CHAMDA DOSSIÊ PARA 2023 - Governança da internet, o papel do jornalismo e as mídias sociais: entre vigilância, controvérsias e resistências
A governança da internet vem ganhando cada vez mais evidência nos últimos anos, devido principalmente a acontecimentos, mundialmente midiatizados, que têm revelado atividades controversas envolvendo atores privados, políticos e internautas. Um exemplo é o escândalo da Cambridge Analytica (Lagos, 2020; D’Andréa, 2020) ou ainda a Clearview (Rohr, 2020), que revelou a violação de privacidade de internautas por empresas que utilizam dados retirados das grandes plataformas digitais. A concentração da circulação, armazenamento e tratamento de dados massivos nas mãos dos atores privados que compõem o acrônimo GAFAM (Google, Amazon, Facebook, Apple e Microsoft) é um fator que vem sendo criticado e combatido, fazendo reagirem os dirigentes dessas plataformas, como é o caso do fundador do Facebook, que apresenta a rede como “neutra” e vislumbra sua atuação na construção de uma comunidade global[1]. Seja em período eleitoral ou não, já ficou evidente como as plataformas, mundialmente estabelecidas, podem atuar sobre os fluxos de notícias, dificultando a diversidade de informações e distanciando o usuário do que seria uma circulação livre e equilibrada na web.
Dessa forma, a governança da internet parece ser uma questão central para os estudos em comunicação, mas que é ainda pouco trabalhada na área (Montenegro, 2021), sendo que muitos deles estão vinculados à área de relações internacionais, já que diferentes organizações e acordos de cooperação internacionais de alcance global atuam na temática, como o Working Group on Internet Governance (WGIG), um grupo de trabalho da Organização das Nações Unidas (ONU), em que o foco são questões regulatórias, internacionais e de soberania.
Por outro lado, essa questão se coloca como essencial para o jornalismo, em face dos desafios trazidos para a prática, mas também em função de temas e questões que emergem com bastante evidência e força com as mídias sociais, em especial a efervescência das redes sociais, como a liberdade de expressão, por exemplo. O tema, que continua a ser essencial, suscita defesas e ataques, além de uma reconfiguração conceitual que surge na interface ideológica dos grupos que se apropriam da abordagem e a ressignificam com novos matizes.
A definição de governança da internet consiste na: “elaboração e aplicação pelos Estados, setor privado e sociedade civil, no âmbito de seus respectivos papeis, de princípios, normas, regras, procedimentos decisórios e programas comuns capazes de moldar a evolução e o uso da internet” (UN, 2005, p. 4). Assim, o Marco Civil da Internet (Lei 12.965, de 23 de abril de 2014) pode ser considerado um exemplo de governança, que alçou o Brasil ao reconhecimento mundial por ter criado uma das primeiras legislações que reconhecem a neutralidade da rede como direito da cidadania (Barros, 2016). O reconhecimento também veio um ano depois quando o país sediou, em 2015, em João Pessoa (PB), o evento internacional do IGF (Internet Governance Forum), o Fórum da Governança da Internet.
Este número da Revista Âncora tem como objetivo, portanto, reunir trabalhos que façam a articulação entre governança da internet, o papel do jornalismo e as mídias sociais, privilegiando uma abordagem interdisciplinar. Os artigos poderão combinar estudos sobre a a cobertura jornalística sobre as plataformas e sua atuação, bem como sobre escândalos ou controvérsias sobre vigilância digital, moderação de conteúdo pelas plataformas ou das novas normas que regem as plataformas e seus termos de uso (D’Andréa, 2020) e sua relação com a produção jornalística. Assim como temas e investigações ligados às políticas públicas e à legislação aplicada aos meios de comunicação e aos setores digitais, o que pode afetar o trabalho jornalístico. Além disso, as propostas poderão abordar ainda as mobilizações voltadas para a defesa das liberdades públicas ou fundamentais (liberdade de expressão, liberdade de imprensa), sobretudo diante de um cenário complexo em que usuários, jornalistas, dirigentes e empresas jornalísticas oscilam entre críticas e adesão às plataformas.
Nas propostas de artigos, a própria noção de governança, como é definida institucionalmente há mais de 15 anos (Musiani; Schafer, 2018), pode ser problematizada, já que pode ser articulada principalmente a dois outros conceitos: o de governança digital, que é estudada no Brasil em sua capacidade como serviço público – governo, aberto, público, eletrônico, serviços (Montenegro, 2021); e o de governamentalidade (Foucault, 2004), uma vez que a evolução da internet moldou, do ponto de vista socioeconômico e também técnico, uma governança baseada na vigilância, que é sobretudo evidenciada por meio das relações de poder que se desenrolam dentro dos dispositivos técnicos que os indivíduos usam diariamente. Sendo a governança da Internet um processo eminentemente político e social, poderíamos pensar também na governança da internet como um “problema público” (Neveu, 2015), definindo, a partir dessa concepção, quais enquadramentos, narrativas e argumentações contribuem para a construção desse tema na esfera pública.
Por fim, os artigos podem também apresentar estudos sobre iniciativas de resistências, ou táticas, da parte de usuários ou internautas que atuam, por exemplo, por diretrizes de acessibilidade; contra a coleta de dados operada pelas plataformas, contra a atuação delas no meio ambiente (Lefèvre; Wiart, 2021) ou que tenham desenvolvido “plataformas cidadãs” de cooperação entre diferentes atores. O desafio aqui é demonstrar quais oportunidades existem para resistir, questionar e tentar mudar a influência das plataformas globais já estabelecidas.
Assim, sugerem-se a seguir alguns temas, sem excluir outras propostas:
- Discussões sobre o conceito de Governança da internet e Governança Digital; e aproximações com o conceito de governamentalidade;
- Jornalismo e liberdade de expressão;
- Governança da internet, moderação de conteúdos e conteúdos impulsionados;
- Governança da internet e modos de regulação das indústrias midiáticas ou digitais (políticas públicas, legislação aplicada aos setores midiático e digital como a PL 2630, por exemplo);
- Governança da internet, plataformas e controvérsias (escândalos, pandemia, desinformação);
- Governança algorítmica; plataformas e termos de uso;
- Governança da internet e mobilização social (contra coleta e armazenamento de dados, vigilância, spam, por exemplo);
- Governança da internet e críticas ao digital/atores industriais digitais (GAFAM; Tencent, Alibaba...)
- Governança da internet e acessibilidade.
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Esta chamada conta com o apoio da FAPESQ, Termo de Outorga nº 3294/2021, Fundação de Apoio à Pesquisa do Estado da Paraíba (FAPESQ). Edital nº 006/2020 PDCTR-PB (MCTIC/CNPq/FAPESQ-PB).
Submissão de artigos completos (30 a 50 mil caracteres com espaço, incluindo referências e notas de rodapé) até 20 de novembro de 2022 pelo sistema da Revista: https://periodicos.ufpb.br/ojs2/index.php/ancora
A Comissão Editorial da Revista Latino-Americana de Jornalismo - ÂNCORA recebe em fluxo contínuo trabalhos acadêmicos inéditos de doutores e doutorandos do Brasil e do exterior. Autores fora desse espectro, excepcionalmente mestres e mestrandos, podem inscrever artigos em coautoria com autores doutores. Os artigos serão avaliados pelo processo de revisão cega pelos pares.
Referências
BARROS, S. A. R. Os desafios das consultas públicas online: lições do Marco Civil da Internet. Link em Revista, v. 12, n. 1, 2016.
D’ANDRÉA, C. Pesquisando plataformas online: conceitos e métodos. Salvador: EDUFBA. 2020.
FOUCAULT, M. La gouvernementalité. Dits et écrits 1954-1988, III, Paris : Gallimard, 2011.
GOOGLE NEWS lança Destaques, com notícias selecionadas pelos veículos. Folha de S.Paulo. 1 out. 2020. Disponível em: https://www1.folha.uol.com.br/poder/2020/10/google-news-lanca-destaques-com-noticias-selecionadas-pelos-veiculos.shtml
LAGOS, C. P. Rendre visibles les conséquences de la surveillance numérique Le cas du « scandale » Cambridge Analytica. Communication, v. 37/2, 2020. DOI : https://doi.org/
10.4000/communication.13252
LEFEVRE, B., WIART, L. Les hubs eWTP d’Alibaba : une stratégie globale d’articulation d’écosystèmes locaux. Les Enjeux de l’Information et de la Communication, n°21/1, 2020, p.71 à 89, Disponível em : https://lesenjeux.univ-grenoble-alpes.fr/2020/varia/05-les-hubs-ewtp-dalibaba-une-strategie-globale-darticulation-decosystemes-locaux/
MONTENEGRO, L.M.B. Governança Digital do Combate à Violência Online de Gênero. Análise de estratégias de organizações de resistência sob a perspectiva do processo de construção do problema público. Tese (Doutorado em Comunicação), Universidade de Brasília, 2021.
MUSIANI, F.; SCHAFER, V. La gouvernance, un enjeu transversal d’Internet au numérique. Enjeux numériques, n. 4, 2018, Annales des Mines.
NEVEU E.. Sociologie politique des problèmes publics. Paris : Armand Colin, 2015.
ROHR, A. Empresa de reconhecimento facial Clearview notifica clientes sobre vazamento de dados. G1. Disponível em: https://g1.globo.com/economia/tecnologia/blog/altieres-rohr/post/2020/02/27/empresa-de-reconhecimento-facial-clearview-notifica-clientes-sobre-vazamento-de-dados.ghtml. Acesso em: 19 jun. 2022.
- United Nations. General Assembly. Report of the Working Group on Internet Governance. Disponível em: http://www.wgig.org/docs/WGIGREPORT.pdf. Acesso em: 30 mar. 2022.
WAGNER, Flávio Rech; CANABARRO, Diego Rafael. A Governança da Internet: definição, desafios e perspectivas. In: PIMENTA, Marcelo Soares; CANABARRO Diego Rafael (orgs.). Governança Digital. Porto Alegre: UFRGS/CEGOV, 2014, p. 191-209.
Revista Latino-americana de Jornalismo - Âncora
ÂNCORA: http://periodicos.ufpb.br/ojs/index.php/ancora/
[1] Building Global Community. Disponível em: https://www.facebook.com/notes/3707971095882612/