“A CACHOEIRA E O LAGO”: entrevista com Adriano de León

 

THE WATERFALL AND THE LAKE: interview with Adriano de León

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Maylle Alves Benício*

Adriano de León**

DOI: https://doi.org/10.46906/caos.n23.49348.p302-325

 

 

 

Adriano Gomes Azevedo de León é professor titular do Departamento de Psicologia da UFPB, recentemente transferido do Departamento de Ciências Sociais, onde atuou por mais de 20 anos. Define-se, do ponto de vista acadêmico, como um “ser híbrido”, dada sua trajetória ter se iniciado na Engenharia Agronômica, atravessado a sociologia, a antropologia, a psicanálise, e, recentemente ter desaguado na psicologia. Foi o responsável pela criação da Revista CAOS em 1999, um projeto que, não só pelo nome, reflete as concepções teóricas e existenciais do seu criador. Como intelectual, notabiliza-se por estudos realizados sobre religião, gênero, paradigma queer e anarco-queer. É conhecedor do pensamento pós-estruturalista com o qual mantém profunda identificação. Como professor, notabiliza-se por suas metodologias vanguardistas, desafiadoras de padrões vigentes. É paraibano de Areia, cidade do brejo paraibano. Autor de livros e artigos acadêmicos, literários, reportagens jornalísticas e textos virtuais. A entrevista foi realizada na manhã do dia 18 de outubro de 2019, no seu ambiente, no Campus I da Universidade Federal da Paraíba.

 

Maylle Benício – Professor Adriano, gostaria de começar pedindo que falasse sobre sua formação acadêmica.

Adriano de León – Os planos que meus pais fizeram para mim eram para que eu fosse médico. Mas ninguém me perguntou se era isso que eu queria. Em uma sociedade elitista, como Areia, e em uma família também elitista como a minha, era assim que funcionava. Mas eu não queria medicina, então, fiz vestibular e passei para o curso de Agronomia, perseguindo um foco que desde cedo me acompanhava, as ciências exatas, objetivas. No tempo em que cursei Engenharia Agronômica, as disciplinas das ciências sociais, eu diria até das ciências humanas, eram oferecidas apenas no final do curso, diferentemente de hoje, que são oferecidas no começo. Nessa época, eu estava engajado no diretório acadêmico, o que me levava a pensar o social. Na ocasião, eu tive contato com a teologia da libertação, através de uma visita que Leonardo Boff fez à Areia. Eu participei da palestra e fiquei encantado com a possibilidade de que uma religião por mim negada (a católica), a religião original dos meus pais – e minha também – que ela pudesse ter essa visão. Então, eu recalquei um pouco isso, deixei para minha vida prática. Contudo, comecei a trazê-la para o movimento estudantil. Fazer movimento estudantil em Engenharia é muito difícil, as pessoas são extremamente conservadoras, a própria maneira de pensar o mundo, a estrutura do mundo, de maneira mecânica.

Confesso que não gostei das disciplinas de ciências sociais que cursei. Eu fui com muita má vontade. A minha maior má vontade foi com a professora de sociologia, pois eu achava que suas aulas eram completamente inúteis. Porém, ela trouxe para uma das aulas, uma professora de Campina Grande, que era do Mestrado em Sociologia Rural: Salete Barbosa Cavalcanti, que depois se tornaria minha orientadora. Ela falou sobre uma coisa que nós engenheiros não víamos, que era a presença do homem. A gente só via a construção, a plantação. Mas não víamos o camponês. Aquilo me deixou completamente fascinado. No final da sua apresentação, ela fez um convite, chamando os alunos de Agronomia para prestar a seleção do referido mestrado. Manifestei interesse, ela, então, me deu o folder e orientações de como participar da seleção.

Acabei deixando de lado e fui fechar o ciclo, que era terminar o Curso de Engenharia. Depois de formado, já atuando na profissão, não esqueci das palavras da professora. Comecei a olhar para as pessoas, para a situação da empregada doméstica da minha casa. Resolvi aceitar o desafio. Procurei uma amiga que tinha formação em ciências sociais, hoje é dona do Engenho Triunfo. Foi ela quem me emprestou os livros, que para mim, à época pareciam escritos em um idioma desconhecido. O primeiro livro que li foi “As regras do método sociológico”. Achei Durkheim uma leitura muito espinhosa. Deixei-o de lado, fui para Weber, depois Marx, autores que entendi perfeitamente. Só então, retomei a leitura de Durkheim, para a qual tive que aplicar toda minha disposição disciplinar; eu havia escolhido aquilo, era o que deveria fazer, e o faria bem feito.

O meu projeto falava da situação do camponês face à modernização das estruturas agrárias no Brejo da Paraíba. Fui aprovado no processo de seleção, a partir dali, iniciava-se uma nova fase na minha vida. Sob orientação da professora Salete, fiz a dissertação. No quarto capítulo, faço uma regressão para meu avô, que era camponês, dono de engenho lá em Areia. Eu lembrava que ele tinha muitas práticas mágicas. As filhas católicas, minha mãe e minhas tias, detestavam porque meu avô me pegava e me levava para ver essas práticas mágicas, que eram práticas de benzedura nos animais, nas colheitas. Eu fiquei louco por isso, e o quarto capítulo da dissertação foi dedicado a esse tema, que se estendeu para minha tese de doutorado, pura magia.

 

Maylle Benício – Com o mestrado, estava iniciado nas ciências sociais. Quando começou a ser professor na área?

Adriano de León – Quando eu estava terminando o mestrado, a UEPB resolveu ser de fato uma Universidade, porque antes ela era como um “colégio”, só tinha ensino, sem pesquisa. Foi feito um convite à Universidade Federal da Paraíba, campus Campina Grande, para indicar professores visitantes, com o objetivo de preparar a UEPB para pesquisar, em todas as áreas. Chamaram-me para a área da sociologia. Defendi minha dissertação e uma semana depois, estava na condição de professor visitante na UEPB, com a missão de criar pós-graduações na Capes e no CNPq, objetivo desenvolvido no período de 3 anos. A UEPB virou uma universidade, contando com os professores visitantes, e, ao mesmo tempo, procurou qualificar seus professores mais antigos com mestrado e doutorado. Eu estava no meu mundo, dando aula.

 

Maylle Benício – A docência parece ser muito importante para você. Antes, já havia sido professor?

Adriano de León – Sim, eu fui professor de inglês, porque desde cedo eu quis me desvincular das obrigações financeiras da minha família. A família tradicional que paga as coisas para você, mas você tem que ser um peão deles. Eu comecei dando aula em escolas públicas, mas depois eu me transformei em um microempresário e abri uma Cultura Inglesa em Areia. Eu tinha 17 anos na época. Quando fui para Campina Grande fazer o mestrado, tive que abandonar meu lado empresarial e passei a viver de bolsa.

Quando me tornei professor da UEPB, adquiri uma boa condição de vida. Nesse período, prestei uma seleção de doutorado, para, sob a orientação da minha orientadora de mestrado, fazê-lo em Manchester, Londres. Fui contemplado, mas não pude ir, porque como professor visitante, não tinha direito à licença. Mas, em sendo precavido, eu tinha um plano B, o novo doutorado na UFPE. Fiz a seleção, fui aprovado, então criei alguns arranjos com a UEPB, podendo organizar meus horários em conformidade com as atividades do doutorado. Foi bem puxado, até porque nesse período nasceu meu primeiro filho. Como fui educado em escola alemã, sempre fui muito determinado e disciplinado, eu estudava no ônibus de Campina para Recife, quando eu chegava em casa à noite, ainda ia cuidar de Matheus. Quando ele dormia, eu ia escrever.

            Nesse meio tempo, prestei dois concursos simultaneamente, um para auditor da Receita Federal e outro para professor do Departamento de Ciências Sociais da UFPB. Fui aprovado nos dois, o dilema se tornou a escolha. Optei pela docência, contra, obviamente, a opinião de todos, considerando que o salário da Receita era muito superior. Ao chegar ao Departamento, tive dificuldade de adaptação, sentia uma certa resistência por parte dos meus colegas pelo fato de eu vir de uma área bem diferente, viam-me como um ser híbrido. Nunca gostei dessa sensação. Mesmo tendo mestrado e doutorado em sociologia, sempre aparece alguém para apontar o dedo e dizer: “tu és engenheiro, né? Não é sociólogo”. É uma persistente ideia de “raça pura”, bem eugenista, algo que sempre procurei combater.

Finalmente terminei o doutorado, nasceu o meu derradeiro filho, viemos todos morar em João Pessoa. Pronto, minha vida se estabilizou. Aos poucos fui conquistando meu espaço nas ciências sociais. Fui escolhido como coordenador do Curso, e foi nessa época que eu percebi um desperdício de boas produções dos alunos, sem ter como divulgá-las. Fiz um curso de webdesign só para criar a CAOS, revista que foi encampada pela Coordenação do Curso. Além disso, creio que minha contribuição também se deu nos temas que passei a estudar, que até então eram exíguos: Foucault, o pós-estruturalismo e os estudos de gênero. Assim, passei a ser conhecido como professor e pesquisador destes assuntos. Em 2000, fui convidado pelo professor Jacob Carlos Lima, a integrar o corpo docente do Programa de Pós-graduação em Sociologia, onde pude ampliar minha atuação.

 

Maylle Benício – O nome da revista é bastante interessante. Em “metamorfoses” o poeta romano Ovídio trata da origem do mundo a partir do caos, e já nos primeiros versos da obra escreve: “Antes do mar, da terra e céu que tudo cobre, a natureza tinha, em todo o orbe, um só rosto a que chamaram Caos: massa rude e indigesta” (OVÍDIO apud CARVALHO, 2010). Seja na mitologia, na literatura ou na ciência o conceito de caos, embora versátil, não deixa de vincular-se à não-forma, à desordem de elementos. Na condição de idealizador da revista “CAOS”, o que o motivou a dar-lhe esse nome?

Adriano de León – Quando eu estava estudando religiosidade e sistemas simbólicos, conheci a teoria do caos, ou seja, tudo no Universo se desestrutura para se reestruturar. Juntei com a ideia de Bourdieu sobre a “estrutura estruturada, estrutura estruturante”, e principalmente com a ideia foucaultiana, de que as coisas não repousam, elas não têm paz, não se reproduzem, se desfazem, se recompõem de maneiras aleatórias. Daí surgiu o nome. Talvez os leitores ainda não tenham percebido que o símbolo da Revista é um fractal.

Devo dizer que o projeto da Caos não foi um projeto solitário, o professor Artur Perruci, que na época dividia comigo a Coordenação do curso, teve participação importante. Os alunos gostaram muito da ideia de ter um espaço para publicação de seus textos, uma coisa em que todos poderiam ler, sem que precisasse imprimir. Isso, inclusive, foi um desafio para mim, porque os cientistas sociais, na época, ainda eram avessos às publicações eletrônicas.

Atualmente, estou planejando fazer outra revista eletrônica. Desta vez, não será acadêmica, apesar de estar nos portais e ter ISSN, por causa do currículo. O nome será Desqualificada, porque é uma revista de escrita livre, cujo fundamento é: você pode falar de algo, com base no pensamento de alguém, mas não necessariamente dentro das regras, então você faz um artigo bem grande e no final você coloca como referências: “fontes de inspiração, por exemplo, Lacan, Freud, Weber” e pronto. O fluxo acadêmico é anticriativo; se você faz sua tese e apresenta para uma banca, mesmo que seja uma tese brilhante, você será cobrado em relação aos autores. Vão te perguntar de onde vieram as ideias. É claro que tirei da minha cabeça, porque eu fiz uma pesquisa, entrevistei pessoas. Mas não é suficiente, precisamos da muleta. Só quem pode fazer dessa forma é Foucault, povo chique que pôde fazer livros e mais livros sem citação alguma. Marx citou alguém? O que nos pedem, e nós pedimos aos nossos alunos, é uma escrita colonizada. Por isso, a Desqualificada será uma revista de livre escrita. Creio que um dos motivos da Revista Caos ter entrado em colapso foi o exagero de prescrições necessárias para a publicação, muito padronizada. No caso da Desqualificada, teremos uma volta ao ensaio. A única proibição dessa revista será a de que você não coloque uma ideia que não é sua dizendo que é sua. Somente essa. Que seja uma escrita sua, uma escrita de si. Se ela é uma escrita de si, ela também é antiplágio, você pode escrever em cima da ideia de outra pessoa, mas aquele texto é seu.

 

Maylle Benício – O caos, e sua “estética de risco”, de imprevisibilidade, como conceituou Norbert Bolz (1998), também está presente em sua vida enquanto pesquisador?

Adriano de León – Está! Completamente! Minha vida é marcada por ciclos de oito anos, descobri isso na psicanálise, são ciclos de ruptura que também são ciclos caóticos, anunciadores de uma nova ordem. Eu preciso vivenciar o caos na minha vida, o turbilhão, as mudanças, porque elas serão boas e eu não devo resistir. Essa lição eu tento passar aos alunos: “entrem no caos”. Isso em tudo. Por exemplo, nas minhas pesquisas atuais em gênero, o caos está muito presente. Ou seja, você não deve vivenciar o gênero, a imposição de um gênero indesejada sobre você, essas tensões são o caos.

 

Maylle Benício – Em seu currículo lattes encontra-se uma frase irreverente e incomum ao que se observa na maioria dos currículos inseridos na plataforma: “Busco uma escrita livre e uma vida menos controlada por regras”. O que ela nos comunica?

Adriano de León – Uma aluna que fez uma pesquisa sobre os professores do Departamento de Ciências Sociais, questionou-me sobre o porquê de não ter encontrado nada no meu currículo lattes. O que tem lá é o mínimo que a Academia exige de mim, porque eu não vou perder tempo alimentando burocracia. Minha verdadeira vida está fora do lattes. Eu penso que a Capes, CNPq, Lattes são estruturas que não foram pensadas para as ciências sociais, ciências humanas. Elas são estruturas que engessam. A minha batalha atual é contrária a tudo isso: escrita livre, criativa.

Se um aluno está com dificuldade na escrita, peço-lhe que escreva livremente o que está pensando. Recomendo que deixe os autores de lado. Quando terminar o texto, volta e vai identificando a quem pode atribuir as ideias, se a Marx, Durkheim, Weber etc. Assim o texto fica muito mais autoral. Eu respeito muito quem faz capítulo de tese com revisão bibliográfica, porque é um esforço muito grande, mas não acho que contribua muito para a escrita da tese, porque se acaba perdendo o objeto.

 

Maylle Benício – Como é possível viver sob menos regras?

Adriano de León – Aprendi na convivência com grupos que eles não conseguem existir sem regras, sejam conservadores, liberais e progressistas. Eles só existem por causa das e para as regras. Eu não consigo enquadramento nesses grupos, e nessa forma de pensamento. Eles oferecem propostas maravilhosas no primeiro dia, bem abertas; no segundo dia, vêm as regrinhas. Tanto é que nunca participei de sindicatos. O único conjunto de regras ao qual me submeti foi participar de um partido político, influenciado por minha geração, ativa em processo político, eleições e tudo mais. A minha vida é uma vida sem regras.

 

Maylle Benício – Graduado em Engenharia Agronômica, mestre em Sociologia Rural, doutor em Sociologia, tendo realizado posteriormente um mestrado em Antropologia. Qual reflexão faz dessa heterogeneidade em sua trajetória acadêmica?

Adriano de León – A trajetória não é simplesmente acadêmica, é, antes de tudo, uma trajetória de desejos, então eu vou atrás deles. Depois de onze anos como doutor em sociologia, eu voltei para fazer um mestrado em antropologia porque havia um desejo. Na verdade, dois. O primeiro era voltar a ser estudante, estava cansado de somente dar aulas. O segundo era apresentar à Academia, de maneira regular, uma escrita criativa em forma de dissertação. A experiência foi espetacular. Atingido já a maturidade, pude fazê-lo. Por exemplo, no exame de qualificação, exigiram-me que eu entrasse nas regras, coisa que não atendi, defendi a dissertação sem as regras. A única coisa que segui foram as regras da ABNT, feito por outra pessoa. No texto mesmo, não tem citação, quando necessário coloquei umas notinhas de rodapé com a seguinte mensagem: “se você quiser saber mais sobre isso, vá ler o autor tal”. A banca achou que foi prepotência da minha parte. Mas, a ideia de um autor não está em uma única obra, atravessa toda sua produção.

Entre o doutorado em sociologia e o mestrado em antropologia, passei por uma dessas crises relacionadas às mudanças dos ciclos, outro desejo me levou a mergulhar fundo na psicanálise. As tintas psicanalíticas estão presentes em meus textos atuais, principalmente na dissertação de antropologia. Fiz a formação em psicanálise, creio que por volta de 2007, e agora estou colocando em prática, atuando como terapeuta, atendendo na clínica de psicologia da UFPB, conduzindo um projeto chamado “escrita de si”, voltado para ajudar alunos e alunas.

 

Maylle Benício – Poderia pontuar os desafios e ganhos nessa “trajetória de desejos”?

Adriano de León – A maior dificuldade é a não aceitação do híbrido. Eu já estava bem consolidado no Departamento de Ciências Sociais, quando migrei para o Departamento de Psicologia. As pessoas devem se perguntar: “O que um cientista social – outrora engenheiro – está fazendo no meio dos psicólogos?” Passei um tempo na berlinda, mas sempre soube me defender, depois entro no discurso do curso mesmo e pronto.

De ganhos, posso dizer que utilizo todas as experiências que tive. Nesta fase em que estou, eu uso as coisas que aprendi desde a agronomia até a antropologia, que foi o último curso. Às vezes recebo críticas de que isso é algo meio enciclopédico, coisa rasa, mas eu não creio nisso. É exatamente o contrário. Ao dar aulas, tenho à minha disposição um repertório de conhecimento e práticas da antropologia, que eu posso com facilidade trazer para a psicologia. Creio que a heterogeneidade das experiências me permite ter um raio maior de compreensão do mundo. Mas, não se espante, isso tudo é narcisismo.

 

Maylle Benício – A sua dissertação de mestrado em antropologia discutiu as performances de masculinidades em um clube de bairro de João Pessoa, o “CAC do Rangel”. Como foi realizar o trabalho de campo?

Adriano de León – Foi uma experiência maravilhosa, fiz muitas amizades que permanecem até hoje, apesar de o CAC não mais existir. Todos esses locais de diversão na periferia foram demolidos e ressignificados. Outro clube, também maravilhoso que frequentei à época, foi o Ponte Preta, atualmente chamado Priscila Hall. Essas mudanças aconteceram a partir da necessidade que esses clubes de periferia tiveram em se capitalizar. O Priscila Hall também é frequentado por filhos da classe média, em busca das meninas dos bairros. Isso existia também no CAC do Rangel, porém com menor intensidade, porque o CAC tinha fama de perigoso, mas era tudo folclore. Seus frequentadores eram muito afáveis comigo, muito cuidadosos, um campo perfeito para exercitar minha escrita totalmente pós-estruturalista, com todas as dobras. Uma coisa é estudar Bruno Latour, outra é vivenciá-lo no campo.

 

Maylle Benício – No CAC, você propõe uma nova forma de fazer pesquisa: a “etnocartografia”. Em que ela consiste? A quais resultados te levou?

Adriano de León – Para mim, todo processo de pós-graduação é a reinvenção dos métodos. O fato de a ter nomeada “etnocartografia”, criou uma desconfiança entre alguns colegas. Por que não simplesmente etnografia? Porque não é. Deixa de ser a partir do momento em que eu usei uma teoria, que é cartografia, que diz respeito ao movimento dos sujeitos no território. Ou seja, vou mostrando o processo de como os sujeitos vão territorializando seu território. Isso emergiu do próprio campo. Ao visitar o CAC durante o dia, eu não vi nenhum CAC, ele era um evento que só funcionava em determinados momentos. Eu entrei no local físico, voltei à rua, mas não tinha movimento de CAC, era outra coisa. Então, para construir o método, eu já tinha a noção da arqueologia foucaultiana, mas eu queria introduzir as ideias de Bruno Latour, especialmente a de simetria. Latour foi importante porque trouxe os objetos para a análise. Eu vi a presença da bebida, da chave, de coisas que têm um processo de significância muito grande para os sujeitos. Uma vez portando determinado objeto, eu me ressujeito à outra coisa. Essa inferência foi espetacular, fora a diversão, porque é uma situação de pesquisa em festa.

Em relação aos resultados, eu pontuaria 3 bons resultados: o primeiro a etnocartografia, como método. O segundo: o uso das teorias pós-estruturalistas na antropologia, pouco usada na área. E a terceira foi uma matéria que eu publiquei a favor do CAC, uma devolutiva, achei melhor do que levar uma cópia da dissertação. Escrevi em um jornal de maior circulação na cidade, uma matéria super bonita sobre o CAC, como lá era bom, como foi tranquila minha ida para lá. Eu levei o jornal para eles, eles adoraram, principalmente o diretor do CAC.

Quando o clube foi demolido, e no lugar construíram um banco, tive muita vontade de escrever a respeito, sobre como se tira facilmente a diversão dos jovens. Resta aos seus frequentadores fazer outras coisas para se divertirem.

 

Maylle Benício – Em um artigo, derivado dos resultados da sua dissertação de mestrado em Sociologia Rural, publicado na revista Saeculum (LEÓN,1996), consta a seguinte ponderação: “As práticas mágicas da colheita nunca vão se extinguir, desde que a tecnologia – a ciência que desvenda a magia – e a religião católica – a teologia que elucida estas práticas mágicas – são por si mesmas reprodutoras deste sistema de práticas mágicas tradicionais moldadas e, por vezes, explicadas pela ciência e pela fé”. Como enxerga a relação entre ciência e religião?

Adriano de León – Esse trecho mostra que a magia é como se fosse algo genético, então há uma genética da magia no campo religioso e no científico também. Ciência e religião são parte de um mesmo ramo, mas que por questões de poder vão se redesenhando. Também é a maneira como geralmente concebemos isso, que uma coisa é diferente da outra, que uma banda não toca na outra. Claro que metodologicamente são coisas distintas, pois um é dogma, pressuposto, já concluso, e o outro é o pós-suposto, onde eu tenho que experimentar para concluir. No entanto, o campo das racionalidades é o mesmo. Domínio, as estruturas técnicas do poder, então se eu tenho, por exemplo, no campo religioso, Deus como criador e ordenador de tudo, na sociologia, de Marx por exemplo, eu tenho isso também, na presença de um elemento que domina e ordena, ou seja, o patrão. E lá em Freud, existe a figura do pai. Essas estruturas são muito semelhantes. Mas elas são concebidas de modo que o leitor pense que são diferentes. Temos também um looping, poderíamos pensar que a religião superou a magia e a ciência superou a religião. Mas não é bem assim, pois quando eu vejo, por exemplo, os físicos quânticos com a ideia de que as coisas têm energia, memórias, estou diante de um movimento de retorno à magia.

 

Maylle Benício – A temática da magia está presente em muitos outros trabalhos acadêmicos seus, inclusive sendo tema central da sua tese de doutorado. O esoterismo, ocultismo estão igualmente presentes em sua vida pessoal como pertencentes aos seus esquemas de crenças e práticas, ou restringem-se a interesse de pesquisa?

Adriano de León – Está presente na minha vida, desde muito cedo até hoje. A forma como nasceu o meu interesse é uma coisa bem psicanalítica, porque eu nunca conheci meu avô paterno. Ele já havia morrido quando nasci. Eu sempre perguntava sobre ele, eu conhecia meus outros avós e tinha curiosidade de saber sobre ele, como toda criança. Mas ninguém nunca falava dele. Uma vez perguntei à minha mãe o porquê de ninguém falar a respeito do meu avô paterno e ela me advertiu de que meu pai não se dava bem com ele, alertando-me para não puxar o assunto, sob o risco de irritá-lo. Conversando com um velho morador de Areia, ele me disse: “Tu tens tudo do teu avô”. Perguntei: “Qual avô”? Respondeu-me: “O pai do teu pai”. Contou-me que ele havia levado a maçonaria para a cidade, que mexia com hidroterapia, gostava de coisas esotéricas, e era um homem bem “diferentão”, por quem todo mundo tinha respeito. Então, talvez esse capítulo da minha vida, seja um reencontro, na verdade, com meus dois avôs. Pois o meu avô materno era o camponês que fazia as benzeduras e esse outro era urbano, mas também era um mago que mexia com essas estruturas mais esotéricas.

Além disso, quando eu tinha 18 anos, estava lendo um livro de biologia e dentro dele encontrei um marcador com estas indagações: “Quem é você? De onde você veio? Se você quiser saber dessa história nos escreva”. Era da Ordem Rosacruz. Eu lhes enviei uma carta, e eles me mandaram um material de Curitiba. Sozinho, eu estudei o material e fiz todos os graus. Creio que isso tenha sido para mim um substitutivo da religião. Eu me identifiquei muito, especialmente porque eles defendiam uma noção que eu já havia aprendido com a ciência, de que tudo é energia, tradição que vinha dos egípcios. Eu ainda hoje conservo a influência da Ordem em minhas práticas individuais. Assim também como incorporei os ensinamentos budistas da compaixão, alteridade, do escutar o outro.

 

Maylle Benício – Você frequenta algum segmento do budismo, algum templo?

Adriano de León – Não. Detesto. O mestre dizia: “onde houver mais de uma pessoa reunidas, eu estarei lá”. Eu sou o contrário, eu não estarei lá. Acho que o grupo minimiza, porque enquanto tal, começa a colocar regras. Por exemplo, eu gostava muito da experiência Kardecista, mas os diretores dos centros são muito apegados a regras. Lembro que uma vez, quis participar de uma reunião mediúnica para tentar compreendê-la cientificamente, mas fui impedido. Perguntei-lhes em qual livro da codificação espírita, estava escrita aquela proibição. Responderam-me que era uma “regra da casa”. Isso foi suficiente para me afastar de lá.

 

Maylle Benício – Poderia contar um pouco mais sobre sua sociogênese, sua infância, seus laços familiares.

Adriano de León – A minha criação foi extremamente opressora. Em casa, era tudo na regra, não se podia errar. Formalmente, estudei em colégio administrado por freiras alemãs, muito parecido a um quartel. Essa foi a primeira atmosfera. A mudança se deu com a chegada de uma leva de freiras brasileiras para a escola, puxadas pelo Frei Leonardo Boff, a quem tive a oportunidade de conhecer. Foi essa experiência que me despertou para a ordem afetiva, porque no convívio familiar, as relações eram frias, da mesma maneira que na escola, não podíamos demonstrar nenhum tipo de emoção. Na escola, o riso era sinal de desordem.

As freiras brasileiras trouxeram a mansidão, os ensinamentos de São Francisco, da natureza, do sorriso, de você poder tocar no outro. Eu estava mais ou menos na quinta série. Foi uma experiência ótima. Elas também abriram meus olhos para a questão política na vida. Com elas não se via o outro pelo outro não, como os alemães pensavam, era o outro de carne e osso, a solidariedade. A gente ia para as favelas, assistir às aulas de religião. Obviamente que meus pais odiavam aquilo. Sair daquelas aulas de canto, bem elitistas, como se não houvesse o mundo lá fora, foi bem impactante.  Sentia-me como o príncipe Siddhartha descobrindo o mundo, a pobreza. Só assim pude descobrir onde morava a empregada da minha casa. Areia é uma cidade encrustada nas montanhas, a pobreza fica lá embaixo. Eu sabia que havia ruas pobres, mas não sabia como era a vida deles. Em pouco tempo, estava sendo chamado de comunista e recebendo ameaças dos meus pais para abandonar aqueles pensamentos. Quanto mais eles reclamavam, mais trabalho lhes dava. Para eles, se antes eu era um menino bom, havia me convertido no próprio Satanás por culpa de um “bando” de “freiras comunistas”.

 

Maylle Benício – Pensando na “ordem do afetivo”, como você encara os sentimentos? Em uma autobiografia ao final de um de seus livros (LEÓN, 2014) você escreveu que rompeu com a ideia de amor romântico e passou a ser regido pela ideia de amor anárquico. Como se deu essa ruptura?

Adriano de León – Essa ruptura ocorreu entre 1999 e 2000. Eu estava estudando psicanálise e a professora falou sobre a pouca produção da psicanálise nacional. Resolvi checar. Na época não havia internet, mas existiam os catálogos. Descobri um psicanalista brasileiro chamado Roberto Freire, por quem me interessei. Para ele, a psicanálise tradicional freudiana não dá conta do corpo, o que era uma grande lacuna. A somaterapia de Freire diz que ao reconhecer meu corpo, eu reconheço os meus traumas e como eles afetam meus músculos, meus movimentos. Ele veio a João Pessoa ministrar um curso, o que me deixou encantado, especialmente o seu livro “Ame e dê vexame”. Diria que foi essa experiência que me fez desacreditar no amor romântico. A mensagem do livro é a de que o amor verdadeiro é aquele que permite o nosso bem maior, ou seja, a liberdade. Se eu amo muito uma pessoa e ela se despede de mim, devo deixá-la ir. Diz ele: “Nós somos deliciosamente desnecessários”. Aquelas palavras fizeram uma erosão enorme na minha vida, provocando inclusive uma confusão no meu casamento. Fui mal interpretado como o cara que queria um relacionamento aberto. Estava tão maravilhado com o livro que comprei 10 volumes e distribuí aos amigos.

Alguns deles acharam que eu queria acabar com meu casamento, para poder “soltar a franga”. Eu só estava supercontente com o que havia aprendido. Natural que quando se abala um dos alicerces mais presentes na nossa cultura, que é a ideia do amor romântico, do casamento fechado, às vezes até “blindado”, surjam muitas resistências. Entendi que a amorosidade é um fluxo, ela não é sólida, é líquida.

 

Maylle Benício – Quais seriam os pontos em comum e os divergentes entre o amor anárquico e o amor líquido de Zygmunt Bauman?

Adriano de León – O de Bauman, apesar de pós-moderno, ainda está envolvido pela questão da família, e o anárquico é completamento solto. É um amor psicanalítico, do tipo: “Eu amo. Ponto!”

 

Maylle Benício – Como desvencilhar o amor anárquico de uma perspectiva pessimista, como a de Bauman, que entende que esse tipo de relação líquida é expressão da diminuição da nossa capacidade de estabelecermos laços afetivos realmente fortes na contemporaneidade?

Adriano de León – A diferença está no fluxo. O amor anárquico é meio desordenado, vai seguindo o relevo, por isso muitas vezes ele é tão feroz, um amor que começa a se construir na paixão. É feroz como uma cachoeira, porque o relevo está dizendo para ele cair naquele lugar e com aquela velocidade. Outras vezes ele é calmo como um lago. Contudo, sendo cachoeira ou lago, sempre estará em movimento. São duas condições do mesmo veio de água. As pessoas precisam compreender isso; nas relações amorosas, muitas vezes eu preciso da cachoeira e o outro quer me dar um lago. Se torna, então, necessária uma negociação com o fluxo. Dizer que o amor anárquico nos permite amarmos muitas pessoas, gera um grande problema. Meus amigos reagem com um silêncio constrangedor, ou indagam-me se estou pregando o poliamor? – É isso mesmo!  Repondo-lhes.

Temos que viver em constante estado de amorosidade. Por questões morais e éticas, até pode ser que as pessoas não queiram amar outro, então, começam a amar as coisas, desenvolvendo hobbies, manias, transtorno obsessivo-compulsivo. É uma questão de fluxo, homens que são moralistas e que não podem amar mais de uma mulher por causa da família, começam a comprar carros, direcionam fluxos para as coisas. Só que coisas-amantes-amadas não respondem da mesma maneira que outro ser humano, o resultado, portanto, cedo ou tarde, se tornará negativo.

O maior desafio para se viver o amor na prática, primeiramente é saber amar a si mesmo. E estas coisas se refletem até na arquitetura da casa onde vive o casal. Por exemplo, devem existir na casa quartos separados para o casal. Mas a forma como se concebeu a família e a casa é histérica. Em uma arquitetura fusional, é quase impossível deixar o outro quieto; se um está triste, o outro também fica. Isso é ruim, porque um carrega o outro.

Creio que seja a mesa coisa em relação ao que você me perguntou sobre como é ser um professor que professa uma religião, e estar no campo científico ao mesmo tempo. Se ele compreender que aquilo é um fluxo, ele tem o espaço para a ciência e para a religião dentro do fluxo. A questão é que ele carrega isso. Por exemplo, eu carrego o meu altar para a sala de aula, dizendo de outra maneira, carrego a ciência para o campo religioso.

 

Maylle Benício – Tem como não carregar?

Adriano de León – Tem! É como aquela metáfora que usei. Aqui é a cachoeira, que logo a seguir se transforma em lago.

 

Maylle Benício – Quais são suas maiores influências na vida acadêmica?

Adriano de León – Sem dúvida nenhuma, Michel Foucault foi um marco na minha vida. Porque não foi apenas um marco teórico, mas uma mudança de situação, das minhas práticas, mudanças no plano da existência. Foi como se alguém tivesse me dado uma lâmpada maravilhosa do Aladdin. Eu fiquei mais manso. Eu vinha da Teologia da Libertação, fortemente marxista, orientada pela ideia de revolução, quebra de paradigmas. Foucault me trouxe o micro.

O segundo autor é Umberto Eco. Eu considero “O nome da rosa” um livro sagrado. Representa, talvez, tudo o que me define, na forma como ele vai construindo uma ficção com elementos da realidade.

 

Maylle Benício – As teorias de gênero, teoria queer, anarco-queer também são áreas de destaque em suas produções. O que pensa sobre o desenvolvimento desse campo de pesquisa nas ciências sociais no Brasil?

Adriano de León – É um campo muito fértil. Necessário, porque é também um campo de emancipação, principalmente das mulheres. No entanto eu acho que as discussões de gênero não têm avançado. Veja, já existe a teoria queer para superar as teorias de gênero, mas os e as intelectuais não permitem, o que acaba transformando o gênero em doutrinação, semelhante ao marxismo. Uma panaceia que pode ser usada para tudo. Leio os textos novos de gênero e vejo que não conseguem superar a discussão, é sempre a mesma coisa. Como, então, poderemos dar conta do novo?

As teorias queer são maravilhosas porque elas são situacionais, elas focam o sujeito em si, não é uma macrovisão, o que a faz ser vista por muitos, não como teoria, mas como paradigma.

 

Maylle Benício – Quais são os principais desafios para se pensar questões de gênero na atual conjuntura do país?

Adriano de León – Creio que a primeira coisa é levar as discussões sobre gênero para a escola. Começando com os ciclos básicos. São exercícios de resistência e de pensar os conflitos na escola, porque a maior parte do bulliyng nesse espaço tem razão no gênero. Vivemos um movimento de exclusão da diversidade, como se tudo fosse plano, sem as rugosidades. Um modelo que engloba apenas as diferenças binárias, do tipo “esse é azul e essa é rosa”. É a volta ao discurso religioso dicotômico. Vejo que essa conjuntura obscurantista nos obriga a revisarmos nossos procedimentos teóricos.

É preciso trazer as escolas para a Universidade. Porque, afinal de contas, quem prepara os professores que estão reproduzindo esse discurso obscurantista e dicotômico, somos nós, das universidades públicas especialmente. Para se ter uma ideia, no Curso de Psicologia, é a primeira vez, em trinta anos de curso, que uma disciplina de gênero está sendo oferecida. Se toda a discussão freudiana é uma discussão de gênero e sexualidade, como esse povo não tinha acesso ao tema? Talvez por isso eu tenha ido para lá, os deuses agiram. As minhas disciplinas são lotadas, apesar de serem optativas. Se no geral, as optativas têm em média 3 ou 4 alunos, as minhas têm 50. Se isso acontece em Psicologia, Medicina, Terapia Ocupacional que lidam diretamente com o ser humano, imagina a realidade das ciências exatas.

O maior desafio, em relação à teoria de gênero, é como dar conta do sofrimento de gênero, da violência. Até então, havíamos avançado nesse propósito, agora estamos calados, amordaçados. Circula a informação distorcida de que o ensino de gênero sexualiza as pessoas, nós já nascemos sexualizados. A função principal da teoria de gênero é puxar o lixo que está embaixo do tapete, nas famílias, nas igrejas.

 

Maylle Benício – Qual a diferença entre queer e anarco-queer?

Adriano de León – A teoria queer nasce a partir de uma perspectiva anárquica, que é a perspectiva de gênero a la Judith Butler, na qual o gênero não é biologia, não é comportamento, é performance. E como performance teatral eu posso começar com um papel e terminar com outro. O anarco-queer é uma aplicação política da teoria queer. Movimento de rua, do qual podemos ver um exemplo, na última cena do filme Coringa.

 

Maylle Benício – No Brasil há alguma manifestação do anarco-queer?

Adriano de León – Não com esse obscurantismo político que estamos vivendo. Obscurantismo sobre obscurantismo. Procurando sair de um se valendo de outro.

 

Maylle Benício – Qual seria esse outro?

Adriano de León – A esquerda brasileira, por exemplo. São todos movimentos messiânicos, mas claro que o da esquerda é muito mais abrangente e agregador, enquanto a direita é excludente. Eu militei muito tempo na esquerda e via o quão eram machistas. Fazíamos comícios, nos reuníamos na casa dos amigos marxistas, esquerdistas, enquanto as meninas ficavam na cozinha fazendo tira-gostos e cuidando da louça suja, os meninos bebiam e conversavam na sala.

O movimento anarco-queer tende a se despregar disso tudo. Ele é aquele movimento deleuziano, muito atômico, da microrrevolução, da revolução dos prazeres.

Mas esse obscurantismo que estamos vivendo é necessário para refletirmos sobre nossas práticas. É o caos com sua força transformadora. É claro que é muito difícil vivenciá-lo, porque a primeira coisa que se perde é a esperança, e nele predomina a fúria, só depois vem a tranquilidade, o novo.

 

Maylle Benício – Você acredita que a mudança desse cenário está próxima ou distante?

Adriano de León – A mudança virá rapidamente. Acredito que na primavera de 2020 já estaremos em uma outra experiência.  Esses fascistas, eles mesmos se destroem. Todo movimento fascista é autofágico. Nós não temos oposição, mas nem precisa, porque eles mesmo se destruirão. O problema, porém, é quem irá substituí-los, os liberais – que de liberais não têm nada – do tipo do Partido Novo, Dória, Luciano Huck.

A mudança virá do indivíduo, do contato com a própria sociedade, com as responsabilidades próprias. Até agora, nosso comportamento tem sido de filhos tutelados pelos pais. Nas universidades também houve algumas irresponsabilidades ocasionadas por esse tipo de comportamento.

 

Maylle Benício – Quais são as irresponsabilidades a que se refere?

Adriano de León – Houve irresponsabilidades na gestão das finanças. Um exemplo foi o programa do Ciências sem Fronteiras. O foco foi tecnológico, todo mundo das engenharias e da saúde viajou para fora do país, até quem não queria ir, isso porque tinha bolsa sobrando. No fim das contas não foi produtivo, pela forma como foi arquitetado o projeto e o modo como se desenrolou. Nós das ciências sociais fomos preteridos e ninguém discutiu isso.

Vou tocar também sobre um ponto bem polêmico. Qual foi o grande pecado nosso, das ciências humanas? Termos nos rendido às regras da Capes e do CNPq, regras que foram feitas para as ciências duras. A política de Qualis, de ranqueamento, acabou com a gente, não conseguimos ter publicações em revistas com Qualis A, como o pessoal da área da Física, onde 20 pessoas assinam um artigo de 5 páginas. A nossa escrita é diferente. É mais elaborada, não dá para escrever mais de 3 pessoas, senão há uma briga. Não temos experimentos. Perdemos lugar porque nos rendemos. Eu acho que deveríamos negar tudo isso. Deveríamos ter nosso próprio sistema de ranqueamento, com nossas próprias regras, que seriam: alunos e professores têm que escrever. Mas escrever onde? Onde eles quiserem. Um aluno de doutorado, por exemplo, deveria apresentar 4 escritas, onde quisesse.

Essa coisa toda só serve para causar ansiedade. Para eu estar vinculado a um Programa de Pós-graduação, preciso publicar em uma revista que vai demorar 2 anos para dizer se meu artigo foi aceito ou não, porque são poucas revistas com Qualis A. Cria-se animosidade entre os colegas e despreza-se a formação. Um excelente professor que não publicou em revistas não pode permanecer no Programa.

 

Maylle Benício – Em entrevista recente (FACHIN, 2019), o sociólogo José de Souza Martins afirmou que nas últimas três décadas, os sociólogos brasileiros estiveram “distraídos”, tendo havido “uma ideologização da produção do conhecimento sociológico”. Para ele, o ofício sociológico tem que estar firmado na objetividade, não podendo ter como prioridade o engajamento político. De forma rígida, pontuou: “Houve muita condescendência com esse voluntarismo político que foi muito marcante no Brasil, e que produziu análises que não servem para nada”. Qual seu pensamento acerca dessas considerações?

Adriano de León – Eu concordo em gênero, número e grau quanto à questão, porém não acho que seja distração. É um caminho que a sociologia resolveu tomar no Brasil, ou seja, tornou-se uma sociologia salvacionista. Autores que não se enquadram nesse esquema são malvistos, a exemplo de Bernard Lahire que é acusado de estar psicologizando a sociologia. A verdadeira sociologia, nesta visão, é a das massas, que eu chamo “sociologia do oba oba”, uma sociologia estéril. Para ela, é como se as pessoas sempre se pensassem a partir de alguma coisa externa que não vai ser alterada nunca. Nela, os conceitos são muito rígidos. A sociologia criticada – de forma justa – por José de Souza é uma sociologia que perdeu a razão de si mesma, porque não aprendeu que o conceito é histórico, portanto, reformável. Também a denomino sociologia messiânica.

 

Mayle Benício – José de Souza Martins, ainda na mesma entrevista, critica a discricionária e abusiva utilização de conceitos nas pesquisas em ciências sociais, os quais têm passado a funcionar como bases estruturantes prioritárias dessas pesquisas. Ele afirma que os “conceitos são muletas que usamos para ir demarcando o terreno da análise. Mas a questão central é a do método, do método lógico, do método de explicação conectado com o método de investigação”. Na sua opinião, essa é uma crítica pertinente?

Adriano de León – Ela é pertinente. Porque, por exemplo, quando vou ao campo estudar quilombolas, é de praxe que leve um modelo de certificação dos quilombolas. Se vou estudar gênero, levo um modelo pronto de certificação da mulher. Eu não procuro investigar a fundo se eles são quilombolas mesmo, não no sentido técnico, mas no sentido da existência deles, se estão revestidos do conceito de quilombolas por estratégias para receber políticas públicas do governo ou não, se eles têm uma raiz quilombola mesmo, segundo eles. Esse pressuposto, que é o pressuposto da metodologia profunda, ninguém vai atrás disso, porque a metodologia já vem atrás do que eu já tenho concebido sobre o que é ser quilombola: o homem negro, sofrido etc., e aí fica-se na redundância do “se A = B e B = C, então A = C”, nada se renova. Então, são vários temas usando os mesmos conceitos, que resultam nas mesmas coisas. A crítica dele é pertinente porque a lição básica é a “de quem define é o campo”, tanto da sociologia quanto da antropologia. As ciências sociais, principalmente a sociologia, criticavam muito a ciência política porque era uma ciência não empírica, e elas acabaram se transformando naquilo que criticavam. A sociologia vai a campo só para dizer que foi, pois os resultados já estão previamente definidos no papel.

 

Maylle Benício – O que fazer para reconquistar a nossa legitimidade enquanto sociólogos e sociólogas perante a opinião pública?

Adriano de León – A saída é a sociologia romper com o século XIX, mas não sei se ela teria fôlego para isso. As disciplinas obrigatórias da pós-graduação priorizam os autores do século XIX. É preciso que algum professor traga um autor novo em uma disciplina. Este foi o meu caso, eu pude respirar quando um professor me trouxe Foucault. Se não fosse isso, teria ficado navegando com Marx, Weber e Durkheim que não dão mais conta de nada. É claro que os alunos de graduação em ciências sociais irão precisar desse conhecimento, mas levar os clássicos para outros cursos, como por exemplo, a educação física, não tem sentido, que se faça uma sociologia para educação física, outra para a psicologia etc.

 

Maylle Benício – José de Souza Martins segue outro caminho, para ele, a solução é retornar aos clássicos.

Adriano de León – Ele é saudosista e elitista, defende que “o Curso de Ciências Sociais é para pensadores”. O Estado tem condições de preparar esse pensadores? E para quem?

 

Maylle Benício – Há aproximadamente um ano, Abraham Weintraub, membro da equipe que elaborou o plano de governo do presidente Jair Bolsonaro, e atual ministro da educação, declarou  que “em Israel, o Jair Bolsonaro tem um monte de parcerias para trazer tecnologia aqui para o Brasil. Em vez de as universidades do Nordeste ficarem aí fazendo sociologia, fazendo filosofia no agreste, [devem] fazer agronomia, em parceria com Israel” (INSTITUTO HUMANITAS UNISINOS, 2019). O que dizer aos estudantes de ciências sociais das universidades do Nordeste, diante desse tipo de discurso?

Adriano de León – Esse tipo de discurso é ótimo para a gente, significa que estamos incomodando esse povo. Reconheço que é necessário trazer as melhores tecnologias da agronomia do semiárido, do deserto israelense para cá, mas isso quem faz são os agrônomos. Mas é necessário pensar também nas condições sociais que o homem do campo tem ou vai estabelecer em relação a essas próprias tecnologias, e quem pensa isso é o sociólogo. Várias tecnologias que a agronomia propõe, não dão em nada, porque o camponês não aceita, porque aquilo vai desmantelar o modo de vida dele. Então é necessário um profissional que faça a compensação entre a entrada do trator e o camponês da enxada, e quem faz isso somos nós.

 

Maylle Benício – “A escrita de si” é um projeto de pesquisa e de extensão de sua autoria que busca coletar dados sobre problemas na escrita em estudantes de graduação e pós-graduação. Poderia nos contar como foi o delineamento dessa ideia e em que ponto se encontra o desenvolvimento do projeto? Quais razões podem desencadear problemas de escrita nos alunos? A atual conjuntura pode ser uma delas?

Adriano de León – Eu comecei a ver nos exames de qualificação de dissertações e teses, nas conversas com meus colegas, uma regularidade no que diz respeito ao não cumprimento dos prazos pelos alunos, eles simplesmente não conseguiam escrever. Eu pensei, pode ser um problema estrutural, trazido pelo aluno que não teve acesso a uma boa educação, ou pode ser toda uma estrutura circundante que faz com que essa escrita paralise. Para identificar as razões, seria preciso escutá-los clinicamente. Não deu outra. Por causa disso iniciei o projeto. Eles chegam com dificuldade para escrever suas monografias ou dissertações, com o avanço da terapia, percebo que as razões mais fortes estão ligadas a questões existenciais, tornadas invisíveis por causa do predomínio do técnico. Eles se sentem desamparados. Por exemplo, tenho um aluno de química que precisa terminar a dissertação. Ele pensa: “Tenho que terminar, mas e depois? O que vai acontecer comigo? O desemprego, eu vou perder os meus colegas que estão aqui comigo, eu vou perder a minha casa que é a faculdade, eu vou para o meio da rua.” Parece que não estamos dando conta desse sofrimento. O que antes era um passaporte, é agora um espanto. Como estratégia, inconscientemente passam a retardar o ritual, alongando ao máximo os prazos.

Para você ter uma ideia, já antecipando os meus dados, o fator menos impactante é o técnico de como escrever. A ansiedade é o maior dos problemas. Se o século XIX é o século da histeria, o XX é da depressão, o XXI é o da ansiedade. Ansiedade como o grande causador de todos os males, pois desencadeia outras coisas: angústia, depressão ou mesmo histeria, apatia. Uma grande consequência é a procrastinação. Tem-se uma quadro no qual o aluno pensa: “eu estou ansioso, estou sem energia, a ansiedade tá consumindo toda minha energia, e, então, se eu deixar para o fim e conseguir cumprir no último momento, terei uma vitória, já que eu não tenho vitória nenhuma.”

Quanto ao andamento do projeto “Escrita de Si”, já foi feita a triagem dos alunos, o único problema é que a clínica onde estou atendendo tem poucas vagas. Atualmente atendo 5 pessoas de áreas diversas. A terapia deveria durar cinco sessões, porém, os assistidos não querem terminar a terapia, então, não dispenso ninguém.

 

Maylle Benício – Você já vivenciou bloqueio para a escrita?

Adriano de León – Não, mas os tempos eram outros. Não tínhamos tanto acesso a essas coisas todas, e trabalhávamos muito na restrição, porque a fartura é ruim, às vezes. Uma geladeira muito cheia de coisas pode contribuir para que muitas delas se estraguem. Mas com poucas coisas, tudo será consumido. Vocês são a geração que foi penalizada pelo excesso, por isso que essa onda obscurantista vem agora para a gente poder curtir um pouco nossa escassez. De emprego, de tudo.

 

Maylle Benício – Como professor titular do Departamento de Psicologia da UFPB, membro da Sociedade Brasileira de Psicanálise, o que pensa sobre como as ciências sociais podem ser úteis à psicologia e à psicanálise, e vice-versa?

 Adriano de León – Para mim elas são uma só, a psicologia tem uma vertente que me encanta muito, o trabalho prático, a mudança do indivíduo, por meio das terapias. Mas fragiliza-se muito por não considerar o contexto social. Nem na psicologia social ele recebe a devida importância. O indivíduo é o “reizinho”, então, se consertar o indivíduo, conserta-se tudo. É como se o indivíduo não tivesse raízes, tentáculos com outros indivíduos. Minha missão é fazer as ligações. Eu dou aula aos alunos dos primeiros períodos, então eu martelo nessa tecla: do social, de que nos indivíduos há o social, só não tem o social em um indivíduo que acabou de nascer e foi colocado numa ilha sem nunca ter visto um ser humano, neste caso, o social dele é a natureza. A psicologia tem muito a dar para a sociologia, especialmente nesse lado do “emocional”, de como uma emoção pode fazer com que eu me reconfigure ou me perca completamente, a gente esquece essa dimensão na sociologia. Na psicologia nós temos essa coisa da molécula, que fala, que tem vida também.

 

Maylle Benício – A Revista Caos está completando 20 anos. Para nós, leitores, editores, autores, é um prazer termos no número de seu relançamento, uma entrevista concedida pelo seu fundador. Qual papel a Revista deve assumir neste mundo caótico em que está ressurgindo?

Adriano de León – A Caos tem como trabalhar a baixa autoestima dos alunos, por lhes oferecer um canal. Grandes produções dos alunos nas disciplinas ou em produções individuais ficam em gavetas porque não têm um espaço para serem publicadas. As monografias maravilhosas ficavam engavetadas, não frutificavam. Essa revista foi criada para isso, um repositório para as ideias, e agora mais do que nunca. A resistência também, mostrar que estamos vivos, estamos aqui produzindo, resistindo. Isso é importante para os alunos. Há também a questão pragmática, é uma forma de preencher currículo para eles.

 

Maylle Benício – Professor Adriano, foi enriquecedor entrevistá-lo por quase 4 horas seguidas. Haveria algo a acrescentar para finalizarmos a conversa?

Adriano de León - Só agradecer pelo convite, e agradecer a sua paciência.

 

Maylle Benício – Quem agradece sou eu, em nome da Revista Caos, pela sua disponibilidade em conceder-nos esse produtivo encontro, e o acesso a um pouco de sua história e de suas ideias, um exercício de “escrita de si”.

 

Referências

BOLZ, N. Die Welt als Chaos und Simulation. Munique: Broschiert, 1998.

CARVALHO, R. N. B. Metamorfoses em tradução. 2010. Relatório final (Pós-doutorado em Letras Clássicas) – PPGLC/ Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2010. Disponível em: http://www.usp.br/verve/coordenadores/raimundocarvalho/rascunhos/metamorfosesovidio-raimundocarvalho.pdf. Acesso em: 25/11/2019.

INSTITUTO HUMANITAS UNISINOS: Nordeste não precisa de Filosofia. Frases do dia, 09 abr. 2019. Disponível em: http://www.ihu.unisinos.br/78-noticias/588244-frases-do-dia-09-04-2019. Acessado em: 08/10/2019.

LEÓN, A. A. G. Santos, feiticeiros e doutores. Saeculum, v. 2, p. 115-121, 1996.

LEÓN, A.A.G. O CAC faz você dançar: uma etnocartografia das performances masculinas no bairro do Rangel em João Pessoa - PB. João Pessoa: Marca de Fantasia, 2014.

FACHIN, P. Os sociólogos distraídos e a invasão ideológica nas Ciências Sociais, Entrevista especial com José de Souza Martins. Instituto Humanitas Unisinos, 09 set. 2019. Disponível em: http://www.ihu.unisinos.br/159-noticias/entrevistas/592388-os-sociologos-distraidos-e-a-invasao-ideologica-nas-ciencias-sociais-entrevista-especial-com-jose-de-souza-martins. Acessado em: 08/10/2019.

 

Recebido em: 20/10/2019.

Aceito em: 21/11/2019.

 

DOI: https://doi.org/10.46906/caos.n23.49348.p302-325

 

 



* Doutoranda do Programa de Pós-Graduação em Sociologia/UFPB/Brasil. E-mail: maylle.benicio@gmail.com.

** Professor Titular do Departamento de Psicologia da UFPB/Brasil. Doutor em Sociologia pela Universidade Federal de Pernambuco/Brasil. E-mail: adrianodeleon77@gmail.com.