mário de Andrade e Luis Saia. Encontram-se no Centro Cultural São Paulo (CCSP), Instituto de Estudos Brasileiros da USP (IEB-USP) e em muitas pesquisas, dissertações e teses.

32 Refiro-me à pesquisa Imagens de São Paulo: moradia e luta em regiões centrais e periféricas da cidade a partir de representações imagéticas criadas por crianças (FAPESP, 2017-2020) sob minha responsabilidade.

ISSN 1517-5901 (online)

POLÍTICA & TRABALHO

Revista de Ciências Sociais, nº 57, Junho/Dezembro de 2022, p. 135-152

Artigos

UBERIZAÇÃO DO TRABALHO E PRECARIZAÇÃO DA VIDA

UBERIZATION OF WORK AND PRECARIOUSNESS OF LIFE

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Marina Batista Chaves Azevedo de Souza1*

Isabela Aparecida de Oliveira Lussi**

Resumo

A uberização do trabalho pode ser teoricamente explicada sob a égide do paradigma da flexibilidade, marcado por uma racionalidade neoliberal e cultura empresarial-empreendedora favorável à desregulamentação. A partir de abordagem metodológica etnográfica e enquadramento teórico de base materialista histórica, analisamos criticamente as inserções e permanências no trabalho de entregadores por aplicativo do Nordeste do Brasil, compreendendo possíveis desdobramentos em dimensões da vida. Condições de vida precoces, precárias e desestruturantes foram determinantes para inserção na uberização e a permanência nesse processo implica impactos negativos em dimensões como saúde, educação e relações sociais, o que demanda cuidado de diversos setores/profissionais.

Palavras-chave: Precarização. Uberização do trabalho. Trabalho informal. Juventude.

Abstract

The uberization of work can be theoretically explained under the aegis of the flexibility paradigm, marked by a neoliberal rationality and a business-entrepreneurial culture favorable to work deregulation. From an ethnographic methodological approach and theoretical framework with a historical materialist basis, we critically analyzed the insertions and permanencies in the work, of deliverymen by application in the Northeast of Brazil, including possible developments in dimensions of life. Early, precarious, and unstructured living conditions were determinant for insertion in the uberization and the permanence in this process implies negative impacts on dimensions such as health, education, and social relations, which demand care from different sectors/professionals.

Keywords: Precariousness. Uberization of work. Informal work. Youth.

Introdução

A reestruturação produtiva, que repercutiu no mundo e no Brasil principalmente em meados da década de 1970, e a revolução tecnológica ocorrida mais significativamente a partir de 1990, são importantes marcos a serem considerados para refletir como surgem, se consolidam e se disseminam as relações e vínculos de trabalho flexíveis. O paradigma da flexibilidade é marcado por uma racionalidade neoliberal que prega a liberdade no trabalho, estimula uma cultura empresarial-empreendedora, valoriza o autogerenciamento e, por conseguinte, a ausência de vínculos empregatícios e as relações de trabalho instáveis , as quais são favorecedoras das empresas e arriscadas para os trabalhadores (LIMA; BRIDI, 2019). Compreende-se que a


1* Doutora em Terapia Ocupacional pela Universidade Federal de São Carlos. Professora do Departamento de Terapia Ocupacional na Universidade Federal de Sergipe. E-mail: marinabs91@hotmail.com

** Doutora em Ciências pela Universidade de São Paulo. Professora do Programa de Pós-graduação em Terapia Ocupacional e do Departamento de Terapia Ocupacional da Universidade Federal de São Carlos. E-mail: bellussi@ufscar.br

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POLÍTICA & TRABALHO

Revista de Ciências Sociais, nº 57, Junho/Dezembro de 2022, p. 154-171

acumulação flexível (...) “caracteriza-se pelo surgimento de setores de produção inteiramente novos, novas maneiras de fornecimentos de serviços financeiros, novos mercados e, sobretudo, taxas altamente intensificadas de inovação comercial, tecnológica e organizacional.” (HARVEY, 1992, p. 140).

Um exemplo contemporâneo de materialização da intensificação tecnológica, do trabalho no modelo flexível e da implementação das políticas neoliberais, vem sendo o processo de uberização do trabalho. O conceito de “uberização” emerge e é difundido a partir da criação da empresa Uber (no mundo em 2010 e, no Brasil, em 2014), uma empresa-plataforma que discursa acerca do estabelecimento de uma relação colaborativa entre motoristas e passageiros, entregadores e restaurantes, na qual ambos se beneficiam por meio da realização de trajetos curtos e longos com um bom “custo-benefício”, utilizando de mão de obra barata.

As empresas-plataforma se definem como de tecnologia, e não de transportes, e se identificam como facilitadoras/mediadoras das atividades de trabalho que acontecem nos aplicativos, e não como contratantes. Estrategicamente essas empresas se eximem das responsabilidades legais. A implantação da Uber e de outras empresas-plataforma causou a revolta de taxistas e gerou mobilizações da categoria contra esse serviço (LIMA; BRIDI, 2019).

A uberização do trabalho é um processo mais amplo do que a implantação da Uber e de outras empresas-plataforma. A uberização é resultado da “materialização de décadas de transformações políticas do mundo do trabalho, apresentando-se como tendência que permeia generalizadamente o mundo do trabalho [...].” (ABÍLIO, ٢٠٢٠, p. ١١١). Compreende-se, dessa forma, que o processo de uberização colabora para a permanência da precarização1.

A uberização tem ligação direta com o que aqui compreendemos como “capitalismo de plataforma”. Trata-se de um conceito crítico, que aponta os riscos dessa lógica para o trabalhador e os benefícios da perpetuação do trabalho nas empresas-plataforma para o regime de acumulação (SRNICEK, 2017).

Ainda, considerando que os trabalhadores uberizados não detêm vínculos de trabalho, essas atividades são entendidas aqui como trabalho informal. Porém, é importante dizer que quando se define o trabalho uberizado como trabalho informal, a intenção é denunciar os problemas da informalidade e da disseminação dessa lógica. A partir de uma compreensão materialista acredita-se que os vínculos de trabalho não vêm sendo reconhecidos por empresas-plataforma apenas oportunamente (FILGUEIRAS; ANTUNES, 2020a).

A subordinação dos trabalhadores e o controle que as empresas exercem sobre o trabalho, ainda que existentes e passíveis de indagações, são ambos subjetivos e difíceis de mapear claramente (ABÍLIO, 2019). Embora alguns estudos empíricos atuais venham realizando esforços nesse sentido e produzindo dados importantes (CARDOSO; ARTUR; OLIVEIRA, 2020; REIS; MEIRELES, 2021; GAURIAU, 2020), um dos maiores problemas voltados ao reconhecimento legal dos vínculos de trabalho nas empresas-plataforma dá-se a medida em que as empresas envolvidas, devido a sua grande influência econômica e capacidade financeira de defender-se judicialmente, têm uma vantagem importante sobre os trabalhadores nos processos que ocorrem contra elas. Essas empresas apoiam projetos de governos neoliberais e lideranças favoráveis à permanência de suas atividades (FILGUEIRAS; ANTUNES, 2020b; TARRAGNO; NASCIMENTO, 2020).

A partir das reflexões feitas, acredita-se que a permanência de indivíduos em grande parte das atividades realizadas em empresas-plataforma pode afetar negativamente as diversas dimensões de suas vidas. No caso dos motoristas que trabalham transportando passageiros, e dos entregadores de comida que se utilizam de motos ou de bicicletas para fazerem chegar comidas ou produtos de estabelecimentos cadastrados, pode-se mencionar que a vivência com o trânsito é grande parte de seus trabalhos, e pode causar grandes problemas à vida desses sujeitos.

Os acidentes de trânsito constituem um dos mais importantes problemas de saúde pública mundial, e o Brasil compõe o conjunto dos dez países que concentram quase metade das mortes provocadas por esses acidentes (WHO, 2009; PEREIRA, 2018). Em 2018, o Observatório Nacional de Segurança Viária e a Organização Mundial da Saúde divulgaram que a moto é o veículo que mais mata no trânsito no Brasil; cerca de 80% dos acidentes envolvendo motociclistas causam alguma lesão (VASCONCELLOS, 2013; PEREIRA, 2018).

Porém, os danos provenientes da execução de atividades de trabalho inseridas no modelo de produção flexível extrapolam aqueles referentes à integridade ou saúde física. Os mecanismos presentes no referido modelo, aumentam a sensação de insegurança com o futuro. A necessidade de trabalhar durante muitas horas, para garantir o recebimento de uma remuneração que permita a sobrevivência, leva o trabalhador a negligenciar seu cotidiano, algo que impacta em suas relações sociais, incluindo aquelas presentes no tempo do não trabalho (quando ele existe).

Sendo assim, os impactos da flexibilidade do trabalho invadem as diversas dimensões da vida dos trabalhadores. É necessário que sindicatos, coletivos de trabalhadores, o poder público e todos os envolvidos na elaboração e implementação da legislação trabalhista brasileira, se atentem não apenas às questões físicas ou econômicas acarretadas por trabalhos uberizados, mas às questões sociais envolvidas e às dimensões subjetivas dessa atividade.

O deslanchamento da uberização do trabalho e o atual cenário que se apresenta no Brasil são elementos favoráveis à precarização da vida. O termo precarização da vida é aqui empregado para nomear uma gama de riscos e problemáticas que incidem nas diversas dimensões da vida dos trabalhadores (saúde, segurança, lazer, relações sociais, educação etc.). Compreendemos que esses problemas ocorrem, sobretudo, a partir do processo de aprofundamento das desigualdades sociais, da ampliação da desregulamentação e da permanência da precarização do trabalho na sociedade capitalista.

A partir dessa argumentação, o objetivo do estudo foi analisar criticamente as inserções e permanências no trabalho, de entregadores por aplicativo do Nordeste do Brasil, compreendendo possíveis desdobramentos desses processos em dimensões da vida dos trabalhadores.

Método

Trata-se de um estudo analítico-crítico e de campo, que seguiu os preceitos da etnografia urbana e utilizou da observação participante como postura de campo. A observação participante é utilizada “em estudos exploratórios, descritivos, etnográficos ou, ainda, estudos que visam a generalização de teorias interpretativas” (MÓNICO et al., 2017, p 725).

Para a produção dos dados, além do caderno de anotações, também foi utilizado um questionário de identificação. Não foram utilizados roteiros de entrevista, pois em estudos etnográficos compreende-se que os dados emergem a partir do desenvolvimento do campo onde o investigador é participante. Nesse caso, ocorreram entrevistas pontuais e não estruturadas com alguns participantes as quais foram registradas nos cadernos de campo junto às outras informações. Esses cadernos são compreendidos como os instrumentos mais importantes do pesquisador que realiza etnografias.

O campo ocorreu na cidade de João Pessoa (PB), em uma típica praça da capital, conhecida também pelas aglomerações de entregadores uberizados2. Participaram do estudo formalmente nove jovens, entretanto, mais entregadores frequentavam o local onde foi realizada a pesquisa. Primeiramente, foi feito o esclarecimento sobre a pesquisa (objetivos, implicações teóricas e sociais do estudo, sigilo em relação à identidade do participante etc.) e, em seguida, foi solicitada a assinatura do Termo de Consentimento Livre e Esclarecido, para aqueles que concordaram em participar diretamente do estudo. Após esse processo, cada participante preencheu o questionário de identificação com dados pessoais, econômicos e de trabalho. Ressalta-se que os nomes dos participantes expostos nos resultados são todos fictícios.

Os encontros ocorreram durante o turno da noite, por, no mínimo, uma vez em cada dia da semana incluindo o sábado e o domingo, durante três meses consecutivos. A jornada da noite foi identificada pelos próprios entregadores como a mais intensa. Além disso, o local que eles se encontram no turno da noite (que é diferente do turno da manhã e da tarde), a praça, possibilitava uma maior e mais “confortável” aglomeração de trabalhadores nos encontros, por conter mais espaço para descanso entre as entregas, como bancos.

Foram realizadas análises descritivas dos questionários de identificação. Sobre as análises dos dados dos cadernos de campo, em estudos etnográficos essas podem ser descritivas (identificação de quais temas emergem da observação participante) ou teóricas (quais as possíveis inferências dos temas, com o quadro teórico adotado) (FLICK, 2009). Nesse estudo, foram utilizadas, simultaneamente, tanto análises descritivas quanto teóricas.

O processo de organização dos dados foi realizado da seguinte maneira: a) elaboração dos índices: todos os dados foram primeiramente lidos e analisados integralmente e diversas vezes, sendo, assim, possível separá-los por “índices”. Denominamos como “índices” as grandes divisões dos dados provenientes de todos os instrumentos utilizados. Os índices são, literalmente, a separação dos dados por grandes “assuntos”. Esses assuntos são determinados de acordo com a frequência e a importância dos dados para a resposta à questão e objetivos da pesquisa. b) Elaboração dos títulos e subtítulos: os dados de cada índice foram transferidos para um arquivo digital e separados por temas e subtemas inclusos em cada assunto. c) Elaboração do texto: os dados de cada tema e subtema compõem os resultados e foram articulados ao enquadramento teórico da pesquisa.

Resultados e discussão

Quem são eles? História pessoal e de trabalho dos entregadores

Constatou-se um intervalo de idade de 19 a 29 anos, indicando que os participantes são jovens trabalhadores. No Brasil, a lei nº 12.852 (BRASIL, 2013), caracteriza os jovens como sendo aqueles indivíduos que estão na faixa etária de 15 a 29 anos. A renda média mensal dos nove participantes do estudo foi de 1.750 reais. Todos eram homens e seis eram solteiros. Todos residiam em bairros periféricos de João Pessoa e eram não brancos (pretos ou pardos). Apenas dois deles não concluíram o ensino médio.

Deve-se considerar, assim, que a morfologia do trabalho é complexa, fragmentada, heterogênea, com clivagens de gênero, raça e etnia, elementos que reforçam a divisão sociossexual, racial e étnica do trabalho no capitalismo e que acarretam desafios no momento de propor e construir ações concretas e representações. Resultados semelhantes com o desta pesquisa são também encontrados na literatura que aponta o perfil desses trabalhadores3. (FILGUEIRAS; ANTUNES, 2020a, 2020b; ANTUNES, 2020; ABÍLIO, 2020).

Com relação aos dados sobre trabalho, todos os jovens trabalhavam para a empresa-plataforma Ifood, e estavam nessa atividade há pelo menos seis meses. A média de horas de trabalho dos participantes foi de 11 horas e meia por dia. Enquanto seis deles não trabalhavam em outras atividades, os outros três exerciam trabalhos (ou bicos) como eletricista, garçom e conferente de estoque em uma indústria. Com relação às atividades anteriores, apenas um deles não havia trabalhado antes. As atividades anteriores citadas foram: serviços de refrigeração, agente de limpeza, instalador de segurança eletrônica, jovem aprendiz e estagiário de banco privado.

Ainda em relação aos trabalhos anteriores, os jovens mencionaram insatisfação com a realização das atividades e com as lideranças dos locais de trabalho. Essas experiências foram as responsáveis por fazê-los optar pelos serviços de entregador de aplicativo. A literatura sobre subjetividade no trabalho aponta que quanto mais desprivilegiada a função do trabalhador, menos as suas opiniões, desejos e subjetividades são consideradas, o que geralmente acarreta baixa realização no trabalho, principalmente quando as lideranças são coercitivas (LANCMAN; UCHIDA, 2003).

Eu gosto de ser autônomo, prefiro não ser mandado, é muito ruim. Mas também tem a questão de que lá é carteira assinada né, aí é diferente. Você tem seu salariozinho no fim do mês lá garantido, e aqui não... a gente vai ver ainda né, quanto vai conseguir aqui, mas nem sempre é igual não, sabe? Tem isso também. (Felipe, Cadernos de anotações 4, 2020).

Nota-se, assim, que o trabalho dos aplicativos em prol de disseminar uma ideia de “liberdade no trabalho” àqueles sujeitos cadastrados nas empresas-plataforma vem sendo efetivo. Todavia, ainda que essa chefia não tenha “rosto” ou “nome”, os algoritmos são utilizados para supervisionar, controlar, motivar e disciplinar os trabalhadores (e trabalhadoras) silenciosamente (WOODCOCK, 2020).

Outras desvantagens das atividades anteriores também foram citadas. Valter, que participou do Programa Jovem Aprendiz, mencionou:

E o jovem aprendiz? Tu tá por fora de como é que era! Aquilo ali era uma escravidão. Eu trabalhava mais do que os outros, não era valorizado, e ainda ganhava menos. (Valter, Cadernos de anotações 4, 2020).

O Programa Jovem Aprendiz, uma forma de estimular a primeira contratação de jovens entre 14 e 25 anos, foi criado pelo Governo Federal do Brasil, no ano de 2000. A remuneração do jovem aprendiz deve ser de, no mínimo, um salário-mínimo e a carga horária de, no máximo, 8 horas por dia. O aprendiz é um contrato especial de trabalho, mas que inclui direitos trabalhistas e previdenciários e é uma exigência legal para médias e grandes empresas (BRASIL, 2018). Os resultados de um estudo com jovens aprendizes de Recife (PE) demonstram que é comum que esses jovens não se sintam realizados profissionalmente. A maioria deles não têm seus objetivos pessoais atendidos por meio desse trabalho, mas preferem trabalhar do que estar “sem fazer nada” (SOUZA; HELAL; PAIVA, 2017).

Acerca da remuneração da atividade de entregador, o discurso dos jovens demonstra que essa continua sendo insuficiente para cumprir com as obrigações financeiras. É muito comum que os jovens tenham dívidas relacionadas à manutenção do próprio trabalho. O parcelamento do pagamento de motocicletas, pneus, celulares e até mesmo de gasolina são causas de suas dívidas. As empresas-plataforma transferem para os trabalhadores tais custos.

Em regime CLT ou não, e até mesmo quando estão inseridos em programas que buscam iniciar os jovens no mercado de trabalho, os trabalhadores com as características explicitadas estão inseridos em atividades com baixa remuneração, desvalorizadas socialmente e precarizadas. A precarização das atividades citadas pode estar vinculada às condições objetivas, a exemplo das dificuldades e desafios relacionados à execução material da tarefa (meios, instrumentos); ou subjetivas (falta de reconhecimento e valorização, excessivo controle e falta de consideração às suas opiniões, por exemplo) (VARGAS, 2016).

Diante da comum precarização das atividades de trabalho oferecidas, a banalização do ruim acontece e abre-se espaço para “escolha” por trabalhos que, ainda que sejam precarizados e ofereçam riscos constantes, podem ter uma ou duas características mais atrativas. Independente do trabalho, a juventude, sobretudo a juventude pobre, é o grupo populacional que mais sofre com a violação de direitos e suas consequências nos diversos âmbitos da vida (CASTRO; ABRAMOVAY, 2002; GONÇALVES; GARCIA, 2007; BARBIANI, 2016).

Ao jovem inserido no modo de produção capitalista, sobretudo o não branco, periférico e sem ensino superior, resta, no máximo, a escolha entre a qual tipo de precarização ele se submeterá: seja por condições objetivas/subjetivas do trabalho, seja a precarização pelo estatuto social do trabalho. É a “escolha” entre o ruim e o “menos pior”, por uma necessidade de sobrevivência e devido à esperança de dias melhores.

Os jovens desejam que o trabalho como entregador seja transitório, servindo apenas para suprir necessidades e desejos mais imediatos. Alguns dos desejos materiais mencionados foram: a compra de uma moto nova, um aparelho de som que acople na motocicleta, um bom pacote de internet para o celular, o investimento em um curso, e adquirir a carteira de motorista da modalidade D (referente ao transporte de passageiros e à condução de caminhões). Nota-se que até mesmo os desejos são voltados à manutenção do trabalho como entregador ou no investimento acerca de um futuro melhor no mundo do trabalho.

A minha família toda é de caminhoneiros né. Eu vou fazer, nunca se sabe o dia de amanhã... Pra tirar ainda precisa pagar também o curso MOPP (Movimentação de Operação de Produtos Perigosos) que faz pelo Sesc (Serviço Social do Comércio) e o exame toxicológico. (Carlos, Cadernos de anotações 4, 2020).

Os dados dos questionários e as observações descritas posteriormente permitiram inferir que a inserção de jovens, com as características explicitadas, no mundo do trabalho, se dá devido à necessidade de arcar com as contas fixas dos próprios jovens (incluindo as dívidas provenientes do próprio trabalho de entregador); de arcar com as contas da família que eles mesmos já construíram; e de complementar as contas dos genitores ou outros familiares, no caso daqueles jovens que vivem com os pais e irmãos. A inserção no trabalho de entregador de aplicativo se dá por necessidade e é vinculada ao desejo por dias melhores.

As trajetórias de vida dos jovens entregadores podem ser caracterizadas como precoces; precárias e desestruturantes, com uma integração profissional do tipo instável ou periférica, que sugerem uma orientação para a sobrevivência (GUERREIRO; ABRANTES, 2005). Com perfis de transição e trajetória como os citados, é possível usufruir de alguma liberdade ou benefício relacionado à ausência de um contrato de trabalho? O quanto vale uma dita “liberdade contratual” que submete um sujeito ao despendimento de cerca de metade das horas do dia para enfrentar os desafios e as violências de um trabalho executado na rua, e ter como recompensa uma remuneração que não supre a manutenção do próprio trabalho? Essas são algumas das indagações possíveis de serem realizadas. As ditas “liberdades” contratuais são apenas narrativas, discursos das empresas-plataforma, pois na realidade se trata de ausências contratuais que custam as liberdades sociais dos sujeitos.

As ausências das liberdades sociais somadas às dificuldades relacionadas à preservação da saúde mental e física em trabalhos desse tipo têm como produto o processo de precarização da vida descrito aqui em tópico anterior. Após a análise dos processos de inserção dos trabalhadores em atividades uberizadas, os próximos tópicos se dedicam a descrever o conteúdo real do trabalho uberizado e a analisar processos de permanência em trabalhos desse tipo, considerando as repercussões dessa permanência em dimensões da vida como a educação e as relações sociais desses sujeitos.

O trabalho como ele é: os entregadores uberizados em atividade

Além das três empresas citadas nas entrevistas com os participantes, muitas outras empresas estão captando mão de obra para lucrar com serviços de entrega. Em uma delas – mencionada como sendo a melhor plataforma – basta baixar um aplicativo na loja do smartphone e clicar em “cadastrar”. Antes de se cadastrar, quem baixa o aplicativo se depara com a seguinte mensagem:

Controle seu tempo e aumente sua renda. Fique disponível para entregar quando você decidir. Você é seu próprio chefe (Propaganda disponível em aplicativo de entrega, Cadernos de anotações 04, 2020).

Em caso de dúvidas ou reclamações, o único meio de entrar em contato com as empresas é através do ícone “suporte”, no qual os trabalhadores descrevem o motivo do contato e aguardam a resposta de alguém que não tem rosto ou nome. Algo frequentemente citado nos discursos dos trabalhadores é que as normas ou regras dos aplicativos não são suficientemente esclarecidas. O bloqueio do aplicativo (tempo determinado em que é negado o serviço ao trabalhador) pode vir por diferentes motivos, como demora para chegar ao restaurante ou desvio de pedidos. Na maioria das vezes, os trabalhadores não sabem explicar o motivo dos bloqueios.

Percebe-se que, enquanto o trabalho se mantém funcionando, as empresas não acreditam ser necessário saber de detalhes sobre o que realmente ocorre no cotidiano de trabalho. O trabalho nos aplicativos tanto permite quanto aposta nas estratégias utilizadas pelos trabalhadores, sejam elas onerosas ou de risco para eles mesmos. O trabalho assume características de um jogo sem regras claras e com vencedores predeterminados (SCHOLZ, 2013; ABÍLIO, 2020).

A utilização de alguns materiais, estratégias e tecnologias desenvolvidas pelos trabalhadores, ainda que não consideradas, previstas ou financiadas pelas empresas, vêm sendo primordiais para a execução do trabalho. Identificamos como prática comum, por exemplo, a cobertura dos smartphones com papel do tipo filme de PVC. Em dias chuvosos, essa técnica era primordial para que o celular não molhasse e quebrasse, mas ainda assim permanecesse com a tela sensível ao toque, permitindo que os trabalhadores aceitassem e entregassem pedidos na chuva, preservando os aparelhos que eles mesmos compraram.

Alguns deles contam que ao indicar no suporte do aplicativo que o local é perigoso ou ao desviar o pedido recebido, dificilmente recebem mais entregas até o final do dia. Assim, algumas estratégias são utilizadas para lidar com o problema das entregas e do bloqueio como: reportar para o aplicativo que o pneu da moto furou ou que existem outros problemas técnicos que impedem a entrega.

O que eu tenho medo é de fazer entrega nesses bairros mais perigosos, mas se eu rejeitar a corrida é difícil demais receber outras corridas do app no mesmo dia. O app é muito fechado, fica difícil reclamar porque o suporte manda só umas mensagens prontas... se a gente abrir um chamado vem umas mensagens que são mais automáticas... (Valter, Caderno de anotações 04, 2020).

A questão da proteção no trânsito não era uma preocupação dos trabalhadores. Durante essa etnografia, apenas um entregador, que só apareceu no local um dia, estava utilizando equipamentos de proteção não obrigatórios como jaqueta, luvas, joelheiras e cotoveleiras. Todavia, era constante entre eles as conversas sobre a necessidade de equipar a moto para as entregas ou comprar uma câmara de ar reserva para as motos. Os entregadores também socializavam ferramentas para as motos, de maneira a auxiliar problemas técnicos uns dos outros.

Os jovens também relataram que sofrem com a intervenção policial. Ao estarem parados em locais públicos mais visíveis, os policiais costumam pedir a habilitação e o documento da moto como forma de demonstrar poder e fiscalizar os entregadores. Assim, a maioria deles prefere permanecer em locais como o que a pesquisa foi executada, um local discreto e que não está próximo à passagem de transeuntes.

Às vezes a gente tá assim com a moto encostada esperando e se for perto de uma calçada aí eles vêm e pedem a habilitação. (Valter, Caderno de anotações 04, 2020).

O hiato que existe entre o que são as competências, capacidades e realidades de trabalho dos entregadores e o que as empresas-plataforma demandam como tarefa faz com que os trabalhadores elaborem suas próprias hipóteses e técnicas, que muitas vezes podem implicar em ansiedade, gasto de dinheiro, penalidades legais e risco de vida. O tempo exorbitantemente rápido com que realizam as entregas ou chegam aos restaurantes para evitar o bloqueio é um exemplo do quanto esse hiato pode ser arriscado.

Apostando no pouco esclarecimento e na relação de informalidade, as empresas-plataforma continuam existindo e se reproduzindo. Os trabalhadores arcam com todas as despesas que incluem seguros, alimentação, manutenção de suas motos e aparelhos eletrônicos, enquanto as empresas que administram os aplicativos se apropriam do mais valor gerado, sem nenhuma regulação social desse trabalho (ANTUNES, 2020).

Na incerteza dos próximos aluguéis ou refeições, os trabalhadores continuam fazendo e refazendo hipóteses acerca das remunerações, entregas, retaliações, bloqueios e desligamentos.

Enquanto o conjunto amplo, compósito e heterogêneo da força de trabalho global nas plataformas digitais e nos aplicativos se torna responsável por suas despesas de seguridade, gastos de manutenção de veículos e demais instrumentos de produção (...) a plataforma digital se apropria do mais valor gerado pelos trabalhos. (FILGUEIRAS; ANTUNES, 2020a, p. 65).

Levando em consideração que na cadeia hierárquica é o entregador que está “na ponta de baixo” (por vários motivos, inclusive devido a suas características sociais e econômicas), são também eles que vivenciam as retaliações advindas de todos os lados.

O que eu fico mais nervoso é com os restaurantes que demoram pra dar o pedido. Mas a empresa não diz isso ao cliente né? Aí a gente chega lá na casa do cliente que recebe, e a culpa cai na gente sempre. E as vezes eles não colocam lá no aplicativo que a culpa foi do restaurante porque o restaurante diz que não foi né? Aí vai acreditar em quem? Cai na gente mesmo. (Felipe, Caderno de anotações 04, 2020).

Os jovens relataram que existem poucas alternativas para lidar com conflitos, alegando que, de qualquer forma, a tendência é que sejam mal avaliados por clientes em muitas situações em que o problema não foi relacionado à entrega. Aos entregadores resta a elaboração de estratégias que os auxiliem a lidar com o bloqueio do aplicativo, com a própria frustração e a angústia de não ter a quem recorrer.

Embora algumas estratégias sejam pouco construtivas ou resolutivas no sentido de transformação da realidade, elas surgem para responder a uma necessidade dos próprios trabalhadores de sentirem que não estão totalmente passivos aos constrangimentos e agressões verbais que vivenciam no trabalho.

O que mais me dá raiva é quando o cliente pede pra subir. Perco tempo e dinheiro. Poderia chegar uma entrega, mas eu to lá, subindo e descendo pra entregar pacote. Eu não ligo se pedirem por favor não, mas se for grosso eu não subo. É bom quando o cliente reclama lá de cima e a gente pega logo o refrigerante e fica sacudindo né, boy? Quando o cliente chega lá em cima, explode tudo. (Carlos, Caderno de anotações 04, 2020).

Outra questão que vem sendo encarada como um grande problema é a da violência das ruas. O medo dos assaltos era algo frequentemente mencionado nos encontros. A comunicação dos entregadores com os aplicativos para reportarem que se sentem inseguros vem sendo considerada um dilema, por parte dos entregadores. É devido ao medo de receberem menos chamadas dos aplicativos, caso reportem frequentemente situações de risco ou neguem as entregas, que os trabalhadores criam alternativas que tanto viabilizam a segurança quanto mantêm a boa política com os aplicativos.

O que incomoda mais é o medo mesmo de ser assaltado né, que é um risco. Fui assaltado, dois homens de moto e armados levaram meu celular que eu só tinha pago a primeira parcela. Agora eu não compro mais celular bom, só simples. Agora tô com esse aqui que é simples, porque é fogo né? (Felipe, Caderno de anotações 04, 2020).

O aumento da violência nas cidades brasileiras, sobretudo nas capitais e grandes metrópoles, a dificuldade de comunicação com a chefia e os conflitos com os restaurantes e clientes demonstram a urgência de repensar a existência do que se configura vínculo de trabalho entre os aplicativos e os trabalhadores. No momento em que esses conflitos se dão por meio e devido à execução do trabalho, a falta de responsabilidade legal das empresas é, no mínimo, contraditória, equivocada, oportunista e cruel.

Qual ideia de futuro? Os entregadores e seus processos educacionais

A necessidade de resolver as questões financeiras, de complementar a renda familiar, ou de pagar suas próprias contas e fazer “andar a vida” (sic), são determinantes para a inserção em atividades de trabalho dos entrevistados, seja em trabalhos de entregador ou não. Outros fatores importantes mencionados por eles que contribuem para a permanência/continuidade nestes trabalhos foram a falta de tempo e a disposição após o trabalho para estudar para o vestibular ou para concursos públicos, algo que, na avaliação dos participantes da pesquisa, poderia transformar suas trajetórias de vida e de trabalho.

Nos encontros, a questão da educação formal, e particularmente do ensino superior, era sempre motivo de curiosidade.

“Quantos anos de faculdade são? ” Mais ou menos 10 anos, respondo. “10 anos?” Perguntou, Daniel, impressionado. “Ela quer vencer na vida, não é você não. Por isso que você não tem o ensino médio.”, disse Carlos, o que coloco como um exemplo das piadas depreciativas sobre o assunto (Diálogos com os entregadores, Cadernos de anotações 04, 2020).

Também era comum que dois deles, especialmente Antônio, sempre se lamentassem sobre a falta de tempo para trabalhar e estudar simultaneamente, já que as contas fixas não permitem que estudem em detrimento do trabalho.

Eu queria estudar, mas tem que pagar as contas... (Diálogos com entregadores, Cadernos de anotações 04, 2020).

Em trajetórias de vida precoces, precárias e desestruturantes há um grande impeditivo para trabalhar com aquilo que escolheu pois há a urgência de inserção em qualquer atividade que proporcione os meios de sobrevivência no capitalismo.

“Eu às vezes trabalho com o meu pai, de pedreiro, desde os meus 14 anos. Tô tentando estudar pra concurso, mas morar só é ruim porque você quer estudar, mas só pensa nas contas”, mencionou um outro trabalhador. (Diálogos com entregadores, Cadernos de anotações 04, 2020).

As conversas entre os entregadores também se voltavam aos editais de concurso para ensino médio, pois alguns deles demonstravam interesse de fazer. “Vai ter concurso né?”, disse um deles. “Vai, tem um monte de edital de vaga, eu vi, mas a pessoa não tem tempo pra estudar”, respondeu outro jovem. “Pois é, vou pagar pra errar tudo?”.

Percebe-se, nos discursos dos jovens, certa valorização da educação formal, sobretudo do ensino superior. Tal valorização pode estar pautada pela percepção de que essa poderia possibilitar inserções mais dignas e lucrativas no mercado de trabalho. Porém, também pode estar vinculada ao que Bourdieu nomeia de “relevância especial” em uma sociedade que valoriza um capital cultural muito específico. Considerando que os jovens almejam pela continuidade dos estudos formais e a entrada em empregos por meio de concurso público, compreende-se que a educação formal vem sendo visualizada por eles como mecanismo de valorização e de mudança social.

A classe operária, mesmo que não se dedique e não disponha de meios para isso, percebe algo de especial em ter um diploma. Muito da valorização do ensino formal tradicional está atrelado a existência de uma cultura burguesa que valoriza o “credenciamento”, estando as demais classes fadadas a copiarem esse modelo na esperança de um dia alcançarem uma realidade melhor, algo que nem sempre acontece (SILVA, 1995).

Afinal, embora nas diretrizes do ensino formal, no Brasil, esteja colocada a importância de proporcionar uma formação crítica e cidadã para a inserção no mercado de trabalho, há de se considerar que não se tem a garantia de que um diploma necessariamente irá proporcionar emprego formal, digno ou valorizado. O próprio mercado de trabalho valoriza um capital cultural específico:

[...] uns procurando manter sua situação privilegiada outros desejando acesso às mesmas oportunidades. Desta dinâmica resultam a expansão do ensino e a crescente necessidade de credenciais educacionais. Entretanto, novas credenciais estão sendo exigidas para o exercício das mesmas funções, sendo que no preenchimento de cargos valoriza-se, veladamente, a proximidade com a cultura de elite mais do que a competência. (SILVA, 1995, p. 29).

Desta maneira, mesmo que na prática os diplomas não garantam a certeza da inserção no mercado de trabalho ou de empregos dignos e bem remunerados, eles aproximam, mesmo que temporariamente, as classes desfavorecidas de símbolos que a classe burguesa valoriza, algo que fornece algum status e prestígio social. Esse prestígio é crucial para diminuir as experiências de exclusão, violência e o atrelamento do jovem trabalhador informal e periférico aos estereótipos de preguiçosos, criminosos ou perigosos, algo comum em sociedades que funcionam ancoradas no modo de produção capitalista e que estão sempre (re)inventando meios para criar um abismo entre as classes sociais.

Atualmente, o ensino médio profissionalizante e o ensino técnico, que há décadas eram vistos como modelos que não transmitem “cultura no seu mais alto nível”, são colocados por uma elite como vantajosos, atrativos e adequados aos jovens trabalhadores, por serem: uma educação mais curta, rápida, e focada na especialização para o mercado de trabalho. O maior problema é que esses modelos, desde suas concepções, estão focados na perpetuação da classe operária e na criação de mão de obra, não na formação crítica que proporcionaria o entendimento da raiz dessa exclusão.

A propaganda desse tipo de ensino dissemina a ideia de que sua rapidez e especialização para o mercado de trabalho é algo que os jovens devem almejar e que proporciona rápidos retornos financeiros. Porém, as características daqueles que se inserem no ensino técnico profissional, nos faz perceber para quem essa propaganda vem sendo destinada, e porque ela existe e é propagada. Essas propagandas também fazem parte do rol de tentativas de evitar o interesse de classes desfavorecidas pelo ensino superior tradicional.

Percebe-se que a inserção e permanência no ensino superior, para os jovens trabalhadores participantes, é parte de um capital cultural que, embora almejado, já não é mais apresentado em seus discursos como algo próximo da realidade. Talvez a única crítica desses trabalhadores sobre essa questão seja a eles próprios, que parecem se arrepender de “não terem tentado o suficiente”. Parece que a eles resta aceitar essa diferença, investir financeiramente na manutenção do trabalho, pensar em cursos profissionalizantes de curta duração para aumentar a renda e quitar as contas fixas.

Quando finaliza o trabalho no aplicativo? Reflexões sobre o lazer dos entregadores

Era comum ouvir dos entregadores que eles realizavam atividades de “lazer” com os aplicativos ligados, ou seja, simultaneamente ao tempo que destinavam ao trabalho. No período do carnaval, por exemplo, um dos entregadores admitiu estar nos blocos e festas de rua com o aplicativo ligado, interrompendo o momento festivo quando tocavam os pedidos no celular. O mesmo trabalhador disse que se relacionava com outros grupos de entregadores e que, corriqueiramente, frequentava alguns bares em períodos com baixo número de entregas. Enquanto alguns entregadores realizam o serviço após consumir bebida alcoólica como forma de fazer acontecer as idas às festas sem parar de trabalhar, outros há muito tempo não frequentavam festa alguma.

Algo também comumente conversado entre os trabalhadores era sobre a relação com suas companheiras, esposas ou namoradas, e o pouco tempo destinado a elas devido à maior parte do trabalho se concentrar nos períodos noturnos, nos finais de semana e feriados, quando há mais demandas por entregas. Com o tempo de lazer prejudicado, era comum ouvir que as companheiras reclamavam da ausência dos entregadores. “Se chegar tarde em casa, principalmente assim, final de semana, a mulher reclama mesmo... fica chateada, mas é um trabalho que a gente fica muito de noite no final de semana né, as vezes é dor de cabeça mesmo.” (Felipe, Caderno de anotações 04, 2020).

Uma das soluções encontradas por alguns dos trabalhadores era relacionar-se amorosamente durante o período que estavam esperando as entregas. A parte posterior da praça, onde fica localizada a mini arquibancada de concreto, era utilizada para os encontros entre os jovens e suas namoradas ou esposas. Esse local também era utilizado para realização de primeiros encontros amorosos com mulheres que os trabalhadores ainda estavam conhecendo. Foi observado que quando o aplicativo solicitava uma entrega enquanto os encontros amorosos estavam ocorrendo, o trabalhador levava sua companheira junto para realizar o serviço, retornando com ela para ao local após a entrega ser finalizada.

Assim, a partir de uma perspectiva materialista histórica, o que os jovens uberizados disseram vivenciar não é, de fato, lazer. O lazer como tempo do não trabalho, como ócio, como momento da preguiça ou liberdade de se fazer o que deseja (MARCELLINO, 2010) é ceifado quando o sujeito está disponível para exercer atividades de trabalho por cerca de 12h por dia, incluindo finais de semana. O fato de realizar outras atividades que não necessariamente estejam vinculadas à entrega – ainda que sejam ligadas aos desejos dos jovens – não faz com que as atividades sejam de fato lazer, pois a preocupação, o compromisso e a atenção às chamadas dos aplicativos estão sempre presentes.

Quando a realização de outras atividades durante o horário das entregas inclui o uso de substâncias que podem alterar o estado físico e mental do trabalhador, existem dois tipos de risco iminente: um deles se refere à segurança do trabalhador e dos transeuntes. O outro se refere às questões legais, porque dirigir sob o uso de álcool pode acarretar um bloqueio permanente do aplicativo e o trabalhador também pode responder por crime, receber uma multa e ter a motocicleta apreendida, caso seja descoberto por órgãos de controle de tráfego.

Com a necessidade cada vez maior de se inserirem no mercado de trabalho e diante das poucas oportunidades de exercerem trabalhos regulamentados e bem remunerados, aos jovens resta a adaptação do seu lazer à realidade de trabalho. A captação da mão de obra desses jovens por parte desses aplicativos é também a captação de uma experiência de juventude.

Os dados da pesquisa demonstram que experiências de juventude mais orientadas para o lazer e bem-estar não são possíveis de serem vivenciadas quando é realizado esse tipo de trabalho. Desse modo, é possível reafirmar que toda a concepção e elaboração dessa forma de trabalho atrai uma juventude orientada para a sobrevivência.

Conclusão

Os dados provenientes da etnografia permitiram inferir, no contexto desta pesquisa, que a inserção nesse processo é uma questão vinculada às trajetórias de vida precárias da juventude brasileira trabalhadora. Utilizando de reflexões materialistas, identificamos que essa inserção tem raízes na desigualdade social e tem clivagens etárias, geográficas, de gênero e raça.

Com relação à permanência, hipotetizamos que muitos jovens permanecem nas empresas-plataforma porque o trabalho uberizado demanda muito tempo dos seus dias e muita disposição física. Essas são características comuns de trabalhos precarizados e se colocam como potenciais limitadores para pensar, planejar e investir na construção de uma carreira ou de um futuro diferente. Além disso, o trabalho no atual sistema econômico perpetua a desigualdade e cria estratégias para ceifar possibilidades de ascensão social de jovens pobres e não brancos.

Foi constatado que a falta de suporte das empresas para que os trabalhadores adquiram os seus meios de trabalho, por exemplo, faz com que muitos se endividem com financiamentos de motos, acessórios, gasolina, celular e internet, ficando reféns dessa atividade e sendo obrigados a assumirem os riscos das empresas-plataforma por tempo indeterminado. Outra questão interessante acerca da permanência nessas atividades é que os jovens vêm percebendo o trabalho nas plataformas como mais lucrativo e satisfatório do que as oportunidades de trabalho anteriores, que se configuram em atividades de trabalho também desregulamentadas e extremamente precárias. É a escolha pelo ruim ou o menos pior.

A permanência em trabalhos uberizados acarretam o que se denominou aqui como precarização da vida: uma gama de impactos negativos nos mais diversos âmbitos da vida dos jovens. Foram realizadas reflexões acerca dos problemas relacionados à saúde, lazer, educação e relações sociais. Entendemos que a abordagem materialista não serve exclusivamente para interpretar e analisar a realidade, mas para construção da transformação social. Compreender as particularidades dos trabalhadores uberizados (incluindo as questões geracionais) e as repercussões do trabalho desregulamentado nos mais diversos âmbitos de suas vidas é determinante para conceber práticas profissionais em educação, saúde e assistência social que sejam interdisciplinares, intersetoriais e críticas, entendendo o trabalhador como sujeito histórico e intervindo nas bases/raízes dos problemas por meio de soluções coletivas, não apenas focalizando suas sintomatologias e elaborando estratégias individuais.

É necessário desenvolver forças de resistência e transformação na organização do trabalho no capitalismo, que acarreta a precarização geral da vida. As intervenções profissionais que se direcionam ao cuidado dos trabalhadores devem ser feitas junto a eles, acreditando tanto no potencial transformador da juventude e da classe trabalhadora quanto na força da mobilização coletiva e da tomada de consciência sobre o lugar onde a sociedade capitalista os coloca.

Referências

ABÍLIO, Ludmila Costhek. Uberização: Do empreendedorismo para o autogerenciamento subordinado. Psicoperspectivas, Valparaíso, v. 18, n. 13, p. 1-11, out. 2019.

ABÍLIO, Ludmila Costhek. Uberização: a era do trabalhador just-in-time? Estudos Avançados, São Paulo, v. 34, n. 98, p. 111-126, maio 2020.

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Recebido em: 21/07/2021

Aceito em: 11/11/2022


1 O processo de precarização do trabalho, apesar de estar diretamente vinculado ao processo de uberização, surge bem antes desse último. O processo de precarização se caracteriza sobretudo como desregulamentação, intensificação, aumento das jornadas, terceirização, riscos à saúde e diminuição dos salários (ALVES, 2017). A partir do surgimento das tecnologias de informação e comunicação e suas aplicações no mundo do trabalho, não se tem uma solução para os referidos problemas, como prometido à classe trabalhadora da contemporaneidade. Ao contrário, se tem uma concretização da precarização do trabalho que deixa de atingir somente algumas atividades para passar a ser permanente (ANTUNES; PRAUM, 2015). A uberização trata-se, sobretudo, de uma tendência que está em expansão e que vai variando suas estratégias de captação, controle e de burla à legislação trabalhista. No Brasil, esse termo vem sendo fortemente discutido em trabalhos de autores como Abílio (2020), Filgueiras e Antunes (2020a, 2020b). Embora estejamos tratando aqui de um contexto brasileiro e analisando-o a partir de autores de base materialista, é importante mencionar que, internacionalmente, alguns estudos têm também se utilizado do termo uberização do trabalho para tratar do fenômeno aqui descrito (ZOU, 2017). Todavia, outros estudos – que analisam o fenômeno a partir de outras perspectivas filosóficas e sociais – adotam o termo digital economy ou gig economy (economia digital e gig economia), gig work (ou trabalho realizado na economia gig), crowdwork (trabalho de aglomeração, grupo ou multidão) e ainda work-on-demand via app (trabalho sob demanda via aplicativos) (DE STEFANO, 2017; SRNICEK, 2017).

2 Este artigo é oriundo de uma pesquisa de doutorado que teve como objetivo compreender a realidade de trabalho de jovens que realizam diferentes atividades informais ou desregulamentadas em duas capitais do Nordeste, bem como os aspectos relacionados à inserção e à permanência em trabalhos desse tipo. Embora a pesquisa tenha registrado dados de trabalhadores informais em diversas atividades (como vendedores ambulantes, vendedores de centros comerciais, limpadores de carros, entregadores por aplicativo), o presente artigo é um recorte da referida pesquisa e dá enfoque especificamente aos dados provenientes das observações dos cenários reais de trabalho e das entrevistas com nove trabalhadores que são entregadores de comida em empresas-plataforma.

3 Nesta pesquisa, utilizamos “trabalhadores” devido ao nosso contexto empírico, mas reconhecemos a inserção de mulheres e pessoas com outros gêneros nas empresas-plataforma e compreendemos que existem condições específicas de trabalho que demandam novas investigações que se aprofundem em trabalho e gênero. Ainda, entendemos raça e etnia como determinantes da desigualdade social que apontamos no estudo e salientamos que o debate sobre a precarização no materialismo deve ser, a todo momento, um debate racializado.

VIOLÊNCIA URBANA E VULNERABILIDADE SOCIAL

COMO PARTE DO TRABALHO DE ENTREGADORES POR APLICATIVOS

URBAN VIOLENCE AND SOCIAL VULNERABILITY

AS PART OF THE WORK OF DELIVERS BY APPLICATIONS

____________________________________

Ana Patricia Sales*1

Francisco Sales**

Elaine Albino da Silva***

Luisa Donati****

Resumo

Este artigo é resultado de uma pesquisa que se desenvolve com trabalhadores que prestam serviços de entrega de comida para distintas empresas-plataforma. Nele, buscou-se evidenciar que o trabalho dos entregadores conforma situações que colocam esses profissionais em estado de vulnerabilidade social e, sobretudo, de violência. O problema de pesquisa se traduz na seguinte questão: quais as situações de risco que perpassam o cotidiano do trabalho dos entregadores e que afetam a sua condição de vida, de sobrevivência material e de saúde? Sustenta-se que os casos de violência, particularmente os acidentes de trânsito e os assaltos, marcam a vida dos trabalhadores, levando-os a situações de vulnerabilidade social, distanciamento do trabalho, tensão e ansiedade. Constatou-se que o nível de exposição ao qual esses profissionais estão submetidos torna-os vítimas da violência urbana, traduzida, sobremaneira, nos graves e leves acidentes no trânsito e nos recorrentes assaltos à mão armada.

Palavras-chave: Plataformas digitais. Entregadores por aplicativos. Violência. Vulnerabilidade social.

Abstract

This article is the result of a research carried out with workers who provide food delivery services for different platform-companies. It sought to show that the work of delivery workers conforms to situations that place these professionals in a state of social vulnerability and, above all, of violence. The research problem is translated into the following question: what are the risk situations that permeate the daily work of delivery people and that affect their living, material survival and health conditions? It is argued that cases of violence, particularly traffic accidents and robberies, mark the lives of workers, leading them to situations of social vulnerability, distance from work, tension and anxiety. It was found that the level of exposure to which these professionals are subjected makes them victims of urban violence, which is mainly translated into serious and light traffic accidents and recurrent armed robberies.

Keywords: Digital platforms. Application delivery. Violence. Social vulnerability.


1* Professora associada I, lotada no Departamento de Ciências Sociais, da Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN). Membro da Pós-Graduação em Estudos Urbanos e Regionais (PPEUR-UFRN) e pesquisadora da área de sociologia do trabalho. E-mail: anapatricia_dias@yahoo.com.br

** Professor associado IV, lotado no Departamento de Ciências Humanas, do Centro Multidisciplinar de Angicos, da Universidade Federal Rural do Semiárido (UFERSA). E-mail: francisco.sales@ufersa.edu.br

*** Graduada em Gestão de Políticas Públicas pela Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN). E-mail: naynealbino@gmail.com

**** Graduada em Ciências Sociais pela Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN). Mestranda no Programa de Pós-Graduação de Antropologia Social (PPGAS/UFRN). E-mail: luisagalva@gmail.com

ISSN 1517-5901 (online)

POLÍTICA & TRABALHO

Revista de Ciências Sociais, nº 57, Junho/Dezembro de 2022, p. 172-186

Introdução

O capitalismo contemporâneo, sustentado em uma nova base técnica do capital, vem revolucionando o mundo do trabalho por meio do fenômeno da “plataformização”. Nessa fase, as plataformas digitais se assumem como tendência mundial e se disseminam na sociedade, estando presentes nas mais diversas áreas, tais como: saúde, educação, hospedagem, transporte, relacionamentos, alimentos, compras, músicas, entretenimento, entre outras.

Essa disposição ganha maior ritmo com o desenvolvimento da Indústria 4.0 e seu aprimoramento tecnológico. Logo, a digitalização, a automação dos processos, bem como o uso da internet móvel e o aperfeiçoamento da Inteligência Artificial imprimem mudanças no sistema de produção, na lógica do consumo, nas relações de sociabilidade, nos modos de execução da prestação de serviços e nas relações e condições de trabalho.

No tocante às relações laborais, conforme a Organização Internacional do Trabalho (OIT, 2018), as plataformas digitais despontam como provocadoras de mudanças no mundo do trabalho. No caso, a plataforma de transportes privados da empresa Uber foi uma das primeiras a se popularizar, a dar visibilidade ao fenômeno e a expor inúmeros problemas laborais que se instituíram na mediação entre as empresas digitais e os “parceiros trabalhadores”, a exemplo da exploração, da subordinação, do controle, da precarização, da insegurança pelo trabalho etc.

Nessa perspectiva, as plataformas delivery também se massificam e, em torno delas, novas problematizações são suscitadas. No caso deste estudo, ele é parte de uma pesquisa que se desenvolve com a força de trabalho que pratica a atividade de entrega de comidas para distintas plataformas digitais. Nele, procura-se evidenciar que o trabalho dos entregadores por aplicativos forja situações que colocam esse grupo de profissionais em permanente estado de vulnerabilidade social e, sobretudo, de violência urbana, durante o exercício da atividade laboral.

A questão que norteou a investigação e que se buscou responder foi a seguinte: quais as situações de risco que perpassam o cotidiano do trabalho dos entregadores e que afetam a sua condição de vida, de sobrevivência material e de saúde? Sustenta-se que os casos de violência urbana, particularmente os acidentes de trânsito e os assaltos, marcam a vida dos trabalhadores das empresas-plataforma, levando-os a um permanente estado de vulnerabilidade social, distanciamento do trabalho, tensão e ansiedade durante o cotidiano da sua jornada laboral.

A pesquisa que segue em curso teve início no ano de 2021 e tem como recorte geográfico a cidade do Natal (RN). Dados primários, coletados durante os meses de abril a junho do mesmo ano, resultantes da realização de 22 entrevistas semiestruturadas com motoboys e bike boys que prestam serviço para distintos aplicativos, como o iFood, Uber Eats, Rappi, Bee, Delivery, entre outros, subsidiam a investigação, além de fontes secundárias extraídas das informações compartilhadas na plataforma Facebook pelos integrantes do grupo dos “Motoboy Natal” e de um referencial teórico que permite abordar o estado do problema pesquisado. Informa-se que os dados primários foram coletados no mês de março de 2021.

Registra-se que, em razão do contexto pandêmico e em respeito ao protocolo de segurança sanitária adotado para conter a infecção provocada pelo SARS-CoV-2, após agendamento, as entrevistas foram realizadas remotamente. Para tanto, os recursos eletrônicos como smartphones e notebook foram utilizados para mediar os contatos e viabilizar as entrevistas por meio de videochamadas. A utilização dessas ferramentas tecnológicas permitiu romper o silêncio de 22 trabalhadores, majoritariamente declarados do gênero masculino e, em sua maioria, moradores de bairros periféricos da cidade de Natal.

Para efeito de sistematização do artigo, apresenta-se, de modo sucinto, o fenômeno das empresas-plataforma que dinamiza a “economia de bicos” e, na sequência, evidenciam-se as situações de risco, vulnerabilidade social e violência urbana a que estão expostos os entregadores. Na oportunidade, apresenta-se o perfil, bem como as condições objetivas que marcam a atividade laboral desses trabalhadores.

O capitalismo digital e o fenômeno da “plataformização”

É sabido que o capitalismo contemporâneo vem promovendo, desde os anos de 1970, relevantes mudanças na base técnica da produção e, com efeito, no mundo do trabalho. Na atualidade, vislumbra-se o que se convencionou nominar de Quarta Revolução Industrial ou Indústria 4.0 que, somada à crise sanitária, vem impactando a economia global, o mercado de trabalho e os vínculos laborais.

Nesse contexto, conforme Sales e Sales (2020), assiste-se ao aumento exponencial do desemprego, a hipertrofia do setor de serviços e a multiplicação de modalidades de “trabalhos atípicos”, a exemplo da pejotização, do trabalho intermitente, do teletrabalho, do home office, da terceirização, da informalidade e da “plataformização”. Essas modalidades de trabalhos flexíveis crescem e reconfiguram o complexo mercado de trabalho no século XXI.

Destaca-se, no caso, o despontar das empresas-plataforma, que irrompem a partir do desenvolvimento das complexas tecnologias caracterizadoras da Indústria 4.0, como a “Internet das Coisas”, a Robótica, a Inteligência Artificial, o Big Data, entre outras. Essas plataformas fomentam modelos de negócios por demanda que interligam prestadores de serviços e consumidores do mundo todo. Aqui se remete especificamente às plataformas de entregas de comida, objeto da investigação deste estudo.

É óbvio que, para alcançar esse estágio de desenvolvimento do “capitalismo digital”, precederam outros acontecimentos que foram indispensáveis para a criação de negócios dependentes das Tecnologias da Informação e Comunicação (TIC), bem como da internet, a saber, a reestruturação produtiva do final dos anos de 1960, a revolução técnico-informacional, a financeirização da economia, fusões de grupos econômicos, reformas e crises econômicas. Trata-se, portanto, de processos de transformações que fizeram eclodir, no século XXI, as empresas tecnológicas e digitais.

Os negócios digitais, de acordo com Schor (2017), despontam nos anos de 1995 com o pioneirismo do comércio eletrônico do site e-Bay. Sua criação possibilitou a pessoas comercializarem produtos pela Internet, como também viabilizou a conectividade entre vendedores e consumidores em tempo real por meio da rede de computadores. Não tardaria para que uma nova onda de sites surgisse e todo um conjunto de plataformas se desenvolvesse.

Assim, nos anos de 2000, as plataformas se estabeleceram “na indústria de tecnologia para designar meios digitais de intermediação que conectam pessoas, informações e produtos” (CASSILLI; POSADA apud FONSECA, 2021, p. 33). Elas se originam tendo como eixo tecnológico a Internet e se sustentam por meio dos algoritmos, dos dados de usuários e de trabalhadores. Desde então, apresentam-se variadas, dividindo-se, de acordo com a tipologia criada por Srnicek (2017), em plataformas de publicidade, plataformas de produtos, plataformas enxutas e plataformas industriais.

Para Srnicek (2017), as plataformas se constituem em “infraestruturas digitais” que promovem a comunicação e a interação entre diversos grupos e corporações. Nessa conexão, elas assumem uma dupla missão: funcionam como meios de produção e de comunicação, isto é, como canal de trabalho e de interação entre agrupamentos. Além disso, trata-se de uma tecnologia que se nutre de informações que são organizadas, tratadas e processadas por meio dos algoritmos.

Nesse sentido, os algoritmos ganham proeminências como parte constituinte da forma de gerenciamento dos trabalhos mediados por plataformas. Esse tipo de gestão se sustenta tendo como base uma estrutura que, ao fazer uso do algoritmo, monitora comportamentos, coleta dados privilegiados de usuários e trabalhadores que estão conectados, trata-os em tempo real e os automatiza com o propósito de transformar todas as referências em resultados desejados. Constitui-se um processo que engloba, indiscutivelmente, segundo Woodcock (2020, p. 31), “tentativas de supervisionar, controlar, motivar e disciplinar os trabalhadores”.

As inovações desses modelos de negócios correm a passos largos. Na atualidade, as plataformas tecnológicas não somente fomentam transações rentáveis, como concentram capitais. Grandes são os investimentos no seu entorno. Basta imaginar as vultosas cifras financeiras envolvendo a criação da empresa WhatsApp no ano de 2009. Para se desenvolver, essa plataforma contou com o suporte de um grande fundo de investimento localizado no Vale do Silício. Não tardou para que fosse vendida à gigante Facebook, no ano de 2014, em uma bilionária transação financeira envolvendo 19 bilhões de dólares.

Essas empresas estão pulverizadas globalmente no mundo e abrangem distintos setores da economia, porém parece ser na área dos serviços que esses empreendimentos têm alcançado proporções inimagináveis. Especificamente nesse ramo, as atividades de hospedagem, transporte e educação se sobressaem como aquelas que dominam esses negócios, conforme aponta Slee (2017). De repente, empresas físicas se transformam em plataformas, e os mais variados serviços são catalisados por esse tipo de tecnologia.

Em uma dimensão mais ampla, as plataformas são,

[...] por um lado, a concretização da acumulação e extração de valor a partir de mecanismos de dados e das mediações algorítmicas; por outro, significam sua face mais visível (ou interface amigável), infiltrando-se nas práticas sociais com a promessa de oferecer serviços personalizados e causando dependência de suas infraestruturas na web e em diversos setores da sociedade (GROHMANN, 2020, p. 95).

Nessa perspectiva, depreende-se que as plataformas não atuam isoladamente. Isso porque se correlacionam com os algoritmos e com a apropriação de dados, significando esses dados, para o autor acima referenciado, “extração de valor e de recursos”. Ademais, multiplicam-se nos quatro quadrantes do mundo e se materializam nos mais diversos tipos de atividades. Parte delas consagram-se “gigantes digitais”, a exemplo da Amazon, do Google, da Lyft, da TaskRabbit e da Uber.

Deste modo, assiste-se ao empoderamento dos negócios digitais, tendo as plataformas como uma das principais tecnologias. Esses novos empreendimentos comerciais, ao se inspirarem no conceito de mundo aberto e conectado, imbricam-se com a financeirização da economia e com o neoliberalismo, solapando a todo instante indústrias tradicionais, minando os direitos sociais e trabalhistas conquistado por movimentos de lutas e estimulando aqueles que advogam pelo livre mercado a romperem com a estrutura de negócios tradicionais, verticalizadas e hierarquizadas. Alguns pesquisadores projetam que, até 2025, aproximadamente quarenta por cento das transações de trabalho se dará por meio das plataformas digitais.

O detalhe desse modelo de negócio é que, embora se reconheça que provoque a modernização do mercado e o surgimento de novos negócios, admite-se também que os novos mercados são menos competitivos, quantitativamente mais reduzidos, contudo, mais poderosos. Isso porque, como afirma Slee (2017, p. 199), eles “tendem a ser oligopolizados, com poucas grandes empresas, cada uma com poder significativo”. Cabe recordar que, por um tempo razoável, o iPod da Apple e o YouTube do Google não enfrentaram grandes concorrentes.

Nesse diapasão, compreende-se que o movimento do capital em direção ao fenômeno da “plataformização” reconfigura mais uma vez o mercado de trabalho, tornando-o ainda mais flexível, complexo, precário e global. Nele, o “trabalho atípico” plasma-se como o típico trabalho e a relação laboral pactuada por um contrato de trabalho por tempo indeterminado segue declinando.

A rigor, identifica-se a reedição pelo capital de pretéritos arranjos de emprego e a criação de outros que se distanciam do escopo da clássica forma de contratação, como o trabalho dos denominados aplicativos e plataformas. Esses tanto negam a natureza do assalariamento da relação empresa e trabalhadores como rejeitam a relação empregatícia, colocando-se como mediadores entre um prestador de serviços e uma multidão de consumidores.

Assim, o fenômeno da “plataformização” provoca uma nova organização do trabalho intitulada “modelo da cibernética” ou da “governança pelos números”. Esse novo padrão coloca em movimento uma obscura teia de subcontratação, na qual se identifica ao menos quatro parceiros da prestação dos serviços, a saber: a plataforma, o consumidor, o estabelecimento comercial e o trabalhador. Isso quando se trata das plataformas de entrega de comida.

Na prática, essas empresas-plataforma de prestação de serviços comerciais se converteram nas grandes provedoras de “renda” para a volumosa reserva de força de trabalho disponível mundialmente. Destarte, elas se transformaram nas poucas oportunidades que a força de trabalho, jovem e adulta, em situação de desocupação e desalento, consegue obter renda nesse contexto em que a economia mundial se encontra estagnada, a crise sanitária assola o mundo e as taxas de desemprego mais crescem do que diminuem. A título de informação, os trabalhadores de aplicativos já são milhares no mundo todo e, a saber, hoje se constituem na maior categoria também no Brasil.

Especificamente no Brasil, a situação do mercado de trabalho se apresenta sofrível. Dados recentes, divulgados pelo IBGE/Pnad-Contínua (2021), registram 14,1 milhões de desempregados e 5,8 milhões de desalentados. Adicionando a esses os indicadores dos trabalhadores informais, autônomos, intermitentes e subempregados, o cenário se apresenta ainda mais sombrio. Frente ao exposto, essas empresas encontram o terreno favorável para se instalarem, consolidarem-se, aproveitarem-se da “desregulamentação do trabalho”, aprofundando os níveis de exploração da classe trabalhadora.

Com a promessa de renda acima dos salários médios pagos aos trabalhadores formais e a retórica de que a força de trabalho pode ser “empresário de si mesmo”, as plataformas de entregas de comida arregimentam, por meio de uma adesão cadastral, inúmeros profissionais, para que fiquem à sua disposição e desenvolvam a atividade de entrega a consumidores que demandam por esse tipo de serviço. Esses trabalhadores, além de sucumbirem a um trabalho sem proteção social, colocam-se no risco diário da violência urbana.

A realidade dos entregadores: entre a alternativa de sobrevivência e a violência urbana

Face às mudanças na base técnica do capital, somadas às reformas antitrabalho praticadas pelos governos liberais ao redor do mundo, o mercado laboral se encontra cada vez mais flexível, desregulamentado e precário. Essa tendência ganha ainda mais força com o desenvolvimento dos trabalhos por plataformas tecnológicas que impõem uma forma de gestão do trabalho desprovida de contrato laboral formal e da proteção social.

Esse modelo se sustenta por meio de uma programação bem definida que inova a forma de administrar e controlar o trabalho. A vigilância sobre os trabalhadores já não se reúne mais em um tipo de gerência centrada na figura de um chefe, sujeito indispensável no modelo de trabalho fabril, mas se converte em complexas tecnologias da economia digital e em um sistema de geolocalização que acompanha o movimento diário de qualquer profissional que se conecta à plataforma. Afinal,

[...] cada menino negro dormindo na praça com a cabeça dentro de uma bag é um elemento mapeado, um ponto que integra a cartografia das dezenas de milhares de pontos distribuídos pela cidade. Pontos que deverão ser ligados da forma mais eficiente – na relação tempo-espaço – à demanda. O gerenciamento algorítmico hoje vigia-gerencia cada indivíduo e ao mesmo tempo o fluxo da multidão (ABÍLIO, 2020, p. 274).

Com esse nível de operação, essas empresas tecnológicas que têm sua programação estabelecida pelos algoritmos contam com a colaboração do consumidor para aferir o desempenho dos trabalhadores. No caso particular das plataformas de entregas de comida, essas transferiram para o usuário a responsabilidade de avaliar o serviço dos motoboys e dos bike boys e, como desdobramento, colocaram em prática uma política de recompensa ou penalização para aqueles que lhe prestam serviço.

Faz-se mister salientar que o sistema de bonificação como meio de seduzir o trabalhador também se aplica às situações em que a plataforma identifica a redução da disponibilidade deles nos aplicativos. A rigor, essa situação de indisponibilidade é corrente em dias chuvosos e em feriados comemorativos. Com efeito, o aplicativo oferece um bônus, como forma de prêmio em dinheiro, àqueles que se dispuserem a intensificar a jornada de trabalho e a dar conta de um determinado número de entregas.

Nesse enredo, o trabalhador-entregador aparece como o sujeito móvel da prestação de serviços. Ele não é o trabalhador que desenvolve a atividade laboral dentro do ambiente fabril, mas sim na rua. O seu rito diário é recolher produtos em estabelecimentos comerciais demandados por consumidores (clientes) e realizar as entregas junto aos mesmos. Ele está sempre à espera de um chamado e disposto a dar partida em sua moto ou pedalar em sua bicicleta, enfrentando sol torrencial, chuva, tráfego intenso, além de outras intempéries do dia a dia do enfrentamento da sua jornada laboral.

Essa é a realidade do cotidiano laboral de vinte e dois (22) entregadores, predominantemente declarados do gênero masculino, que prestam serviços para diversas plataformas de entregas de comida na cidade de Natal (RN), localizada na Região Nordeste do Brasil, quais sejam: Uber Eats, iFood, Rappi, Bee, Delivery, 99 Food, Ame Flash, entre outras. No tocante à faixa etária, os sujeitos da pesquisa se classificam entre jovens-jovens, jovens- adultos e adultos, conforme se visualiza no Gráfico 1 abaixo:

Gráfico 1: faixa etária.

Fonte: Gráfico elaborado pelos autores com base nos dados colhidos junto aos entregadores.

Registra-se que, embora esses trabalhadores sejam relativamente jovens, intercalando faixa etária entre 18 e 39 anos, boa parte deles (40,9% – 9 trabalhadores) é casada e constituiu família. Desta forma, trabalhar para essas empresas, diante do elevado índice de desemprego e da falta de oportunidade de inclusão e recolocação no mercado de trabalho, é uma questão de sobrevivência para a maioria deles, sobretudo os casados.

Paradoxalmente a essa realidade, localiza-se um percentual de trabalhadores, mesclando entre jovens-jovens e jovens-adultos, que não manifestou nenhuma sensação de saudosismo em relação ao emprego formal e tampouco o reivindica. Uns, particularmente os mais jovens, ou seja, 18,2% (4) deles, talvez justifique o desprezo pelo vínculo formal porque nunca o experenciou, tendo no trabalho por plataforma a primeira e única experiência de emprego. Logo, são desprovidos de experiências para estabelecer comparação entre o vínculo laboral regular com o informal. Já 22,7% (5) dos entrevistados, enxergam um conjunto de vantagens no trabalho por plataforma e, como consequência, não despertam interesse pelo contrato formal.

Quanto aos aspectos positivos que fazem esses trabalhadores não almejarem o vínculo regular de trabalho, além da ausência da chefia, o não ter que cumprir horário se sobressai. Como afirmou um entregador, “na plataforma eu trabalho quando quero. Posso planejar a semana com facilidade e a demanda também” (MOTOBOY, 2021). Além disso, menciona outro que “trabalhar por plataforma é dinheiro rápido, eu trabalho para mim e não bato ponto” (MOTOBOY, 2021). Indubitavelmente há certa deturpação na compreensão quanto a alguns aspectos mencionados pelos trabalhadores como vantagens no tocante ao trabalho por essa modalidade, a saber: “trabalhar para si” e “trabalhar quando bem desejar”. Esse sentimento, que é reforçado ou induzido pelas plataformas por meio de uma política “positiva da ideologia do empreendedorismo”, parece colocar esses profissionais dentro de uma bolha. Para eles, como foi reiterado, o que mais vale a pena é

[...] a liberdade de não estar preso em uma repartição. Eu trabalho em casa, fico deitado. Quando chega o pedido, eu me levanto, pego a moto e vou. Não é um trabalho pesado, você conhece pessoas. Conheci vários porteiros, conheço muita gente, vários porteiros me conhecem. Eu gosto desse trabalho, você adéqua os horários de trabalho, você pode ganhar algum trocado. Você pode conciliar com outro trabalho (MOTOBOY, 2021)

Nessa perspectiva, pode-se aferir que não somente o declínio das ocupações regulares, e até decentes,1 nos termos que defende a Organização Internacional do Trabalho (OIT), como também a falta de interesse declarada de um perfil específico de profissionais pelo trabalho regular, com chefes autoritários, horários fixos, definição de metas abusivas e baixos salários, como salientado nos parágrafos precedentes, eleva a relevância das plataformas. Essas, atualmente, são vistas não apenas como possibilitadoras de geração de renda na atual conjuntura para a maioria dos entrevistados, bem como colocam em evidência que a carteira de trabalho assinada e a suposta rejeição à Consolidação das Leis do Trabalho (CLT), por parte de uma fração deles, sinalizam que a ocupação regular não é mais um talismã desejado pela maioria dos entrevistados. Aqui se reporta ao entregador autogerente subordinado, conforme Abílio (2020), que acredita ter controle sobre o seu trabalho e liberdade de escolhas diante de uma plataforma que desrespeita seu funcionamento fisiológico e precifica a remuneração ao seu bel prazer.

Especificamente nessa realidade, é conveniente salientar que se faz referência a um perfil de trabalhadores que têm ou tiveram experiências profissionais como jardineiro, office boy, pedreiro, promotor de vendas, gerente de lava a jato, manobrista, garçom, auxiliar de cozinha, agente de telemarketing, auxiliar administrativo, entre outros. Esse dado é relevante para que se evite a generalização de que há certa tendência à rejeição do vínculo empregatício formal pelos trabalhadores em geral. Com efeito, é preciso identificar qual o perfil dos profissionais que estão recusando a clássica forma de contratação. Ventila-se, a partir dos dados coletados, que essa inclinação se perfila mais com os trabalhadores com baixa escolaridade e reduzidas habilidades e competências para buscar ocupações de mais qualidade.

Nesse cenário, testemunha-se os trabalhos por plataformas delivery surgirem como alternativas capazes de suprir as necessidades básicas de cidadãos que estão vivenciando o amargor do desemprego, necessitando complementar renda ou desejando “trabalhar com liberdade”. Ainda que o valor que elas ofereçam por cada entrega seja considerado pífio, intercalando em média entre R$ 5,00 a R$ 40,00 na realidade analisada, ao menos garantem, ao término de um mês, para aqueles que têm somente o trabalho por plataformas como meio de subsistência, uma renda entre R$ 1.000,00 a R$ 3.000,00. Esse valor não é considerado tão baixo quando se compara com a média dos salários aplicados na cidade de Natal (RN), estado localizado no Nordeste do país, para aqueles ocupados no setor do comércio e serviços privados, como aponta pesquisa desenvolvida por Sales e Sales (2017).

Sabe-se que essas quantias são conquistadas após o entregador ficar à disposição das plataformas, em média de dez a doze horas por dia, por vezes os três turnos e até sete dias por semana. Esse modo nada humanizado imposto pela política que rege essas empresas, certamente, eleva a exploração do trabalho, impõe uma maior competição e aumenta o nível de vulnerabilidade dos trabalhadores. Interessante é que essa situação de insalubridade inerente a esse tipo de trabalho não é algo que passa despercebido entre esses profissionais, pois eles entendem que praticam um trabalho que é “bem remunerado para quem não tem qualificação” e, embora trabalhem “muitas horas”, ganham “relativamente bem”. Isso porque, como mencionam, “com carteira assinada e sem qualificação não ganharia igual, era menos” (MOTOBOY, 2021).

A rigor, o volume das entregas oscila durante os dias da semana, sendo o final de semana referência de maior demanda para os motoboys, considerado por eles “dias bem produtivos”. Acrescenta-se que, durante a “segunda onda” da pandemia, conforme o relato deles, o número de pedidos foi reduzido e a concorrência aumentou devido à ampliação do número de entregadores. Desta forma, a possibilidade de não poder fechar as contas ao término do mês por ocasião da redução de pedidos, bem como o aumento da concorrência, aparecem como motivos para deixá-los ansiosos.

No geral, pode-se afirmar que os entregadores, para além de estarem inseridos em um tipo de trabalho desregulamentado e de elevado nível de exploração, constituindo-se os autênticos trabalhadores informais, ficam entregues à própria sorte e em estado de pura adrenalina no enfrentamento do tráfego urbano. Essa fração de trabalhadores se movimenta sobre duas rodas nas ruas e avenidas da cidade de Natal, dividindo esses espaços públicos, que também se configuram em espaços comuns aos movimentos sociais contestatórios, para lembrar Harvey (2014), com veículos de pequeno, médio e grande portes.

Nas ruas, motoboys e bike boys ficam entregues à própria sorte e em estado de tensão permanente. A necessidade de prover o seu sustento – bem como o da família – em uma conjuntura de retração das ofertas de emprego, que se agudiza com a crise pandêmica, deixa-os, para além da desproteção social e da insegurança do trabalho, diariamente frente à violência urbana, circunscrita, nesta investigação, aos acidentes de trânsito e aos assaltos.

Assim, o temor do trânsito e dos assaltos são partes integrantes do dia a dia no trabalho dos profissionais delivery. Considerando o universo de 22 deles, 63,3% (14) já foram vítimas de acidentes de trânsito durante a jornada laboral e, por conseguinte, sofreram danos de várias ordens: material, físico e psicológico. Logo, não é raro o acontecimento de acidentes envolvendo esses trabalhadores, o que faz com que a percepção de risco e o sentimento de vulnerabilidade e de medo sejam sensações que os afligem. Nessa direção, eis o relato de um desses trabalhadores:

A gente arrisca a nossa vida 24h e ninguém fala pela gente. Eu sofri um acidente quando retornava para casa após a última entrega do dia. Era mais ou menos meia-noite na Avenida Roberto Freire, o sinal abriu para mim e quando avancei um carro atravessou o sinal e me pegou de lado. O carro fugiu e eu fiquei no chão muito machucado, sangrando e com dores. Eu perdi um rim, eu fiquei um ano me recuperando, parado sem trabalhar. Agora é que estou voltando a trabalhar (MOTOBOY, 2021).

Com o mesmo sentimento de vulnerabilidade, diz outro entregador:

O trabalho em cima de uma moto é sempre arriscado. Já bateram em mim quatro vezes e a culpa foi dos motoristas que bateram em mim. Uma delas foi grave e quebrou a moto toda. Eu tive a mão e pé fraturados e a minha perna rasgou feio. Eu tenho uma cicatriz grande na coxa, passei um tempão imobilizado sem poder trabalhar (MOTOBOY, 2021).

Essas duas narrativas expõem parte dos inúmeros acidentes de trânsito que acometem corriqueiramente os motoboys. A atividade profissional que realizam, tendo como escritório as vias públicas, joga-os à desordem e ao desregramento do trânsito caótico, bem como à imprudência dos motoristas. Essa condição, no entanto, coloca-os em um contínuo estado de risco à vida e de vulnerabilidade social. Sabe-se que o número de acidentes envolvendo esses profissionais cresce exponencialmente em todo o país.

No entanto, o que chama a atenção é a frequência dos acidentes e o descaso das instâncias reguladoras, sobretudo, das plataformas, diante dessa problemática. Aqui, não está se demarcando simples acidentes, mas sinistros que mutilam, que deixam o trabalhador deficiente, paralisado, amedrontado etc. Inclusive, a depender da recorrência e da gravidade dessa questão, poderá se desdobrar tanto em um problema de saúde mental como de saúde pública, tendo em vista a escassez de médicos, a carência de leitos, tratamento pouco humanizado etc., para atender à demanda das ocorrências

É conveniente ressaltar que, quando esses trabalhadores ficam distanciados do trabalho por ocasião de algum sinistro, tendem a ficar à deriva de auxílios sociais ou qualquer outro benefício, uma vez que são profissionais que, em sua maioria, estão na condição de informais. Isso posto, passam a depender da ajuda financeira da família e de doações de amigos devido à necessidade de “pagar as contas e sobreviver”, como bem mencionou um motoboy. Além disso, a rotina da vida é alterada e o nível de precarização da vida é acentuado devido às privações econômicas que sofrem por ocasião da falta de renda.

Nesse sentido, cabe apresentar o pedido de ajuda, que foi compartilhado pelo grupo MOTOBOYS/NATAL na plataforma Facebook, após um entregador ser vítima de acidente no trânsito:

[...] sofri um acidente ontem na avenida Airton Senna e a culpa foi da irresponsável motorista que foi enrolar na faixa de pedestre para pegar voltando a outra avenida causando um acidente ao qual eu bati na traseira. Enquanto eu estava no chão ela fugiu [...]. Eu estou no Walfredo Gurgel não sei onde eles vão fazer a cirurgia. Não sei quando vou poder trabalhar e gostaria da ajuda de vocês de qualquer valor para poder pagar minhas contas e boletos (MOTOBOY, 2021).

Um dado que desperta atenção nesse depoimento é que, mesmo em um contexto em que a ética neoliberal provoca a criação do “sujeito do desempenho”, ou seja, o “sujeito neoliberal”, conforme aponta Dardot e Laval (2016), identifica-se que os motoboys acionam, por meio das plataformas de relacionamentos, redes de solidariedade quando necessitam de ajuda. Na verdade, ecoam nas plataformas Facebook e WhatsApp os gritos de socorro quando esses profissionais demandam por auxílios, e são dessas plataformas também que chegam a assistência e o amparo nas inúmeras situações de violência que acometem esses profissionais. Subitamente, a multidão dispersa logo se aglomera em prol do colega de profissão2.

Diga-se que, nesses relatos, se tem a dimensão da vivência com o trabalho dos motoboys. O medo, a tensão e o risco estão relacionados diretamente com a atividade que desenvolvem. Em todos os casos expostos, no corpo deles estão fincadas as marcas da violência urbana: cicatrizes de cirurgias por fraturas expostas, cortes profundos, perda de órgãos, queimaduras, entre outros. Soma-se a essa situação o desamparo das empresas-plataforma e aplicativos que, ao assumirem o discurso de que “são mediadoras entre uma multidão de prestadores de serviço e consumidores” (SLEE, 2017, p. 14), não oferecem nenhum tipo de assistência a eles. Isso fica evidenciado na fala de um motoboy que faz a seguinte afirmação: “a plataforma não me deu nenhum tipo de assistência nem durante o acidente e nem depois, quem me ajudou foi a minha família e os colegas que viram o acidente e eles ficaram comigo até o socorro do Serviço de Atendimento Móvel de Urgência (SAMU) chegar”.

Esse quadro se tensiona ainda mais quando esses trabalhadores se colocam frente à problemática da “segurança pública”. Essa dimensão se traduz nas situações de assaltos que se banalizam no dia a dia dos centros urbanos. Isso implica dizer que o enfrentamento com os assaltos se integra à vivência do trabalho dos motoboys e bike boys. No caso, boa parte dos entrevistados, ou seja, treze (13) deles foram vítimas desse ato violento.

Em três dessas situações, os assaltantes levaram as motos dos entregadores, ou seja, o seu instrumento por excelência de trabalho. Esses assaltos se processaram da seguinte forma: um após a entrega do pedido ao cliente em um condomínio de luxo, localizado em um bairro da zona sul; o outro, na chegada para a entrega de um pedido, localizado em uma avenida de grande circulação na cidade; e o terceiro quando o motoboy se deslocava para casa, em uma cidade da região metropolitana de Natal, após uma jornada de 10 horas de trabalho.

Todas as três situações de assaltos foram à mão armada. Em um deles, os marginais atearam fogo na moto do entregador em razão do bloqueador antifurto ter sido acionado. Esse ato violento deixou a vítima completamente desnorteada, como ele mesmo narrou: “eu não sei o que fazer, estou desesperado. Eu preciso da moto para trabalhar, mal acabei de pagar a moto, eles tocaram fogo na minha moto. Como vou sustentar a minha família, como vou trabalhar? [...]” (MOTOBOY, 2021). Eis o relato, carregado de emoções, de quem, ao ter que trabalhar, se arrisca todos os dias nas ruas da capital do Rio Grande do Norte.

Deste modo, o trabalho dos entregadores por plataformas coloca à mostra não somente a devastação pela qual passa o labor na transição do século XX para o XXI, como também as condições e o nível de tensão, de medo e de vulnerabilidade daqueles que sobrevivem por meio dessas empresas tecnológicas. Esses profissionais são completamente desprovidos de uma rede social protetiva capaz de lhes assegurar garantias e direitos nessa relação em que capital e trabalho estão contraditoriamente envolvidos. Eles, nos termos de Robert Castel (1998), são os autênticos desfiliados, categoria profissional que está deslocada da sociedade salarial e de um mercado de trabalho formal.

A rigor, esses trabalhadores são criação do capitalismo contemporâneo que radicaliza a flexibilização, impõe novas condições de trabalho e, por sua vez, obriga “grande número de trabalhadores a correrem risco” (SENNETT,1999, p. 104). Especificamente os profissionais de entregas de comida, apesar de terem uma vida marcada pelo risco diário de acidentes no trânsito e assaltos, personificam a narrativa neoliberal, encontrando significado e sentido na falsa ideia de liberdade, autogerenciamento, empreendedorismo e autonomia, vendidas pelas empresas-plataforma, conforme apontam Abílio (2020), Antunes (2018), Slee, (2017) e Han (2017).

Nessa perspectiva, ainda que questões relativas ao risco de acidentes e adoecimentos estejam presentes no cotidiano laboral dos entregadores, não se deve naturalizar essa relação. Isto porque o trabalho tem o potencial de ser uma atividade que contribua para a construção do senso de realização e identidade dos trabalhadores. Contudo, essa capacidade é negada à medida em que o trabalho se configura na forma de exploração de uma classe sobre a outra.

Considerações finais

O estudo buscou analisar as situações de risco que atravessam o cotidiano do trabalho dos motoboys e bike boys na cidade de Natal (RN). O foco foi demarcar a situação de vulnerabilidade e violência, manifestada nos acidentes de trânsito e nos assaltos, como parte integrante da vida laboral desses profissionais.

Ao trazer para o centro da investigação a questão da violência urbana, tomou-se ciência do quão vulnerável é a vida dos motoboys. Os sinistros no trânsito, bem como os assaltos com arma de fogo, expõem não somente o nível de vulnerabilidade social como também o sentimento de medo, tensão e ansiedade pelos quais passam durante a jornada laboral.

Como se pôde perceber, os motoboys se jogam à própria sorte para conquistar renda. Quando vítimas de assaltos e acidentes no trânsito, ficam à deriva de qualquer forma de amparo legal pelas plataformas. O socorro e a ajuda chegam pelas mãos da família e dos colegas de profissão, que são acionados pelas plataformas de relacionamentos, como Facebook e WhatsApp, e se unem em centenas em torno do apelo da vítima.

A elevada jornada de trabalho e os pífios valores que recebem por cada entrega sinaliza o nível de exploração que se associa ao trabalho que esses profissionais praticam. Essa condição parece encontrar traços de semelhanças com situações pelas quais vivenciaram os trabalhadores durante o advento da Primeira Revolução Industrial, tão bem analisada por Engels na clássica produção “A situação da classe trabalhadora na Inglaterra”.

Esses sujeitos não são mais reconhecidos como trabalhadores, porque se tornaram parceiros na prestação de serviços. Eles não possuem mais contrato de trabalho, mas uma inscrição aprovada em uma empresa digital que lhes transfere todas as responsabilidades e custos; não desfrutam mais de um sistema de proteção social porque se tornaram “empresários de si mesmos”. Eles não têm mais chefes, contudo, vivem vinte e quatro horas sob controle e vigilância dos complexos e sofisticados algorítmicos.

Assim, o fenômeno da “plataformização” cria os “párias” modernos que, ao serem seduzidos, em parte, pelo discurso do empreendedorismo e pela ideia de “liberdade”, acreditam, equivocadamente, ter controle do seu tempo de trabalho. Não sabem eles que estão entregues à liberdade coercitiva ou à livre coerção de maximizar o seu desempenho” (HAN, ٢٠١٧, p. 30).

Certamente, a ampliação das empresas tecnológicas impulsionará cada vez mais uma sociedade marcada por uma desigualdade ainda mais exacerbada e por um trabalhador cada vez mais distante do emprego regular, normativo e com salários dignos.

Referências

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Recebido em: 22/12/2021

Aceito em: 11/11/2022


1 Nos termos da Organização Internacional do trabalho, o trabalho decente se define como o trabalho remunerado, exercido em condições de liberdade, equidade, segurança e dignidade humana.

2 Especificamente na cidade de Natal, os entregadores se articulam por meio de grupos nas plataformas WhatsApp e Facebook, não possuindo um comando centralizado. Todavia, o Grupo da Pressão (GDP), como se nomina, puxa e mobiliza a categoria por ocasião de ações pontuais, a exemplo dos atos contra o aumento do combustível e contra os excessos da plataforma iFood. Diga-se que o processo de construção de uma associação capaz de oferecer maior representatividade à categoria começou a ser pauta de conversas.

PROFESSORES UNIVERSITÁRIOS TEMPORÁRIOS NO SETOR PÚBLICO E A TENDÊNCIA DE “DESESTABILIZAÇÃO DOS ESTÁVEIS”

TEMPORARY FACULTY IN THE PUBLIC SECTOR AND THE TREND OF “DESTABILIZATION OF STABLES”

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Kelen Bernardo*1

Maria Aparecida Bridi**

Resumo

Nas últimas décadas, no Brasil, verifica-se um aumento de contratações de professores por tempo determinado, denominado neste artigo de “temporários”, para atuarem no ensino fundamental e médio. Este artigo, tendo como foco as universidades estaduais do Paraná, analisa o crescimento do número de professores contratados nessa modalidade. A administração pública passou a utilizar amplamente um dispositivo previsto constitucionalmente e regulado por legislações estaduais, que autoriza a contratação de pessoal temporário para atender às demandas emergenciais de excepcional interesse público, como forma de manutenção da oferta dos serviços públicos. Com base em dados coletados nos últimos 15 anos, nas sete universidades estaduais do Paraná, e em entrevistas semiestruturadas realizadas com representantes sindicais dessas instituições, analisamos a contratação de professores temporários e as condições de trabalho decorrentes dessa forma de vínculo de trabalho. A análise dos dados no período de 2002 a 2017 evidencia o aumento exponencial da inserção de temporários quando comparado com a evolução do quadro de docentes concursados. São formas precárias de contratação devido, sobretudo, à instabilidade contratual e ao não acesso aos direitos da categoria contidos, por exemplo, no plano de carreira.

Palavras-chave: Condições de trabalho. Precariedade. Flexibilização. Professores universitários temporários.

Abstract

In the last decades, in Brazil, an increase has been identified in flexible hiring of teachers for determined term, hereinafter referred to as “temporary teachers”, to work in the fundamental and high school education. This article focuses on the universities of Paraná and analyses the increase in the number of teachers hired under this modality. The public administration began to use a constitutionally foreseen device, which is regulated by state laws, which authorizes the hiring of temporary staff to meet emergency demands of exceptional public interest, as a means of maintaining the supply of public services. Based on data collected from the last 15 years, in the seven State Universities in the state of Paraná, and through semi-structured interviews carried out with union representatives from state headquarters we have analyzed the modality of hiring temporary teachers and the working conditions within this form of employment relationship. Data analysis from 2002 to 2017 highlights the exponential increase in the placement of temporary teachers when comparing to the evolution of the faculty staff hired through public contests. These are precarious forms of hiring due especially to the contractual instability and the lack of access to the rights of the category contained, for example, in the career plan.

Keywords: Working conditions. Precariousness. Flexibilization. Temporary university professors.


1* Doutora em Sociologia pela Universidade Federal do Paraná. Mestre em Ciências Sociais Aplicadas (UEPG) e graduada em Serviço Social (UEPG). Docente temporária do Departamento de Serviço Social da UEPG. Membro do Grupo de Estudos Trabalho e Sociedade (GETS/UFPR) e pós-doutoranda em Sociologia pela UFPR. E-mail: kelenbernardo18@gmail.com

** Doutora em Sociologia pela UFPR. Professora do Departamento de Sociologia (DECISO) e do Programa de Pós-Graduação em Sociologia da Universidade Federal do Paraná (UFPR), da qual foi coordenadora no período de 2016 a 2020. Professora visitante no Colégio de México (2021/22). Integra a coordenação nacional da Rede de Estudos Interdisciplinares e Acompanhamento da Reforma Trabalhista (REMIR). Coordena o Grupo de Estudos do Trabalho e da Sociedade (GETS/CNPq) e integra o Grupo de Pesquisa Clínica em Direito do Trabalho (PPGD/UFPR). E-mail: macbridi@gmail.com

ISSN 1517-5901 (online)

POLÍTICA & TRABALHO

Revista de Ciências Sociais, nº 57, Junho/Dezembro de 2022, p. 187-204

Introdução

Desde os anos 1970, o trabalho vem sofrendo alterações significativas decorrentes de processos macroeconômicos e políticos, com a emergência do regime de acumulação flexível (HARVEY, 2014), ancoradas em mudanças tecnológicas. Essas mudanças analisadas pelos pesquisadores da Sociologia do Trabalho e de outros campos disciplinares, contaram, segundo Bridi, Braga e Santana (2018, p. 44), com os esforços de interpretação dos fenômenos globais “resultantes das dinâmicas gerais do capitalismo daquilo que seria específico e particular da sociedade brasileira”. Segundo os autores, os esforços se concentraram em entender as alterações no capitalismo e as modalidades de exploração do trabalho que assumem contornos e dimensões distintos, “em compreender e analisar as configurações do trabalho, do mercado de trabalho e as formas de organização coletiva face à chamada reestruturação produtiva que visava adaptar ainda mais o Brasil aos novos regimes de acumulação.” (BRIDI; BRAGA; SANTANA, 2018, p. 44).

Esses esforços teóricos foram fundamentais para a compreensão das transformações do trabalho, sobretudo, no setor privado. Afinal, é a busca da lucratividade e a consequente redução dos custos da mão de obra que orientou o capital a adotar os modelos de produção enxuta e flexível. Mas o que acontece no setor público, historicamente configurado com empregos mais protegidos e estáveis, condição, inclusive, assegurada pela Constituição de 1988? Diga-se, a estabilidade cumpre a função de assegurar a autonomia dos servidores públicos de modo a não sucumbirem às pressões políticas alheias à finalidade de seu trabalho, como também tem a finalidade de assegurar a continuidade da prestação de serviço à sociedade. Para a educação, a estabilidade do corpo docente é fundamental, visto que a formação escolar e acadêmica demanda planejamentos de médio e longo prazo, avaliação e retroalimentação dos processos educativos, como aponta a literatura a respeito.

Ocorre que desde as últimas décadas do século XX, as práticas de gestão da força de trabalho características do setor privado têm adentrado o setor público em seus diversos espaços institucionais (empresas públicas, fundações, autarquias, entre outros) impactando o trabalhador vinculado ao Estado. Nesse sentido, novos esforços teóricos em curso buscam analisar o trabalho e suas configurações no setor público, uma vez que não pode ser explicado pelas mesmas matrizes do setor privado. O desafio teórico consiste em analisar as particularidades do serviço público, visto que, a priori não objetiva o lucro privado, não podendo ser analisado como se fosse um simples espelho do que ocorre no âmbito privado. O presente artigo objetiva analisar a modalidade de contratação temporária de professores nas universidades estaduais do Paraná, tendência em crescimento, e sinalizar para os problemas decorrentes dessas formas de contratação na educação superior.

No ensino público superior no Paraná, tem sido cada vez mais recorrente a contratação de professores por tempo determinado, denominados neste artigo de temporários. Embora a denominação como trabalho temporário juridicamente se refira ao trabalhador contratado por empresas privadas de intermediação de mão de obra tipicamente celetista, nos editais de seleção das universidades estaduais há uma diversidade de denominações para a contratação de docentes via Contratos de Regime Temporário (CRES), dentre os quais, as nomenclaturas: “professor colaborador”, “professor de ensino superior por prazo determinado”, “contratação temporária de professor” e “professor temporário”. Desse modo, nossa opção pelo termo “professor temporário”, se deve a uma abordagem sociológica e política, que configura a situação desse trabalhador, ou seja, um trabalhador temporário e instável que atua no ensino superior público.

Há uma crescente demanda por docentes temporários que as sete universidades estaduais do Paraná apresentam ano a ano. No início do ano letivo de 2017, por exemplo, seis das sete universidades estaduais demandaram a contratação de professores temporários para suprir um total de 54.992 mil horas-aula semanais. Já no início do ano de 2018, a gestão estadual autorizou a contratação de professores temporários para atender um montante de 55.905 horas semanais, um aumento de 913 horas em relação ao ano anterior. Essas milhares de horas são realizadas por professores temporários através do que chamamos eufemisticamente de “contratação flexível”, isto é, contratos por tempo e jornada de trabalho para um período que varia de seis meses a dois anos.

O termo “flexível”, portanto, não tem conotação positiva como se poderia supor, uma vez que se trata de uma forma na qual os docentes podem ser descartados a qualquer momento. Dentre as especificidades dessa modalidade de contratação, tem-se que o recrutamento, a seleção e a contratação são de responsabilidade de cada universidade, não se confundindo com a contratação celetista ou outras modalidades flexíveis que existem no mercado de trabalho.

Através de metodologia qualitativa (análise de documentos, bibliografias pertinentes e entrevistas semiestruturadas) e dados quantitativos gerados nas coletas do número de docentes nas estaduais, o presente artigo demonstra o aumento das contratações de professores temporários nas universidades estaduais do Paraná, no período que compreende de 2002 a 2017. Para tal, tomamos os dados de dois períodos principais: 2002 a 2012, referentes às formas de vínculos dos docentes atuantes no sistema estadual de ensino superior público do Paraná, obtidos no Censo Acadêmico disponibilizado na página da Superintendência Geral de Ciência, Tecnologia e Ensino Superior (Seti); e os dados de 2013 a 2017 coletados junto aos setores de recursos humanos das sete estaduais, por meio das vias oficiais (e-mails, telefones, sites)1. A hipótese defendida é a de que a expansão da flexibilização contratual no setor público é uma das consequências das mudanças engendradas no contexto do capitalismo contemporâneo, de reestruturação do trabalho e dos processos de enxugamento do Estado, levado a cabo pelas políticas de austeridade que têm como força motriz o ideário neoliberal.

O sistema estadual de ensino superior do Paraná e as formas de contratações atuais

O sistema estadual de ensino superior no Paraná nasceu a partir da reestruturação e agrupamento de faculdades já existentes. Atualmente é composto por sete universidades estaduais que possuem diversos campi localizados em diferentes municípios do estado. São elas: a Universidade Estadual de Londrina (UEL), a Universidade Estadual de Maringá (UEM), a Universidade Estadual de Ponta Grossa (UEPG), a Universidade Estadual do Oeste do Paraná (Unioeste), a Universidade Estadual do Centro-Oeste do Paraná (Unicentro), a Universidade do Norte do Paraná (UENP) e a Universidade do Estado do Paraná (Unespar), a qual incorporou em sua estrutura sete faculdades que já existiam espalhadas em várias regiões do estado.

As três primeiras universidades – UEL, UEM e UEPG – foram criadas entre as décadas de 1960 a 1970, na esteira de uma política nacional-desenvolvimentista que vigorava no Paraná (governo Paulo Cruz Pimentel). Tal política intentava também “alavancar a industrialização e fortalecer a infraestrutura do Paraná” (BRAUNERT, 2018, p. 68), alterando sua tradição agrícola e rural. As demais universidades estaduais foram criadas no período de 1990 a 2000. Com exceção de 1997 e de 2013, cujas universidades foram fundadas em governos estaduais de tradição neoliberal, as demais foram constituídas em governos que apresentavam alguma vinculação com políticas desenvolvimentistas.

Do ponto de vista jurídico-institucional, as universidades estaduais são autarquias e atualmente estão vinculadas à administração pública indireta sob a responsabilidade administrativa da Seti. As sete universidades estaduais ofertam 333 cursos de graduação, 263 cursos de especialização, 127 de mestrado e 54 doutorados (RUNIFI, 2015). Em relação ao número de matrículas, as sete estaduais contabilizaram, em 2017, um total de 76.039 matrículas nos cursos de graduação, sendo que 66.579 na modalidade presencial e 9.460 à distância. Na pós-graduação stricto sensu – mestrado e doutorado – no período de 2004 a 2017, verificou-se um expressivo crescimento de 291,99%. Em 2004, do total de 2.209 matrículas nos cursos de mestrado e doutorado saltou para 8.659 em 2017, enquanto “as matrículas da graduação, a evolução foi de 5,24%: de 72.255 em 2004 para 76.039 em 2017” (REIS, 2018, p. 10). Foi, portanto, a pós-graduação stricto sensu o nível de ensino que mais cresceu no referido período.

No tocante à composição do quadro de pessoal, as universidades frequentemente adotam o regime estatutário, sendo que seus trabalhadores são classificados como servidores públicos. Podem, porém, existir outras modalidades de vínculos que não o estatutário, como os empregados públicos e os servidores temporários. Os servidores públicos, segundo Di Pietro (2009), são as pessoas físicas que prestam serviço à administração pública (direta e indireta), mediante vínculo empregatício em que a remuneração é paga pelos cofres públicos. Atualmente, são três os regimes jurídicos dos servidores públicos: os servidores estatutários, os empregados públicos e os servidores temporários. Este último é contratado por tempo determinado para “atender à necessidade temporária de excepcional interesse público” e “exercem função, sem estarem vinculados a cargo ou emprego público.” (DI PIETRO, 2009, p. 512-513).

A contratação de professores pelas universidades estaduais ocorre via concurso público, ocupando a condição de servidores estáveis após o período do estágio probatório (três anos). Essa é a modalidade de contratação que assegura ao docente a estabilidade, inserção no plano de cargo e carreira, acessando as condições consideradas necessárias para o desenvolvimento das atividades acadêmicas, que envolvem ensino, pesquisa, extensão e gestão. Entretanto, consonante com as tendências atuais, ampliam-se outras formas de contratações, tais como a modalidade de “professor temporário” e do “professor bolsista”. Esse último, nas estaduais do Paraná, é contratado como tutor ou professor-formador para atuar na Educação à Distância (EAD).

O avanço das contratações temporárias de docentes

A contratação temporária de pessoal pela administração pública para excepcional interesse público, é prevista legalmente – Constituição Federal de 1988, artigo 37 e Constituição Estadual no artigo 27, inciso IX – e consolidada na Lei Complementar n. 108/2005. Em relação à contratação de docentes temporários, o artigo 2º, inciso VI autoriza a contratação para “atender ao suprimento de docentes e funcionários de escola na rede estadual de ensino e nas Instituições Estaduais de Ensino Superior, nas hipóteses previstas na presente lei complementar.” (PARANÁ, 2005). Mesmo sendo prevista para ocasiões de emergências, os dados das contratações temporárias de docentes nas sete estaduais paranaense demonstram aumento ao longo dos últimos anos, fato que revela o desvirtuando do caráter emergencial da Lei Complementar 108/2005, tornando a contratação temporária uma tendência, como se pode observar na Tabela 1, na qual constam os números absolutos e o percentual de professores estatutários e temporários.

Tabela 1 - Composição do quadro de docentes das universidades estaduais

no período de 2002 a 2017

Ano

Número Absoluto

Professor Concursado

Número Absoluto Professor Temporário

% Professor Temporário

2002

4344

564

13%

2003

4729

594

13%

2004

4551

594

13%

2005

4440

1056

24%

2006

4442

1178

27%

2007

4527

1092

24%

2008

5013

1323

26%

2009

5035

1078

21%

2010

5120

1279

25%

2011

5058

1354

27%

2012

5505

1193

22%

2013

5434

1410

26%

2014

6139

1587

26%

2015

6204

1809

29%

2016

6048

2035

34%

2017

6011

1895

32%

Fonte: Bernardo e Bridi (2019)

Os dados de 2002 a 2017, que somam 15 anos, sobre a composição do quadro de docentes das sete universidades estaduais revelam que a contratação de professores temporários vem crescendo no período analisado. Entre 2002 e 2004, se manteve em 13% de professores temporários. Em 2005, ocorre um aumento significativo na contratação de temporários, representando 24% do quadro de docentes vinculados ao ensino superior estadual. No ano de 2006, o percentual de docentes temporários continua a subir, atingindo a casa de 27%.

A conformação do quadro de docentes nas universidades, nesse período em específico (2003-2005), pode ser atrelada aos resultados das ações tomadas nos primeiros anos do governo Roberto Requião (2003-2005), como a redução orçamentária para as universidades, congelamento nos processos de abertura de novos cursos e novos campi, não abertura de concursos públicos, não reposição salarial das perdas inflacionárias (BOSI; REIS, 2004).

Nos anos seguintes, 2008 e 2009, observa-se uma redução no percentual de docentes temporários, porém, o índice volta a subir em 2010 para 25%. De janeiro de 2011 até abril de 2018, sob o governo de Carlos Alberto Richa (PSDB), alinhado ao ideário neoliberal, ocorre um aprofundamento das contratações flexíveis nas universidades estaduais analisadas. No período de 2011 a 2017, há flutuações com preponderância para o aumento do percentual de temporários. Em 2011, havia 27% do quadro de docentes com vínculo temporário. Esse percentual reduz para 22% em 2012, voltando a subir nos anos seguintes, 2013 e 2014 com 26%, chegando em 2015 a 29%. O ano de 2016 apresenta o maior índice da série analisada, sendo 34% dos docentes temporários. E em 2017 ocorre leve recuo para 32%.

Em síntese, temos que, em 2002, as estaduais possuíam um total de 4.344 professores estatutários e 564 temporários. Esse quadro sofre drásticas mudanças nos anos seguintes, chegando em 2017 com 6.011 docentes do quadro estatutários e 1.895 professores com vínculo de trabalho temporário. Ao comparar a evolução percentual do quadro de docentes nas duas modalidades analisadas entre 2002 e 2017, verifica-se que ocorreu um crescimento de 38,3% para os concursados e 236% para os temporários. Importante ressaltar que, em 2002, a UENP e a Unespar ainda não integravam o quadro das estatuais, o que pressupõe que o aumento do percentual de docentes concursados pode estar vinculado ao processo de integração das faculdades estaduais que deram origem às referidas universidades.

O aumento das contratações flexíveis ocorre de forma desigual em cada estadual com diferenciações e flutuações, como é possível verificar na tabela a seguir:

Tabela 2 - Relação de contratação de professores por tipo de contrato com variação percentual de ano inicial para ano final de análise

Estadual

Docentes estatutários

Docentes temporários

2002

2017

% 2002-2017

2002

2017

% 2002-2017

UEPG

645

737

14,5%

64

176

175%

UEL

1.461

1.409

– 3,5%

189

231

22,2%

UEM

1.198

1.288

7,5%

79

602

662%

Unicentro

308

559

81,4%

69

272

294,2%

Unioeste

732

1.071

46,3%

163

243

49%

UENP

2008

2017

% 2008-2017

2008

2017

% 2008-2017

273

281

2,9%

53

139

148,2%

Unespar

2014

2017

% 2014-2017

2014

2017

% 2014-2017

702

666

– 5,1%

149

232

55,7%

Fonte: Bernardo (2020)

Ao analisar os dados isolados em cada estadual, observamos discrepâncias nos percentuais. Em relação ao quadro de professores estatutários, a Unicentro (81,4%) e a Unioeste (46,3%) são as que apresentam maior aumento, ao passo que a UEL (-3,5%) e a Unespar (-5,1%) tiveram seu quadro reduzido no período em análise. Quanto aos temporários, a UEM (662%) desponta com maior índice, bem acima da média das estaduais, seguida da Unioeste (294,2%). As diferenças entre as estaduais reforça a afirmativa de que as especificidades e disparidades locais impactam o processo de composição do quadro dos trabalhadores docentes. Se assim não fosse, haveria similaridade entre os dados estaduais e os dados de cada universidade.

A tessitura delineada pelos dados esconde um cenário crítico em que se verifica a expansão do ensino, sobretudo na pós-graduação, esfera em que os temporários não podem atuar, acompanhada do baixo crescimento do quadro de professores estatutários. Em termos percentuais, na comparação entre 2002 e 2017, temos: a) na graduação um crescimento de 115% nos cursos e de 41,8% nas matrículas; no mestrado uma elevação de 279,6% de cursos e 334,4% nas matrículas; no doutorado uma ampliação de 566,7% nos cursos e uma explosão de 911% no volume de matrículas. (BERNARDO, 2020)

Os dados de contratação demonstram, assim, que o dispositivo da Lei Complementar n.108/2005 vem sendo utilizado para atender a demandas estruturais e não apenas contingenciais, temporárias e excepcionais do Estado, evidenciando a opção pela contratação temporária em detrimento ao concurso público para manutenção das estaduais do Paraná. Essa modalidade de contratação atinge um segmento de trabalhadores altamente qualificado e que tradicionalmente possuía mais segurança nas relações de trabalho; distinto, portanto, de outras épocas, quando no mercado de trabalho brasileiro as vagas de trabalho tipicamente flexíveis e precárias eram ocupadas majoritariamente por trabalhadores com pouca qualificação ou com formação mais generalista. Na compreensão de Krein (2007, p. 11), a flexibilização é uma agenda demandada pelas transformações no sistema capitalista contemporâneo e que possui implicações mundiais. A partir da definição das formas de flexibilidade elaboradas por Krein (2007), identifica-se que a contratação temporária de docentes se configura, em parte, como uma “flexibilidade numérica”, pois usa de artifícios previstos em lei para contratações emergenciais. A flexibilização funcional também está presente na gestão dos contratos dos docentes temporários quando o Estado celebra contratos com Regimes de Trabalho (RT) flexibilizados, uma diversificação imensa de jornadas de trabalho. Identificamos uma variedade de regimes de trabalho: RT 8, RT 9, RT 10, RT 12, RT 14, RT 16, RT 24, RT 26 RT 30, RT 40. Um contrato RT 8, por exemplo, significa que o docente foi contratado para uma jornada de apenas oito horas semanais, e assim sucessivamente. São, portanto, uma multiplicidade de regimes de trabalho presentes principalmente na Unioeste, Unicentro e Unespar, sendo que as demais universidades pesquisadas demonstraram optar por contratar preponderantemente nos RTs 20 e 40.

Importante frisar que, até meados de 2016, apesar de não haver especificação quanto ao regime de trabalho na Lei Complementar n. 108 (PARANÁ, 2005), nos editais de seleção era predominante o regime de 20 e 40 horas semanais. Ocorre que, a partir de 2017, a orientação do governo do Paraná para as estaduais era de que a carga horária máxima de cada contrato não poderia ser superior a 20 horas semanais, medida que flexibiliza ainda mais a jornada de trabalho e interfere diretamente na autonomia das universidades na gestão das atividades acadêmicas. Em 2018, essa normativa aparece vinculada ao artigo 2.º do Decreto n. 9.028, que autoriza a contratação de docentes temporários pelas IEES: “Art. 2.º A carga horária máxima de cada contrato de docente em regime especial CRES será de 20 horas semanais, admitida a possibilidade de que o mesmo docente tenha mais de um contrato2, desde que haja compatibilidade de horários. (PARANÁ, 2018).

Essa normativa possibilita uma absorção maior de horas em sala de aula a depender do Regulamento da Política Docente, por exemplo, na UEPG, a distribuição média da carga horária, para os professores em regime de 40 horas semanais sem Regime de Dedicação Exclusiva, é de 16 horas em sala de aula, sendo o restante completado pelas 16 horas de preparo e demais atividades correlatas à docência. Já para o regime de 20 horas, a exigência é de 10 horas semanais em sala de aula, ou seja, 10 horas em sala e 10 horas de preparo. Ao limitar o teto do regime de 20 horas por contrato, a gestão estadual, no contexto analisado, adotou estratégia precarizante do trabalho, uma vez que ao celebrar dois contratos de 20 horas, atende-se a 20 horas em sala de aula, enquanto com um contrato de 40 horas, atende-se a 16 horas-aula em média, medida que resulta em ganho de 4 horas semanais acumuladas a cada dois contratos RT-20. Quando comparado com o montante de 55.905 horas – total de horas que as IEES foram autorizadas a contratar docentes para suprir a demanda do ano letivo de 2018 – presume-se que a economia seja expressiva.

O estudo demonstra que há diferenças entre as sete universidades estaduais, tanto quanto aos percentuais de docentes temporários quanto aos RTs. Isso se deve às resistências locais de se contratar jornadas parciais, consideradas precárias, “uma vez que as universidades dispõem de autonomia para compor o edital no que diz respeito ao número de horas departamentais,” pois mesmo diante da orientação da gestão estadual para que os contratos não excedessem o RT-20, alguns departamentos mantiveram a prática de contratos RT-40. (BERNARDO; BRIDI, 2018, p. 18).

As diferenças observadas entre as universidades estaduais se devem à relativa autonomia para compor o edital no que diz respeito ao número de horas departamentais influenciada pelas dinâmicas de resistência ou normalização da contratação flexível por parte dos docentes em cargos de gestão nas estaduais. A existência do fracionamento do regime de trabalho denota um alinhamento com a flexibilização funcional nos termos de Krein (2007), a flexibilização numérica e a flexibilização da jornada de trabalho, impelindo que tais docentes recorram a outros trabalhos para composição de renda. Isso corrobora a concepção de trabalho precário, devido à insuficiência de jornada e renda.

As disparidades quanto à existência, em maior ou menor grau, de contratos temporários, diversificação de regimes de trabalho parciais, nas universidades estaduais do Paraná, pode expressar processos dicotômicos e tensões que envolvem tanto a falta de alternativas dos pares frente à ausência de recomposição do quadro de docentes via concurso, sendo as contratações temporárias a resposta imediata para atender às demandas crescentes de trabalho, como também processos de alinhamento e aderência da administração do governo estadual, e não muito raro das estaduais, à flexibilização, por considerarem mais vantajosas. Assim, mesmo se tratando de um processo global, as características e intensidade que as contratações temporárias assumem estão relacionadas às resistência ou processos de normalizações encontradas nos espaços micros, nas práticas sociais organizadas no tempo e no espaço, nas relações entre estrutura e ação de forma interdependente, nos termos da teoria da estruturação de Giddens (2001). Nesse sentido, as condições particulares de cada universidade e departamento, e suas opções pela contratação por tempo integral ou tempo parcial, sugerem situações de resistência quando se recusam as modalidades consideradas mais precárias, quando se escolhe pelo RT a ser contratado. Em alguns casos, se constitui na única saída para a manutenção dos cursos e, ao mesmo tempo, para assegurar as condições mínimas de trabalho dos docentes permanentes, que assumem cargas de trabalho elevadas, decorrentes principalmente das demandas inerentes à pós-graduação, o nível de ensino que teve significativo crescimento nas universidades estaduais. Apesar desse crescimento, as universidades estaduais não contaram com nenhum programa de ampliação da força de trabalho pela via dos concursos públicos. Nas estaduais, programas como o Programa de Apoio a Planos de Reestruturação e Expansão das Universidades Federais (Reuni) inexistiram.

Na composição da carga horária de trabalho dos professores temporários, o desenvolvimento de atividades na pós-graduação stricto sensu não podem ser computadas. Essa proibição sobrecarrega o trabalho dos professores permanentes, ocorrendo maior demanda de horas destinadas às atividades de pós-graduação sem crescimento significativo do número de docentes habilitados para atuarem nessa esfera, consequentemente ocorre uma concentração do ensino de graduação para o corpo docente temporário.

As relações de trabalho são diferenciadas entre os concursados que possuem estabilidade e os temporários instáveis. Ambos exercem a mesma função social, ocupam posições distintas na estrutura institucional e estão sob condições de trabalho intensificadas, mas por razões diferentes. A atividade docente assume contornos e características na contemporaneidade que fomentam a intensificação do trabalho. Jornadas intensas, sobrecargas de trabalho, pressão por publicações e atendimentos aos prazos, trabalho em home office, todos esses fatores provocam o apagamento dos limites entre o tempo de trabalho e outros tempos de vida. A intensidade do trabalho está diretamente ligada ao grau de dispêndio de energia realizado pelos trabalhadores em uma atividade concreta, demandando do trabalhador um investimento maior de energia para dar conta das atividades a ele atribuídas. A “essência da intensificação do trabalho está naquilo que realmente ela é: ‘maior quantidade de trabalho’” no mesmo período (DAL ROSSO, 2017, p. 106-7). No lócus de pesquisa, tem-se o aumento das atividades de ensino, pesquisa, extensão e gestão sem, no entanto, ampliar o quadro de concursados.

A estratégia de gestão dos servidores e empregados públicos pelo Estado empregador tem inspiração na gestão privada, no deslocamento de práticas empresariais para o interior do Estado, tendo como “pano de fundo” a adoção de políticas de austeridade fiscal. Essa política limita a expansão do contingente de professores concursados, integrantes da carreira docente, com direitos e benefícios garantidos, e substitui por não efetivos com direitos trabalhistas limitados e excluídos de direitos, possibilitando ao Estado economizar com a folha de pagamento. O crescimento das contratações de professores temporários pode evidenciar empiricamente o processo de “desestabilização dos estáveis”, como indica Castel (1998), na medida em que as relações de trabalho de uma parcela significativa de docentes passam a ser marcadas pela insegurança, incerteza e principalmente pela maior precariedade.

Em nome da “responsabilidade fiscal”, o governo não investe em políticas e serviços públicos e espolia seus trabalhadores. O enxugamento do investimento do Estado nos serviços públicos é uma característica das políticas de austeridade fiscal, que impactam, diretamente, a condição laboral dos trabalhadores do setor público e, indiretamente, a oferta, continuidade e qualidade das políticas públicas. As consequências para os trabalhadores temporários, como afirma o dirigente sindical, é de um “trabalho mais precário, intensificado e de condições piores se comparados aos efetivos, pois os professores colaboradores acabam tendo que assumir uma carga extremamente elevada, muito diversificada, em vários casos distantes da sua área de formação e especialização”, e ainda, esse profissional temporário atua “sob condições muito complicadas. E, uma cobrança muitas vezes proporcional à que se dá para o professor efetivo que tem – teoricamente – as melhores condições para desenvolver o seu trabalho”. (Entrevista concedida por representante sindical SINDUEPG, maio de 2018). A contratação flexível possui interface com políticas de austeridade, pois soma-se à precarização das condições e relações de trabalho a economia gerada por essa prática: “Porque hoje você atua com [...] professores temporários, colocando uma média de 30, 40% do quadro de docentes, atende a uma carga horária muito maior do que o número de professores efetivos. (Entrevista concedida por representante sindical Adunicentro, maio de 2018).

A expansão da flexibilização das contratações dos docentes nas estaduais do Paraná está vinculada às tendências mais amplas de mudanças no mercado de trabalho brasileiro e que vêm adentrando também o setor público. A redução do número de servidores públicos estatutários, no cenário nacional, vem ocorrendo desde 1995. E, inversamente, há a expansão das contratações flexíveis de trabalhadores não estatutários, como terceirizados, bolsistas, temporários, cargos de confiança, comissionado, entre outras. Bernardo (2020) evidencia que, entre 1997 e 2017, as contratações pelo regime estatutário cresceram 91,8%, enquanto as contratações temporárias saltaram 828,6% no mesmo período. Esses processos de expansão das contratações flexíveis no âmbito regional se devem a uma orientação política de cunho neoliberal, marcadamente mais presente a partir da década de 1990, orientada pela redução do Estado nas áreas sociais, privatização dos serviços públicos, adoção de medidas de austeridade fiscal e fortes reduções dos gastos públicos (HARVEY, 2014).

A seleção, o rigor do processo e a incerteza

O processo de seleção e a contratação dos docentes temporários nas universidades estaduais do Paraná assumem especificidades diferenciadas e envolvem restrições de direitos. A seleção e a contratação dos docentes temporários são organizadas via edital, sendo que cada universidade tem autonomia para organizar seu processo seletivo no que tange à taxa de inscrição, grau de formação e modalidades de provas. As provas, os testes podem ser compostos pelos seguintes instrumentos: prova escrita, didática (ambas eliminatórias) e prova de títulos (de caráter classificatório). Dependendo da área de conhecimento, pode-se exigir também a realização de prova prática. Conforme os editais disponíveis nos sites oficiais das sete universidades analisadas, todas exigem a prova didática e de títulos. Contudo, a UEM, a UEPG, a UENP e Unespar realizam as três provas – escrita, didática e de títulos – para a seleção dos docentes temporários. Ou seja, mais da metade das universidades estaduais estabelecem como critérios as três formas de avaliação mencionadas, assemelhando-se ao processo de concurso público para docentes efetivos. Além disso, para concorrer a uma vaga de professor temporário, exige-se o pagamento da taxa de inscrição, reunião de documentos comprobatórios, realização das diversas provas, demandando do candidato investimento financeiro, intelectual e emocional, tanto como nos concursos públicos para efetivos. Apesar desse rigor, uma vez aprovado e contratado, o professor temporário não tem acesso aos mesmos direitos que os servidores públicos.

As particularidades e as regras do campo acadêmico, nos termos de Bourdieu (2013), demandam critérios diferenciados para adentrá-lo. São adotadas as mesmas regras de seleção para condições e relações de trabalho diferenciadas e desiguais. Nos casos analisados no Paraná, a aprovação no processo seletivo não é garantia de contratação, pois depende de vários fatores, dentre os quais, a previsão orçamentária e a liberação por parte da administração estadual.

Quando a contratação ocorre, o docente temporário assina um contrato por tempo determinado, com vigência prevista de até 12 meses (podendo ser contrato com a vigência de três ou seis meses), com possibilidade de prorrogação ou renovação caso haja interesse mútuo por um período máximo de 24 meses, o que já seria considerado um bom cenário para o professor. A quebra de contrato pode ocorrer a qualquer momento, motivada por ambas as partes. Um novo ingresso está condicionado à abertura de editais e à submissão a novo processo seletivo, situação que pode se repetir sem restrições, não havendo limitações quanto à quantidade de contratados temporários. Identificamos, contudo, a presença de docentes que acumulam longos anos nessa condição, que chamamos de “temporários permanentes”, na medida em são submetidos ao processo a cada dois anos e, portanto, condenados ao constante recomeço, sem ter a possibilidade de ascensão na carreira.

A modalidade contratual, regida por lei específica, limita esses trabalhadores a acessarem direitos assegurados aos estatutários como segurança e estabilidade. Também os excluem de direitos previstos na Consolidação das Leis do Trabalho (CLT), pois não acessam o Fundo de Garantia por Tempo de Serviço (FGTS) e consequentemente não possuem seguro-desemprego. Estão, portanto, em uma espécie de “limbo”, pois não são celetistas nem estatutários.

Ainda que desempenhem a mesma função social, a igualdade é só de partida, uma vez que o salário-base inicial é igual para cada nível de formação (mestrado e doutorado, desde que concluídos antes da assinatura do contrato), porém os temporários não integram os planos de cargos e carreiras das estaduais. Embora, não seja uma modalidade de contratação ilegal, pois está regulamentada, é desigual, pois ao final de seus contratos, esses trabalhadores ficam desprotegidos, necessitando adotar estratégias individuais para enfrentar essa condição de instabilidade e eterno recomeço, tal como o “mito de Sísifo”. Os prejuízos para os trabalhadores submetidos a essa modalidade de contratação flexível se devem a supressão de direitos, como exposto no Quadro 1, a seguir:

Quadro 1 - Síntese das diferenças das condições e relações de trabalho
entre docentes estatutários e temporários atuantes nas universidades estaduais do Paraná

Docente estatutário

Docente temporário

Admissão via concurso público com pagamento
de inscrição, avaliação por banca
com prova escrita, didática e de títulos;

Admissão via teste seletivo com pagamento
de inscrição, avaliação por banca
com prova escrita, didática e de títulos;

Vínculo estável;

Vínculo instável;

Direitos e benefícios previstos aos
servidores públicos estaduais;

Direitos reduzidos, nem celetista nem estatutário (sem estabilidade, sem FGTS e seguro-desemprego);

Todos os direitos e benefícios previstos
na Carreira Docente;

Não integra a Carreira Docente;

Ascensão na carreira;

Permanece estagnado no primeiro nível;

Progressão salarial;

Não há;

Atividades em ensino, pesquisa e extensão
são institucionalizadas;

Atividades de ensino da graduação e a extensão e pesquisa são de forma “(in)voluntária”;

Poder de negociação quanto à composição
das atividades acadêmicas;

Assimetrias nas relações no ambiente de trabalho, sem poder de escolha;

Intensificação coletiva e individual do trabalho motivada por escolhas profissionais.

Intensificação coletiva e individual do trabalho motivada pela condição do vínculo de trabalho.

Fonte: Bernardo (2020).

A análise comparativa das duas modalidades – estatutários e temporários – demonstra as diferenças das condições e relações de trabalho. A flexibilização contratual típica dos temporários retira direitos, fragmenta a categoria, alimenta a instabilidade, fomentando processos de precarização e precariedade do trabalho em segmentos do setor público, antes considerados como protegidos e estáveis. A precarização do trabalho se deve ao desmonte das formas reguladas de trabalho, que deu lugar à ampliação das formas de trabalho precário, instável e inseguro, característica dos temporários que, no caso investigado, também não recebem auxílio-alimentação, auxílio-transporte, ou qualquer outra espécie de auxílio.

A tessitura aqui trazida, além de alimentar aspectos da engrenagem que fomentam o trabalho temporário, flexível e instável, dualiza a categoria, na qual uma parcela tem estabilidade e outra é composta por uma mão de obra instável, com contratos por prazo determinado, de tempo parcial e precário. Trata-se da “dualização dos assalariados” no mercado de trabalho, como identificado por Boltanski e Chiapello (2009), para o contexto francês, que está presente também nas universidades paranaenses, que advém de situações de discriminação e desigualdade entre os trabalhadores de uma mesma categoria, trazendo também como consequência a fragilização e a fragmentação da ação coletiva.

Com a ampliação das contratações de docentes temporários, o processo de “desestabilização dos estáveis”, analisado por Castel (1998), ganha concretude também no setor público brasileiro. Como se pode depreender da comparação do Quadro 1, a falta de acesso aos mesmos direitos dos trabalhadores estáveis, significa que os professores contratados por tempo determinado encontram-se em uma condição de “trabalhadores de segunda classe”, na medida em que estão submetidos à desigualdade contratual no que se refere a direitos e garantias. Para além das particularidades conjunturais que fragilizam e segmentam a classe trabalhadora, no que tange às singularidades dos professores temporários, os aspectos que limitam a construção de ações de resistência se devem à desarticulação e fragmentação da categoria estimulada tanto pela diferenciação de modalidades de vínculo de trabalho em um mesmo espaço institucional quanto pela disseminação da cultura individualista que tem, no modelo do sujeito empresarial (DARDOT; LAVAL, 2016), o arquétipo do sucesso (BERNARDO, 2020).

Essa modalidade contratual repercute no trabalho do professor e no papel da universidade, alicerçada no tripé do ensino, pesquisa e extensão. Sendo temporário, o trabalho se constitui majoritariamente no ensino, em ministrar aulas, sem possibilidade da realização da pesquisa e extensão. A eventual participação em projetos de pesquisa e/ou de extensão se dá por vias diferenciadas das trilhadas por aqueles que são efetivos ou que há destinação de carga horária. Tais docentes desenvolvem a pesquisa e/ou a extensão na condição de “voluntários”, pautados pela necessidade de “alimentar o Lattes” e pela aprovação dos pares dada a sua condição de trabalhadores estáveis, ou seja, não há destinação de carga horária, não há vinculação institucional, constituindo trabalho não pago (BERNARDO, 2020).

A flexibilização contratual dos docentes, além da insegurança, implica a redução de direitos, a desvantagem salarial, as condições de trabalho diferenciadas, as assimetrias nas relações no ambiente de trabalho, processos de intensificação coletiva e individual do trabalho e no frágil poder de escolha e negociação quanto à composição da carga horária. Todos esses fatores concorrem para a condição de precariedade desse trabalho dentro do setor público.

Os dados evidenciam a sintonia da administração estadual com processos mais amplos de reconfiguração do papel do Estado a partir da lógica denominada por Dardot e Laval (2016) de “racionalidade neoliberal”, em que o modelo de sucesso é o empresarial. O Estado, campo de disputa, passa a ser gerido por uma racionalidade neoliberal, em que o modelo empresarial é disseminado como o mais eficiente na busca incessante pela produtividade e competitividade, replicando tal lógica na gestão dos trabalhadores no setor público (BERNARDO, 2020). A adesão do Estado à racionalidade empresarial ocorre sem levar em conta as consequências de se encaixar modelos prontos em dinâmicas que possuem especificidades distintas, que a priori não se coadunam com o caráter mercadológico. O Estado, ao implantar o modelo empresarial na sua gestão, também atua como agente de precarização e, em certo grau, alimenta processos de desigualdade, visto que, ao não realizar concursos para efetivos, como previsto constitucionalmente, impede os trabalhadores de acessarem os benefícios e direitos conquistados por essa categoria. Ao mesmo tempo, essa prática traz impactos para a comunidade acadêmica.

As modalidades flexíveis de contratação fragilizam o papel atribuído às universidades – ensino, pesquisa e extensão – visto que o professor temporário é essencialmente o que ministra aulas. Sua participação nas demais atividades, de pesquisa e de extensão, basilares para a manutenção do tripé universitário, não compõem sua jornada de trabalho oficial. Por outro lado, também para os docentes estatutários ocorre uma sobrecarga de trabalho, na medida em que assumem atividades administrativas, de ensino, de pesquisa, de extensão e de gestão e não contam com um quadro docente em número suficiente que possa partilhar igualmente todas as demandas da graduação e pós-graduação. A conformação de tal tessitura tende a reduzir a qualidade dos serviços prestados pelas universidades públicas, fragilizando-as. São estratégias configuradas pela velha receita neoliberal que tende a precarizar e desvalorizar o que é público, levando a uma aparente ineficiência usadas para justificar reformas e privatizações. No caso das universidades, a privatização não é necessariamente a praticada nos moldes tradicionais, como, por exemplo, a transferência para a gestão privada, mas uma privatização de dentro para fora, que legitima as buscas de recursos para financiamento de pesquisas e projetos, o estabelecimento de parcerias com empresas privadas e a predileção por determinadas áreas do conhecimento, que atendem exclusivamente aos interesses do mercado. Nesses termos, o aumento da flexibilização na contratação de docentes constitui-se também como um artifício de desmantelamento da universidade pública, como relata o represente sindical da Adunoeste: “Universidades, com um grande número de docentes temporários, têm dificuldade em planejar o desenvolvimento institucional a médio prazo”. (Entrevista representante sindical da Adunoeste, em agosto de 2018).

Considerações finais

A pesquisa revela o crescimento da contratação flexível de professores temporários a partir dos anos 2000 no Paraná e evidencia o desvirtuamento do caráter de urgência e emergência (previsto em lei) como estratégia de contratação para atender às demandas permanentes das universidades estaduais. A mesma normativa se estende para o serviço público em geral, como professores para a rede de ensino médio, auxiliares administrativos, profissionais de saúde e assistência social, entre outros, desconsiderando as particularidades decorrentes do conteúdo do trabalho.

A flexibilização contratual que avança na educação pública aqui analisada, mas também nos demais serviços prestados pelo Estado brasileiro, encontra-se ancorada na racionalidade neoliberal definidas por Dardot e Laval (2016) que elege a empresa como modelo de sucesso e, consequentemente, atribui a ineficiência a tudo que é público, ao mesmo tempo que responsabiliza os servidores públicos pelas crises fiscais.

A exemplo dos docentes no ensino superior das universidades estaduais do Paraná, a expansão da flexibilização contratual no serviço público atinge segmentos de trabalhadores que tradicionalmente possuíam estabilidade, reconfigurando as relações de trabalho, que passam a ser marcadas cada vez mais pela instabilidade e redução de direitos. A tendência observada nesta pesquisa demonstra o processo de desestabilização dos estáveis, ao se espraiar para aquelas categorias que antes estavam protegidas pelo vínculo como estatutário. Tal processo tende a se aprofundar ainda mais, como se pode verificar com as prerrogativas propostas na “reforma administrativa” (Projeto de Emenda Constitucional n. 32 de 2020), que propõe a diversificação do Regime Jurídico de Pessoal em cinco tipos de vínculos: de experiência; por prazo indeterminado; cargo típico de Estado; vínculo por prazo determinado e cargo de liderança e assessoramento definidos em lei complementar (BRASIL, 2020). Cabe destacar que o estatuto da estabilidade não está ligado apenas à proteção das relações de trabalho dos funcionários públicos, mas cumpre a função de assegurar a burocracia no sentido típico ideal weberiano, com a formação de um quadro técnico permanente e qualificado, recrutado com base em critérios técnicos e impessoais com a finalidade de impedir perseguições políticas, demissões injustificáveis, nepotismo e clientelismo, objetivando, como fim último, a oferta dos serviços públicos de forma contínua e de qualidade (SOUZA, 2002; BRAUNERT; BERNARDO; BRIDI, 2021).

A instabilidade laboral que atinge toda a classe trabalhadora se estende para as carreiras de nível superior com elevado nível de qualificação, bem como para o setor público. Para os docentes temporários, analisados neste artigo, a precariedade do trabalho revela-se, sobretudo, em três dimensões. A primeira diz respeito às condições de trabalho pioradas, visto que, para o docente temporário compor a renda precisa trabalhar em mais de uma instituição de ensino, acumulando disciplinas, turmas, alunos e, consequentemente, tendo maior volume de avaliações relacionadas à docência. Em segundo, a marca da desigualdade. Pertencendo à mesma categoria e formação similar aos docentes concursados, são excluídos de participação plena nas atividades inerentes ao ensino superior em seu tripé (pesquisa, ensino e extensão). E uma terceira dimensão refere-se à impossibilidade de acessar o plano de carreira, e a passar por novos testes seletivos e concorrência a cada edital que participa, e consequentemente ao movimento de eterno recomeço, com toda a carga emocional e desgastes que envolvem tais processos.

Referências

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Recebido em: 21/09/2021

Aceito em: 27/09/2022


1 Com o intuito de compreender os reflexos da contratação flexível, foram realizadas entrevistas semiestruturadas com os representantes sindicais das universidades estaduais do Paraná. As entrevistas foram realizadas, entre fevereiro e agosto de 2018, com os representantes das sessões sindicais dos docentes das sete universidades. São elas: SESDUEM (UEM); SINDUEPG (UEPG); Adunoeste (Unioeste); Sindunespar (Unespar); Adunicentro (Unicentro); Sindiprol/Aduel (UEL, UENP e Unespar- Campus de Apucarana). Todas gravadas e transcritas na íntegra, com Termo de Consentimento Livre e Esclarecido assinado.

2 Nas estaduais estudadas, é comum a prática de celebrar ao mesmo tempo mais de um contrato de trabalho com o mesmo docente, havendo casos de docentes com até 60 horas semanais.

AS POLÍTICAS EDUCACIONAIS NA DOCÊNCIA:
uma revisão das publicações do Endipe entre 2010-2020

EDUCATIONAL POLICIES IN TEACHING:
a review of the publications of Endipe between 2010-2020

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Valdirene Hessler Bredow1*

Maristani Polidori Zamperetti2**

Resumo

O objetivo do presente trabalho é apresentar as influências que as políticas neoliberais trouxeram ao sistema educacional impactando a realidade docente e o sistema educacional brasileiro. Pelo campo das áreas de discussões que abrange, esta revisão da literatura, baseada no método bibliográfico de pesquisa, propôs-se a responder quais as implicações que as políticas educacionais trouxeram para o trabalho e a formação de professores. As discussões dessas análises estão baseadas nas publicações contidas nos Anais do Encontro Nacional de Didática e Prática de Ensino (Endipe), no período compreendido entre 2010-2020. Assim, destaca-se que o século XX foi marcado por transformações econômicas que alteraram as dinâmicas do mercado de trabalho, a forma de organização do Estado e as dinâmicas tanto da indústria como da escola, que tem funcionado cada vez mais através da lógica do mercado, com intensificação e precarização do trabalho docente, questionando identidades e alterando a profissionalidade docente. Desta maneira, escola e professores são vigiados pelos programas, reformas e planos de trabalho progressivamente impostos, havendo, além da precarização e intensificação, também uma autointensificação do trabalho docente, trazendo implicações que subjetivam as identidades fabricadas na docência.

Palavras-chave: Trabalho Docente. Políticas Neoliberais. Globalização. Educação.

Abstract

The purpose of this paper is to present the influences that neoliberal policies have brought to the educational system, impacting the reality of teachers and the Brazilian educational system. By the field of discussion areas it covers, this literature review, based on the bibliographic research method, proposed to answer what implications the educational policies have brought to the work and training of teachers. The discussions of these analyses are based on the publications contained in the Annals of the Encontro Nacional de Didática e Prática de Ensino (Endipe), in the period between 2010-2020. Thus, it is noteworthy that the twentieth century was marked by economic transformations that changed the dynamics of the labor market, in the form of organization of the State and in the dynamics of both industry and school, which has worked increasingly through the logic of the market, with intensification and precariousness of the teaching work, questioning identities and changing the teaching professionalism. In this way, school and teachers are watched over by programs, reforms, and work plans that are progressively imposed, with, and in addition to the precarization and intensification a self-intensification of the teaching work, bringing implications that subjectivize the identities manufactured in teaching.

Keywords: Teacher’s Work. Neoliberal policies. Globalization. Education.

Introdução

O presente trabalho apresenta uma análise sobre as publicações do Encontro Nacional de Didática e Prática de Ensino (Endipe), no período compreendido entre 2010-2020, com destaque para a relação entre as políticas educacionais e a formação e o trabalho de professores. As análises partiram de discussões e reflexões realizadas em uma disciplina do curso de Doutorado em Educação, da Universidade Federal de Pelotas, com intuito de levantar questionamentos sobre essa relação e a influência das políticas educacionais na educação.

O Endipe é um evento que acontece a cada dois anos desde 1982, reúne pesquisadores, especialistas, profissionais da área da educação, professores e estudantes de diferentes áreas do Brasil e exterior para discutir a didática e as práticas de ensino. Consagrou-se como um espaço múltiplo de discussões e estudos e atualmente se configura como uma referência em eventos no cenário nacional pela produção de conhecimento que trazem contribuições importantes ao campo científico (ENDIPE, 2020). O procedimento metodológico deste artigo se fundamenta em um estudo bibliográfico e se deteve nas publicações constantes em anais do Endipe a partir dos encontros realizados nos últimos dez anos (2010, 2012, 2014, 2016, 2018 e 2020). O levantamento utilizou como descritores trabalho e formação de professores e políticas educacionais.

Assim, o presente texto buscou discutir algumas dessas questões que alteraram profundamente o sistema educacional no Brasil, processo em franca transição, sujeito a questionamentos em todos os seus níveis. Pelo campo das áreas de discussões que abrange, esta revisão se propôs a responder quais as implicações que as políticas educacionais trouxeram para a formação e o trabalho de professores, estipulando como objetivo apresentar as discussões existentes em torno desses descritores, através dos estudos divulgados no Endipe.

A entrada de microtecnologias não apenas exigiu um tipo de trabalhador polivalente na indústria como também transformou o trabalho docente e fez com que a escola tivesse uma falsa ideia de instituição autogerida. Neste contexto mercadológico e regulador das políticas educacionais, há cada vez mais uma regulação e formação de novas identidades e perfis docentes, a profissionalidade docente tem sido desvalorizada pelos salários e condições de trabalho, fazendo da realidade diária dos professores uma constante luta e enfrentamento de desafios, impostos pelas políticas de cunho neoliberal do mundo globalizado.

Programas de alfabetização, avaliação e formação docente também têm influências externas de cunho político e econômico, os aqui analisados, como por exemplo o Pacto Nacional pela Alfabetização na Idade Certa (PNAIC - Brasil), Programa Nacional do Ensino do Português (PNEP - Portugal), Programa Institucional de Bolsa de Iniciação à Docência (Pibid), Plano Nacional de Formação dos Professores da Educação Básica (PARFOR), o Programa Mais Educação e os programas de indução à docência na América Latina, também trazem implicações ao processo do trabalho e da formação de professores.

Assim, as transformações ocasionadas pelo neoliberalismo desencadearam a intensificação do trabalho de professores e professoras, alteraram e classificaram o profissionalismo na busca por um trabalhador/professor colaborativo, como o operário da empresa toyotista, alterando as identidades docentes.

Procedimentos metodológicos

Por ser este um levantamento bibliográfico e um processo de revisão de estudos e pesquisas que já fizeram um mapeamento sobre um determinado tema (BRZEZINSKI, 2009; GATTI, 2014), caracterizamos os procedimentos metodológicos deste trabalho a partir das considerações de Gil (2008) pelo método bibliográfico de pesquisa, pois se desenvolveu com base em material já elaborado; neste caso, sobre as publicações do Encontro Nacional de Didática e Prática de Ensino entre 2010-2020. As análises se deram a partir dos descritores “políticas educacionais” e “formação/trabalho docente/de professores”.

Para Malheiros (2011), a pesquisa bibliográfica tem caráter firmado na literatura pertinente a um determinado tema, incidindo em identificar, comparar, confrontar os resultados de pesquisas para chegar a uma nova visão, tendo como objetivo o fato de identificar na literatura disponível as contribuições científicas sobre um tema específico, localizando o que já foi pesquisado em diferentes fontes, confrontando seus resultados.

As fontes utilizadas nesta revisão foram as documentais constantes nos anais do Endipe que apresentaram trabalhos originais ou revisões teóricas quanto ao tema que relaciona o trabalho e a formação docente com as políticas educacionais.

O objetivo inicial para analisar os textos era de que os títulos contivessem os descritores, para assim buscar os trabalhos que versavam diretamente sobre o que era esperado nesta pesquisa, ou seja, verificar a relação e analisar as implicações que as políticas educacionais trouxeram para o trabalho e a formação docente. Entretanto, a escassez de trabalhos sobre as políticas educacionais em relação ao trabalho e formação docente, principalmente pelo tópico das políticas educacionais, fez com que os critérios de inclusão mudassem.

O primeiro critério utilizado foi de que os títulos apresentassem um dos tópicos buscado, em seguida, os trabalhos foram separados e seus títulos analisados na integra, os artigos que não estavam de acordo com os descritores foram descartados. A terceira etapa foi da leitura dos resumos, que foi fator relevante para que a leitura do texto na íntegra fosse feita e analisada.

Apesar da amplitude e alcance do evento, e da grande quantidade de pesquisas publicadas, a relação e análise deste tema ainda é pequena. Dos 223 trabalhos encontrados pelos descritores, foram acessados pelo título 42 artigos, dentre esses, 23 arquivos acessados pelo resumo e, ao final, 11 trabalhos lidos na íntegra. Ressalta-se que, a página e os anais do Endipe 2016 não se encontravam disponíveis para consulta.

A análise dos dados se deu pela forma como os autores abordaram o tema, sobre como e que tipo de políticas educacionais foram apresentadas nos trabalhos e como isso impactou o trabalho e a formação dos professores. Destaca-se, ainda, que as publicações analisadas utilizaram como procedimentos metodológicos prioritariamente a revisão bibliográfica e análise documental, outros trabalhos são recortes de pesquisas empíricas e análises qualitativas a partir de entrevistas.

As influências neoliberais na sociedade, no trabalho e na formação docente

O desafio neoliberal em relação ao Estado de bem-estar social mudou as bases ideológicas da política, enfraquecendo seu poder e, com êxito, expandiu a globalização que se inicia por volta da década de 1970. O momento é assinalado pela introdução de tecnologias microeletrônicas, principalmente nas indústrias automobilísticas, marcando a década de 1990 com a globalização e o neoliberalismo. As políticas neoliberais, então, impulsionaram a abertura comercial e a internacionalização da economia, incorporando o processo de entrada das inovações tecnológicas e de novos métodos de gestão da força de trabalho. No tocante à educação e ao trabalho docente, os padrões neoliberais reestruturaram os sistemas educacionais, alinhando-os aos moldes empresariais, assim como também a formação e o trabalho docente, buscando exigências de habilidades e competências exigidas dos trabalhadores fabris e estabelecidas pelo mundo globalizado (MORROW; TORRES, 2004).

Desta maneira, o século XX foi marcado por transformações econômicas que acabaram alterando as dinâmicas do mercado de trabalho e, consequentemente, a política brasileira na década de 1990, inserindo o sistema político econômico pautado no neoliberalismo, transformando a organização do Estado de forma econômica e social.

Aos procedimentos e ajustes das novas políticas econômicas e governamentais, agregou-se na sociedade capitalista o processo de globalização, que, se expandindo, reestruturou economicamente o mercado. Assim, a globalização, definida como a intensificação de relações sociais que interliga comunidades, fazendo com que acontecimentos locais possam se tornar mundiais, instaurou-se como um produto da economia global com expansão de elos transnacionais entre economias, afetando identidades nacionais e grupos de interesse (MORROW; TORRES, 2004).

Entretanto, além do mercado de trabalho, a educação também foi fortemente influenciada com a implantação de políticas educacionais que utilizaram as implicações da globalização centrada na relação entre educação e Estado. Com isso, o tema que envolve a formação de professores tem se configurado como aspecto central nas reformas educacionais, iniciadas no final dos anos 1980 e ampliadas nos anos 2000, essas formam parte do movimento de redemocratização brasileira, fazendo parte também dos discursos que constituem o contexto político oficial, foco de disputa por significação que passa pelo ciclo de políticas (BALL; MAINARDES, 2011).

Para Dias (2009), o período foi produtivo no tocante à produção de textos orientadores da formação do professor, o que representou uma grande articulação de lutas para movimentos que representavam a profissão de professor. Concomitante a isso, o momento ficou marcado pela configuração da globalização neoliberal, definida como parte do neoliberalismo, sendo um conjunto complexo de práticas que foram organizadas ao redor do mercado, em que a meta seria universalizar as relações sociais reguladas no mercado, estando presente em todas as áreas da vida humana e, consequentemente, com discursos e práticas que visavam ao lucro, sendo importante entender esse contexto da globalização para compreender a relação entre as posições macro e micro da sociedade (BALL; MAINARDES, 2011).

Assim, a defesa das políticas educacionais para a formação docente busca favorecer “concepções que se conectam ao imaginário social da objetividade da política e seu caráter prescritivo, que se traduzem nas visões estadocêntricas da política de formação de professores” (MAIA, 2020, p. 557) analisando os docentes pela ótica do Estado.

Neste aspecto da educação e do trabalho docente, o surgimento da economia informacional e transnacional não acarreta mudanças nos padrões de emprego, mas as implicações da globalização e do pós-fordismo para a educação constam em três áreas: a primeira fundamentalmente destaca o papel do Estado na economia global e informacional para trazer respostas aos fracassos do modelo keynesiano de bem-estar social anterior ao neoliberalismo; a segunda área é referente às pressões neoliberais para desenvolver políticas educacionais no intuito de reestruturar sistemas educacionais, acompanhando os modelos e linhas empresariais que possibilitem respostas educacionais flexíveis ao novo padrão de produção industrial; e a terceira se apresenta como um apelo pela reorganização da educação primária e secundária, assim como também pela educação do professor, com segmentos que correspondam às habilidades e competências exigidas dos trabalhadores e notadamente estabelecidas pelo mundo globalizado (MORROW; TORRES, 2004, p. 32).

Com base nesses aspectos, o Estado neoliberal implanta-se com um propósito e respaldo global e informacional, com o plano de intervir no sistema educativo da mesma forma que regula o mercado de trabalho. Sendo assim, não mais apenas o trabalhador fabril necessita ser especializado, os docentes também precisam desenvolver seu trabalho pautados no desenvolvimento de habilidades e competências, correspondente ao sistema globalizado.

Hypolito, Vieira e Pizzi (2009) apontam que as políticas neoliberais para a educação inserem o princípio da competência do sistema escolar, intermediadas pela promoção de mecanismos de controle de qualidade externos e internos à escola, subordinando o sistema educativo ao de mercado, recomendando arquétipos gerencialistas de avaliação do sistema.

Neste escopo, a transnacionalização do capital modificou relações locais e globais, interferindo igualmente no âmbito educacional, transformando as dinâmicas de administração e cultura escolar, instituindo a escola autogerida, enfatizando uma instituição que gerisse suas dinâmicas e relações de trabalho, afetando sobretudo o trabalho e a formação docente. O discurso neoliberal com a proposição da escola autogerida, nos parâmetros da educação neoliberal, busca desenvolver a percepção de um escolhedor autônomo livre, entretanto, esses indivíduos não serão sujeitos livres, pois estão sob a égide das formas de racionalidade e das leis do mercado (PETERS; MARSHALL; FITZSIMONS, 2004).

A escola autogerida está abalizada no ponto de vista da racionalidade, da individualidade e na automaximização das políticas educacionais neoliberais, pois “apresenta o autogestor como o sujeito neoliberal do gerencialismo. Esse sujeito é um maximizador de utilidades auto interessado e racional” (PETERS; MARSHALL; FITZSIMONS, 2004, p. 86). Neste viés, o mercado vai gerir a autonomia da escola, porém, na realidade é um discurso com um rígido controle pedagógico, como as provas para avaliação do sistema em larga escala e a recomendação de um currículo padronizado, tirando, dessa forma, a autonomia docente.

O objetivo é desenvolver uma escola com profissionais colaborativos, formados por modelos gerenciais do sistema econômico em que a noção de excelência é considerada por uma série de constructos gerenciais: “qualidade”, “eficácia”, “equidade”, “eficiência” e “capital social” (PETERS; MARSHALL; FITZSIMONS, 2004, p. 87).

Para Hypolito, Vieira e Pizzi (2009), o discurso de expandir a autonomia escolar com o fortalecimento do trabalho dos professores, e de seu poder em relação ao trabalho pedagógico, apenas centraliza os processos de avaliação do sistema de ensino e de controle do trabalho pedagógico, determinando o conteúdo e a forma como os professores e as professoras devem trabalhar e ensinar.

Desta forma, o neoliberalismo impacta e modifica o trabalho docente e suas práticas educacionais, transformando as condições de trabalho e intensificando os processos educacionais. Nesta lógica, os processos de reestruturação educacional recomendados pelas políticas neoliberais impactaram o trabalho docente, sendo imprescindível debater e analisar “o processo de trabalho, investigando suas condições de trabalho e, em especial, os processos de intensificação do trabalho” (HYPOLITO; VIEIRA; PIZZI, 2009, p. 104).

Identidade e profissionalidade docente

O item 5.3 da proposta para a Base Nacional Comum da Formação de Professores da Educação Básica, que trata das competências profissionais docentes, busca fazer uma projeção e tentativa de fixar uma identidade docente, quando apresenta três competências gerais para os cursos de formação de professores, conhecimento profissional, prática profissional e engajamento profissional (BRASIL, 2019).

O conhecimento profissional pressupõe uma formação específica e permite a atuação docente autônoma. Retrata a aquisição de saberes que dão significado e sentido à prática profissional realizada em âmbito escolar. [...] A epistemologia da prática profissional é o conjunto das ações educativas e a tomada de decisões com base no conhecimento e no engajamento profissional. [...] O engajamento profissional pressupõe o compromisso consigo (desenvolvimento pessoal e profissional) o compromisso com o outro (aprendizagem e desenvolvimento do estudante) e o compromisso com os outros (interação com colegas, atores educacionais, comunidade e sociedade) (BRASIL, 2019, p. 16).

Assim, entende-se que, no “processo de subjetivação, de criação de novas identidades docentes, há a tentativa de construção hegemônica em torno de uma identidade docente que atenda às demandas por qualidade da educação” (MAIA, 2020, p. 558), sendo possível perceber que as identidades docentes são constituídas nos discursos, igualmente a toda prática social.

A literatura apresenta dois tipos de formação de identidade docente, sendo o profissional colonizado e o profissional moderno. O primeiro foi marcado pelos anos 1920 sendo caracterizado pelos professores tratados como colonizados com uma “moderada independência” e administrados pelo “sistema de controles financeiros, poder limitado e de um discurso que sublinhava as ideias de responsabilidade, atividade apolítica e autodisciplina” (LAWN, 2001, p. 126). A segunda identidade, pelo modelo dos anos 1940 e 1950, define-se por um perfil coletivo, tendo como baluarte um objetivo e cultura de trabalho comum e uma emergente e atingível sociedade igualitária. Essa identidade, maturidade, entusiasmo, experiências e personalidade, ajustadas aos novos tipos de escolas, são atributos e componentes-chave desse perfil. A identidade do profissional colonizado era apontada pelo ideal da elite de professor, ou seja, no gênero masculino, o modelo moderno caracterizou-se pela mulher madura, pensada no papel pastoral e de bem-estar do ensino no novo sistema (LAWN, 2001).

No que tange ao conceito de profissionalidade docente, torna-se importante refletir sobre a formação dos professores e em toda a complexidade que a envolve, destacando a relevância de compreender a formação do professor para além da trajetória acadêmica, abrangendo também a trajetória pessoal e profissional destes sujeitos (MORAES, 2020).

Com isso, a profissionalidade docente afeta e é afetada pelo contexto e ambiente de trabalho do professor (SACRISTÁN, 1995; TARDIF, 2014; GAUTHIER et al., 2006; NÓVOA, 2009). Sacristán (1995, p. 65) define o conceito de profissionalidade como “a afirmação do que é específico na acção docente, isto é o conjunto de comportamentos, conhecimentos, destrezas, atitudes e valores que constituem a especificidade de ser professor”.

Para Moraes (2020, p. 108), “pensar o conceito de profissionalidade docente significa refletir sobre o que caracteriza sua atividade, sobre os saberes que constroem essa profissão e sobre o agir docente em seu contexto de trabalho”, sendo ainda importante destacar que “o saber dos professores é adquirido no contexto de uma história de vida e de uma carreira profissional” (MORAES, 2020, p. 108).

Nessa perspectiva, o aspecto preocupante das políticas de caráter neoliberal é a maneira como os docentes são considerados e posicionados no contexto social, estando constantemente interpelados por políticas equivocadas, assim como também sendo contestados pela sociedade. Conjuntamente a isso, encontra-se o processo de prestação de contas, com testes padronizados, penalizando o professor pelo fracasso no desempenho da escola e dos estudantes (HYPÓLITO, 2010), sem levar em consideração o contexto social em que tais resultados são produzidos.

Corroborando com esse ponto, Valente (2012) observa que as políticas educacionais de formação continuada de docentes, maneiras de controle, regulação e seus efeitos para o trabalho e a identidade docente, são extremamente evidenciadas pela ação do neoliberalismo via gerencialismo (SILVA, 2018; HYPÓLITO, 2010), suportando ações de avaliações de desempenho (SANTOS, 2004), visando ao aumento dos índices educacionais, justapondo o tecnicismo na educação, para que essa tenha qualidade social e valorização do desenvolvimento integral do ser humano, enxergando na performance a principal referência do Estado avaliador. E, desta forma, se configuram novas idiossincrasias nas relações entre os profissionais da educação, seu trabalho e sua identidade profissional (VALENTE, 2012; HYPÓLITO, 2010).

Neste cenário, o ambiente escolar é visto a partir das dinâmicas empresariais. O sistema escolar público, que pela visão mercadológica é visto como ineficaz, tem a necessidade de “implantação de um modelo baseado naquilo que é eficiente e obtém sucesso: o mercado” (HYPOLITO; VIEIRA; PIZZI, 2009, p. 103).

Pelo enfoque das intervenções e ações do Estado gerencial, as políticas educativas que têm um caráter regulador (SILVA, 2018), em que o Estado fabrica e monitora a identidade profissional docente (HYPÓLITO, 2010; VALENTE, 2012), vai padronizar e corresponder às políticas educativas e curriculares, esquematizando um docente apropriado para tais empreendimentos, resultando, por conseguinte, na regulação do trabalho docente.

Além desses fatores, a consequência dessas políticas educacionais de efeito neoliberal traz vinculações com políticas internacionais mais amplas, fortemente dominadas pela esfera econômica (HYPÓLITO, 2010; VALENTE, 2012). A reestruturação produtiva ocasionou também uma reestruturação educativa e curricular, transformando as dinâmicas escolares e do trabalho docente, demandando novas articulações e requisitos em relação à educação.

Não bastasse a precarização, intensificação e a autointensificação do trabalho docente, em relação ao profissionalismo, alguns modelos e implicações que subjetivam as identidades são fabricadas na docência, atividade tida como não profissão ou semiprofissão. O domínio que sofrem os professores sobre seu trabalho provoca concepções que os classificam em diferentes tipos de profissionais, destacando o profissionalismo clássico; o trabalho flexível, o prático, o extensivo e o complexo (GARCIA; HYPOLITO; VIEIRA, 2005).

O profissionalismo clássico se caracteriza por uma versão de profissional representado pelo sujeito que possui um reconhecimento, um status em sua profissão, como médicos, advogados, engenheiros, dentre outras profissões reconhecidas e desempenhadas predominantemente por homens ou profissões masculinizadas.

Garcia, Hypólito e Vieira (2005, p. 50) ainda destacam que no profissionalismo como trabalho flexível estão instituídos os profissionais tidos como solidários, focados na noção de “aspectos técnicos do trabalho docente de acordo com uma estratégia de desenvolvimento de culturas de colaboração e de comunidades profissionais solidárias”, em que as práticas de colaboração podem ser colonizadas e controladas pelas burocracias educacionais, sendo práticas forçadas impostas por colegiados de trabalho ou por procedimentos burocráticos, opostas a uma maneira de profissionalismo autônomo e autogestionário.

O profissionalismo como trabalho prático é compreendido por uma atividade com saberes que se afinam aos saberes práticos, experienciais, estando moldados pelos valores e propósitos dos professores e das professoras que constroem suas próprias práticas educativas. Esse profissionalismo é uma extensão da noção de “prática reflexiva”, ocasionada pela concepção de docente como “prático-reflexivo”.

Em relação ao profissionalismo como trabalho extensivo, encontra-se a identidade do profissional que cumpre regras, atinge metas, é colaborativo, busca o trabalho integrado, a equipe, a parceria, a tutoria, o desenvolvimento profissional e o foco nos resultados. Neste enfoque, as habilidades docentes possuem características provenientes da mediação entre teoria e experiência; em que a sala de aula é vista pela relação com outros acontecimentos da escola e os métodos de trabalho são resultantes da troca de experiência com a comunidade docente, valorizando também outras atividades, como literatura da área ou de formação em serviço, tanto as de interesse mediato como as de imediato (GARCIA; HYPOLITO; VIEIRA, 2005).

Por fim, o profissionalismo como trabalho complexo envolve ampla complexidade do trabalho docente, abarcando o planejamento coletivo, poder de decisões, uso de computadores, avaliação com portfólio, avaliação colaborativa, entre outros.

Desta forma, entende-se que a globalização e as modificações econômicas globais e locais têm afetado cada vez mais o trabalho docente, transformando-o em uma tarefa complexa e difícil e ainda “exigem cada vez mais intensificação e, por assim dizer, auto intensificação” (HYPOLITO; VIEIRA; PIZZI, 2009, p. 108) do trabalho docente. As discussões em torno da intensificação do trabalho docente transpassam categorias como proletarização, profissionalização e até mesmo a autointensificação do trabalho docente, em que os professores internalizam funções e tarefas, normalizando excesso de trabalho, o que irá consequentemente gerar novas identidades e profissionalidades docentes.

Resultados e Discussões

As análises das publicações do Endipe no período entre 2010 e 2020 demonstram que, além da regulação e formação de novas identidades e perfis docentes, geradas pelas políticas educacionais de cunho neoliberal, conforme destacam os autores nas publicações científicas aqui avaliadas, alguns programas se destacam nesse processo, como por exemplo o Pacto Nacional pela Alfabetização na Idade Certa (PNAIC - Brasil), Programa Nacional do Ensino do Português (PNEP - Portugal), Programa Institucional de Bolsa de Iniciação à Docência (Pibid), Plano Nacional de Formação dos Professores da Educação Básica (Parfor), o Programa Mais Educação e os programas de indução à docência na América Latina, também foram ponderados no tocante ao processo do trabalho e da formação de professores.

Programas Educacionais

Marinho (2018) apresenta um recorte que discute os efeitos da mediação feita por Brasil e Portugal com as instâncias na formação continuada do Pacto Nacional pela Alfabetização na Idade Certa (PNAIC) e no Programa Nacional do Ensino do Português (PNEP). O PNAIC, no Brasil, e o PNEP, em Portugal são políticas educacionais de alfabetização que têm como objetivo a alfabetização de crianças em idade escolar, porém, fazem parte de acordos internacionais. Os programas usam a formação continuada como eixo estratégico, mas alinham suas ações a indicadores de qualidade para controlar os resultados da proposta idealizada. A formação continuada de professores é estratégica nas políticas educacionais de alfabetização, mas os programas foram sistematizados para responder a acordos internacionais de caráter político-econômico, “uma vez que os condicionantes das políticas educacionais decorrem dos processos de globalização, estes tencionados pelas instâncias supranacionais” (p. 5), ficando em segundo plano a alfabetização das crianças, “aspecto que afetou o modo como foi pensado o programa de formação continuada do PNAIC e PNEP” (MARINHO, 2018, p. 5).

Quanto ao estudo do Parfor, programa implantado pelo Ministério da Educação em parceria com a Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes), foi possível perceber que, apesar das formação e capacitação de um grande número de professores, para se obter um panorama dos resultados e relevância desse plano, em relação ao fazer pedagógico dos professores, seria preciso a realização de um levantamento a partir da própria compreensão docente, levando em conta a realidade, necessidade e condições efetivas de trabalho do cotidiano escolar desses professores (BARRETO; COSTA; SOUZA, 2014).

Fonseca, Ribeiro e Martins (2018), na investigação que teve como base o Programa Mais Educação, política educacional voltada para a ampliação do tempo em escolas públicas desde 2007, buscaram discutir a formação docente e concepções de currículo que dessem conta do caráter educacional e social para a educação em tempo integral. Nesse contexto da educação integral, os autores destacaram ser preciso considerar as diferenças existentes no contexto escolar pois se trata de um espaço marcado pela diversidade, e o ambiente escolar em sua grande maioria tem como “objetivo formar cidadãos críticos, capazes de modificar a realidade em que estão inseridos” (FONSECA; RIBEIRO, MARTINS, 2018, p. 33). Entretanto, o que se observa na prática não condiz com estas considerações, sendo necessário “refletir sobre as concepções de sujeitos e nossas práticas, para que se tenha, verdadeiramente, pessoas críticas, capazes de transformar a realidade em que estão inseridas” (FONSECA; RIBEIRO, MARTINS, 2018, p. 33). Mas, para que isso pudesse ocorrer, seria preciso levar em conta a importância da formação docente voltada para a educação integral, destacando que, qualquer proposição desse tipo, precisa ser pautada na formação docente adequada e desenvolver estratégias pedagógicas, metodológicas e a construção de uma identidade de escola pública de tempo integral fundamentada nos princípios da educação integral.

Em relação ao trabalho sobre o Programa Institucional de Bolsa de Iniciação à Docência (Pibid), política educacional com objetivo de melhorar a qualidade da formação de professores e da educação básica, com a proposta de parceria entre Instituições de Ensino Superior e Escolas de Educação Básica, foi possível perceber que os cursos de licenciatura no país, pela sua estrutura curricular, ainda são extremamente marcados por configurações curriculares que dão preferência para os conhecimentos disciplinares conceituais associados às matérias de ensino, em detrimento dos conhecimentos pedagógicos (MARCELO GARCIA, 1999), que ficam exclusivamente no final da matriz curricular, interferindo negativamente na formação inicial dos acadêmicos, sendo necessária também a criação “na universidade e na escola, a cultura de que esta última é, também, responsável pela formação do licenciando, e o professor da escola, co-formador deste futuro professor” (PUIATI, 2012, p. 12).

Um fator importante é que, em outros programas de iniciação à docência em outros países, o professor que atua na escola de educação básica tem a função de “tutor” ou de “mentor” dos docentes iniciantes, tendo como tarefa assessorar didática e pessoalmente o futuro professor, sendo elemento de apoio. Neste sentido, é este profissional que vai introduzir o futuro professor no campo de atuação para que esse absorva e interiorize características próprias da cultura escolar (MARCELO GARCIA, 1999).

Corroborando essa ação, Pinheiro e Souza (2020) destacaram em suas pesquisas os programas de indução à docência na América Latina, com ênfase nos cenários do Brasil, Chile, México, Peru e República Dominicana, buscando então entender de que maneira é possível minimizar as tensões e dificuldades vivenciadas pelos professores no início da docência e ainda potencializar suas aprendizagens nesse momento inicial da profissão. Em suas análises, foi possível perceber que, no contexto da América Latina, os programas de indução à docência apresentam semelhanças em relação ao acompanhamento para professores iniciantes, tendo diferenças em relação ao tempo concedido para as práticas desses docentes ou ainda no que tange aos objetivos de intencionalidade para uma política pública efetiva. No Brasil, esse programa consiste em experiências aplicadas em alguns estados, como o Ceará, São Paulo e Mato Grosso do Sul, entretanto, ainda não há uma política de estratégia comum no país, sendo que o período de duração depende do acordo com esses estados, tendo também componentes diferentes, conforme a experiência do professor. No México o programa acompanha a indução durante dois anos e há um tutor escolhido entre os professores experientes, que vai oferecer a tutoria de forma presencial ou on-line. No Chile, existe um sistema de indução nacional e uma lei específica, sendo que o programa acompanha a indução dos primeiros dez meses de docência; o componente de mentoria traz o acompanhamento de um profissional experiente e, conforme cada escola, esse papel tem o destaque do diretor. Já o Peru acompanha os docentes iniciantes durante seis meses, nos quais os mentores são selecionados e treinados para sua função, exercendo tanto a docência na universidade quanto integrando a equipe gestora ou ainda sendo professor mais experiente dentro do quadro docente da escola. Na República Dominicana, o pacto nacional para a reforma educativa reconhece o programa de indução, que acompanha os docentes por um ano, porém, ele ainda não foi transformado em lei ou regulamento.

Pinheiro e Souza (2020) ainda ressaltaram que, no Brasil, havia um programa chamado Programa de Formação de Professores Alfabetizadores (Profa), desenvolvido pelo MEC em parceria com municípios (2001-2003). Lançado pelo MEC em 2001, a proposta buscava nortear as ações educativas de alfabetização no ensino fundamental, educação infantil e educação de jovens e adultos, mas o MEC organizou esse trabalho por apenas dois anos, entretanto, o programa continua através das iniciativas de secretarias municipais de educação e governos estaduais.

Esses programas de indução à docência possuem características comuns de acompanhamento de um professor experiente ou tutor que conduzem atividades individuais ou coletivas na escola, ou na assessoria, apoiados pela equipe gestora da escola para o desenvolvimento profissional (MARCELO, 2002).

Porém, cada programa de indução analisado representa uma maneira de formação, para Marcelo e Vaillant (2017) não é viável que exista apenas um ou dois tipos de formação, pois os professores possuem diferentes interesses e estilos de aprendizagem, e também diversas crenças e ideias, como dificuldades e singularidades. Desta forma, não há um modelo único de programa de indução aos docentes que possa ser considerado o mais eficaz, sendo fundamental que sejam criados espaços de formações institucionais.

Dentre os programas analisados, a institucionalidade foi presente na existência de políticas públicas que apoiam o principiante, em outros houve o compromisso da instituição de ensino superior e de agências de fomento que realizam iniciativas de indução/mentoria, sendo um aspecto relevante, pois “o desenvolvimento profissional docente está ligado ao desenvolvimento organizativo das instituições formadoras e precisa ser reconhecido, prestigiado e promovido pelas instituições” (PINHEIRO; SOUZA, 2020, p. 994).

Regulação, Formação e Trabalho Docente

Silva (2020) destacou, quanto à institucionalidade das políticas ligadas à educação, que para a formação dos professores ocorrer sob a responsabilidade das universidades públicas do país seria necessário um maior investimento do Estado visto que, pelo princípio de mercadorização da formação docente, muitas vezes isso está relacionado ao ensino ofertado pelas instituições privadas de ensino superior, que tendem a encarar a educação como um produto (ENS et al., 2016; GATTI; BARRETO; ANDRÉ, 2011), resultado do olhar de mercado, implantado pelo neoliberalismo, que insere na educação os parâmetros do mercado econômico.

Desta forma, essa é uma realidade que necessita ser evitada por meio de ações que implementem processos formativos pelas instituições públicas de ensino superior, favorecendo professores que atuam/atuarão na educação básica do Brasil (SILVA, 2020). Para Freitas (2014) e Gatti, Barreto e André (2011), a atuação das universidades públicas nas ações de aprimoramento dos professores da educação básica fortalece e aproxima a educação básica do ensino superior, assim como também a teoria e a prática, o espaço escolar e acadêmico, objetivando, desta forma, ver nas escolas espaços de formação, produção de saberes e conhecimentos.

Já especificamente no caso brasileiro, para Silva (2020, p. 1564) as “políticas educacionais, sempre apresentaram um caráter descontínuo e pouca articulação entre si”, pois em relação à formação docente, as políticas públicas no Brasil sempre foram insuficientes e frequentemente não eram plenamente executadas (PINHEIRO; SOUZA, 2020). Entretanto, o cenário muda a partir da década de 1990, quando a “temática da profissionalização dos professores ganhou expressividade, e políticas educacionais voltadas para este tema surgiram em maior escala no cenário nacional” (SILVA, 2020, p. 1564).

A profissionalização docente, a valorização da carreira e a melhoria das condições de trabalho são os principais desafios que necessitam ser enfrentados pelas políticas educacionais brasileiras atualmente, pois, considerando o relevante papel que o professor representa para a qualidade da educação, além de garantir formação adequada é necessário que sejam ofertadas situações de trabalho favoráveis para atrair e manter esse profissional em sala de aula. (GATTI; BARRETO; ANDRÉ 2011).

Assim, o Plano Nacional de Educação PNE 2014 – 2024 e a Nova Política Nacional de Formação dos Professores, lançados pelo Ministério da Educação e Cultura em outubro de 2017, representam as principais ações que regulamentam a formação dos professores no Brasil. O PNE 2014 – 2024, aprovado pela Lei nº 13.005, de 25 de junho de 2014, representa um referencial para as políticas públicas educacionais brasileiras (SILVA, 2020).

Para Hypólito (2010), a formação continuada ainda se regula de maneira mais concreta, sendo conferida periodicamente, atribuindo ao corpo docente atualizações sob sua responsabilidade, direcionadas para um saber-fazer que os qualifique segundo o instituído pelos processos de avaliação. Nesse propósito, as ações de formação continuada do estado gerencial e das políticas educativas, além do caráter de regulação e controle da identidade e trabalho dos professores, consideram a escola como uma organização complexa, com a finalidade de estruturação do conhecimento sobre o ensino, desenvolvimento pessoal, profissional e institucional dos docentes, ultrapassando a formação que recebem fora dela, com a exigência de novos padrões e perfis de trabalhadores docentes (OLIVEIRA, 2004), pela construção de um docente com habilidades e competências requeridas pelo neoliberalismo (AQUINO; BORGES; PUENTES, 2012; SILVA, 2018).

Além do perfil docente requerido pelo neoliberalismo, o trabalho e a formação dos professores se ajustam com uma prática contextualizada, que dialoga com as circunstâncias locais, compromisso, prática ético-cultural, e interlocução constante no interior das instituições e entre elas e a sociedade. Considera-se, também, que a formação é um processo vinculado à autoformação, ao crescimento e desenvolvimento pessoal e cultural, de reflexão, de implicação dos estudantes para com seu desenvolvimento profissional e de realização de trabalhos em colaboração, mesmo que as políticas educacionais muitas vezes tenham cunho gerencialista e produtivista (WERLE, 2014).

Assim, o processo de reestruturação produtiva ocorrido no mercado de trabalho trouxe mudanças na educação através das reformas educacionais, resultando também na intensificação do trabalho docente e na ampliação de suas atividades, extrapolando o processo de ensinar/aprender, alterando estruturas curriculares e impondo processos avaliativos. (OLIVEIRA, 2004). Essas avaliações, no contexto do sistema educacional brasileiro, permeado pelo gerencialismo e performatividade são instituídas pelo Ministério da Educação, tais como o Ideb e o Enem (SILVA, 2018).

Nessa perspectiva, é requerido do professor o cumprimento das exigências legais e resultados satisfatórios nas avaliações, medidos pelo Índice de Desenvolvimento da Educação Básica (Ideb). Não bastasse isso, é preciso destacar os projetos advindos dos órgãos superiores para serem executados pelos professores, que muitas vezes geram desgaste, frustração e acúmulo de tarefas, resultando na intensificação do trabalho (VALENTE, 2012; HYPÓLITO, 2010).

Com essas proposições, o olhar dessas análises se fecha com o estudo de Valente (2012), que aponta para a crescente precarização do trabalho docente, o desprestígio da profissão e a desvalorização ocasionada pelos baixos salários, assim como também da decorrência da implantação do modelo fabril na escola, da lógica da especialização e da segmentação. As reformas educacionais do Estado brasileiro tiram cada vez mais a autonomia dos professores em função dos ditames legais que definem os procedimentos, regulações, resultados, controlando resultados e avaliações. Nessas condições, as formações ficam prejudicadas, tendo como consequência a desqualificação e desprofissionalização, representando a proletarização do trabalho e formação docente.

Neste panorama de políticas e mudanças neoliberais e globalizantes, alterou-se o mercado de trabalho como um todo, intensificando não apenas o trabalho polivalente da indústria, mas também o trabalho dos professores, a partir da escola que precisa estar pautada nas transformações do mercado de trabalho. Nesse âmbito, as análises de Silva (2020, p. 1657) destacam que o “combate à precarização da atividade docente materializa-se pela valorização dos professores com formação de qualidade e adequada, instituição de um plano nacional de carreira, cargos e salários e transformação das condições de trabalho”.

Considerações finais

Não há dúvidas de que o século XX foi atravessado por transformações políticas e econômicas que afetaram profundamente as relações de trabalho, na indústria, serviços e, principalmente, na educação. No setor educacional, as transformações entre escola e mercado acabaram sendo pautadas nas mudanças dos modos de gestão e gerencialismo, no formato modelo escola-empresa, porém com professores sem autonomia, diversas atribuições, sem controle das decisões de currículo e com o trabalho cada vez mais precarizado, intensificado, autointensificado e também complexo.

A discussão sobre a reestruturação do trabalho docente e sua intensificação cada vez é mais ampla, porém é possível afirmar que esse processo foi se estendendo pelas configurações ocasionadas no contexto das políticas neoliberais de reestruturação educacional, que entrelaçaram a lógica do mercado nos sistemas escolares, e, o mais grave, é que a tendência é esse processo se consolidar cada vez mais, em virtude de reformas e projetos que aliam parcerias público-privadas na educação, transformando-a em um setor rentável e manipulável.

Com essas análises, é possível por ora concluir que a formação docente tem sido cada vez mais manipulada e atribuída a questões unicamente ligadas ao modelo econômico e político vigente, ou seja, os ditames neoliberais. Mesmo que os programas e políticas tenham suas diretrizes no intuito de promover a formação, tanto inicial como continuada, outras instâncias afetam o trabalho docente, não sendo unicamente responsabilidade do professor.

Os programas de indução ou mentoria para professores iniciantes configuram-se como importantes espaços formativos para o desenvolvimento profissional desses docentes, sendo contextos importantes, porém, é necessário que esse processo seja sempre reconstruído. Porém, muitas vezes, a própria instituição não recebe recursos para tais formações, ou mesmo, o próprio Estado não tem interesse político em sua manutenção. Todavia, há também o fato de que esses são alinhados com a internacionalização das políticas educacionais na formação continuada, e trazem apenas a manutenção da ordem capitalista, com prioridades definidas com o intuito de orientar a educação pelo mercado, ainda buscando avaliações que não trazem formação para os professores, mas sim, formando professores conforme os modelos fabris e mercadológicos.

Há o descaso iminente e avassalador, desvalorizando a profissão. As políticas e os currículos engessados e programados apenas para uma educação tecnicista influenciam e contribuem negativamente para o sistema educativo, tanto em qualidade quanto em resultados, tanto para o professor quanto para o aluno.

Nos estudos e discussões realizadas, foi possível comprovar, o que já se vinha observando nos últimos anos, o quanto o trabalho docente está precarizado, além da extenuante jornada de horas de trabalho que os professores têm enfrentado. As práticas pedagógicas frequentemente têm sido influenciadas pelo modelo neoliberal, que intervém com as ações do estado gerencial desenvolvendo a regulação, fabricação e monitoramento da identidade dos professores. Com isso, o trabalho e a formação docente são normatizados para corresponderem às políticas educativas e curriculares, vinculadas às políticas internacionais fortemente dominadas pela esfera econômica, delineando um docente adequado a atual conjuntura política.

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Recebido em: 22/09/2021

Aceito em: 19/04/2022


1* Doutora em Educação/UFPel. Docente do Instituto Federal Sul-rio-grandense de Educação e Tecnologia/IFSUL-CaVG. Professora Formadora da Equipe Multidisciplinar UAB/UFPel. E-mail: valhessler@gmail.com

2** Doutora em Educação/UFPel. Docente do Programa de Pós-Graduação em Educação (FaE/UFPel) e Professora Associada no Centro de Artes (UFPel). Líder do Grupo de Pesquisa: Pesquisa, Ensino e Formação Docente nas Artes Visuais (CNPq). E-mail: maristaniz@hotmail.com

ISSN 1517-5901 (online)

POLÍTICA & TRABALHO

Revista de Ciências Sociais, nº 57, Junho/Dezembro de 2022, p. 205-222

DESIGUALDADES DO EMPREGO NUM TEMPO DE CRISE:

Setores da economia criativa no Brasil, nos anos 20101

EMPLOYMENT INEQUALITIES IN A TIME OF CRISIS :

Creative economy sectors in Brazil in the 2010s

____________________________________

Sandro Ruduit Garcia*

Resumo

O Brasil sofre, na metade dos anos 2010, uma inflexão no desempenho econômico acompanhada da adoção de uma política de austeridade fiscal. Neste artigo, o foco sobre essa questão detém-se ao que acontece com a economia criativa, que se refere à produção, transação e consumo de bens e serviços cujo valor se constitui pela sua originalidade ou autenticidade, sendo hoje discutida internacionalmente em meio às alternativas de futuro. O objetivo do artigo é acompanhar os impactos dessa crise econômica sobre o desempenho do emprego em setores ligados à economia criativa no Brasil. Recorre-se a diferentes fontes documentais sobre políticas industriais e bases oficiais de dados estatísticos, especialmente à Relação Anual de Informações Sociais do Ministério do Trabalho e Emprego do Brasil (RAIS-MTE), considerando o período entre 2010 e 2019. As empresas e os empregos em setores ligados a essa economia cresceram, na primeira metade dos anos 2010, mais do que nos demais setores econômicos, embora representassem ainda pequena parte do conjunto da atividade econômica. Na segunda metade da mesma década, esse desempenho se modifica, havendo retração e depois estagnação do nível de empregos nos setores estudados. A qualidade do emprego também sofreu prejuízos. A crise do conjunto da economia brasileira combinou-se com uma inflexão na política setorial, afetando mais significativamente certos estratos do emprego em economia criativa: nas regiões Norte e Nordeste, nas grandes empresas, nos vínculos de ensino fundamental e médio, nos jovens e no sexo feminino. Isso reverteu expectativas anteriores que vinham se estabelecendo em redução de desigualdades do emprego.

Palavras-chave: Crise econômica. Desigualdades do emprego. Economia criativa. Brasil.

Abstract

In the mid-2010s, Brazil suffered an inflection in economic performance accompanied by the adoption of a policy of fiscal austerity. In this article, the discussion of this issue focuses on what happens to the creative economy, which refers to the production, transaction and consumption of goods and services whose value is constituted by their originality or authenticity, being discussed internationally today in the midst of future alternatives. The objective is to monitor the impacts of this crisis on employment performance in sectors linked to the creative economy in Brazil. Different sources of documents on industrial policies and official statistical databases are used, especially the Relação Anual de Informações Sociais of the Ministry of Labor and Employment of Brazil (RAIS-MTE), considering the period between 2010 and 2019. Companies and jobs in sectors linked to this economy grew, in the first half of 2010, more than in other economic sectors, although they still represented a small part of the economic activity as a whole. In the second half of the decade, this performance changed, with a retraction and then a stagnation in the level of employment in the sectors studied. The quality of employment also suffered. The crisis in the Brazilian economy as a whole was combined with an inflection in sectoral policy, affecting more significantly certain strata of employment in the creative economy: in the North and Northeast regions, in large companies, in primary and secondary education, among young people and in the women. This reversed previous expectations that had been established in terms of reducing employment inequalities.

Keywords: Economic crisis. Employment inequality. Creative economy. Brazil.

Introdução

A crise financeira e econômica internacional deflagrada em 2008 teve graves efeitos sociais, destacando-se os impactos nos empregos, na distribuição da renda e nas proteções sociais ao trabalho (NAU; SOENER, 2019; REGALIA; REGINI, 2018; VISSER, 2019), a legitimidade de novos regimes de austeridade fiscal e de mudanças tributárias (BREMER; MCDANIEL, 2020; LIMBERG, 2020), a exposição ao sofrimento econômico e sua contribuição para bandeiras antiestablishment (LIU; KUO; FERNANDEZ-ALBERTOS, 2020), entre outros. O Brasil foi alcançado por tais consequências depois das economias industriais avançadas da Europa e dos Estados Unidos, sofrendo, na metade dos anos 2010, uma inflexão no desempenho econômico2. Nesse momento, uma crise política levou a uma ruptura governamental que conduziu à adoção de medidas de austeridade fiscal3. O quadro agrava-se com a crise sanitária e a aceleração da pobreza.

Neste artigo, o foco de interesse sobre essa questão detém-se ao que acontece com a economia criativa no país. Essa se refere à produção, transação e consumo de bens e serviços cujo valor se constitui pela sua originalidade ou autenticidade, sendo hoje discutida em meio às alternativas de futuro. A economia criativa exibiu um crescimento significativo ao longo dos anos 2000, tendo contribuído, segundo Oakley (2016), para a expansão de modelos de desenvolvimento cultural menos hierárquicos e para a ascensão internacional de setores com origem em países emergentes. A crise mudou esse quadro, visto que arrefeceu o consumo cultural (KONG, 2012), interferiu no acesso e na governança financeira entre atores públicos e privados (PRATT; HUTTON, 2013) e difundiu precariedades nas práticas e nos direitos trabalhistas (COMUNIAN; ENGLAND, 2020). Propris (2013) pondera, porém, que esses setores estão cada vez mais interligados com a nova indústria digitalizada, sendo insumo crucial para as atividades de inovação.

Há que se considerar ainda outros fatores no desempenho das atividades e dos empregos nessa economia, além dessas contingências econômico-produtivas e político-institucionais. Os recursos territoriais têm sido destacados como requisitos para o desempenho favorável da economia criativa, especialmente as aglomerações e complementaridades entre atividades e setores que se acham nas cidades (PRATT; HUTTON, 2013; PROPRIS, 2013). Viselá e Klimová (2014) reconhecem o peso de atributos sociais, como a escolaridade, na criatividade desses profissionais. Contudo, sabe-se pouco sobre esses diferenciais de desempenho em economia criativa, cabendo reconhecer que as dinâmicas de estratificação social, como ocorre com o emprego, são condicionadas por múltiplos fatores, objetivos e subjetivos (SCALON; SALATA, 2012). No Brasil, fala-se na constituição de “novos vulneráveis” para expressar um tipo de trabalhador escolarizado e em algum momento empregado em setores considerados não essenciais, que se depara com os impactos combinados das crises econômica e sanitária sobre seus rendimentos e direitos sociais (ARBIX, 2020).

O objetivo do artigo é acompanhar os impactos dessa crise econômica sobre o desempenho do emprego em setores ligados à economia criativa no Brasil. A hipótese é que a economia criativa expressa um conjunto de novos setores e de setores reestruturados, sendo o seu desempenho e distribuição de empregos condicionados por: a) contingências econômico-produtivas e político-institucionais do país, b) disponibilidade de recursos relevantes no território, e c) percepções sobre a relevância de atributos dos profissionais.

Os indicadores referem-se à evolução do número de empresas e empregos, bem como à distribuição dos empregos por região, por tamanho das empresas, por faixa etária, por sexo, por escolaridade, por remuneração, por carga horária e por tempo nos empregos. Acompanham-se ainda atributos de performance econômica, como PIB, balança comercial, taxa de inovação, empregos por setor econômico, educação superior e disponibilidade de computadores. Recorre-se a diferentes fontes documentais sobre políticas industriais e bases oficiais de dados estatísticos, especialmente à Relação Anual de Informações Sociais do Ministério do Trabalho e Emprego do Brasil (RAIS-MTE). O estudo nessa base de dados selecionou 46 classes de atividades econômicas, conforme a Classificação Nacional de Atividades Econômicas (CNAE) 2.0 (Quadro 1). Optou-se por considerar o período entre 2010 e 2019, com vistas a cotejar resultados antes e depois da crise no Brasil. A escolha das classes de atividades empenha-se na aproximação de seleções propostas em relatórios e diagnósticos realizados no país que tentam expressar as áreas de indústrias criativas indicadas pela Unctad (FIRJAN, 2019; UNCTAD, 2010).

Quadro 1 – Classes Econômicas Selecionadas (CNAE 2.0)

Classes de Atividades Econômicas

1. Fabricação de instrumentos musicais;

2. Construção de obras de arte especiais;

3. Edição de livros;

4. Edição de jornais;

5. Edição de revistas;

6. Edição de cadastros, listas e de outros produtos gráficos;

7. Edição integrada à impressão de livros;

8. Edição integrada à impressão de jornais;

9. Edição integrada à impressão de revistas;

10. Edição integrada à impressão de cadastros, listas e de outros produtos gráficos;

11. Atividades de produção cinematográfica, de vídeos e de programas de televisão;

12. Atividades de pós-produção cinematográfica, de vídeos e de programas de televisão;

13. Distribuição cinematográfica, de vídeo e de programas de televisão;

14. Atividades de exibição cinematográfica;

15. Atividades de gravação de som e de edição de música;

16. Atividades de rádio;

17. Atividades de televisão aberta;

18. Programadoras e atividades relacionadas à televisão por assinatura;

19. Desenvolvimento de programas de computador sob encomenda;

20. Desenvolvimento e licenciamento de programas de computador customizáveis;

21. Desenvolvimento e licenciamento de programas de computador não-customizáveis;

22. Consultoria em tecnologia da informação;

23. Suporte técnico, manutenção e outros serviços em tecnologia da informação;

24. Tratamento de dados, provedores de serviços de aplicação e serviços de hospedagem na internet;

25. Portais, provedores de conteúdo e outros serviços de informação na internet;

26. Serviços de arquitetura;

27. Atividades técnicas relacionadas à arquitetura e engenharia;

28. Pesquisa e desenvolvimento experimental em ciências físicas e naturais;

29. Pesquisa e desenvolvimento experimental em ciências sociais e humanas;

30. Agências de publicidade;

31. Agenciamento de espaços para publicidade, exceto em veículos de comunicação;

32. Atividades de publicidade não especificadas anteriormente;

33. Pesquisas de mercado e de opinião pública;

34. Design e decoração de interiores;

35. Atividades fotográficas e similares;

36. Atividades paisagísticas;

37. Ensino de arte e cultura;

38. Ensino de idiomas;

39. Artes cênicas, espetáculos e atividades complementares;

40. Criação artística;

41. Gestão de espaços para artes cênicas, espetáculos e outras atividades artísticas;

42. Atividades de bibliotecas e arquivos;

43. Atividades de museus e de exploração, restauração artística e conservação de lugares e prédios históricos e atrações similares;

44. Atividades de jardins botânicos, zoológicos, parques nacionais, reservas ecológicas e áreas de proteção ambiental;

45. Parques de diversão e parques temáticos;

46. Atividades de organizações associativas ligadas à cultura e à arte.

Fonte: Relação Anual de Informações Sociais (BRASIL, 2020).

O artigo organiza-se em três seções, além desta introdução e de considerações finais. A primeira seção propõe uma definição para os contornos do conceito de economia criativa, acionando brevemente uma literatura especializada. A segunda apresenta as contingências econômico-produtivas e político-institucionais que abalam o país na metade dos anos 2010, assim como identifica a distribuição de alguns recursos relevantes para uma economia criativa entre as regiões brasileiras. Na terceira seção, analisam-se diferentes aspectos do desempenho do emprego nessa economia, considerando diferentes atributos dos vínculos de trabalho.

Considerações sobre o conceito

O conceito de economia criativa propõe-se ao registro de uma região da chamada nova economia, relacionando-se com a afirmação do paradigma informacional de desenvolvimento (CASTELLS, 1999) e com a pluralização de estilos de vida e consequente estetização e politização nas práticas de consumo (GIDDENS; LASH; BECK, 2012).

O processo econômico depara-se, hoje, com a “destruição criadora” encetada pelas tecnologias da informação e comunicação – digitalização, internet móvel, big data – que cria setores produtivos inteiramente novos pelos seus efeitos sobre arenas econômicas já existentes (FREEMAN; SOETE, 2008), bem como com horizontes cognitivos impostos por desafios sociopolíticos globais, como as aspirações e controvérsias sobre “sustentabilidade” e sobre o acesso a “bens públicos”, inclusive recursos imateriais, como conhecimento, memória coletiva e patrimônio artístico-cultural (KAUL; GRUMBERG; STERN, 2012). Isso despertou a atenção de agências multilaterais e de governos para as potencialidades de desenvolvimento com suporte nos setores e nos profissionais “criativos” (UNCTAD, 2010; UNESCO, 2013).

A economia criativa pode ser definida pela produção, transação e consumo de bens e serviços cujo valor se constitui pela sua originalidade ou autenticidade, tendendo a se transformar em direitos de propriedade intelectual, especialmente direitos autorais. A criatividade – base dessa economia – consiste na habilidade de gerar soluções originais ou autênticas que são reconhecidas como úteis ou mesmo influentes, decorrendo de processos cognitivos, sociais e institucionais de adaptação ou transformação de ideias e símbolos em artefatos considerados historicamente novos (originalidade) ou únicos (autenticidade) (RAMELLA, 2020). A criatividade envolve a capacidade de transportar uma ideia mundana em um grupo para outro em que passa a ser considerada nova e significativa e, portanto, valorizada (BURT, 2004). Pode também decorrer de tensões entre grupos distintos que combinam diferentes ideias, sendo favorecidas pelas formas organizacionais descentralizadas com menor controle da informação e conhecimento (UZZI; SPIRO, 2005). De Vaan, Stark e Vedras (2014) chamam a atenção para a recombinação criativa de recursos – ideias, informações, conhecimentos e símbolos – gerada pela intersecção entre grupos de trabalho cognitivamente distantes, com formas de conhecimento e critérios de avaliação distintos. Cabe notar que a transformação do produto dessas atividades de criação em riqueza econômica depende de legitimidade institucional. A formação da economia criativa envolve não apenas atributos cognitivos e convenções sociais sobre a razoabilidade e cálculo da transação econômica, mas também um conjunto de diretrizes para contratos e leis que sustentam as trocas. O produto da ação criativa pode ser ou não aceito, dependendo de variáveis regimes de regras ou normas sociais (BURNS, 2014).

A novidade da economia criativa guarda, pois, íntima relação não apenas com a nova materialidade de comunicação e produção gerada pela digitalização, na conexão entre grupos e ideias, mas também com a legitimidade do consumo estetizado que se alcança com a atual pluralidade de estilos de vida. Diferentes estratégias de operacionalização do conceito tentam captar o recente crescimento dessa economia. Para Howkins (2013), os setores econômicos criativos são baseados nas tecnologias de informação e comunicação e suas possibilidades de geração de conteúdos simbólicos, classificando-se em: propaganda, arquitetura, artes plásticas, artesanato, design, moda, cinema, música, artes cênicas, setor editorial, pesquisa e desenvolvimento, software, brinquedos e jogos, TV e rádio, e videogames. Conforme Florida (2011), a “classe criativa” constitui-se de profissionais que concebem produtos criativos (computação e matemática; arquitetura e engenharia; ciências; educação e formação de recursos humanos; artes, design e mídia), tornando-se fator de propulsão de uma cidade criativa. A United Nations Conference on Trade and Development (UNCTAD) define indústrias criativas como atividades baseadas em conhecimento e em artes, gerando, potencialmente, receitas de vendas e direitos de propriedade intelectual. Com vistas a favorecer a aproximação de bases estatísticas diversas e maior precisão em estudos qualitativos e quantitativos, a agência internacional classifica as indústrias criativas em grupos: patrimônio cultural (cultura tradicional e sítios culturais); artes (visuais e cênicas); mídia (audiovisuais e publicações/ mídias impressas); e criações funcionais (design, novas mídias e serviços criativos) (UNCTAD, 2010).

O acúmulo de pesquisas registra não apenas a novidade da economia criativa, mas também sugere formas e desempenhos heterogêneos, em razão de sua inscrição em diferentes mecanismos sociais. A nova revolução industrial e as práticas de consumo compartilhado, que se amparam na digitalização, têm levado a uma maior integração entre setores industriais e de serviços, tornando as atividades de criação original e autêntica em insumos associados ao que acontece com os demais setores (PROPRIS, 2013). Ainda num plano mais geral, experiências nacionais indicam diferentes “modelos” político-institucionais de incentivos: em países como Inglaterra e Estados Unidos, as políticas para os setores de economia criativa buscam a promoção do mundo pós-industrial; nos casos da Austrália, Nova Zelândia e Canadá, as políticas voltam-se para o uso das tecnologias de informação e comunicação na promoção de culturas locais e da alta cultura, em tom de resistência à “americanização” da cultura internacional (FLEW; CUNNINGHAM, 2010).

Ademais, o registro internacional tem mostrado a pertinência de fatores regionais e territoriais no curso dessa economia. Um tipo de recurso destacado nessa literatura é a presença de profissionais qualificados e de conhecimentos que se associam à formação de empresas criativas numa região (DARCHEN; TREMBLAY, 2010). Outro fator destacado refere-se à disponibilidade de infraestruturas tecnológicas e organizacionais, bem como às capacidades de marketing e de financiamento regional (público, privado, capital de risco, subvenção) (MARKUSEN; GADWA, 2010). Os atributos dos profissionais também têm sido discutidos. As percepções de aceitação da diversidade de estilos de vida têm sido registradas como estímulos às tensões entre convenções e quadros cognitivos generativos para a criatividade, posto que contribuem como fontes de novas ideias, de diferenciação e de autenticidade dos artefatos (EIKHOF; HOUNSCHILD, 2006; KOSTER et al., 2013). A contribuição da escolarização dos profissionais tem sido, igualmente, destacada como crucial na formação de competências e habilidades reconhecidas pelas empresas dessa economia (VISEL; KLIMOVÁ, 2014).

Portanto, vale conhecer melhor os diferentes aspectos do desempenho do emprego nessa economia criativa, que expressa um conjunto de novos setores e de setores reestruturados (COMUNIAN; ENGLAND, 2020), em meio às contingências do mundo atual e suas crises, que acabam influindo no consumo (KONG, 2012), nas finanças e governança (PRATT; HUTTON, 2013), e nos enlaces produtivos (PROPRIS, 2013), dessa região do espaço econômico.

Contingências, territórios e empregos

A evolução e a distribuição recente do emprego em setores ligados à economia criativa observam as contingências político-institucionais e do conjunto da economia, bem como a disponibilidade de recursos territoriais. Como foi adiantado, o Brasil experimentou uma fase de certa expansão do emprego e do consumo com redução da pobreza (SCALON; SALATA, 2012), deflagrando-se, entretanto, uma grave crise econômica em meados dos anos 2010 com desdobramentos político-institucionais (ARBIX, 2020).

O percurso envolve a perda de capacidades de agregação de valor no conjunto do processo econômico, considerando-se indicadores de desempenho da balança comercial, de inovação e de distribuição setorial do emprego. O país teve elevação do saldo positivo na balança comercial no período estudado, em razão do incremento nas exportações e da estagnação das importações. A pauta brasileira de exportações caracteriza-se pela elevação da participação de produtos agropecuários (representavam 12% em 2010, passando para 20% em 2019), contrastando com a redução da participação de produtos da indústria de transformação (representavam 65% em 2010, passando para 58% em 2019). Quanto às importações, houve elevação da participação da indústria de transformação no mesmo período (representavam 87% em 2010, passando para 91% em 2019) (BRASIL, 2021a).

A taxa de inovação das empresas brasileiras apresenta retração no período: em 2011, 35,7% das empresas na indústria, serviços, eletricidade e gás implementaram inovações de produto e/ou processo; no ano de 2014, foram 36% das empresas; no ano de 2017, foram 33,6% (BRASIL, 2021b). O dado sobre patentes é igualmente expressivo sobre os contornos do processo econômico do país no período: os pedidos de patentes cresceram entre os anos de 2010 (foram 28.099 pedidos) e 2014 (foram 33.179 pedidos), declinando nos anos seguintes até 2019 (foram 28.317 pedidos) (BRASIL, 2021b).

A evolução dos vínculos formais de emprego no período de 2010 a 2019 mostra que o Brasil experimentou oscilações no nível de emprego, passando de cerca de 44 milhões de postos formais em 2010 para cerca de 49 milhões, em 2014, com recuo para 47 milhões, em 2019. O setor de serviços gerou cerca de 3,5 milhões de postos contra uma retração de 0,5 milhão, da indústria de transformação, no período entre 2010 e 2019. Em termos relativos, houve nesse mesmo período certa expansão nos setores de serviços (24,5%), de comércio (13,2%), de serviços industriais (12,5%), de extração mineral (7,6%) e de agropecuária (5%), contra a redução do emprego nos setores de construção civil (-20%), de indústria de transformação (-7,7%), e de administração pública (-1,1%) (BRASIL, 2020). Em paralelo, o trabalho por conta própria manteve-se estável entre os anos de 2012 e 2014 no país (cerca de 20 milhões de trabalhadores), ampliando-se expressivamente no ano de 2019 (cerca de 24 milhões de trabalhadores) (BRASIL, 2022).

Os dados são expressivos sobre as dificuldades da economia brasileira em avançar seus níveis de complexidade, atestadas pela crescente importância das commodities e pela perda de importância relativa da indústria e de serviços de apoio industrial, mais intensivos em conhecimento. Isso tem um duplo reflexo para a economia criativa. Por um lado, as capacidades de consumo tendem a se modificar, alterando a demanda por bens e serviços desses setores econômicos (KONG, 2012). Por outro lado, as dificuldades enfrentadas por setores industriais e inovadores tendem a arrefecer os enlaces produtivos e a demanda por bens, serviços e capacidades dos setores da economia criativa (PROPRIS, 2013).

Outro traço da crise refere-se às contingências políticas que abalam instituições de fomento e mesmo de regulação de uma economia criativa (PRATT; HUTTON, 2013). Na primeira metade dos anos 2010, houve um conjunto de políticas emergenciais de fomento à produção e ao emprego em face dos efeitos da crise internacional. O Plano Brasil Maior (PBM), que foi lançado em 2011, visou à expansão dos efeitos considerados distributivos entre diferentes setores empresariais e à geração e manutenção de empregos (ARBIX, 2020). A economia criativa acabou despertando certo interesse no debate público que se transformou em novas ações públicas e privadas com vistas ao seu estímulo e desenvolvimento no país. Em 2010, o Ministério da Cultura (MinC) criou a Secretaria da Economia Criativa, com o objetivo de concentrar as iniciativas federais de mapeamento e de planejamento de ações para cadeias produtivas da criatividade, territórios criativos e polos criativos, revelando preocupação central com a inclusão social e o patrimônio cultural. Associações empresariais e universidades passaram, também, a realizar diagnósticos, formação e atividades em favor desses setores econômicos, com foco na difusão de novos modelos de negócios e em sustentabilidade.

A traumática mudança de governo em 2016 levou ao deslocamento da atenção para uma agenda de “austeridade fiscal”, desestruturando-se a política industrial. Esse processo é similar a registros da literatura (LIMBERG, 2020; LIU, KUO; FERNANDEZ-ALBERTOS, 2020; REGALIA; REGINI, 2018). Algumas das expressões sobre essa visão em política industrial podem se encontrar no Programa Brasil Mais Produtivo (Decreto 9.547/2018) e no Programa de Melhoria Contínua da Competitividade (Portaria 12.302/2019). No primeiro caso, o propósito é a elevação da produtividade de pequenas e médias empresas industriais por meio da redução de desperdícios e da eficiência energética que se propõe alcançar por medidas de gestão no chão de fábrica e pela difusão de uma cultura de aperfeiçoamento contínuo. No segundo, o propósito é a redução de custos adicionais incorridos por empresas brasileiras comparativamente a outros países (dito “custo Brasil”), visando a atingir padrões no ambiente de negócios similares aos praticados na Organização para a Cooperação e o Desenvolvimento Econômico (OCDE). O foco é adotar ferramentas para o acompanhamento de indicadores de qualidade das políticas públicas por organizações designadas pelo comitê deliberativo do Programa.

Essas injunções políticas expressam, de um lado, a aposta nos antigos princípios de “manufatura enxuta”, e de outro lado a legitimação de uma agenda de austeridade fiscal e de simples racionalização de custos de produção, inclusive com trabalho (BREMER; MCDANIEL, 2020; LIMBERG, 2020; NAU; SOENER, 2019; COMUNIAN; ENGLAND, 2020; VISSER, 2019). Isso pouco tem a ver com uma agenda de agregação de valor à economia e de fomento aos setores da economia criativa. Por exemplo, o Ministério da Cultura foi reduzido à secretaria de governo, paralisando-se políticas de fomento e avanços em regulamentação setorial com reflexos no financiamento e na governança entre atores (PRATT; HUTTON, 2013; REGALIA; REGINI, 2018).

Quanto aos recursos relevantes para o desempenho dessa economia, observam-se, por exemplo, expansão da formação de pessoal no ensino superior (DARCHEN; TREMBLAY, 2010), assim como difusão do uso de tecnologias de informação e comunicação (MARKUSEN; GADWA, 2010), considerando-se o período examinado. Todavia, tais recursos, que se mostram relevantes para as atividades nessa economia, revelam uma distribuição variável entre as regiões brasileiras, podendo contribuir para explicar diferenças no seu crescimento, como se discute adiante.

De fato, a taxa de pessoas com ensino superior completo (15 anos ou mais de estudo) cresceu de 10,1%, em 2010, para 15,7%, em 2017, no Brasil. Mesmo que todas as regiões tenham experimentado crescimento desse grau de escolarização no período, permanecem níveis maiores nas regiões Sudeste (18,8%) e Sul (16,5%) do que nas regiões Nordeste (10,3%) e Norte (11,6%). A região Centro-Oeste, que conta com o Distrito Federal e a capital nacional, Brasília (onde se concentra grande parte da burocracia da administração federal) alcança uma taxa de escolarização superior que se aproxima do Sul e Sudeste (18,8%) (IBGE, 2010; IBGE, 2018).

O acesso a dispositivos de tecnologias da informação e comunicação também apresenta diferenças entre os domicílios do país. Por exemplo, a presença de computadores nos domicílios evoluiu de 35%, em 2010, para 50%, em 2014, recuando para 39%, em 2019. Essa disponibilidade de equipamentos manteve, para dados relativos ao ano de 2019, maior acesso nas regiões Sudeste (46%) e Sul (44%), comparativamente às regiões Centro-Oeste (36%), Nordeste (30%) e Norte (29%). Vale lembrar que a região Centro-Oeste inclui o Distrito Federal (UNESCO, 2021).

Nesse contexto de crise e diferentes recursos regionais, a economia criativa expandiu-se no período entre os anos de 2010 e 2014, apresentando certa retração entre os anos de 2015 e 2017, e estagnação do seu desempenho entre os anos 2018 e 2019, expressando efeitos dessa crise. Essa economia representa cerca de 2,5% do conjunto da economia no país, ao passo que na Inglaterra, por exemplo, expressa em torno de 5% da economia (PROPRIS, 2013). A Tabela 1 mostra o desempenho do número de empresas em setores selecionados da economia criativa no Brasil, partindo de 70270 estabelecimentos no ano de 2010, progredindo para 87850 estabelecimentos em 2014 (variação de 25% entre 2010 e 2014), e retraindo-se para 87674 estabelecimentos em 2019 (variação de -0,2% no período de 2014 a 2019). Na mesma tabela, o dado sobre os empregos nos setores selecionados da economia criativa revela movimento similar aos estabelecimentos. Eram 962890 vínculos formais, no ano de ٢٠10, alcançando 1107283 vínculos, em 2014 (variação de 15% nesse período). Esse número se retrai para 1065051 vínculos, no ano de ٢٠١9 (variação de -3,8% entre 2014 e 2019). Como parâmetro, pode-se referir que os vínculos nos setores selecionados da economia criativa experimentaram crescimento de 10,6% no período de 2010 a 2019, ao passo que, no conjunto dos setores econômicos, variaram 7,9%, no mesmo período. O dado sugere que a economia criativa tem sido um pouco menos afetada pela crise econômica que se deflagrou mais recentemente.

Tabela 1 - Evolução do número de estabelecimentos e de vínculos
em setores selecionados da economia criativa no Brasil – 2010, 2014 e 2019

 

2010

2014

2019

Variação 2010/2014

Variação 2014/2019

Variação 2010/2019

Estabelecimentos

70270

87850

87674

25,0%

-0,2%

24,8%

Vínculos

962890

1107283

1065051

15,0%

-3,8%

10,6%

Fonte: Relação Anual de Informações Sociais (BRASIL, 2020).

Portanto, os dados coligidos mostram o crescimento das empresas e dos empregos ligados a setores da economia criativa no Brasil. Esse processo despertou a atenção de agentes governamentais, acadêmicos e empresariais, com iniciativas que parecem ter estimulado a formação de novos e pequenos empreendimentos. Contudo, a recente crise econômica enfrentada pelo país freou esse crescimento de uma economia criativa. Constata-se, ainda, certa relação entre a expansão e disponibilidade de recursos importantes para essa economia e seus níveis de participação e crescimento entre regiões do país. A distribuição regional do emprego é discutida na próxima seção.

Distribuição dos empregos

Quais os impactos dessa crise sobre a distribuição do emprego em economia criativa no Brasil?

A crise teve efeitos sobre o emprego em economia criativa em todas as regiões do país, estagnando o processo de expansão que se achava em momento anterior. Entretanto, houve perda mais significativa de empregos nas regiões Norte e Nordeste do que nas demais regiões. Como se observa na Tabela 2, os vínculos retraíram-se no período entre 2010 e 2019 nas regiões Norte (variação de -31,5%) e Nordeste (variação de -4,6%), ao passo que nas regiões Sul (variação de 29,6%), Centro-Oeste (variação de 18,9%) e Sudeste (variação de 11,5%) os vínculos alcançaram alguma expansão no mesmo período, ainda que tenham sofrido impactos negativos a partir de 2014. Vale notar que esse desempenho difere do que ocorre com o conjunto da economia em que a região Sudeste teve a maior desaceleração dos vínculos no período (variações de -5% entre 2014 e 2019 e de 4,8% entre 2010 e 2019). Isso corresponde à disponibilidade de recursos relevantes, como educação superior e tecnologias da informação e comunicação, entre as diferentes regiões do país (MARKUSEN; GADWA, 2010; DARCHEN; TREMBLAY, 2010), sugerindo que as capacidades territoriais anteriores podem contribuir para atenuar os efeitos deletérios das contingências políticas e econômicas (PROPRIS, 2013).

Tabela 2 - Evolução do número de vínculos em setores selecionados
da economia criativa por região no Brasil - 2010, 2014 e 2019

Região Natural

2010

2014

2019

Variação 2010/2014

Variação 2014/2019

Variação 2010/2019

Norte

45063

35254

30865

-21,8%

-12,4%

-31,5%

Nordeste

126135

123307

120270

-2,2%

-2,5%

-4,6%

Sudeste

573542

676382

639442

17,9%

-5,5%

11,5%

Sul

147496

187734

190471

27,3%

1,5%

29,1%

Centro-Oeste

70654

84606

84003

19,7%

-0,7%

18,9%

Total

962890

1107283

1065051

15,0%

-3,8%

10,6%

Fonte: Relação Anual de Informações Sociais (BRASIL, 2020).

Constata-se a desaceleração da expansão do emprego entre os diversos portes das empresas nos setores selecionados da economia criativa no Brasil, considerando-se a inflexão de desempenho em 2014. Porém, os vínculos nas grandes empresas tiveram maior retração em termos relativos do que nas pequenas e médias empresas (Tabela 3). Ao considerar-se o período entre 2014 e 2019, reduziram-se os vínculos nos estabelecimentos com tamanho entre 500 e 999 empregados (variação de -13,1%) e com tamanho de 1000 ou mais empregados (variação de -34,4%). Os estratos de pequenas e médias empresas experimentaram apenas a desaceleração da expansão dos vínculos comparativamente ao período anterior (de 2010 a 2014). As microempresas (estratos de 1 a 4 empregados, e de 5 a 9 empregados) revelaram estagnação no mesmo período (taxas de 0% e -1%). Pode-se supor que as grandes empresas se viram mais afetadas pela conjuntura econômica e política desfavorável, em razão da sua menor agilidade em face da situação de incerteza na gestão e governança financeira vis-à-vis as pequenas empresas (PRATT; HUTTON, 2013). Outro aspecto a considerar é uma possível acentuação de movimentos de subcontratação e de horizontalização produtiva que vinha se verificando mesmo antes da crise, resultando na expansão das classes de pequenos proprietários no país (SCALON; SALATA, 2012).

Tabela 3 - Evolução do número de vínculos em setores selecionados da economia criativa por tamanho do estabelecimento no Brasil - 2010, 2014 e 2019

Tamanho

2010

2014

2019

Variação 2010/2014

Variação 2014/2019

Variação 2010/2019

De 1 a 4

70401

87611

87591

24,4%

0,0%

24,4%

De 5 a 9

76496

93038

92107

21,6%

-1,0%

20,4%

De 10 a 19

98611

121384

124393

23,1%

2,5%

26,1%

De 20 a 49

132242

161255

165985

21,9%

2,9%

25,5%

De 50 a 99

93876

105939

116313

12,8%

9,8%

23,9%

De 100 a 249

115273

144150

153761

25,0%

6,7%

33,4%

De 250 a 499

95293

104671

113671

9,8%

8,6%

19,3%

De 500 a 999

83537

100562

87378

20,4%

-13,1%

4,6%

1000 ou mais

197161

188673

123852

-4,3%

-34,4%

-37,2%

Total

962890

1107283

1065051

15,0%

-3,8%

10,6%

Fonte: Relação Anual de Informações Sociais (BRASIL, 2020).

Os dados são expressivos sobre as mudanças na escolaridade dos trabalhadores em economia criativa no período. Entre os anos de 2010 e 2014, houve uma expansão acentuada dos vínculos de trabalhadores nas faixas de maior escolaridade (ensino médio completo e ensino superior) com redução dos vínculos no nível de ensino fundamental, indicando ganhos de escolaridade nesses setores naquele momento. Entre 2014 e 2019, com exceção do nível de ensino superior incompleto e entre analfabetos, todos os demais níveis tiveram desaceleração (ensino superior completo) ou redução dos vínculos de trabalhadores (ensino fundamental incompleto e completo; ensino médio incompleto e completo). Contudo, as maiores perdas relativas de vínculos acham-se entre trabalhadores de menor escolaridade: níveis fundamental e médio de ensino que tiveram redução dos vínculos entre 2014 e 2019, quando os ganhos de vínculos no ensino superior não foram capazes de compensar essas perdas – diferentemente do período de expansão anterior (Tabela 4). Essa economia mostra, pois, absorver trabalhadores mais qualificados, inclusive na conjuntura de retração e estagnação econômica (VISELÁ; KLIMOVÁ, 2014). Essa relevância da educação superior no acesso às melhores posições no mercado de trabalho suscita a questão sobre os persistentes obstáculos de origem social e no próprio sistema de ensino para o acesso a esse nível educacional (SALATA, 2018).

Tabela 4 - Evolução do número de vínculos em setores selecionados da economia criativa por grau de escolaridade no Brasil - 2010, 2014 e 2019

Escolaridade

2010

2014

2019

Variação 2010/2014

Variação 2014/2019

Variação 2010/2019

Analfabeto

1315

914

1862

-30,5%

103,7%

41,6%

Até 5ª Incompleto

16883

13416

9501

-20,5%

-29,2%

-43,7%

5ª Completo Fundamental

20286

16540

7849

-18,5%

-52,5%

-61,3%

6ª a 9ª Fundamental

39029

29551

18227

-24,3%

-38,3%

-53,3%

Fundamental Completo

69468

57572

33926

-17,1%

-41,0%

-51,2%

Médio Incompleto

51088

50088

31239

-2,0%

-37,6%

-38,9%

Médio Completo

368675

412587

380467

11,9%

-7,8%

3,2%

Superior Incompleto

95633

101799

115529

6,4%

13,5%

20,8%

Superior Completo

300513

424816

466451

41,4%

9,8%

55,2%

Total

962890

1107283

1065051

15,0%

-3,8%

10,6%

Fonte: Relação Anual de Informações Sociais (BRASIL, 2020).

Em relação à distribuição etária dos empregos, todas as faixas etárias de trabalhadores experimentaram crescimento dos vínculos entre os anos de 2010 e 2014, especialmente as faixas com idades mais altas (entre 50 e 64 anos variou 29,8%; 65 ou mais anos variou 66,7%). Entretanto, todas as faixas etárias tiveram desaceleração dessa expansão ou mesmo retração dos vínculos dos trabalhadores entre os anos de 2014 e 2019. A recente crise econômica e a consequente retração da atividade em economia criativa no país acabaram afetando mais intensamente os mais jovens: a faixa entre 10 e 14 anos variou -67,7% entre 2014 e 2019; a faixa entre 15 e 17 anos variou -57,4%; a faixa entre 18 e 24 anos variou -15,8%; e a faixa entre 25 e 29 anos variou -10,4%, no mesmo período. A faixa de trabalhadores mais velhos (65 anos ou mais) experimentou crescimento de 35,4% no período entre 2014 e 2019, revelando, de uma lado, melhor desempenho do que as faixas mais jovens, e por outro lado desacelerando sua expansão em relação ao período 2010 e 2014. Há certa valorização de acúmulos de experiência profissional nessa economia que se torna mais flagrante no período de crise. Isso acabou afetando a inserção dos jovens profissionais, especialmente nos momentos de maior incerteza, e retomando movimentos de transições não lineares entre escola-trabalho-domicílio já documentado entre jovens trabalhadores no Brasil (CORSEUIL; FRANÇA; POLOPONSKY, 2020).

Quanto à distribuição dos empregos por sexo dos trabalhadores, constata-se que há menos vínculos para o sexo feminino do que para o masculino em todo o período (2010 a 2019), mas o emprego feminino apresenta maior velocidade de expansão (variação de 14,9%) do que o masculino (8%), reduzindo a distância de vínculos entre os sexos. Entre os anos de 2014 e 2019, houve redução dos vínculos dos trabalhadores de ambos os sexos, mas a retração foi mais significativa nos vínculos do sexo feminino (variação de -4,5%) do que no masculino (variação de -3,4%). A crise impactou mais negativamente as mulheres, revertendo sob certo aspecto uma expectativa de maior velocidade de expansão desse emprego alcançada no período anterior, de crescimento da economia criativa (variação de 20,3% dos vínculos femininos contra 11,8% dos vínculos masculinos, no período de 2010 a 2014). O dado sugere que a situação de incerteza e escassez de recursos fez, entre outros aspectos, refluir sobre as mulheres obrigações com “cuidados” (GUIMARÃES, 2016).

Quanto à remuneração dos trabalhadores, a maioria dos vínculos situa-se nas faixas de remuneração que vão até 3 salários mínimos mensais, no período investigado. Cabe notar que, em geral, as faixas salariais mais elevadas apresentaram uma velocidade maior de expansão dos vínculos do que as faixas de menores salários no período entre os anos de 2010 e 2014, indicando uma tendência de elevação dos salários em economia criativa naquele momento. No entanto, as expectativas de ganhos são abaladas no período entre 2014 e 2019, quando se constata uma redução dos vínculos nas maiores faixas salariais (1,51 salários mínimos ou mais) e mesmo uma desaceleração da expansão dos vínculos entre as faixas salariais até 1,5 salários mínimos. Há um nítido aviltamento salarial entre os trabalhadores dos setores estudados em face da nova conjuntura econômica, como registrado por Comunian e England (2020). Assim, todas as faixas de remuneração cresceram até a crise deflagrada em 2014, mas as faixas de remuneração mais elevadas perderam, proporcionalmente, mais vínculos entre 2014 e 2019 do que as demais (entre 15 e 20 salários mínimos variou -19,2%; e mais de 20 salários mínimos variou -21,4%).

Os setores selecionados da economia criativa no Brasil têm predomínio dos vínculos de emprego com tempo integral de trabalho (faixas de 41h a 44h semanais). No período entre 2010 e 2014, as faixas de carga horária de trabalho em tempo parcial tiveram expansão, ao passo que a faixa de tempo integral teve redução no período (variação de -2,1%). Entre 2014 e 2019, essa mesma faixa teve a maior retração dos vínculos (variação de -19,8%), ou seja, os que mais perderam com a crise foram os trabalhadores com carga horária integral. Pode-se supor certo deslocamento desses trabalhadores para atividades informais por conta própria, completando suas cargas horárias. Isso contribui para esclarecer a redução das maiores faixas de remuneração, como antes apontado. Outra informação relevante refere-se à evolução dos vínculos segundo a faixa de tempo no emprego, constatando-se que os grupos de menor tempo no emprego tiveram os maiores prejuízos na crise. No período entre 2014 e 2019, houve retração dos vínculos de trabalhadores com até 59,9 meses de contrato, enquanto houve expansão dos vínculos nas faixas de 60 ou mais meses no emprego (variação de 33,1% na faixa de 60 a 119,9 meses de contrato; variação de 32,3% na faixa de 120 ou mais meses de contrato, no período). O dado expressa não apenas a redução de contratações em face da crise econômica (KONG, 2012; PRATT; HUTTON, 2013), mas também a opção pelo desligamento de trabalhadores com menor tempo no emprego, valorizando-se sob certo aspecto o conhecimento acumulado no posto de trabalho. Ao mesmo tempo, o dado contribui para entender a desvantagem dos trabalhadores mais jovens na conjuntura desfavorável da economia.

Portanto, ao considerar-se o momento anterior à crise (entre os anos de 2010 e 2014), o emprego em economia criativa no país cresceu mais do que no conjunto dos setores econômicos, sendo a velocidade dessa expansão maior entre os trabalhadores mais velhos, do sexo feminino, com ensino superior e nas faixas de maior remuneração. A crise econômica impactou o desempenho dessa economia, desacelerando o seu crescimento, a partir do ano de 2014. Os efeitos negativos foram mais significativos nos vínculos de trabalhadores das regiões Norte e Nordeste, das grandes empresas, dos níveis fundamental e médio de ensino, das faixas etárias mais jovens, do sexo feminino, das faixas de maiores salários e de tempo integral.

Considerações finais

O estudo sobre o desempenho da economia criativa num tempo de crise permite discutir algumas tendências consoantes às particularidades da sociedade brasileira, nos limites dos dados obtidos.

No Brasil, as empresas e os empregos em setores ligados a essa economia cresceram, na primeira metade dos anos 2010, mais do que nos demais setores econômicos, embora representassem ainda pequena parte do conjunto da atividade econômica. Na segunda metade da mesma década, esse desempenho se modifica, havendo retração e depois estagnação do nível de empregos nos setores estudados. A qualidade do emprego também sofreu prejuízos, notadamente a remuneração dos profissionais empregados (COMUNIAN; ENGLAND, 2020). Novos estudos poderiam, a propósito, com outras bases e fontes de dados, avançar sobre as interfaces entre o emprego formal e as ocupações informais nessa economia em situações de crise.

A crise do conjunto da economia brasileira combinou-se com uma ruptura governamental, levando a uma inflexão na política setorial. Sob os estímulos da Unctad, o Brasil havia adotado ações de fomento a uma economia criativa, destacando-se iniciativas de associações empresariais, de universidades e de agentes governamentais, resultando no estímulo à formação de novas e pequenas empresas. Isso se aproxima do que se verificava em outros contextos, podendo favorecer inclusive a maior horizontalidade na produção e distribuição de bens e serviços culturais, por exemplo (OAKLEY, 2016). As contingências políticas enfrentadas pelo país acabaram por desestruturar tais estímulos, relativamente recentes e ainda pouco articulados entre si. A recessão e estagnação econômica contraíram a demanda por bens e serviços criativos. Uma particularidade da situação brasileira refere-se à desindustrialização e perda de complexidade econômica, prejudicando enlaces produtivos que requerem o consumo de produtos criativos. Ou seja, o Brasil acabou sofrendo diferentes efeitos da crise internacional, como os prejuízos ao emprego e à renda dos trabalhadores (NAU; SOENER, 2019), a afirmação de uma agenda de “austeridade fiscal” (BREMER; MCDANIEL, 2020) e a expansão de concepções antiestablishment com efeitos sobre os setores artísticos e culturais (LIU; KUO; FERNANDEZ-ALBERTOS, 2020).

No entanto, as contingências enfrentadas pelo país afetaram mais significativamente certos estratos do emprego em economia criativa: nas regiões Norte e Nordeste, nas grandes empresas, nos vínculos de ensino fundamental e médio, nos jovens e no sexo feminino. Ao mesmo tempo, expandem-se as atividades informais por conta própria. Isso reverteu expectativas anteriores que se vinham estabelecendo.

O desempenho diferencial entre regiões parece relacionar-se com a disponibilidade de recursos sociais, como pessoal qualificado e infraestrutura digital. Isso é consistente com estudos que afirmam a importância da transformação pelos profissionais de recursos disponíveis em ativos territoriais no processo de desenvolvimento dessa economia criativa. A disponibilidade de recursos e a capacidade de empregá-los no processo econômico tornam-se relevantes para explicar o desempenho de setores criativos (MARKUSEN; GADWA, 2010; DARCHEN; TREMBLAY, 2010). Parecem concorrer ainda fatores subjetivos, além dos objetivos, para tanto (SCALON; SALATA, 2012), como as percepções sobre as funções sociais com “cuidados” que tendem a se transformar em maiores dificuldades para as mulheres (GUIMARÃES, 2016), no contexto de crise investigado. Caberia o prosseguimento de investigações sobre o tópico, explorando os efeitos de situações de crise sobre o reconhecimento social dos diferentes estilos de vida e identidades como atributos relevantes para atividades e ambientes profissionais criativos.

Portanto, esse tipo de atividade econômica não evolui sob quaisquer condições, relacionando-se aos atributos dos profissionais, aos ativos territoriais e às contingências econômico-produtivas e político-institucionais. A crise – retração econômica, desindustrialização, austeridade fiscal, desorganização das políticas – revigora desigualdades do emprego. A insistência desses processos de desestruturação poderá limitar progressivamente capacidades territoriais ainda disponíveis, agravando essa situação.

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Recebido em: 11/04/2022

Aceito em: 05/09/2022


1 Uma versão preliminar deste artigo foi apresentada no 20º Congresso Brasileiro de Sociologia, integrando os seus Anais Eletrônicos. O autor é grato ao CNPq.

* Professor associado do Departamento de Sociologia e professor permanente do Programa de Pós-Graduação em Sociologia da Universidade Federal do Rio Grande do Sul. E-mail: sandro.ruduit@ufrgs.br

2 A taxa média de crescimento anual do Produto Interno Bruto (PIB) foi de 3,38%, no período entre 2010 e 2014; essa taxa sofre grave retração para -0,46%, no período entre 2015 e 2019 (WORLD BANK, 2021). Isso se reflete na desocupação cuja taxa de 7,9%, no primeiro trimestre de 2012, reduziu-se para 7,1%, no primeiro trimestre de 2014, elevando-se para 12,2%, no primeiro trimestre de 2020 (IBGE, 2021).

3 Foi quando se aprovaram, por exemplo, o Teto de Gastos (Emenda Constitucional 95/2016) e a Reforma Trabalhista (Lei 13.467/2017).

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POLÍTICA & TRABALHO

Revista de Ciências Sociais, nº 57, Junho/Dezembro de 2022, p. 223-241

WEBER PELO CRIVO DA CRÍTICA ANTICOLONIAL

WEBER THROUGH THE SIEVE OF ANTICOLONIAL CRITIQUE

____________________________________

Lucas Trindade da Silva1*

Resumo

O propósito deste ensaio é inquirir Weber a partir da perspectiva da crítica anticolonial em três aspectos centrais e interrelacionados de sua obra: 1) os impasses de uma compreensão purista da formação de tipos ideais; 2) as consequências desse purismo na compreensão do capitalismo moderno; 3) as implicações eurocêntricas da tipologia das formas de racionalismo em sua sociologia da religião. A partir de pesquisa teórica que busca aliar o inquirimento externo (crítica anticolonial) a uma abordagem imanente da obra de Weber, o texto sugere que mesmo quando acatamos a ideia de um eurocentrismo puramente analítico (e não normativo) em Weber, isto não o isenta de limitações fundamentais quando lido por um crivo decolonial: a) a imagem da modernidade como um processo de difusão que nasce na Europa e se espalha pelo mundo; b) a ausência ou secundarização da problemática da conquista e da violência colonial, em suas dimensões material e simbólica, para pensar a modernidade; c) uma abordagem tipológica purista na compreensão dos fenômenos socio-históricos; d) uma apreciação, intrínseca ao eurocentrismo (heurístico ou normativo), do Outro sociocultural pelo lado da falta ou ausência de atributos presentes no Mesmo, a despeito da importante ressalva de que esse Outro também seja tomado sob o signo da razão (racionalismos e racionalidades diversas).

Palavras-chave: Tipos Ideais. Capitalismo. Racionalismo. Crítica anticolonial.

Abstract

The purpose of this essay is to inquire Weber from the perspective of anti-colonial critique in three central and interrelated aspects of his work: 1) the impasses of a purist understanding of ideal types’ formation; 2) the consequences of this purism in his understanding of modern capitalism; 3) the eurocentric implications of the rationalism forms’ typology in his sociology of religion. Based on theoretical research that seeks to combine external inquiry (anti-colonial critique) with an immanent approach to Weber’s work, the text suggests that even when we accept the idea of a purely analytical (and not normative) eurocentrism in Weber, this does not exempt him from fundamental limitations when read through a decolonial sieve: a) the image of modernity as a process of diffusion that is born in Europe and spreads throughout the world; b) the absence or secondaryization of the problem of colonial conquest and violence, in its material and symbolic dimensions, to think about modernity; c) a purist typological approach to understanding socio-historical phenomena; d) an appreciation, intrinsic to eurocentrism (heuristic or normative), of the sociocultural Other on the side of the lack or absence of attributes present in the Same, despite the important caveat that this Other is also taken under the sign of reason (different rationalisms and rationalities).

Keywords: Ideal Types. Capitalism. Rationalism. Anti-colonial critique.


1* Professor adjunto da UFRN, vinculado ao Instituto Humanitas de Estudos Integrados e ao Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais. Integra os grupos de pesquisa: Periféricas (UFBA) e Grupo de Pesquisa Social (UFRN). Agradeço, primeiramente, a Cynthia Hamlin e a Silke Weber, que me acolheram no Seminário de Sociologia do PPGS/UFPE e permitiram discutir, em evento que marcou o centenário de morte de Max Weber, um primeiro esboço dos argumentos aqui desenvolvidos. Agradeço também a Lucas Amaral e Adélia Miglievich, que aceitaram o manuscrito em estágio mais elaborado no ST Ciências Sociais e Descolonização, no 46º Encontro da ANPOCS. Agradeço a Patrícia Santos pelos excelentes comentários e contribuições como debatedora do ST. Agradeço enfaticamente, por fim, aos pareceristas anônimos e à equipe editorial da Política & Trabalho pelo trabalho de excelência. A persistência de lacunas e falhas ao longo do artigo é de minha inteira responsabilidade. E-mail: lucastrindadedasilva@yahoo.com.br

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POLÍTICA & TRABALHO

Revista de Ciências Sociais, nº 57, Junho/Dezembro de 2022, p. 242-258

Introdução

Neste ensaio, sigo o mote precisamente formulado por Gabriel Cohn de que “a melhor forma de respeito, sobretudo a um clássico, é a crítica” (SILVA, 2016, Orelha do livro). Algo que, imagino, Weber concordaria inteiramente, autor que sempre se apropriou criticamente de seus vários mestres para produzir algo distinto e mais adequado ao mundo que observava. É conhecida também a sua afirmação na conferência Ciência como Vocação: “... nosso objetivo [na ciência] é o de nos vermos, um dia ultrapassados” (WEBER, 2004a, p. 9).

Nas páginas a seguir, tentarei suscitar esse reconhecimento agonístico da obra de Weber a partir de questões postas pela crítica anticolonial, tomando tal expressão como abarcadora de uma ampla gama de obras que buscam pensar as múltiplas dimensões da relação entre modernidade, capitalismo e colonialismo, em um arco que vai da Martinica de Césaire e Fanon e chega aos estudos subalternos, pós-coloniais e à perspectiva da (de) colonialidade. Não se trata, aqui, de escavar sistemática e arqueologicamente as críticas a Weber em autoras e autores desse universo imenso e heterogêneo, mas de nele me inspirar amplamente para provocar questões, problemas e, principalmente, suscitar a dúvida e a crítica.

Serão três os aspectos interrelacionados (organizados em três seções) da obra de Weber que farei passar por um crivo crítico anticolonial: 1) as contribuições epistemológicas e metodológicas sintetizadas em torno da noção de tipo ideal, em particular sua exigência de homogeneidade, não contraditoriedade e pureza heurísticas; 2) como desdobramento, a construção típico-ideal do espírito do capitalismo moderno (realizada em oposição assimétrica ao espírito capitalista tradicionalista predatório), recuperando argumentos realizados em Silva (2016); 3) as implicações de sua investigação “histórico-desenvolvimental”, também ao estilo típico-ideal, das formas de racionalismo empreendida a partir de uma sociologia comparativa das religiões de salvação.

Na ampla terceira seção, seguida de uma conclusão que retoma os principais argumentos das seções anteriores, convocarei como principais interlocutores um advogado extremamente qualificado (SELL, 2015) e um crítico destruidor (ZIMMERMAN, 2006).

A pureza típico-ideal e suas implicações

O primeiro aspecto que eu gostaria de salientar diz respeito àquilo que sintetiza as contribuições epistemológicas e metodológicas de Weber em seu diálogo com o neokantismo e as escolas histórica e teórica da economia, núcleo de sua posição na controvérsia sobre o método: o tipo ideal; núcleo pois o tipo ideal concentra em si outras importantes proposições metodológicas de Weber.

O tipo ideal incorpora o racionalismo heurístico. A ideia de que um caminho útil para a compreensão de ações sociais (orientadas por um sentido subjetivamente visado) é tomá-las preliminarmente como sendo puramente racionais, calcadas em um conhecimento razoável das condições para a ação e em um inquirir sobre os melhores meios para alcançar determinados fins.

Incorpora igualmente o individualismo metodológico. A premissa metodológica, que pouco mascara seu enraizamento ontológico, é a de que só indivíduos são capazes de atribuir sentido e que, por isso, “conceitos coletivos”, para a sociologia, “nada mais são do que desenvolvimentos e concatenações de ações específicas de pessoas individuais, pois só estas são portadoras compreensíveis para nós de ações orientadas por um sentido” (WEBER, 2000, p. 9). Instituições, estruturas ou padrões sociológicos são sempre produtos de inúmeras ações sociais motivadas por sentidos relativamente compartilhados, dinamizados pela “ideia” (que pode ser tradicional, afetiva ou racionalmente motivada, por valores ou fins) de que tal ou qual “coisa” supraindividual realmente “existe ou deve existir” (WEBER, 2000, p. 9) de uma forma determinada. Uma diversidade de indivíduos – em suas ações e relações – atuam como se tais coisas existissem para além deles mesmos.

Incorpora também – contra Heinrich Rickert (1986) e a busca desse por valores gerais e objetivos sobre os quais fundar as ciências históricas e da cultura – a admissão de que o ponto de partida de uma formação conceitual nessas ciências é sempre subjetivo, dada a impossibilidade, dentro do politeísmo de valores característico da modernidade, de ancoramento normativo objetivo, como queria Rickert, incluído entre os “lógicos modernos” que tanto influenciaram Weber (1993, p. 107, nota 1):

O máximo que podemos [nós, cientistas] compreender é o que o divino significa para determinada sociedade, ou o que esta ou aquela sociedade considera como divino [...] Nos termos das convicções mais profundas de cada pessoa, uma dessas éticas assumirá as feições do diabo, a outra as feições divinas e cada indivíduo terá de decidir, de seu próprio ponto de vista, o que, para ele, é deus e o que é o diabo (WEBER, 2004a, p. 42, grifo do autor).

Neste artigo, eu gostaria de salientar sobretudo a analítica do conceito tão ressonante na ideia de tipo ideal. A saber, a ênfase contínua de que as generalidades conceituais nas ciências sociais são sempre instrumentos, meios e não fins de conhecimento. Em outras palavras, a ideia de que o fim de uma investigação não existe, que os resultados de uma pesquisa são sempre novos começos e a ciência, social no caso, é sempre uma atividade intranquila e incessante. Ênfase contundente, embora isso implique uma posição antirrealista e nominalista no caso de Weber, contra um naturalismo nomotético, contra tendências ao hipostasiamento e contra todo substancialismo conceitual, ou seja, a tomar os conceitos como expressões ou emanações de uma realidade essencial. Contra isto, e aqui dando sequência aos diversos desdobramentos da Crítica da Razão Pura, Weber não poderia ser mais claro: “O domínio do trabalho científico não tem por base as conexões ‘objetivas’ entre as ‘coisas’, mas as conexões conceituais entre os problemas” (WEBER, 1993, p. 121).

Como derivação da premissa epistemológica acima, o tipo ideal em Weber, como sabemos, é obtido “mediante a acentuação unilateral” e “encadeamento” (WEBER, 1993, p. 137) de determinados aspectos de um fenômeno investigado. Logo, deve aparecer como um produto puro, “um quadro homogêneo de pensamento”, um “quadro ideal não contraditório, para efeito de investigação” (WEBER, 1993, p. 138).

Esse tipo de proposição, bem se sabe, é ruidosa para toda uma tradição dialética, delimitada por esforços heterogêneos de preservar, de algum modo, a contraditoriedade do mundo no interior do conceito. A título de exemplo, tomemos a crítica de István Mészáros. Referindo-se à definição típico-ideal do capitalismo “como uma ‘cultura’” cujo “‘princípio norteador é o investimento de capital privado’” (WEBER apud MÉSZÁROS, 2008), Mészáros (2008, p. 21, grifo do autor) escreve:

Não há vestígios de contradições dinâmicas no modelo; portanto, ele pode apenas abarcar as características estáveis da continuidade – desprezando complemente a dialética da descontinuidade – de um status quo predominante. A continuidade é simplesmente admitida sob a forma de um “princípio” já dominante e, uma vez que ela existe, não pode ser alterada, de acordo com o modelo estático weberiano.

Voltarei às implicações da compreensão típico-ideal do capitalismo em Weber na próxima seção. Ainda no plano teórico-metodológico e fora do espectro anticolonial, também a praxiologia proposta por Pierre Bourdieu, endereçando suas críticas principalmente aos diversos estruturalismos (objetivistas) e às abordagens fenomenológicas e existencialistas (subjetivistas), se insurge contra uma transposição da lógica teórica ou intelectual para a lógica da prática: “É preciso reconhecer na prática uma lógica que não é a da lógica para evitar lhe pedir mais lógica do que ela pode oferecer e de se condenar assim ou a lhe extorquir incoerências, ou a lhe impor uma coerência forçada” (BOURDIEU, 2009, p. 142).

Aproximando-me, enfim, do problema específico deste texto, gostaria de insistir que tal compreensão purista, não contraditória, homogênea da formação de instrumentos heurísticos de aproximação à realidade também soa particularmente estranha, me parece, a todo o espectro da crítica anticolonial.

Penso no fenômeno da dupla consciência desde ao menos Du Bois.

É uma sensação peculiar, essa consciência dual, essa experiência de sempre enxergar a si mesmo pelos olhos dos outros, de medir a própria alma pela régua de um mundo que se diverte ao encará-lo com desprezo e pena. O indivíduo sente sua dualidade – é um norte-americano e um negro; duas almas, dois pensamentos, duas lutas inconciliáveis; dois ideais em disputa em um corpo escuro, que dispõe apenas de sua força obstinada para não se partir ao meio (DU BOIS, 2021, p. 23).

Fenômeno que, pelo que se vê, só é captável exatamente na medida em que atributos aparentemente incompatíveis e polarizados são tomados como imersos em uma experiência concreta (que são muitas) e em um mesmo corpo (que são muitos). Condição dupla, ambivalente, que, pensada por Fanon como experiência vivida do negro, ou esquema racial-corporal, torna-se também o marco de um novo humanismo: “Não tenho o dever de ser isso ou aquilo...” (FANON, 2020, p. 240); “Não se deve fixar o homem, pois seu destino é ser solto” (FANON, 2020, p. 241).

Penso, também, no esforço de Ranajit Guha (1982, 1983, 1997) em analisar a lógica ambivalente, simultaneamente secular e religiosa, conservadora e insurgente, política e “não-política” (em termos “ocidentais”) dos camponeses indianos. Penso, igualmente, na defesa que faz Akinsola Akiwowo (1999), baseado em Bart Kosko, de uma fuzzy logic, oposta à lógica binária (cujas raízes estariam em Demócrito, Platão e Aristóteles), que seria capaz de conceituar o contraditório, o “multivalente”, o não linear, a coexistência de termos opostos e tempos heterogêneos, numa tradição que passaria por Buda, Lao-Tse e Orunmilá, o sábio mítico iorubá.

Penso em Aníbal Quijano que, em contenda com o que chama de totalidades homogêneas estrutural-funcionalistas e histórico-materialistas1, e contra o que chama de novo atomismo dos pós-modernistas, propõe, colocando-se como aprendiz das cosmovisões não-ocidentais, uma perspectiva outra de totalidade, capaz de incluir “o reconhecimento da heterogeneidade de toda realidade; de seu irredutível caráter contraditório; da legitimidade, isto é, a desejabilidade do caráter diverso dos componentes de toda realidade e da social em consequência” (QUIJANO, 1992, p. 446).

Gurminder Bhambra, por fim, em seu notável Rethinking Modernity, chega a afirmar: “part of the problem with both modernization theory and theories of multiple modernities is their reliance on ideal types as the means of conducting comparative analysis. Ideal types”, continua Bhambra (2007, p. 58), “reify particular interactions and interconnections, abstracting them from the wider interconnections in which they are also embedded”.

É repetitiva, sabemos bem, a insistência de Weber quanto à parcialidade dos tipos ideais como instrumentos preliminares de aproximação a uma realidade “irracional”, no sentido de não ser redutível aos atributos de coerência, limpidez e homogeneidade de todo esforço conceitual (racional). Weber é plenamente consciente de que a pureza do conceito deve ser contradita pela impureza de toda realidade – embora isso nem sempre aconteça em suas investigações substantivas, como veremos adiante. O que busco aqui salientar, diferentemente, é como, para o amplo espectro da crítica anticolonial, a própria defesa de um necessário trabalho preliminar do conceito sob os pressupostos da pureza, da homogeneidade e da não contraditoriedade soa como pouco útil ou mesmo contraproducente. Dado que, a princípio, o esforço intelectual de representação da experiência colonial e pós-colonial é atravessada por uma concepção nada platônica das ideias e da razão e, portanto, se há um a priori analítico, esse é a exigência de que a impureza marque todo o transcurso do pensamento, para que a chaga não escape à inevitável sublimação realizada pelo intelecto.

Um capitalismo moderno decantado de violência

Essa discussão me leva ao segundo ponto2 que gostaria de enfatizar, ponto que foi rapidamente suscitado na seção anterior através da crítica meszariana a Weber. Pois o purismo, a defesa da homogeneidade e da não contraditoriedade dos constructos típico-ideais, tem consequências na investigação substantiva da gênese da conduta capitalista moderna em A Ética Protestante e o “Espírito” do Capitalismo. Antes, porém, gostaria de salientar a importância programática dessa obra publicada originalmente em duas partes, nos anos de 1904 e 1905.

Nela, sem dúvida, Weber instaura ou ao menos desenvolve um amplo programa: a investigação dos fundamentos simbólicos e valorativos (culturais, poderíamos dizer) da conduta econômica, do movimento que vai das representações culturais ao ethos prático de grupos e indivíduos concretos (o que nunca é uma passagem unívoca, linear e que identifica os dois polos). De maneira mais ampla, n’A Ética indica-se de maneira brilhante que mesmo a forma mais impessoal e desencantada de organização da vida econômica, o capitalismo, precisou e precisa – a despeito das ressalvas de que o capitalismo hodierno teria se desatrelado radicalmente de toda justificativa ética, gerando algo como um sujeito automático da racionalidade orientada por fins – de uma cultura, mais ou menos articulada, que dê sentido à prática de inúmeros grupos e indivíduos, inúmeras interações (micro), organizações (meso) e sociedades (macro)3. Margaret Archer (2011), que por vezes soa profundamente weberiana apesar do seu realismo, chamaria isso, numa terminologia crítico-realista, da mediação necessária das propriedades emergentes da cultura para estabelecer a ponte entre as propriedades emergentes das pessoas e as propriedades emergentes das estruturas. Weber, por sua vez, usa um léxico um tanto anacrônico (retirado de Werner Sombart): a necessidade de um espírito, que atua na ação de indivíduos, para dar sentido às formas, inatuantes sem o dínamo espiritual. Difícil não pensar aqui também em Boltanski e Chiapello (2009), que aplicaram esse programa de investigação de maneira particularmente exitosa.

Digressão feita e retomando o fio inquiridor deste artigo, aquele imperativo de não contraditoriedade, de pureza e de homogeneidade na formação típico-ideal, cria, me parece, alguns problemas fundamentais na interpretação weberiana do capitalismo como processo de longa duração. Esses problemas se concentram na construção conceitual explicitamente contrastiva entre os tipos ideais espírito capitalista pré-moderno e predatório (de um Jakob Fugger, protótipo do espírito capitalista para Werner Sombart), de um lado, e espírito capitalista moderno e racional (de um Benjamin Franklin, o protótipo de Weber), de outro.

O primeiro, o espírito capitalista tradicional e predatório, do capitalista aventureiro ou pária, “dos usurários, financiadores de guerras, arrendatários dos cargos públicos e da coleta de impostos, dos grandes mercadores e dos magnatas das finanças” é o que, para Weber, flanou seu espectro na “China, na Índia, na Babilônia, na Grécia, em Roma, em Florença até os dias de hoje” (WEBER, 2004b, p. 181, nota 43). Tal espírito se baseia na oposição entre ética interna (da comunidade fraternal, comercial, nacional), regulada normativamente, e ética externa (da relação com o outro), para a qual tudo é permitido em nome da fome sagrada por riquezas. As aventuras coloniais e o estabelecimento das chamadas colônias de exploração são, por dedução, associadas a esse espírito da rapina e da predação em nome de lucro.

O segundo, o espírito da “empresa racional moderna específica do Ocidente” (WEBER, 2004b, p. 181, nota 43, grifo do autor), mais precisamente “da Europa ocidental e da América do Norte” (WEBER, 2004b, p. 45), tal qual o tradicionalista aventureiro, também visa ao “sucesso econômico”, desde que “de forma legal”, como produto da habilidade, do planejamento e da sobriedade na profissão, “no resguardo de todo gozo imediato do dinheiro ganho” (WEBER, 2004b, p. 46-47). A sua máxima é o honesty is the best policy. Em nítido contraste com o caráter assistemático da ação tradicionalista, o espírito capitalista moderno regula metodicamente a conduta de vida como um todo, “com base no cálculo aritmético rigoroso” (WEBER, 2004b, p. 67, grifo do autor) das despesas e dos ganhos, o que define o seu “racionalismo econômico”.

Há algo de particularmente irônico a ser apontado aqui. Embora amplamente conhecido por uma definição do Estado pelo seu meio por excelência, e não pela heterogeneidade de seus fins possíveis, ou seja, pelo monopólio legítimo da ameaça ou uso da violência, a reflexão de Weber sobre a gênese e o desenvolvimento do capitalismo moderno é particularmente asséptica, pura (aqui no duplo sentido, conceitual e valorativo, de pureza), reflexão fortemente decantada de sangue e violência.

Não se trata apenas da ausência de uma teoria da expropriação e da exploração na abordagem weberiana do capitalismo. Em algumas passagens, Weber decisivamente faz questão de afirmar o caráter marginal ou secundário dos processos de cercamentos e da rapina colonial para pensar a gênese do capitalismo moderno.

Em A Ética Protestante, Weber (2004b, p. 163) deixa claro que, para ele, uma coisa é o capitalismo da “constituição social ‘orgânica’ de formato fiscalista-monopolista adotada na Inglaterra sob os Stuart” – e foi sob os Stuart que ocorreu, a partir do século XVII, uma particular ampliação dos processos de cercamentos –, o capitalismo da “aliança do Estado e da Igreja com os ‘monopolistas’ sobre a base de uma infra-estrutura social-cristã”, “espécie de capitalismo de comerciantes, subcontratadores e mercadores coloniais, um capitalismo sustentado pelo Estado”. Outra coisa é “o puritanismo, cujos representantes se incluíam entre os adversários mais apaixonados dessa espécie de capitalismo” e que a ela opuseram

os estímulos subjetivos do lucro racional legal obtido por conta da capacidade e da iniciativa pessoais, tendo então com isso uma participação decisiva na criação das novas indústrias, cujo desenvolvimento se fazia sem o apoio das autoridades constituídas, e às vezes apesar delas e à revelia delas – ao passo que as indústrias monopolistas patrocinadas pelo Estado, na Inglaterra, não tardariam a desaparecer completamente (WEBER, 2004b, p. 163, grifo do autor).

Embora Weber sugira, na nota de rodapé citada mais acima, que “até os dias de hoje” o espírito capitalista predatório se mantém atuante, isto não tem implicações para a sua elaboração fortemente dual da conduta capitalista: a imagem de um capitalismo racional-legal, não predatório, desvinculado da violência sistemática do Estado, que emerge em oposição a um capitalismo tradicional, predatório e induzido pela violência oficial.

Em seu curso História Econômica Geral, Weber afirma (2006, p. 43) que “a acumulação de riquezas, como produzida pelo comércio colonial, possui – isso deve ser ressaltado em oposição a W. Sombart – uma importância pequena para o desenvolvimento do capitalismo moderno”. Isto porque, mesmo que tenha possibilitado “acumulações de capital nas maiores proporções”, a ação econômica colonial foi orientada pelo “princípio predatório” e não “fomentou a maneira especificamente ocidental da organização do trabalho”. Vê-se aqui, mais uma vez, o valor crucial que Weber dá à oposição entre tradicionalismo e racionalismo econômicos como critério de seleção dos fatores cruciais para o advento do capitalismo moderno.

A ação do espírito capitalista moderno, cujo núcleo é o racionalismo econômico nascido da ascese intramundana, realiza um processo de substituição das formas capitalistas tradicionais pelo autêntico capitalismo moderno e racional, orientado principalmente para as atividades industriais privadas e desatrelado dos móbiles e riquezas acumuladas por meios predatórios e estatais. A seguinte passagem d’A Ética Protestante é bastante conhecida:

Para saber quais as forças motrizes da expansão do capitalismo [moderno] não se precisa pôr em primeiro lugar a questão da origem das reservas monetárias valorizáveis como capital, e sim [antes de mais nada] a questão do desenvolvimento do espírito capitalista. Por toda parte onde emerge e se efetiva, ele cria para si as provisões monetárias como meios de sua efetivação, não o contrário (WEBER, 2004b, p. 60-61).

Essa secundarização do problema da violência, da pilhagem, do roubo, da desonestidade, da truculência oficial, da mais pura velhacaria para pensar o capitalismo “moderno” afasta Weber, nesse sentido específico, de qualquer mediação possível com os debates anti, pós e decoloniais. Se há um elemento que une autoras e autores tão diversos quanto Albert Memmi, Aimé Césaire, Frantz Fanon, Edward Said, Ranajit Guha, Gayatry Spivak, Aníbal Quijano, María Lugones, Gurminder Bhambra etc. é tomar exatamente a violência – sobre os corpos e sobre as mentes; física, simbólica e epistêmica – como absolutamente central para entender a gênese, o desenvolvimento e a atualidade do capitalismo e da modernidade de modo mais geral.

Nesse sentido, diferente de manter-se numa contenda desde sempre superada sobre uma leitura idealista do capitalismo em Weber – leitura que lança suas raízes na crítica bastante superficial de Karl Fischer ao texto de Weber –, trata-se de, efetivamente, confrontar-se com o seu conceito amplo de capitalismo, averiguar suas conquistas e lacunas, sobretudo para analisar uma forma de regulação profundamente destrutiva da relação do ser humano com a natureza, da intersubjetividade e da vida psíquica. Mesmo o importante potencial crítico presente no conceito de racionalização formal e na metáfora da jaula de ferro parece particularmente asséptico e dependente de uma sublimação da violência que se faz sobre corpos para apontar para uma violência que se faz sobre as almas.

Sobre o eurocentrismo em sua sociologia da religião

Da publicação original d’A Ética em 1904-1905 aos Ensaios Reunidos de Sociologia da Religião (publicados em 1920/1921) – que incluem A Ética revista, com novos trechos e recheada de notas – há uma robusta ampliação do projeto intelectual de Weber, ou melhor, do material analisado para dar continuidade à sua agenda de pesquisa. Nessa passagem, vê-se como Weber não se contenta em analisar as especificidades dos processos de racionalização ocidental, que tem o desenvolvimento do capitalismo como um dos seus elementos fundamentais, apenas a partir de uma investigação das raízes protestantes da conduta tipicamente capitalista. Não se contenta, também, em comparar o protestantismo (os vínculos entre ascese intramundana e racionalismo econômico) com o catolicismo (ética tradicionalista camponesa) e o judaísmo (espírito capitalista predatório), como ele faz n’A Ética. Weber amplia o esforço comparativo no sentido de se perguntar: Por que grandes religiões como o hinduísmo, o budismo, o taoísmo, o confucionismo, que desencadearam formas de racionalismo específicas, que também buscaram atribuir um sentido ao sofrimento humano e à salvação humana, não desembocaram em formas de racionalismo tal como se vê na modernidade ocidental capitalista? Por que essas religiões de salvação não se desdobraram em um racionalismo da dominação do mundo, típico do Ocidente, mas em formas particulares de racionalismo, da fuga do mundo no hinduísmo, da acomodação ao mundo no confucionismo?

É explícito aqui um projeto intelectual que tem um desenvolvimento histórico que vai da Europa Ocidental aos Estados Unidos4 como seu eixo de preocupações. É para compreender exaustivamente a singularidade ou a diferença específica deste desenvolvimento que a comparação com outras “culturas”, mais especificamente suas constelações religiosas, é realizada sistematicamente. O Outro é um instrumento de comparação e controle argumentativo para uma mais ampla e profunda compreensão do Mesmo.

Certamente, a crítica anticolonial não deixaria passar despercebidos os pressupostos e as implicações de como esse projeto intelectual é organizado e realizado. Em primeiro lugar, a compreensão da modernidade, e do capitalismo moderno em seus aspectos formais e espirituais, como um processo de difusão que tem como contexto genético ou originário a Europa Ocidental (em particular Alemanha, Inglaterra e França) e ganha amplo desenvolvimento nos Estados Unidos da América5. Dessa perspectiva, “a modernidade é um fenômeno eminentemente europeu” (REGATIERI, 2021, p. 220) que se espalha para o resto do mundo. Para além de Weber e Parsons, Regatieri (2021) aponta, no lastro de Bhambra (2007), como as proposições teóricas das “modernidades alternativas e das modernidades múltiplas”, assim como da modernização seletiva, sem romper com esse imaginário, “têm buscado compreender a pluralidade das expressões do moderno em diferentes partes do mundo” (REGATIERI, 2021, p. 220).

A crítica dessa imagem da modernização como um processo de difusão a partir da Europa é um elemento central da crítica anticolonial. Mobilizando as intelecções de Aníbal Quijano (2000), Shalini Randeria (1999) e Gurminder Bhambra (2007), Regatieri (2021) sintetiza bem aquela crítica:

economicamente, o moderno mundo capitalista resulta da acumulação primitiva e da espoliação levadas a cabo nas colônias pelas metrópoles; politicamente, estabelece-se, desde o início, uma hierarquização racial com direitos distintos para brancos e não brancos e, enquanto paulatinamente prevalece o rule of law nas metrópoles, as colônias são lugares de um permanente estado de exceção; culturalmente, as colônias funcionaram como um espelho que permitiu definir a autoimagem da Europa, por meio dos discursos da literatura, da filosofia e, mais tarde, da sociologia, sendo a comparação com as populações colonizadas central para o surgimento da ideologia capitalista do progresso e da ideia de superioridade do mundo branco/europeu civilizado face aos povos atrasados das colônias (REGATIERI, 2021, p. 221).

No marco do giro decolonial, uma consequência fundamental da inscrição conjunta e inseparável da Modernidade/Colonialidade é exatamente a exigência de que não se pode pensar um processo sem o outro, ou melhor, de que se trata rigorosamente do mesmo processo, cujo marco inicial, em caso de cobrança do atestado de nascimento, é 14926, e de que tal vínculo fundamental se articula de diversas formas muito além dos processos formais de descolonização e emancipação nacionais, estruturando, como colonialidade, o tempo presente. Tais exigências analíticas, parece claro, estão inteiramente fora do horizonte investigativo de Weber que, como vimos na segunda seção, busca explicitamente desatrelar o capitalismo moderno (o seu racionalismo e suas exigências formais) das formas predatórias e violentas de ação econômica típicas da conquista e da colonização, assim como não há nada para além da Europa (e do seu anexo, os Estados Unidos) em sua caracterização política e cultural da differentia specifica que é o ocidente.

Outro aspecto a ser salientado, em segundo lugar, no projeto intelectual materializado nos Ensaios Reunidos de Sociologia da Religião, é o fato de que outras matrizes culturais e religiosas são pensadas sobretudo em termos de ausência ou falta. Trocando em miúdos, as formas outras de racionalismo ou de rejeições religiosas do mundo (pela fuga ou pela acomodação) são analisadas naquilo que nelas escapa e as impedem de se desdobrar nos termos do racionalismo da dominação do mundo tipicamente ocidental. É inegável a operação aí, mesmo em um sentido puramente descritivo, de uma forma de eurocentrismo: de um “ponto de vista histórico-desenvolvimental” (WEBER, 2016, p. 366), a Europa é tomada como o centro a partir do qual o resto do mundo é colocado em relação à, de modo semelhante ao dinheiro em relação ao mundo das mercadorias. Como precisamente pontua Bhambra (2007, p. 34): “Even Weber’s attempt, to move beyond a unilinear, directional interpretation of historical progression, did not escape the evaluative bias of the West being understood as being the highest point of development...”. E continua:

Weber’s primary concern was with establishing the nature of the ‘specific and peculiar rationalism’ that characterized the modern West and explaining the absence of those characteristics in other civilizations. In determining absences, however, it is necessary to posit something as the norm from which the other deviates (BHAMBRA, 2007, p. 52).

É revelador como esse eurocentrismo em Weber pode ser lido de formas tão radicalmente distintas. Para Andrew Zimmerman (٢٠٠٦, p. ٥٣), que nas duas primeiras linhas do seu ensaio não hesita em afirmar que Weber “foi um imperialista, um racista, e um nacionalista social-darwinista e que estas posições políticas fundamentalmente deram forma ao seu trabalho científico-social”, esse eurocentrismo é lido como um “neorracismo”, que trabalha não com a diferença biológica, mas com “um sistema de diferenças culturais que funciona tão efetivamente quanto a raça como meio de sustentar a desigualdade política e econômica”.

Em uma elaboração, perpassada por continuidades e descontinuidades, que lança raízes nos seus primeiros estudos sobre os trabalhadores a leste do Elba, em suas posições ultranacionalistas em relação à imigração polonesa na Alemanha e em sua reflexão sobre a situação dos afro-americanos nos Estados Unidos, “o trabalho tardio de Weber sobre as religiões da Europa, China e Índia elaborou um mundo culturalmente diferenciado que não colocou a Europa na posição de conquistadora, mas sim em uma posição de superioridade adjacente” (ZIMMERMAN, 2006, p. 54). Preocupado muito mais com problemas de “colonização interna” – de medidas para garantir a prevalência de uma suposta cultura superior sobre culturas inferiores – do que em uma defesa patente da “colonização externa” por parte da Alemanha – em relação à qual assumiu uma posição neutra, “neither embraced nor rejected” (ZIMMERMAN, 2006, p. 65-6) –, Weber teria sido um “pioneiro” de um “racismo da exploração e subordinação”, articulado culturalmente, em contraste com um anterior e dominante “racismo da conquista” (ZIMMERMAN, 2006, p. 54), articulado biologicamente.

Na passagem de um racismo biológico para um racismo cultural, as desigualdades entre etnias, povos e nações no que diz respeito à relação com o trabalho, com a produtividade e com o lucro não são explicadas por supostos fatores inatos, nas diferenças entre raças humanas, mas pelas diferentes disposições dessas mesmas etnias, povos e nações para a dominação e controle do mundo. A disposição para o trabalho e para a acumulação metódica no arco que vai da Europa aos Estados Unidos repousaria em sua matriz cultural comum, sobretudo em serem herdeiras do desencantamento/desmagificação radical do mundo desencadeado pela Reforma, em especial pelo calvinismo, enquanto as matrizes culturais de outros povos teriam conformado um ethos orientado não para o controle, mas, como vimos, para a acomodação (confucionismo) e a fuga do mundo (hinduísmo). Com o perdão da prosa demasiado livre, a própria terminologia causa certo embaraço de uma perspectiva anticolonial: teodiceias e povos culturalmente condicionados para a dominação e controle; teodiceias e povos culturalmente condicionados para se acomodar ou fugir.

Carlos Eduardo Sell lê de uma forma diametralmente oposta o problema do eurocentrismo – “problema incontornável para qualquer teoria social que se queira a altura do nosso tempo” (SELL, 2015, p. 4) – em Max Weber. A partir de Wolfgang Schluchter (2005), Sell (2015, p. 6, grifos do autor) propõe uma distinção entre um “eurocentrismo normativo” e um “eurocentrismo analítico” ou heurístico, sendo apenas neste último que se pode enquadrar o projeto intelectual materializado (e inconcluso) nos Ensaios Reunidos. A “reflexão weberiana”, continua Sell (2015, p. 6),

está longe de ser uma tentativa de justificação [Geltung] do universalismo ocidental, mas tão somente uma tentativa de compreensão [Verstehen] e explicação (Erklärung) do processo de gênese dessa experiência sociocultural, aí contida sua auto-representação universalista. Weber dirige-se a outros círculos culturais tendo apenas esse interesse cognitivo em vista e é nesta dimensão epistemológica que se situa o seu eurocentrismo, mas ele é apenas heurístico, não valorativo.

O interesse cognitivo eurocentrado dos Ensaios Reunidos, diferente de implicar em um tipo de sociologia ensimesmada na experiência europeia – portanto, um tipo de provincianismo que se diz portador do universal –, desdobra-se em um “amadurecimento” do que Sell (2015, p. 8) chama de “elementos metodológico-globalistas da sociologia weberiana”, entre eles: a não adoção de uma “contraposição essencialista e dualista entre Ocidente e Oriente”, mas de um modelo tipológico complexo das religiões de salvação e de suas formas de racionalismo, capaz de assinalar tanto as “diferenças” e “afinidades entre Ocidente e Oriente” como as diferenças internas à “realidade ‘asiática’”, distinguindo “entre uma orientação claramente intramundana (confucionismo) e outra extramundana (budismo)” 7.

Diferente também de uma possível oposição entre o racionalismo ocidental e um suposto irracionalismo para além do Ocidente, Sell (2015, p. 9) destaca como Weber compara sobretudo formas de racionalismo que engendram “expressões diferentes de racionalidade” (SELL, 2015, p. 9). Esses elementos tomados em conjunto parecem suficientes para a seguinte conclusão sobre a sociologia da religião weberiana: “O racionalismo moderno-Ocidental é uma alternativa histórica e culturalmente contingente, e não o cume de um processo evolutivo-linear no qual o processo social converge” (SELL, 2015, p. 9-10);

“Fruto de seu tempo e de seu lugar no mundo, o eurocentrismo weberiano é um limite inescapável, mas também é relativo e, dada a época, surpreende pelos seus componentes cosmopolitas e globais, sem paralelos” (SELL, 2015, p. 10). Ao concluir o texto de Sell, resta a dúvida de qual seria o “limite inescapável” do eurocentrismo weberiano – dado o seu caráter puramente heurístico e de que é exatamente a partir dele que os elementos cosmopolitas/globalistas de sua metodologia se refinam –, a não ser alguns “reparos e correções” no que diz respeito às suas considerações sobre o “caso da China” (SELL, 2015, p. 11). Os mínimos reparos de conteúdo, porém, não têm qualquer implicação sobre os “aspectos formais” de sua analítica, que centraliza “a dimensão comparativa” e que faz surgir o moderno “tipologicamente a partir da articulação consciente entre tradição/modernidade (perspectiva intragenética ou interna) e modernidade/não-moderno (perspectiva externa/comparativa)” (SELL, 2015, p. 11).

Conclusão

Para construir uma imagem de Weber como decantado de eurocentrismo normativo e como propositor precoce de uma metodologia globalista-cosmopolita, Sell (2015) precisa retirar do seu material de análise as passagens mais iliberais (para dizer o mínimo) de Weber salientadas por Zimmerman (2006), passagens que são transversais a toda a sua obra, a exemplo do argumento ultranacionalista e ambíguo de O Estado-nação e a política econômica (original de 1895), no qual o ceticismo quanto à transposição do conceito biológico de “seleção” à “pesquisa econômica” (WEBER, 2014a, p. 14-15, nota D) coexiste com argumentos de natureza racial para pensar as diferenças entre alemães e poloneses:

A história da humanidade conhece a vitória de tipos menos desenvolvidos de existência humana e o fim da prosperidade da vida intelectual e emocional, quando a comunidade humana que era sua portadora perde a capacidade de se adaptar a suas condições de vida, seja devido à sua organização social seja devido a suas qualidades raciais (WEBER, 2014a, p. 15).

No capítulo Conceitos Sociológicos Fundamentais (escrito em 1918), de Economia e Sociedade, é conhecida a passagem em que Weber se alonga sobre os chamados “processos e objetos alheios ao sentido”, na qual, bem diferente de uma rejeição categórica do conceito de raça em sociologia, faz algo semelhante a uma suspensão do seu uso enquanto conclusões científicas mais seguras ainda não tiverem sido alcançadas:

Há ainda a possibilidade de que a investigação futura descubra regularidades não suscetíveis de compreensão em comportamentos específicos dotados de sentido, por menos que isto tenha acontecido até agora. Diferenças na herança biológica (das “raças”), por exemplo, teriam de ser aceitas pela Sociologia como dados desde que e na medida em que se pudessem apresentar provas estatísticas concludentes de sua influência sobre o modo de comportamento sociologicamente relevante – especialmente, portanto, sobre o modo como se dá na ação social a referência ao seu sentido –, do mesmo modo que a Sociologia aceita fatos fisiológicos do tipo da necessidade de alimentação ou dos efeitos da velhice sobre as ações (WEBER, 2000, p. 6, grifos do autor).

A exemplo, igualmente, da xenofobia marcante de Parlamento e governo na Alemanha reorganizada (original de 1917-1918), em que Weber critica seus compatriotas que, fora da frente de batalha, menosprezam as conquistas dos exércitos alemães na 1ª Guerra:

Melhor seria repetir apenas que a Alemanha continua lutando por sua existência contra um exército em que negros, gurcas e toda sorte de bárbaros saídos de todos os esconderijos da terra estão a postos nas fronteiras para fazer de nosso país um deserto. Essa é a verdade que qualquer um entende e que nos teria mantido unidos (WEBER, 2014b, p. 169).

Passagens afins (esta última e a do texto de 1895), vale salientar, no que tange ao receio histriônico sobre a possibilidade de um povo supostamente mais avançado culturalmente ser derrotado, quer na luta econômica, quer no plano político-militar; passagens que dificilmente se enquadrariam em um tipo meramente “heurístico” de evolucionismo e de eurocentrismo ou, mais precisamente no caso, germanocentrismo.

O ponto de vista da defesa de um “programa de pesquisa de caráter weberiano” (SELL, 2015, p. 4), porém, permite atentar, como vimos acima, para aspectos importantes das contribuições de Weber inteiramente olvidados pela hipótese de um (neo)racismo cultural.

Entretanto, mesmo que acatemos a ideia de um eurocentrismo puramente analítico, e não normativo, em Weber, isto não o isenta de limitações fundamentais, muitas delas já apontadas neste texto, quando lido por um crivo anticolonial: a) a imagem da modernidade como um processo de difusão que nasce na Europa e se espalha pelo mundo; b) a ausência ou secundarização da problemática da conquista e da violência colonial, em suas dimensões material e simbólica, para pensar a modernidade; c) uma abordagem tipológica purista na compreensão dos fenômenos sócio-históricos; d) uma apreciação, intrínseca ao eurocentrismo heurístico ou normativo, do Outro sociocultural pelo lado da falta ou ausência de atributos presentes no Mesmo, a despeito da importante ressalva de que esse Outro também seja tomado sob o signo da razão (racionalismos e racionalidades diversas).

Tomar o lado interno do moderno pelo binário tradição/modernidade e o seu lado externo pelo binário modernidade/não-moderno é manter-se inteiramente em um horizonte cognitivo e discursivo incapaz de tomar tal “externo” – a partir dos processos de colonização – como intrínsecos à e constituintes da experiência da modernidade, e de explorar as implicações dessa relação de internalidade e não de externalidade de um ponto de vista material, simbólico e subjetivo. Exatamente a exigência analítica que se torna programática na inscrição modernidade/colonialidade, mas que já se anunciava claramente no clássico Discurso sobre o colonialismo, de 1950, que a seguir transcrevo amplamente para que se leia com vagar:

a colonização desumaniza, repito, mesmo o homem mais civilizado; que a acção colonial, a empresa colonial, a conquista colonial, fundada sobre o desprezo pelo homem indígena e justificada por esse desprezo, tende, inevitavelmente, a modificar quem a empreende; que o colonizador, para se dar boa consciência se habitua a ver no outro o animal, se exercita a tratá-lo como animal. É esta acção, este ricochete da colonização, que importava assinalar (CÉSAIRE, 1978, p. 23-4, grifos do autor). [...] É a minha vez de enunciar uma equação: colonização = coisificação (CÉSAIRE, 1978, p. 25, grifos do autor). [...] Falam-me de civilização, eu falo de proletarização e de mistificação (CÉSAIRE, 1978, p. 26). [...] Eu disse – e é muito importante – que a Europa colonizadora enxertou o abuso moderno na antiga injustiça, o odioso racismo na velha desigualdade (CÉSAIRE, 1978, p. 28).

Sem negar os importantes avanços metodológicos presentes em Weber, tão bem assinalados por Sell, parece indubitável a presença, naquele clássico: primeiro, como já vimos, de uma concepção da modernidade como geneticamente europeia e não como geneticamente global; segundo, de um esforço deliberado de externalizar ou “foracluir” certos processos e práticas de sua compreensão típico-ideal do capitalismo moderno, especialmente os atributos do espírito capitalista tradicional predatório típico das empresas coloniais e dos processos de expropriação (cercamentos). Não por acaso, a despeito do eurocentrismo evidente em diversas passagens, o espectro anticolonial dialoga tensa, mas muito mais amplamente com Marx do que com Weber, pois uma das implicações fundamentais de um conceito como o de acumulação primitiva é exatamente apontar para uma relação de internalidade entre a modernidade capitalista e a violência colonial no processo de formação do mercado mundial.

A proposição de uma analítica-crítica que pense modernidade e colonialismo (colonialidade) como uma relação interna em gênese e desdobramento, enfatiza não só a violência intrínseca à modernidade, o seu lado obscuro (MIGNOLO, 2017), mas também os processos interconectados de desenvolvimento do imaginário, de valores e de instituições modernos. Quijano (1988), por exemplo, indica que a moderna ideia de utopia – passível de realização intramundana por ação humana, projetada não em outro tempo-espaço ou em um passado perdido, mas no futuro, uma concepção imanente e não transcendente, temporal e não escatológica – não seria possível sem o impacto do (mau) encontro com outras formas de vida social nos processos de colonização. Aponta também para o intercâmbio permanente entre América e Europa no delineamento das ideias e instituições do Iluminismo. Proposições que, mais recentemente, ganham corpo na defesa do que Said (1994, p. 18) chama de “intertwined and overlapping histories” e Bhambra (2007, p. 82) de “connected histories”. Programas de pesquisa nada típicos frente a uma compreensão da modernidade como um processo de difusão a partir da Europa8.

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Recebido em: 16/05/2022

Aceito em: 07/12/2022


1 Para um aprofundamento da distinção traçada pelo sociólogo peruano entre a “teoria materialista da história” de Marx e o materialismo histórico, esse último duramente criticado, ver Quijano, 1990.

2 Esta segunda seção é amplamente baseada no segundo capítulo do meu livro Max Weber e a Formação Conceitual do Capitalismo (SILVA, 2016).

3 Sobre a sociologia compreensiva de Weber como solução para o problema micro/macro e ação/estrutura, ver especialmente Ringer (2004) e Schluchter (2016).

4 A Ética Protestante e o “Espírito” do Capitalismo tem como ensaio complementar obrigatório As Seitas Protestantes e o Espírito do Capitalismo (WEBER, 1982). Lendo-os conjuntamente, torna-se evidente como o “espírito” do capitalismo se realiza ou encarna, como a astúcia hegeliana, sobretudo nos Estados Unidos.

5 O Parsons (1969, 1974) evolucionista descreve, com novas nuances, o mesmo processo, com um tom ainda mais apologético dos Estados Unidos como, simultaneamente, cume e modelo do processo de modernização.

6 Para não deixarmos de citar as já clássicas Conferências de Frankfurt proferidas por Enrique Dussel: “a América Latina, desde 1492 é um momento constitutivo da Modernidade, e a Espanha e Portugal como seu momento constitutivo. É a ‘outra cara’ (teixtli, em asteca), a Alteridade essencial da Modernidade.” (DUSSEL, 1993, p. 23).

7 Para uma análise do Orientalismo presente na sociologia weberiana das religiões, ver Alatas (2017), especialmente a seção “Weberian Orientalism”.

8 Outro aspecto fundamental dos Ensaios Reunidos de Sociologia da Religião, mais particularmente da conhecida Consideração Intermediária, é a reflexão sobre os processos de racionalização/autonomização das ordens da vida social em “legalidades próprias” (Weber, 2016, p. 368). Trabalhei as implicações da colonialidade em relação a esse imaginário da autonomização ou diferenciação das esferas da vida social em outro lugar (ver SILVA, 2020).

Resenhas

GREVES DE MASSA NO SUL GLOBAL E RENOVAÇÃO TEÓRICA

NOS ESTUDOS DO TRABALHO

MASS STRIKES IN THE GLOBAL SOUTH AND THEORETICAL RENEWAL

IN LABOR STUDIES

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Patrícia Vieira Trópia1*

NOWAK, Jörg. Mass strikes and social movements in Brazil and India: popular mobilization in the Long Depression. London: Palgrave Macmillan, 2019.

O movimento sindical não faz apenas greves, nem o movimento operário se resume ao movimento sindical. Os sindicatos não podem existir sem a arma das greves (p. 313), mas nem sempre as greves se iniciam com a presença sindical. Greves, paralisações, piquetes, boicote, operação tartaruga, manifestações de rua, bloqueios de estradas e prédios, assembleias, ocupação do local de trabalho ou de prédios públicos são algumas das formas de protesto que fazem parte da tradição operária. Frequentemente, paralisações e greves se conjugam a outras formas de protesto social. Em certas conjunturas, o movimento sindical faz alianças com partidos e movimentos sociais, em outras os trabalhadores deflagram protestos à revelia dos sindicatos (no Brasil é clássica a expressão nativa empurrar o pelego pela barriga) ou ainda para reivindicar o reconhecimento do direito à livre associação sindical (tão explícito nos casos indianos: num deles o Estado protelava o reconhecimento do registro sindical; em outro, no passado não muito remoto, os trabalhadores foram representados por um sindicato de direita). Compreender as determinações estruturais e conjunturais que levam os trabalhadores a se organizar e a agir como agem – de que forma, com que forças e em que condições históricas – é a tarefa que Jörg Nowak se coloca, quando pesquisa as greves de massa e os movimentos sociais que agitaram a onda grevista no Sul global durante a longa depressão que se seguiu à crise de 2008.

Mass strikes and social movements in Brazil and India – popular mobilization in the Long Depression”, publicado em 2019 pela Palgrave Macmillan, na coleção Studies in the Economy of Public Policy, é um livro incontornável, um ponto de inflexão nos estudos globais do trabalho e do sindicalismo, não apenas pelos casos que analisa como pelo trabalho teórico que desenvolve, impulsionado pela convicção segundo a qual urge uma renovação na teoria das greves.


1* Docente do Instituto de Ciências Sociais da Universidade Federal de Uberlândia. E-mail: tropia@uol.com.br

ISSN 1517-5901 (online)

POLÍTICA & TRABALHO

Revista de Ciências Sociais, nº 57, Junho/Dezembro de 2022, p. 260-267

Nowak não se apresenta como um intelectual do Norte que explica o Sul. Munido de uma perspectiva antieurocêntrica, posiciona-se como um intelectual político que busca aprender com o Sul anti-imperialista e colocar conhecimento universal e conhecimento popular (dos grevistas e dos atores sociais) em diálogo. Neste sentido, assume o compromisso de desenvolver um trabalho teórico que segue de perto as práticas dos movimentos sociais, o que não significa sucumbir às categorias teórico-políticas empregadas pelos sujeitos pesquisados, mas “olhar mais de perto as contradições e conjunturas políticas específicas que esses sujeitos enfrentam e estão envolvidos” (p. 12), procedimento que Uday Chandra denomina “uma política da escuta”.

Nowak combina rigorosa apresentação das hipóteses, evidências e dados etnográficos à exposição de conceitos e teorias (teoria marxista do valor, teoria das classes, teorias clássica e tradicional das greves), que são, especialmente no capítulo 2, problematizados com o objetivo de avançar o conhecimento e produzir uma nova teoria das greves. A teoria das relações industriais, construída a partir da experiência em países centrais, é interpelada pois “apenas uma teoria das greves que vá além da ênfase nos sindicatos e no local de trabalho será capaz de compreender as formas de conflito trabalhista que afetam a maioria da população mundial e a classe trabalhadora global” (p. 3).

Resultado de uma investigação de fôlego, amparada em larga pesquisa etnográfica (alguns protestos foram deflagrados quando Nowak realizava trabalho de campo, ver p. 240), conduzida junto aos trabalhadores industriais de dois países emergentes, membros dos Brics, o livro analisa as ações de rebeldia de trabalhadores metalúrgicos na Índia e operários da construção civil no Brasil, ações que eclodiram no contexto recessivo pós-crise de ٢٠٠٨. Precisamente, Nowak analisa as greves de massa e os movimentos sociais no período entre 2010 e 2014: suas determinações econômicas e políticas, o contexto em que ocorrem, a dinâmica das lutas e dos conflitos e as novas formas de mobilização e organização resgatadas da tradição operária pelos grevistas, das experiências exitosas ou frustradas que vivem na memória social.

As greves de massa expressam a dinâmica da luta de classes, ou como o autor procurará demonstrar, a dinâmica espacial das greves de massa expressa os conflitos de classe. Mobilizando distintas formas de protesto, os trabalhadores buscaram acumular forças no plano reivindicativo, ter suas reivindicações e reclamações ouvidas pelas empresas, criar sindicatos autônomos e, à medida que o conflito capital-trabalho se acirra e aumenta a presença repressiva estatal,1 libertar trabalhadores presos e defender os demitidos, lançando mão de organizações classistas e mais amplamente solidárias.

As manchetes dos principais veículos da mídia deram visibilidade às greves, com destaque para os atos de hostilidade e violência, inclusive um incêndio ocorrido numa das fábricas da Maruti Suziki na Índia, e a presença da polícia e de batalhões especiais nos locais de trabalho. Nowak procura tirar todas as consequências teóricas e políticas da utilização da violência nas greves. Nem condenar, nem romantizar as formas sociais do conflito grevista. Neste sentido, o autor critica tanto a criminalização dos rebeldes quanto as interpretações que apelam ao heroísmo dos mais humildes, prisioneiras de um idealismo que ofusca o movimento concreto dos trabalhadores. As greves estudadas são violentas, mas não são “selvagens”, como tipificadas comumente. Como sublinhou Engels, “mesmo os atos mais violentos de hostilidade dos operários contra a burguesia e seus servidores não são mais que a expressão aberta e sem disfarces daquilo que, às ocultas e perfidamente, a burguesia inflige aos operários” (2010, p. 248). Atos de rebeldia são constitutivos das greves de massa. Elas expressam as condições concretas e reais por meio das quais os trabalhadores buscam realizar suas utopias e nutrir suas esperanças.

Que condições concretas e reais explicam a eclosão de greves de massa na periferia do capitalismo pós-crise de 2008?

Os quatro casos estudados no Sul global são analisados como parte de uma onda grevista mais geral da classe trabalhadora mundial, em resposta aos perversos efeitos das mudanças políticas e econômicas de longo e curto prazos. No capítulo 3, Nowak analisa os efeitos das transformações na produção e na economia capitalista desde meados da década de 1970 “em direção a um sistema baseado no imperialismo, nas redes produtivas globais, nas trocas desiguais e no regime de trabalho de informalidade-precariedade” (p. 97). A dispersão mundial das cadeias globais de suprimentos corresponde à busca pelo menor nível salarial possível, por locais onde salários possam ser praticados abaixo do custo de reprodução da força de trabalho (tal como formulado por Ruy Mauro Marini); condições insalubres e precárias de trabalho sejam permissíveis; longas jornadas praticadas; e impactos ambientais menos regulamentados. Embora a menor mobilidade da força de trabalho nos países periféricos também seja condição da sua superexploração,2 segundo Nowak “o principal motivo para a reorganização da produção em escala global são os salários mais baixos em países não centrais” (p. 99).

Nos dois países encontra-se, antes de tudo, o capital imperialista. O regime trabalhista de informalidade/precariedade é a regra, não a exceção, e está estreitamente articulado ao trabalho formal. O exército industrial de reserva é uma característica permanente das formações sociais capitalistas, embora a acumulação de capital nas formações periféricas não possa absorver mão de obra na mesma grandeza nem adote o mesmo padrão de proteção social relativamente aos países centrais. Neste sentido, ao colocar em evidência a violenta natureza dos modelos capitalistas dos Brics, ou seja, as contradições entre brutais condições de trabalho e crescimento econômico, o estudo de Nowak revela em que bases históricas e materiais emergiram as economias emergentes e, ao mesmo tempo, as condições para as ações de rebeldia.

No curto prazo, as greves respondem aos efeitos da crise global de 2007-2008, às perdas sociais acumuladas com a adoção de políticas de ajuste neoliberal, bem como à precarização das condições de vida e trabalho nos países emergentes. A desaceleração econômica decorrente da crise não se fez sentir de forma pronunciada nos primeiros anos nos Brics, mas, a partir de 2011, as economias brasileira e indiana passam a sofrer os efeitos da queda no preço das commodities, nos fluxos líquidos de capital e nas exportações (no caso brasileiro com queda de 20%). As respostas econômicas nos dois países são, contudo, distintas – “a Índia retomou uma trajetória de alto crescimento enquanto o Brasil resistiu bastante bem nos primeiros anos da crise e depois enfrentou uma queda a partir de 2014” (p. 111). As economias emergentes são, a rigor, constitutivas da crise de 2008, já que o fluxo de investimentos para os países periféricos tem efeito rebote tanto no nível tecnológico quanto no padrão produtivo dos países centrais.

A investigação tomou como objeto quatro movimentos grevistas: dois no setor da indústria automobilística indiana e dois no setor brasileiro da construção civil (analisados nos capítulos 4 e 5). Na Índia, as mobilizações grevistas ocorreram na fábrica de Manesar da Maruti Suzuki, em 2011 e 2012, e na fábrica de Chakan da Bajaj Auto, segunda maior produtora de motocicletas, em 2013. No Brasil, as greves dos operários da construção civil ocorreram em obras do PAC: em Pecém, no estado do Ceará, nas obras da Usina termoelétrica do Pecém (UTE), em 2011, e da Companhia Siderúrgica do Pecém (CSP), no verão de 2014; em Belo Monte, estado do Pará, na construção da barragem da hidroelétrica de Belo Monte, em 2012.

Embora tenham ocorrido quando Brasil e Índia eram governados por partidos de centro-esquerda (Partido dos Trabalhadores e Partido do Congresso Indiano, respectivamente), as greves foram reprimidas pelos governos de plantão. A despeito da conjuntural melhoria do padrão mais geral de vida nos países emergentes,3 as greves no Brasil e na Índia eclodiram contra as brutais condições de trabalho. O padrão precário e informal de contratação (subcontratação/terceirização) constitui um dos condicionantes das greves (em 2012, 64% dos operários da construção civil no Brasil eram subcontratados e recebiam a metade do salário dos contratados diretamente pelas empresas, ver p. 210-211). Esse padrão impõe diferenças salariais ainda maiores e distintos direitos aos trabalhadores contratados diretamente e subcontratados, estimula a concorrência entre eles e pressiona para baixo o nível mínimo necessário à reprodução da força de trabalho. Nos casos da construção civil, eram recorrentes as reclamações em relação ao pagamento dos salários, falta de infraestrutura, baixa qualidade da alimentação, dos alojamentos e transporte nos canteiros e falta de segurança e de assistência médica. Na Índia, generalizou-se uma revolta contra as irregularidades no pagamento dos salários (desconto salarial em função do tempo para uso de banheiros e alimentação; suspensão por rir ou cantar durante o trabalho), em um contexto de flagrante aumento da produtividade às custas da intensificação do trabalho.

Todavia, das insuportáveis condições de trabalho e vida brotam ações de rebeldia e a necessidade de uma luta unitária e solidária.

Lançando mão de táticas presentes na tradição operária, como ocupação, piquetes, boicote, bloqueios de rua e dos locais de trabalho, entre outras, as greves metalúrgicas e na construção civil seriam expressão das mais avançadas e ofensivas lutas da onda de conflitos e protestos do período 2010-2014. Deflagradas majoritariamente sem a presença orgânica dos sindicatos (no caso indiano em defesa do registro sindical e no caso brasileiro à revelia do sindicato existente), as greves foram reprimidas pelas forças policiais e até por gangues. Nos momentos mais conflitivos, os grevistas puseram em prática formas de ação direta – entre as quais o quebra-quebra, incêndios em habitações, escritórios, alojamentos e de veículos, bloqueios de estradas – e enfrentaram tanto os quadros administrativos e de segurança das empresas quanto a reticência das lideranças sindicais (no Brasil é recorrente a utilização da expressão lideranças “pelegas”)4. Com seu poder institucional fragilizado, os trabalhadores forjaram novas formas de organização e de protesto, buscando apoio e solidariedade de outros movimentos sociais (indígena, afetados por barragens, ambiental, estudantil), de tal modo que, nos casos estudados, a ação grevista, tradicionalmente mobilizadora de recursos de poder estrutural (bloqueio da produção e da lucratividade), transcende o local de trabalho para se sustentar em grande medida no poder social.

Nowak analisa os casos dos metalúrgicos indianos e operários da construção civil brasileiros como greves de massa e de vanguarda. Do conjunto da bibliografia, uma contribuição influente é a teoria das greves de massas da marxista revolucionária polonesa Rosa Luxemburgo. Segundo Rosa, as greves de massa assumem formas mais desenvolvidas de resistência popular em países de desenvolvimento tardio; elas também eclodem sem a presença de sindicatos. As greves de massa não constituem formas de agitação regular; elas contêm algo de excepcional, novo, pois expressam as tarefas das massas nas lutas vindouras. Nowak também examina o debate em torno dos ciclos de Kondratieff. Além da duração do ciclo de Kondratieff (entre 64 e 72 anos), a literatura discute as ondas grevistas internacionais no interior do ciclo de greves e em relação aos ciclos econômicos. Nikolai Kondratieff e Michelle Perrot compreendem que a luta de classes se intensifica nos períodos de alta econômica, enquanto Ernesto Screpanti identifica nesses períodos uma moderação da atividade grevista. O pico de greves não apenas não coincide com o ápice econômico como coloca fim à prosperidade “uma vez que os aumentos salariais resultantes dessas ondas de greve têm um impacto severo na taxa de lucro” (p. 113). John Dunlop e Gaston Imbert afirmam, por sua vez, que grandes depressões econômicas são seguidas por períodos de agitação. Por fim, Nowak recupera, da geografia econômica e do trabalho, o instrumental analítico das dimensões espaciais – espaço e lugar – para analisar as greves de massa. Uma (provisória) hipótese seguida por Nowak é a de que as greves de 2010-2014 comporiam uma onda de agitação nos países periféricos no rastro de uma longa retração econômica, com a novidade de testemunharem uma queda na sindicalização – diferentemente de James Cronin e John Kelly que vinculam ondas grevistas ao crescimento de filiados (p. 115-116).

Segundo Nowak, greves de massa são greves que mobilizam trabalhadores até então desorganizados e que se tornam eventos políticos significativos além do local de trabalho. Que efeitos ou impactos organizativos resultam das greves de massas examinadas pelo autor?

Nowak distingue três tipos de greves de massa em termos organizativos: “greves de massa demonstrativas”, “greves de massa de combate coordenadas centralmente” e “greves de massa de combate dirigidas por trabalhadores”. No Brasil e na Índia, elas são identificadas como “greves de massa de combate dirigidas por trabalhadores”, pois os sindicatos tiveram menor engajamento na coordenação dos movimentos.

Em termos organizativos, as greves estudadas têm impactos distintos. Nos casos das greves na Maruti Suzuki e na hidroelétrica de Belo Monte, chegaram a ser construídas articulações mais perenes com movimentos sociais, recursos cruciais para manter viva a ação dentro da fábrica e no canteiro, e novas organizações de base focadas na mobilização de trabalhadores informais (Maruti Suzuki). Não obstante, noutros casos, como em Pecém, houve articulação entre os sindicatos oficiais e os trabalhadores informalmente organizados nos locais de trabalho, mas o saldo organizativo foi bem reduzido.

Segundo Nowak, uma das principais características das greves de massa é a amplitude do seu impacto na sociedade. Em ambos os países, as greves de massa ocorreram em períodos de agitação e manifestações de rua lideradas pelas classes médias em nome do combate à corrupção, aos quais se seguiu uma guinada à direita (pela via eleitoral na Índia em 2014 e por meio de um golpe no Brasil em 2016). Que efeitos ou impactos as greves produziram no contexto mais amplo?

Nowak avalia que as greves foram ignoradas pelos protestos de rua, a despeito de sua presença nas mídias nacionais, e não encontraram apoio de partidos políticos ou demais forças sociais (com exceção de uma Central e de alguns sindicatos próximos ao Partido Comunista na Índia e do Partido Aam Aadmi; e no caso brasileiro do PSTU). No caso brasileiro, o “novo sindicalismo” (CUT), força social que emerge nos anos 1980, é o grande ausente. O fato de serem ofuscadas – pelas manifestações de rua e pela maioria dos estudos sobre as manifestações – não significa que as greves não tenham produzido efeitos políticos.5 Elas estariam na raiz da crise política (BOITO JR., 2016; BRAGA, 2016; SOUZA, 2017; BASTOS, 2017; SINGER, 2018; TROPIA, 2020) que levou ao golpe de 2016 no Brasil e, posteriormente, à retirada de direitos e ao enfraquecimento dos sindicatos com a Reforma Trabalhista de 2017.

Neste sentido, Nowak chega à conclusão de que os movimentos grevistas, tanto na Índia quanto no Brasil, não foram capazes de construir um amplo arco de alianças políticas para além do espaço local em que ocorreram, a despeito ou por causa de seu caráter de massa. As articulações com movimentos sociais e a criação de redes de apoio comunitárias, regionais e familiares, foram fundamentais, mas insuficientes pois as greves concorreram com manifestações de rua dirigidas por setores conservadores das classes médias, cujas pautas eram contrárias ao “reformismo fraco” adotado pelos governos.

Greves de massa são greves geograficamente abrangentes (nacionais) sem coordenação central, o que não significa que não tenham padrões espaciais, padrões que são identificados a partir dos seguintes níveis de análise: (a) locais de mobilização, (b) condições espaciais em um determinado conglomerado industrial e numa região, (c) tradições políticas inscritas em uma determinada área espacial e (d) ondas de greves nacionais ou regionais como um determinado evento socioespacial ou série de eventos. Em cada um desses níveis, é possível identificar dinâmicas espaciais próprias, como por exemplo no nível “local de mobilização”, em que o espaço do bairro por vezes ecoa o espaço do trabalho, ou quando o espaço da rua cala o espaço do trabalho. Ou identificar nas experiências locais, regionais e nacionais distintas tradições políticas que, contidas na memória coletiva (derrotas, vitórias), podem estimular ou acomodar as lutas.

Nowak conclui que o curso de uma greve depende muito da rede social mais ampla que existe em torno dela, das tradições políticas específicas de uma região e da dinâmica espacial (se a greve faz parte de uma série de greves mais amplas de abrangência regional ou nacional).6 Uma vez iniciada uma greve, os fatores além do local de trabalho se tornam mais importantes, o que inclui não apenas o ambiente social mais amplo, mas também a capacidade dos trabalhadores de interferirem na produção e no lucro das empresas.

Dentre as contribuições do livro, destaco especialmente três.

Em primeiro lugar, o desenvolvimento de uma “nova” teoria das greves, doravante referência incontornável nos estudos globais do trabalho. Ao interpelar o campo de estudos do trabalho com uma proposta marxista de renovação da teoria das greves, o trabalho de Nowak lança luzes sobre as lutas sociais na conjuntura brasileira mais recente, como expressão de uma luta global. Essa proposta teórica permite que as greves sejam analisadas para além do plano reivindicativo, como expressão das disputas políticas entre classes e frações das classes trabalhadoras (as greves operárias não são paralelas aos protestos de rua de classes médias, não são coincidentes; elas são concorrentes e mutuamente subordinadas).

Em segundo lugar, a metodologia comparativa internacional, enriquecida com as incursões etnográficas feitas pelo autor na Índia e no Brasil.

Em terceiro lugar, o método de exposição. Nowak introduz cada capítulo com a apresentação das partes constitutivas e perguntas centrais e finaliza-os com as principais conclusões alcançadas. Não fosse a acuidade na exposição, o leitor se perderia facilmente tal a profusão de autores, conceitos, teorias e dados examinados.

A leitura do livro é muito estimulante e inescapável pelas qualidades já apontadas. Neste sentido, cabe saudar sua publicação – e quiçá sua tradução para a língua portuguesa – que certamente contribuirá tanto para futuros estudos globais do trabalho quanto para a luta global dos trabalhadores.

Referências

BASTOS, Pedro Paulo Zahluth. Ascensão e crise do governo Dilma Rousseff e o golpe de 2016: poder estrutural, contradição e ideologia. Rev. Econ. Contemp., Rio de Janeiro, n. especial, p.1-63, 2017.

BOITO JR. Armando. Os atores e o enredo da crise política. In: JINKINGS, Ivana; DORIA, Kim; CLETO, Murilo (org.) Por que gritamos golpe? Para entender o impeachment e a crise política no Brasil. São Paulo: Boitempo editorial, 2016. p. 23-27.

BRAGA, Ruy. O fim do lulismo. In: JINKINGS, Ivana; DORIA, Kim; CLETO, Murilo (org.) Por que gritamos golpe? Para entender o impeachment e a crise política no Brasil. São Paulo: Boitempo editorial, 2016. p. 49-53.

ENGELS, Friedrich. A situação da classe trabalhadora na Inglaterra. São Paulo: Boitempo Editorial, ٢٠١٠.

GRACIOLLI, Edilson. Um caldeirão chamado CSN: resistência operária e violência militar na greve em 1988. Uberlândia: EDUFU, 1997.

SINGER, André. O Lulismo em Crise. Um Quebra-Cabeça do Período Dilma (2011–2016). São Paulo: Companhia das Letras, 2018.

SOUZA, Davisson Charles Cangussu de. Lutas sociais e tradições de luta no Brasil nos anos 2000. Lutas Sociais, São Paulo, n. 25-26, p. 191-205, 2011.

SOUZA, Davisson Cangussu de. Lutas de classes e ciclo de lutas no Brasil de 2003-2013: os limites para a constituição de uma força social. In: AMORIM, Henrique; SOUZA, Davisson Cangussu de (org.). As classes sociais no início do século XXI. 1. v. São Paulo: Annablume, 2017. p. 57-88.

TATAGIBA, Luciana; GALVÃO, Andreia. Os protestos no Brasil em tempos de crise (2011-2016). Opinião Pública, Campinas, v. 1, n. 25, p. 63-96, 2019.

TROPIA, Patrícia Vieira. “Não vai ter golpe!” E “Fora Dilma!”: o sindicalismo brasileiro diante do golpe de 2016. In: NORONHA, Gilberto Cesar de; SILVA, Idalice Ribeiro; NASCIMENTO, Mara Regina do (org.). O Golpe de 2016 e a Corrosão da Democracia no Brasil. Jundiaí: Paco Editorial, 2020. p. 165-188.

Recebido em 25/05/2022

Aceito em: 26/05/2022


1 No caso indiano, um batalhão da polícia permaneceu por dias no interior da fábrica da Maruti Suzuki em Manesar – o que nos faz lembrar, no Brasil, da histórica greve de 1988 na CSN, estudada por Edilson Graciolli (1997).

2 Neste rearranjo mundial, o percentual de trabalhadores industriais dos países não centrais passou de 53%, em 1980, para 79% em 2010. Neles, desde 2000, há uma considerável expansão da produção sem o crescimento de salários. No caso indiano, triplicou a produção entre 2001 e 2012, enquanto os salários tiveram queda de 18% (p. 104).

3 Em 2000, “os países dos Bric (sem a África do Sul) representavam cerca de 8% do produto interno bruto (PIB) global, percentual que subiu para 19% em 2011 e 22% em 2015 (19,5 e 23 % se a África do Sul for incluída)” (p. 109).

4 Na Maruti Suzuki, o impedimento do registro sindical, a realização de um lockwout, a suspensão de grevistas e a demissão de terceirizados ampliou a revolta dos trabalhadores que fizeram uma operação tartaruga, piquetes, paralisações generalizadas por outras fábricas e greves com ocupação, exigindo o reconhecimento do sindicato e a readmissão dos terceirizados. A resposta estatal foi o envio da polícia e a exigência de desocupação das fábricas; a resposta patronal também veio com a demissão de lideranças e a recusa ao registro sindical. Em 2012, finalmente os trabalhadores obtêm o registro do Sindicato dos Trabalhadores Maruti Suzuki (MSWU) e apresentam uma pauta ampla de reivindicações, cuja resposta foi o afastamento de lideranças e instalação de comitês visando a esvaziar o poder sindical. O clímax ocorreu em 18 de julho de 2012 quando, em meio a uma briga generalizada entre trabalhadores e supervisores, ocorre um incêndio e a morte de um gerente, levando à demissão de 2.346 e à prisão de 148 trabalhadores que permaneceram no cárcere por três anos (p. 142).

5 Nowak questiona as abordagens que colocam em foco exclusivamente as manifestações de rua e que descuram ou até mesmo encobrem o papel das greves e do movimento de trabalhadores no Brasil e na Índia naquela conjuntura. Dois excelentes estudos analisam o peso das lutas e protestos populares (assalariados formais ou informais na luta por melhoria dos serviços púbicos e por demandas por moradia, sem teto, sem-terra) no conjunto das lutas mais gerais (SOUZA, 2011; TATAGIBA; GALVÃO, 2019).

6 Quanto à dinâmica espacial das greves de massas, Nowak apresenta a seguinte tipologia: “greves de imitação setoriais”, “greves nacionais intersetoriais” e “greves de massa regionais”.

A REIVINDICAÇÃO DO QUE NÃO PODE SER DESCARTADO

THE RECLAIMING OF WHAT CANNOT BE DISCARDED

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Márcio Moneta1*

MILLAR, Kathleen M. Reclaiming the discarded – Life and Labor on Rio’s Garbage Dump. Durham : London: Duke University Press, 2018. E-book.

É mais famígera do que propriamente explorada em todas as suas consequências teóricas e suas potenciais soluções metodológicas a assimilação da produção de Edward Palmer Thompson pelas ciências sociais. Interessado no trabalho de refinamento conceitual e analítico do materialismo histórico a partir de uma teoria social thompsoniana, bem como no seu manuseio para o trato de sociedades capitalistas contemporâneas, travei contato com o trabalho de Kathleen M. Millar. Ela havia coordenado, em 2013, no Encontro da American Anthropological Association, uma sessão de trabalhos inspirados em Thompson e, a partir dessa informação, tomei conhecimento de sua pesquisa no Rio de Janeiro – já divulgada através de um artigo e substrato de um livro no prelo. Foi com agudo entusiasmo, então, que aguardei o lançamento de Reclaiming the Discarded – Life and Labor on Rio’s Garbage Dump, que, empunhando a promissora noção de forma de viver, se põe a abordar, como se lê no subtítulo da obra, a lide de trabalhadoras/es coletoras/es de material reciclável no Aterro Metropolitano de Jardim Gramacho, na cidade de Duque de Caxias.

A expectativa mais do que se confirmou. Millar, de modo sério e competente, munida de profundo compromisso etnográfico, nos faz conhecer não apenas a maneira como labutam, mas as condições de existência dos catadores, termo nativo que a autora utiliza sem verter tradução para sua própria língua – é dela também a ausência de flexão de gênero para o vocábulo quando utilizado no plural. Em outras palavras, somos apresentados/as à tese, solidamente exposta, de que, ao tratar do labor em Jardim Gramacho, está-se tratando de toda uma forma de viver, que abarca tanto, digamos, um meio de vida (livelihood), como um modo de vida. Esse duplo significado, prossegue Millar, pretende superar a “divisão conceitual entre trabalho e vida” (MILLAR, 2018, posição 296) própria ao capitalismo. Nesse conceito, englobam-se, assim, valores e práticas, cultura e política, em suma, as balizas que conformam as aspirações de vida dessa população.


1* Professor do Departamento de Sociologia da Universidade Federal do Paraná. Doutor em Sociologia pela Universidade Estadual de Campinas, cientista social graduado pela Universidade Federal de Pernambuco. E-mail: marciomoneta@ufpr.br

ISSN 1517-5901 (online)

POLÍTICA & TRABALHO

Revista de Ciências Sociais, nº 57, Junho/Dezembro de 2022, p. 268-275

Em Reclaiming, temos contato com mulheres e homens de relação arredia com o assalariamento convencional e para quem a atividade de coleta de recicláveis não se explica, ao menos não inteiramente, pela ausência de alternativas de trabalho ou como imperativo de sobrevivência, como de modo desinformado se costuma supor. Se o desemprego ou o desalento são, para boa parte das/os informantes, caminho de acesso a tal ocupação, a permanência nela, eis aqui um primeiro grande achado etnográfico, decorre em larga medida de uma série de decisões de confirmação, dentro do espaço limitado de alternativas que se apresentam nessa experiência de classe. Lemos histórias de vida de trabalhadores/as desempregados/as; ou de antigas/os ambulantes exaustas/os da repressão policial e arruinadas/os financeiramente pelo confisco ou destruição de suas mercadorias; num caso e noutro, levados/aos ao depósito de lixo através de suas redes pessoais, em momentos críticos. Em contrapartida, o caminho inverso, o de saída do trabalho no aterro, se apresenta reiteradas vezes às/aos informantes de Millar, para ser seguidamente rejeitado.

“Eu não consigo mais me acostumar a trabalhar como empregada de outra pessoa” (MILLAR, 2018, posição 1736), nos comunica Alessandra, ao explanar seu abandono de um posto formal de trabalho que ocupou brevemente em subsequência a uma trajetória de muitos anos na coleta de recicláveis. Por um mês, ela esteve empregada como camareira em um hotel e de lá se retirou para não ter que labutar sob a hierarquia de um/a chefe ou segundo os rigores de uma gestão heterônoma de sua jornada de trabalho; no lixão, ela continua, “você faz o seu próprio salário e sua própria escala. O catador se acostuma a fazer o que quer, quando quer. Se acostuma a não receber ordens” (MILLAR, 2018, posição 1727).

Rose, outra informante, registra movimento similar. De início exultante por haver conseguido uma inédita contratação com carteira assinada, pela qual receberia dois salários mínimos, estava, poucas semanas depois, de volta à coleta. A ela, que previamente defendera enfaticamente a opção pelo abandono do trabalho no lixão – “puro sofrimento” –, pareceu irracional, reporta Millar, a necessidade de permanecer no local de trabalho mesmo tendo já cumprido as tarefas a ela designadas, nada mais, portanto, tendo lá a fazer.

A atividade laboral no aterro, por contraste, tem outra temporalidade e ela não é bem compreendida sem se desvendarem os fundamentos que forjam o ideal de vida a orientá-la. As constatações de que “o lixão está sempre lá”, na voz da própria Millar (2018, posição 1507), ou de que “o lixo nunca acaba” (MILLAR, 2018, posição 666), conforme ecoado por informantes – isto é, o sentido de que, no aterro, o trabalho, com sua respectiva remuneração, jorra de fonte inesgotável, a percepção da experiência a ele associada como a de uma abundância, que muito discrepa da ideia de mera subsistência – dão base a uma certa atitude com relação à coleta de recicláveis que é marcada pela inconstância e por uma prodigalidade, diria o Marshall Sahlins de “The original affluent society”, cuja evocação me parece aqui incontornável. O aterro é descrito como um “refúgio”, a garantir segurança. O tema da autonomia ganha, nessa senda, tratamento de relevo.

O trabalho se organiza em função das demandas pecuniárias, não com fins de acumulação – ao contrário, é preciso não ter receio de consumir, de modo a desfrutar as “coisas boas da vida”, mesmo porque, em tal contexto, de extrema fluidez nas remunerações, de endividamento e socorro mútuos, gastar é a melhor estratégia de poupança, conclui Millar. De modo associado, o ritmo de trabalho igualmente conforma os parâmetros de uma boa vida: trabalha-se sem dias predeterminados, sem horários fixamente estabelecidos; as incursões na coleta se dão a partir da demanda de arrecadação de fundos para fazer frente a despesas corriqueiras, mas também diante de intercorrências e emergências (e, nesse último caso, através de jornadas que podem se estender indefinidamente, até que se obtenha o montante necessário ou desejado). Em síntese, a um padrão normativo que preconiza o trabalho em termos de estabilidade, de demarcação rígida entre vida e labor, de saneamento financeiro, se contrapõe uma vivência caracterizada pela fluidez: “vou e volto1 (MILLAR, 2018, posição 1404, itálico no original), dizem catadoras/es, com referência seja aos retornos corriqueiros ao aterro2, seja àqueles que sucedem as tentativas mais definitivas de abandono da atividade.

Nesse ponto, exibe-se toda a inocuidade de eventual recurso a categorias legítima e competentemente empregadas na análise crítica de estratagemas contemporâneos de aviltamento do trabalho assalariado. Os aspectos degradantes que se identificam, por exemplo, no manejo dito flexível da disposição e da extensão do tempo de trabalho em modalidades contemporâneas de gestão das firmas capitalistas não fornecem, nesse caso, um chão analítico útil.

Tenho ciência de que caminho aqui em terreno pedregoso e perigoso. Estou defendendo a dignidade do trabalho em um depósito de lixo? E por longas jornadas? Volto a essas questões, mas aqui as menciono porque elas são índice do quão igualmente desconcertante (e, por isso, por vezes, penosa, ainda que estimulante) pode ser a leitura de Reclaiming, de como exige similar esforço relativista de quem lê acompanhar as inquietantes conclusões de Millar, o que apenas torna mais meritória sua corajosa análise, que é consistente.

A virtuosidade etnográfica aí contida se revela em legados adicionais e correlatos. Talvez nada seja mais emblemático a esse respeito do que a maneira como o texto deixa descoberta a frivolidade das propostas regulatórias da atividade laboral do aterro no Jardim Gramacho, constitutivas de uma abordagem que, à primeira vista, seria intuitivamente considerada não só como diligente, mas como bem orientada normativamente – o que faz do livro também subsídio metodológico relevante do ponto de vista da formulação de políticas públicas. Defendidas pela Companhia Municipal de Limpeza Urbana (Comlurb) do Rio de Janeiro, responsável pelo Aterro, medidas como a limitação da extensão e dos horários da jornada de trabalho ou a realocação das/os catadoras/es em ocupações menos arriscadas – o afã último era o de remoção das/os catadoras/es de sua atividade – se mostram como situadas entre a ingenuidade e a ineficácia, pela desconsideração do que acarretariam em termos de desmantelamento de todo um modo de vida. “Se o lixão ainda existisse, eu estaria lá. Com certeza” (MILLAR, 2018, posição 3772), disse Juliana, que se encontrava trabalhando com carteira assinada após a desativação do aterro, ocorrida em 20123. Reclaiming, nesse sentido, como sólida etnografia, atinge de morte um etnocentrismo de múltiplas facetas.

Em mote correlato, o livro nos informa das frequentes perguntas dirigidas por outras/os antropólogas/os a respeito dos riscos enfrentados em campo. Como se pode imaginar, não foi sem eles que Kathleen Millar se lançou nessa empreitada. Ao se fazer catadora, se expôs, como seus/suas colegas de coleta, à manipulação dos resíduos sem equipamentos certificados de proteção individual – ela, salvo melhor juízo, se valeu dos mesmos dispositivos de proteção utilizados pelos/as demais catadores/as, produzidos a partir de insumos lá coletados, pelo que, aliás, constatamos outro de seus ricos achados etnográficos, a percepção do material de que se compõe o aterro sanitário não como uma massa indistinta de dejetos, mas como algo a ser perscrutado, avaliado, triado, numa atividade de segmentação entre o que é reciclável (para a indústria), o que é utilizável (pelas/os trabalhadoras/es) e o que é imprestável. Atravessar um sentimento visceral de repulsa – de abjeção, o termo mobilizado pela autora – é parte do processo de se tornar catador/a4; o lixo perde então sua aparência amorfa, o/a catador/a adquire a habilidade de avaliar entre uma multiplicidade de formas – trata-se de um saber laboral que demanda aprendizado prático. Registre-se que, sim, Millar, por vezes, adoeceu – e se automedicou, a partir das instruções de colegas para lidar com infecções dermatológicas recorrentes.

Retomemos a questão das condições do trabalho no aterro; tenho especialmente em mente o plano de ações regulatórias delineado pela assistente social da Comlurb. Se fica nítida a inadequação de tal plano – porque autoritário e, concomitantemente, ineficaz –, por outro lado, todavia, me parece mandatório lidar com algumas questões normativas que se impõem: os riscos à saúde não justificariam a interdição do trabalho de coleta de recicláveis? Ou, de outro modo: se uma das contribuições mais diretas de Reclaiming diz respeito à dissolução da aparência de marcada obviedade de certas proposições de políticas públicas destinadas a essa população, o que fazer dos efetivos danos sanitários que a atividade laboral em espaços como um aterro sanitário provoca? Não foi sem inquietude que eu me tive com esses questionamentos, com seu tratamento por Millar – que não os enuncia, seja porque eles extrapolem os propósitos da pesquisa, ou para evitar comprometer a exposição rigorosa do objeto pesquisado; num caso e no outro, talvez ainda porque entenda que proferir tais questionamentos seja tão somente responder expressamente à convocação etnocêntrica. Isso não a faz, todavia, deixar de pontualmente reconhecer a “relação de desigualdade” (MILLAR, 2018, posição 950) inerente à coleta das sobras descartadas por outrem; e de dar ciência da onipresença dos danos à integridade física trazidos por esse trabalho “profundamente doloroso e precário” (MILLAR, 2018, posição 1415): “Não existia qualquer prevenção ou compensação frente aos danos que os catadores sofriam, e a vida em si estava em risco no lixão” (MILLAR, 2018, posição 1510). A terapêutica para se lidar com essa periculosidade extrema – ou, mais radicalmente, o debate sobre a dignidade ou a moralidade da existência desse trabalho – Millar delega, suponho, ao debate público.

De todo modo, o que adicionalmente se vê na tal proposta de intervenção da Comlurb é um certo estreitamento normativo – o parâmetro de referência é, predominantemente, o modelo regulatório ancorado no trabalho assalariado protegido, de vínculo empregatício formalizado.

Essa apresentação sucinta do que se expõe em Reclaiming, creio, deixa antever a magnitude do trabalho etnográfico realizado: a vasta imersão, entre 2008 e 2009, no Jardim Gramacho (que, em 2005, se constituía o maior aterro sanitário da América Latina, informa o livro) e os longos sete anos por que se estende a investigação, aí contabilizadas incursões prévias e retornos subsequentes ao campo, num período que se prolonga até 2012. Tem-se por resultado uma obra densa, de invulgar acurácia analítica.

Algo de incômodo acompanhou minha leitura do livro, todavia. A literatura produzida pelas ciências sociais no Brasil aparece quase sempre como elemento pictórico ou, na melhor das hipóteses, como auxiliar da argumentação feita por autoras/es pertencentes a instituições do Atlântico Norte.

Em exemplo eloquente, a extensa bibliografia autóctone a respeito da noção de informalidade é exemplarmente desconsiderada, sem que pareça haver razões internas às obras para tanto. Certo é que a autora rejeita tal noção em favor da ideia de uma plasticidade de formas: o conceito de informalidade restaria irremediavelmente constituído de um juízo negativo, compromissado normativamente com uma posição que enxerga desviantes as formas econômicas que pretende descrever – o que, a propósito, deve ser visto como importante contribuição teórica de Reclaiming. Para substanciar esse debate, é convocada uma produção conceitual que recebe abrigo canônico em países centrais, para o desprezo de contribuições seminais, cuja argumentação em muito antecipa (ou mesmo supera) aquela com que debate a autora – penso na ausência, por exemplo, das formulações de Francisco de Oliveira ou de Florestan Fernandes; e tenho em mente, ainda, reflexões suscitadas mais recentemente por Luiz Antônio Machado da Silva, a quem a autora, inclusive, dirige agradecimentos pela orientação quando no Rio de Janeiro.

É provável ainda que uma certa debilidade constatada na abordagem mais propriamente sociológica da sociedade brasileira seja um reflexo da lacuna mencionada. Veja-se, em outra ilustração, a relativa palidez com que faz referência às heranças do varguismo para a experiência laboral no país – nomes como Maria Célia Paoli ou Luiz Werneck Vianna, para lembrar apenas duas referências, são ausências notórias, pelas relevantes contribuições nas temáticas em questão. De modo correlato, a tradição que vai de Wanderley Guilherme dos Santos a Adalberto Moreira Cardoso não é vista figurar nos comentários sobre o repertório aspiracional e moral das/os trabalhadoras/es brasileiras/os.

Há, ainda, em sentidos distintos, outras debilidades no livro. Resulta questionável a aligeirada caracterização das transformações sociais que se seguiram à experiência governamental federal do Partido dos Trabalhadores. Se, aqui, autores/as brasileiros/as são fartamente convocados/as, tanto a bibliografia, quanto os dados manejados por Millar conformam um painel pouco nuançado, malsucedido na periodização histórica dessas gestões – na apreensão, por exemplo, da inflexão rumo a uma política econômica mais expansionista, depois da crise de 2005, na eleição de 2006 e especialmente no segundo mandato (2007-2010); a ideia de um neodesenvolvimentismo é, no livro, indistintamente aplicada a todo o período. De resto, Millar subscreve a interpretação infundada de que os bons resultados econômicos conhecidos nesse interregno são derivação quase que exclusiva do ciclo de alta das commodities, o que se faz acompanhar de afirmações imprecisas sobre deteriorações no mercado interno brasileiro.

Mas a deficiência nessa caracterização está, especialmente, nos elementos invocados na produção do balanço dos mandatos petistas. O foco recai acentuadamente no Programa Bolsa-Família; subestima, por exemplo (e sobretudo), a política de reajustes do salário mínimo, e esse é um problema fulcral, se entendermos que os avanços distributivos conhecidos no período se devem crucialmente a tal política, inclusive pelos desdobramentos via seguridade social, que, aliás, recebe tratamento negligente no livro – a previdência social é retratada como mecanismo catalisador de desigualdade5. São igualmente deixadas de lado outras políticas cruciais, que diretamente afetam a reprodução da força de trabalho e o modo de vida da classe trabalhadora no país (políticas de educação básica e superior, de moradia, de igualdade racial, de eletrificação etc.). Ainda digno de nota, o comentário sobre uma alegada ausência de investimento em infraestrutura informa outra imperícia: ignora-se inteiramente o programa de obras que permitiu, em um primeiro momento, a caracterização de um neodesenvolvimentismo no país.

Nada disso, todavia, deve trazer dúvida sobre a exuberância de Reclaiming the Discarded. A amplitude do trabalho de campo de Kathleen Millar; a seriedade, a integridade e a efetividade de sua observação; e seu compromisso com os métodos – de pesquisa e de análise – que caracterizam as melhores empreitadas em etnografia nos legam uma obra valiosa.

A propósito, muito ainda poderia ser destacado entre os dados etnográficos que se trazem à luz. Menciono pontualmente a identificação de diferentes subgrupos de trabalhadoras/es de reciclagem porque ela ilustra muito do respeito de Millar à complexidade da população por ela estudada, bem como da prolificidade dessa investigação. Vemos, por exemplo, como os moradores, aqueles que não só laboram no aterro, mas lá residem, podem conciliar trabalho e consumo continuado de substâncias psicoativas; como desenvolvem determinadas práticas coletivas ou intersubjetivas de que a autora se vale para falar dos diferentes projetos políticos identificados, sem menosprezar, mas também sem privilegiar analiticamente as formas mais reconhecidas de organização (associações, cooperativas e movimentos sociais, por exemplo) ou as formas mais evidentes de ação (tais como a greve contra a queda dos preços, nos primórdios do aterro; ou, ainda, a mediação coletiva na interlocução com a administração do aterro e com sucateiros/as).

E eu certamente não gostaria de ter deixado para o final o comentário sobre a extraordinária qualidade do impressionante texto produzido por Katlheen M. Millar. É nada menos que exemplar a confecção da peça. O trânsito entre as cenas etnográficas e o debate antropológico (ou sociológico, quando o caso) é apenas parte da perícia e habilidade com que Millar erige e manuseia seu método de exposição, cuja tecitura rigorosa traz competentes resultados em termos de desvelamento do seu objeto, da produção de inferências, da construção de sua argumentação.

Não é sem razão, aliás, que cause imediato constrangimento o arrolamento dos planos de regulação do trabalho no aterro: eles são destrinchados quando já absolutamente esmiuçada a forma de viver das/os catadoras/es, quando já inteiramente conhecidos os valores e propósitos a guiá-la. Trocando em miúdos, há aí mérito não apenas da qualidade investigativa de Millar, mas também de seu método de apresentação. Por fim, é de se anotar com entusiasmo ainda a enorme qualidade estilística do texto redigido – é livro que não apenas se lê, mas se o faz com rara satisfação.

Reclaiming the Discarded, então, deve ser lido. Porque não se furta a ampliar os horizontes normativos, abre caminho para observações precisas, perfaz críticas agudas. Seria ocioso descrever como alegórico o que isso empresta para críticas da profunda degradação do trabalho representada, por exemplo, por modalidades uberizadas de trabalho: a lição a ser tirada aqui é a de que a denúncia do aviltamento do trabalho não se confunde com a defesa do contrato regulado de assalariamento por tempo, sequer depende de suas categorias para encontrar expressão – ou, em outros termos: se a luta por trabalho decente através da proteção regulatória do emprego é, especialmente na atual quadra histórica, absolutamente crucial, a garantia de condições dignas de trabalho não deve, por outro lado, depender da defesa da legitimidade do trabalho estranhado assalariado (ainda que em sua versão regulada) e do sequestro aspiracional que dela decorre.

Indo mais longe, se prestarmos atenção ao que dizem catadoras/es de Jardim Gramacho, no Rio de Janeiro, encontraremos a afirmação da dignidade e – mesmo diante de aguda penúria – da aspiração por autonomia, por controle sobre a própria vida. Não se tome por expediente crítico a tentativa de atrofiar tais aspirações, de modo a fazê-las caber na estreiteza de um padrão regulatório que tenha por fundamento o assalariamento.

Referências

MILLAR, Kathleen M. Reclaiming the discarded – Life and Labor on Rio’s Garbage Dump. Durham: London: Duke University Press, 2018. E-book.

KERSTENETZKY, Célia Lessa. “Foi um pássaro? Foi um avião?” Redistribuição no Brasil do século XXI. Novos Estudos Cebrap, São Paulo, v. 36, n. 2, p. 15-34, jul. 2017.

Recebido em: 04/02/2021

Aceito em: 16/11/2022


1 Esta citação aparece originalmente em português no livro. Todas as demais foram livremente traduzidas por mim, ainda que por vezes seguindo indicações da autora.

2 É que boa parte das/os catadoras/es não reside próxima ao aterro e, assim, empreende movimento pendular, alternando breves períodos em Jardim Gramacho, em pousos provisórios, e em suas residências fixas, localizadas em outros bairros ou mesmo em outras cidades.

3 Há algo de irônico e informativo aí: Juliana estava trabalhando no Centro de Referência de Assistência Social (CRAS) inaugurado em Jardim Gramacho para viabilizar o pagamento de indenização aos/às antigos/as catadores/as por ocasião do fechamento do aterro.

4 Temos aqui uma pequena nota reveladora das questões postas à escrita ou, antes, à práxis etnográfica. Se, do ponto de vista formal, isto é, da exposição, os questionamentos sobre o risco da atividade aparecem emitidos por colegas antropólogos/as, a abjeção é relatada pela voz de informantes. Aparentemente, em seu esforço relativista, há por Millar uma repressão desse sentimento, que, aliás, só é abertamente admitido e exposto quando revelada sua serventia etnográfica: “eu tinha empreendido tanto esforço, durante aqueles meses iniciais de pesquisa de campo, tentando ser ‘durona’, tentando tanto não ficar consternada, nauseada ou chocada, que eu deixei de reconhecer que, por vezes, os catadores também reagiam ao lixão dessa maneira”. (MILLAR, 2018, posição 1094).

5 Para um apanhado do papel protagonista cumprido pela elevação do salário mínimo na redução da desigualdade da renda domiciliar entre 2003 e 2014, especialmente pela sua função de piso constitucional de transferências previdenciárias e assistenciais – aposentadorias, pensões, seguro-desemprego, benefício de prestação continuada etc. –, ver Kerztenetzky (2017).