OS ESTUDOS LEGISLATIVOS NO BRASIL: agendas de pesquisa
LEGISLATIVE STUDIES IN BRAZIL: research programs
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Resumo
Os estudos legislativos formam importante campo de pesquisa da ciência política Brasileira. Este artigo visa apresentar uma breve síntese das principais abordagens sobre o Legislativo nacional, partindo das análises “pessimistas” sobre a capacidade do presidencialismo gerar um sistema democrático minimamente estável, até as análises que focam no papel das coalizões na manutenção desse sistema. Apesar do grande crescimento da produção sobre o Legislativo brasileiro, há ainda alguns elementos que necessitam de maior sistematização de pesquisas, por esse motivo, o artigo termina com a apresentação de algumas dessas agendas de pesquisa e síntese dos artigos que compõem o dossiê que se segue.
Palavras-chave: Estudos Legislativos; Agendas de Pesquisa; Presidencialismo de Coalizão.
Abstract
Legislative Studies constitute an important research field in Brazilian Political Science. This paper aims to present a brief synthesis of the main approaches to Brazilian Legislative power, starting from “pessimistic” analyzes on the ability of presidentialism to generate a minimally stable democratic system, moving to analyses that focus on the role of coalitions in maintaining this system. Despite the growth of scientific publications on Brazilian Legislative power, some elements still require further systematization; therefore, this article concludes by presenting priorities for research in this area and a synthesis of the articles that make-up the following dossier.
Keywords: Legislative Studies; Research Programs; Coalition Presidentialism.
Introdução
Os estudos legislativos no Brasil ganham força a partir de meados dos anos 1980, com os debates sobre a matriz institucional brasileira – presidencialismo, sistema multipartidário, federalismo etc. – e seus efeitos sobre a estabilidade política. Para Inácio e Rennó (2009), é possível observar uma mudança no foco de análise, partindo da interação das macroinstituições que formam o sistema político para a análise da organização legislativa. Isso, na visão dos autores, acaba por gerar duas alterações na área de estudos legislativos
Uma primeira inflexão é temática: parte-se da crítica ao comportamento individualista e paroquialista apontada pelos estudos de então. Esse comportamento derivaria diretamente dos incentivos gerados pelo sistema eleitoral, federalismo, representação proporcional e presidencialismo. Dessa forma, num primeiro momento, as análises sobre o sistema político brasileiro apontavam para uma tendência à paralisia decisória e crise de sistema (LAMOUNIER, 1991), ou acarretaria dificuldades para a aprovação de uma agenda política (MAINWARING; SHUGART, 1997).
Ao se realizar a crítica a essa perspectiva, observou-se que esses incentivos gerados eram mitigados ou relativamente neutralizados pela própria estrutura do Legislativo, isto é, a organização do Legislativo centrada na figura das lideranças partidárias, e a própria centralização de poderes de agenda no Executivo, acabavam por gerar incentivos contrários ao comportamento individualista e paroquial. Dessa forma, a ênfase das pesquisas migrou dos sistemas de incentivos gerados pelas macroinstituições para um foco nas soluções institucionais dos problemas de ação coletiva dos parlamentares. Consequentemente, as análises passam a se centrar nas estruturas de incentivos endógenas ao próprio legislativo, alinhando-se às abordagens neoinstitucionalistas, com forte influência dos estudos legislativos norte-americanos. Essa mudança no foco de análise incentivou uma agenda de pesquisa relativamente ampla sobre a “relação entre os principais agenda setters operando no arranjo político brasileiro: os partidos legislativos e o Executivo” (INÁCIO; RENNÓ, 2009, p. 20).
Cabe notar que as referências às pesquisas sobre o Legislativo norte-americano são formuladas a partir de três modelos de comportamento legislativo e suas respectivas características organizacionais, a dizer: distributivista, informacional e partidária. Grosso modo, o primeiro modelo parte da premissa de que o interesse dos parlamentares é a reeleição. Sendo assim, e percebendo que a ação individual dos parlamentares tem pouca chance de alterar as grandes tendências nacionais,[1] os legisladores utilizariam seus recursos para levar benefícios para suas localidades. Desta forma, a questão básica do modelo distributivista é “quem ganha o que, e à custa de quem?”, em outras palavras, trata da decisão sobre a alocação de recursos para os distritos eleitorais dos congressistas, e como distribuir os custos dessa alocação.
Em resumo, o objetivo dos legisladores é a reeleição, por esse motivo eles buscam, com sua ação, maximizar o seu potencial de votos; para conseguir essa maximização, os parlamentares optam por distribuir benefícios para as suas localidades. Para efetivar esse potencial de ganho de votos, os congressistas adotam quatro estratégias: 1) advertising: estratégias usadas pelos parlamentares para se fazer conhecidos; 2) credit-claiming: reivindicar crédito pelas políticas adotadas[2]; 3) position taking: tomar posição pública sobre matéria de interesse de seus eleitores; e 4) utilização da própria estrutura organizacional do Congresso (em especial, os gabinetes e as comissões) para otimizar a relação com seus eleitores. Dessa maneira, o Congresso estaria organizado de forma a possibilitar esse ganho para os parlamentares. Para tanto, ele se organiza em um sistema de comissões que permite ganhos de troca entre os parlamentares: cada comissão é responsável pelas políticas direcionadas para áreas temáticas específicas, e serão ocupadas por parlamentares com grande interesse naquela temática (pois afetam seus respectivos distritos eleitorais), consequentemente, a posição da comissão será extrema (já que ela é composta por outliers) e homogênea, isto é, distante da posição do plenário. Como todas as comissões apresentariam essas características, haveria uma espécie de acordo tácito no qual nenhum parlamentar de uma comissão interferiria, ou se colocaria contrário, ao que foi decidido em outra comissão. Assim, o interesse dos parlamentares estaria garantido: alocação de políticas para seus distritos, permitindo-lhes ganhos eleitorais e reeleição (MAYHEW, 2004).
Uma segunda abordagem é a informacional, nela se parte do princípio da incerteza, ou seja, o congressista tem que tomar decisões sobre múltiplas políticas que são complexas e demandam experiência e conhecimento técnico. Entretanto, conseguir essa expertise implica em custos. Dessa forma, a organização do Congresso visa gerar incentivos para a criação dessa expertise, isto é, a habilidade de gerar informações relevantes para diminuir a incerteza na tomada de decisão. Todavia, não é apenas gerar essa expertise que importa: o arranjo institucional deve incentivar o parlamentar, que se especializou, a compartilhar as informações geradas. Assim, a geração de expertise, acompanhada do compartilhamento de informações, acaba por beneficiar a todos os parlamentares, uma vez que diminui a incerteza na tomada de decisão (KREHBIEL, 1991).
A partir disso, aponta-se as comissões como agentes informacionais responsáveis por gerar expertise e compartilhar informação com o plenário – visando diminuir a incerteza para a tomada de decisão –, e é por causa da especialização de seus membros, que as comissões têm poder. Com isso, a previsão sobre a organização do Legislativo para a teoria informacional pontua: 1) as comissões não serão compostas por altos demandantes ou membros com preferências extremas, uma vez que isso acarretaria ineficiência informacional, e as escolhas favoreceriam demasiadamente seus membros; 2) há possibilidade, excepcionalmente, de membros com preferências extremas comporem as comissões, porém apenas se os custos de especialização desses membros forem menor que a perda informacional que acarretam; 3) a comissão será heterogênea em sua composição, garantindo maiores ganhos informacionais; 4) haverá regras restritivas, reforçando as comissões frente ao plenário, garantindo primazia para as primeiras, uma vez que, com isso, se gera maiores incentivos para a especialização (KREHBIEL, 1991).
Por fim, a última abordagem é a partidária. Aqui, parte-se da consideração de que os partidos políticos são criações endógenas, que garantem ganhos internos – atuam para resolver problemas de ação coletiva, facilitam a formação de coalizões, criam estímulos de cooperação – e externos – ganhos eleitorais provenientes da aprovação de boas políticas e boa reputação. Dessa forma, os partidos gerariam ganhos eleitorais e de organização do Legislativo. Diferente da perspectiva distributivista, a partidária aponta que o parlamento pode influenciar as grandes tendências nacionais a partir de uma ação coletiva. Assim, os parlamentares teriam condições de agir para influenciar suas chances de eleição, não apenas distribuindo recursos para suas localidades, mas também atuando sobre as tendências nacionais, mas para isso eles precisariam de uma organização que estimulasse um comportamento coordenado e cooperativo. É nesse ponto que entra o partido (COX; MCCUBBINS, 1993).
Outro ponto a se destacar da perspectiva partidária é que nela, mesmo o parlamentar mantendo como objetivo se reeleger, sobressai-se a vantagem para o congressista ser reeleito junto ao partido majoritário, uma vez que esse partido tem capacidade de controlar a agenda e, ao exercer esse controle, consegue evitar que matérias, que irão dividir os votos do próprio partido, cheguem ao plenário – mantendo assim a boa imagem do partido –, e garantindo a preservação do status quo frente a políticas indesejáveis.
Assim, o partido majoritário, ao ocupar os principais postos no Legislativo, consegue o controle da agenda e, com esse controle, consegue realizar um bom número de ações legislativas, aprovando quantidade significativa de políticas públicas, o que, consequentemente, lhe garante boa reputação. Como a reputação do partido é um bem coletivo para todos os seus membros, com ela aumenta-se a chance do parlamentar se reeleger, e do partido conseguir novos congressistas. Consequentemente, o partido majoritário se mantém nessa condição e pode distribuir os principais postos para seus membros mais antigos (COX; MCCUBBINS, 1993).
Nesse arranjo, as comissões seriam espaços privilegiados para o controle da agenda que chega ao plenário. Por esse motivo, a ocupação delas se daria de forma a garantir que os membros que apresentassem lealdade aos interesses da maioria do partido as ocupassem. Assim, a permanência em determinada comissão se relacionaria com a capacidade do parlamentar conseguir barrar ou aprovar os projetos, de acordo com os interesses do seu partido (COX; MCCUBBINS, 1993).
Por fim, um último ponto a se destacar dessa abordagem, é o papel da liderança. Como agente central nessa configuração, ela deve possuir recursos para premiar ou punir os comportamentos dos legisladores do partido, garantindo, assim, a disciplina no comportamento parlamentar, o que ajudaria a manter a reputação do partido. Por isso, a figura do líder deve possuir prerrogativas superiores aos outros membros, e ele deve estar disposto a usar esses recursos para induzir a disciplina em seus membros. Uma vez que o comportamento individualista acabaria por acarretar resultados sub-ótimos para todos os membros, essa forma de organização acaba por ser preferida pelos legisladores (COX; MCCUBBINS, 1993).
Essas três abordagens acabam por nortear, em diferentes medidas, o desenvolvimento dos estudos legislativos brasileiros, uma vez que em diversos momentos o comportamento distributivista dos parlamentares é realçado, em outras, o papel dos líderes e o comportamento disciplinado dos parlamentares é destacado e, em menor medida, o papel informacional da organização legislativa brasileira é discutida pela literatura.
Outra inflexão apontada por Inácio e Rennó (2009) é o foco dos estudos legislativos brasileiros nos poderes de agenda do Executivo, o que acaba por aproximar a produção brasileira da produção europeia sobre o legislativo. Esse tipo de análise gerou estudos em que “a relação Executivo-Legislativo é abordada, predominantemente, pelas conexões, empiricamente verificáveis, entre a formação de governo de coalizão e o padrão de atuação dos agenda setters no Legislativo” (INÁCIO; RENNÓ, 2009, p. 21).
Desta forma, abre-se uma agenda de pesquisa sobre a atuação do Legislativo no processo decisório nacional, focando na organização interna do próprio Congresso Nacional e no impacto da estrutura institucional sobre o comportamento parlamentar.
Este dossiê busca trazer contribuições sobre essa questão, focando trabalhos que versem sobre 1) a organização legislativa, 2) o sistema de comissões das casas legislativas brasileiras, 3) o papel das emendas individuais ao orçamento sobre o comportamento dos legisladores, 4) acompanhamento do processo legislativo de políticas específicas, 5) o comportamento legislativo, 6) a relação do Executivo com o Legislativo, e 7) impacto das regras eleitorais sobre a representação parlamentar.
Os Estudos sobre o Presidencialismo Brasileiro: da crítica ao sistema de governo ao presidencialismo de coalizão
Desde a redemocratização, o debate institucional brasileiro se debruça sobre o sistema de governo adotado e o seu funcionamento, isto é, sobre o presidencialismo e a sua lógica de operação no país. Uma primeira vertente de trabalhos sobre o sistema de governo no Brasil e na América Latina apontava uma visão “pessimista” sobre as possibilidades de funcionamento do presidencialismo no país, e o impacto negativo desse sistema sobre a possibilidade de consolidação da democracia recém-inaugurada. Em trabalho que sintetiza os argumentos dessa abordagem, Linz e Valenzuela (1997) aponta como elementos centrais para a incompatibilidade do sistema presidencialista com o processo de democratização dos países latino americanos:
1) A dupla legitimação, isto é, tanto o Executivo quanto o Legislativo contam com uma legitimação eleitoral própria e independente, o que, em caso de preferências distintas em cada um dos poderes, levaria a uma crise. Não haveria instrumento institucional para responder a esse tipo de crise;
2) O caráter de soma zero das disputas presidenciais. Esse tipo de eleição de ganhador único, acabaria por reforçar a polarização da disputa política. Entretanto, essa polarização não teria seus efeitos limitados ao momento eleitoral. Na abordagem de Linz e Valenzuela (1997), a disputa presidencial acabaria por tornar as coalizões raras e insatisfatórias para seus membros;
3) A rigidez dos mandatos. No presidencialismo, tanto o Executivo quanto o Legislativo têm seus mandatos com tempo fixo, ou seja, eles não dependem um do outro para se manterem nos cargos: depois de eleitos, presidente, deputados e senadores (para ficarmos apenas nos cargos eletivos do nível nacional) ocupariam seus cargos por quatro e oito anos (sendo que esse último período só é válido para senadores). Desta forma, nem governo nem parlamento teriam estímulos para cooperar um com o outro. Pelo contrário, ao ter como foco a próxima eleição, os líderes presentes no Congresso buscariam não fortalecer o governo vigente, objetivando ter melhores condições de disputa presidencial seguinte.
Sendo assim, nessa abordagem o presidencialismo acabaria por apresentar características pouco afinadas com um processo de democratização: seria um sistema altamente conflitivo, no qual os poderes Executivo e Legislativo acabariam representando maiorias distintas, o que causaria um conflito entre agendas. Esse tipo de conflito não possuiria nenhuma forma institucionalizada de resolução democrática, uma vez que ambos os poderes gozam de legitimidade eleitoral própria. Essa situação de crise poderia acabar em uma crise de regime, levando os atores políticos envolvidos a buscar saídas não-institucionais para a paralisia que tomaria conta do Estado, isto é, golpes de Estado e implementação de regimes autoritários.
O conflito entre o Executivo e o Legislativo seria potencializado pela existência de sistemas multipartidários. Com um sistema partidário desse tipo, dificilmente o partido do presidente eleito conseguiria maioria das cadeiras no Legislativo, o que tornaria a tarefa de aprovar sua agenda mais complicada. Ao analisar os presidencialismos na América Latina, Mainwaring e Shugart (1997) apontam que tratar todos os sistemas presidencialistas como iguais, seria um problema dada a grande variedade desses sistemas. Desta forma, os autores apontam dois elementos que impactariam no funcionamento dos sistemas presidenciais, a dizer: i) os poderes constitucionais do presidente, e ii) os poderes partidários.
A primeira dimensão se refere aos poderes que os diferentes países dão aos seus chefes do Executivo, para que esses atuem no processo legislativo. Dentre esses poderes, destacam-se: a) poder de decreto; b) poder de veto; e c) iniciativa exclusiva. Já os poderes partidários se referem à relação entre o chefe do Executivo e o sistema partidário. Para tanto, essa dimensão depende do a) número de partidos e grau de fragmentação do sistema partidário e b) disciplina partidária – sendo que esta é vista como derivada do próprio sistema eleitoral.
A partir dessas duas dimensões, os autores vão classificar o Executivo brasileiro como proativo, uma vez que ele possui fortes poderes constitucionais (poder de decreto, iniciativa exclusiva e veto, porém o veto é considerado fraco) e baixos poderes partidários, devido à alta fragmentação e indisciplina dos partidos políticos brasileiros.
Seguindo essas leituras, as coalizões seriam insatisfatórias, instáveis ou seriam coalizões ad hoc para cada política específica da agenda. Em suma, não seriam “verdadeiras coalizões”, uma vez que não se baseariam em um apoio sistemático e contínuo ao governo. Por um lado, Linz e Valenzuela (1997) aponta o próprio caráter da disputa presidencial e a legitimação eleitoral independente do Executivo e do Legislativo como elemento central para a ausência de coalizões estáveis no presidencialismo latino-americano. Por outro, Mainwaring e Shugart (1997) aponta a alta indisciplina partidária – causada pelo sistema eleitoral –, e a fragmentação partidária como a causa para a dificuldade de se formar coalizões estáveis no Brasil. Nesse caso, se formariam coalizões ad hoc para políticas específicas da agenda, nas quais o Executivo negociaria recursos de patronagem com os parlamentares em troca do apoio desses a políticas presentes na agenda do próprio Executivo.
Deve-se a Abranches (1988) o termo presidencialismo de coalizão. O autor parte da constatação da heterogeneidade brasileira e da necessidade de as instituições do país serem adaptadas a esta heterogeneidade, o que permitiria incluir as minorias significativas no processo decisório, aumentando assim a adesão e legitimação do próprio regime democrático. Desta forma, ele não vai apontar os traços do nosso sistema de governo como algo a ser combatido, mas sim, que o funcionamento desse sistema político necessitaria de maiores cuidados, uma vez que ele seria instável.
Em outras palavras, a conjunção entre presidencialismo, multipartidarismo, eleições proporcionais, federalismo e bicameralismo, seria adequada para uma sociedade heterogênea – do ponto de vista econômico, regional, cultural e étnico. Mas esse arranjo necessitaria de atenção, pois se apresentaria como instável. Seria esse o “dilema institucional brasileiro”: como adequar as instituições a uma sociedade heterogênea e garantir o funcionamento do Estado.
O presidencialismo de coalizão foi o resultado dessa construção. Desta forma, o presidencialismo brasileiro se caracteriza por formar coalizões de governo. Elas são supra majoritárias, ou seja, na maioria das vezes, são formadas bases de apoio ao governo que superam a maioria simples (50%+1). Para Abranches, essa característica indicaria que a formação da coalizão de apoio ao governo obedece duas lógicas: a partidária e a regional. A primeira seria expressa pela busca de formar maiorias partidárias no Congresso. Já a segunda se mostraria na ocupação regular de ministérios por membros de determinados estados e regiões.
Assim, o termo presidencialismo de coalizão surgiu para caracterizar um traço apontado como específico do Brasil: a existência de um presidencialismo apoiado por grandes coalizões. Mas, segundo ao autor, esse sistema é
caracterizado pela instabilidade, de alto risco e cuja sustentação baseia-se, quase exclusivamente, no desempenho corrente do governo e na sua disposição de respeitar estritamente os pontos ideológicos ou programáticos considerados inegociáveis, os quais nem sempre são explicita e coerentemente fixados na fase de formação da coalizão (ABRANCHES, 1988, p. 27).
Ainda que tenha apresentado o termo presidencialismo de coalizão, Abranches (1988) ainda tem uma visão de que esse sistema aponta para crises. Apesar de não ver nenhuma evidência de que o parlamentarismo seria uma melhor solução – como é o caso de Linz e Valenzuela (1997) –, o autor reforça a imagem de um sistema propenso a crises. Foi apenas a partir de trabalhos empíricos realizados a partir da década de 1990, que esse julgamento negativo do presidencialismo de coalizão começou a ser mitigado.
Limongi e Figueiredo (2006) e Santos (2003) apontam que o presidencialismo foi adotado no Brasil nos seus dois momentos democráticos (1945-64 e pós-1988), porém com resultados muito diversos. Ao questionar o que estaria na base dessa diferença, os autores apontam os poderes de agenda do presidente como um dos elementos marcantes. Desta forma, Santos (2003) indica que no presidencialismo pré-1964, o Executivo só contava com o uso da patronagem para a construção do apoio legislativo. Em outras palavras, naquele período o Executivo dependia exclusivamente da distribuição de postos no governo para construir sua base de apoio. Esse quadro muda no pós-1988. Nesse período, além da patronagem, o Executivo também conta com fortes poderes de agenda. Desta forma, a utilização estratégica desses poderes e da patronagem acabam por permitir ao Executivo uma melhor construção e coordenação de sua base de apoio.
A iniciativa exclusiva em assuntos administrativos e orçamentários, como iniciar projetos de Emenda Constitucional, editar Medidas Provisórias, leis delegadas, Pedido de Urgência e controle sobre o orçamento, acaba dotando os Executivos do período pós-1988 de uma maior capacidade de ação no processo decisório (LIMONGI; FIGUEIREDO, 2006).
Somada a esses poderes de agenda, outra diferença entre os dois períodos é o papel dos líderes partidários. Nesse caso, no período pós-1988, os líderes partidários da Câmara e do Senado apresentam maiores prerrogativas no processo legislativo, permitindo a eles uma maior capacidade de coordenação de suas bancadas. Cabe aos líderes, a) representar suas bancadas em questões procedimentais (pedidos de urgência, pedidos para votação nominal, a assinatura do líder corresponde ao tamanho de sua bancada), b) determinar a pauta em conjunto com a mesa diretora, e c) indicar os nomes da bancada que ocuparão postos na estrutura da casa legislativa. Além desses poderes, o líder partidário também é o responsável pela negociação com o Executivo. Sendo assim, é a partir dessa negociação que os parlamentares podem alcançar os recursos de patronagem.
Com essa nova configuração, na qual o Executivo e os líderes partidários possuem maiores poderes para intervir no processo decisório, o funcionamento do presidencialismo de coalizão se dá de forma mais coordenada. Os parlamentares, mesmo buscando a maximização eleitoral – por isso perseguiriam objetivos paroquialistas e individualistas –, acabam por atuar em um Congresso cujo desenho reforça o papel partidário. Desta forma, mesmo que o sistema eleitoral estimule a utilização de estratégias individualistas por parte dos parlamentares, a própria organização legislativa possui um arranjo que estimula a cooperação e o comportamento partidário dos congressistas. Isso se reflete nas taxas de disciplina partidária encontradas no período pós-1988, sempre superiores ao do período anterior. Observa-se que a taxa de sucesso e a de Dominância do Executivo também é superior no período mais recente (LIMONGI; FIGUEIREDO, 1998, 2006; SANTOS, 2003).
Em suma, o presidencialismo, adotado em 1988, permitiu uma maior coordenação e indução de cooperação, devido aos poderes de agenda do Executivo e à centralização da organização interna das casas legislativas. Todavia, cabe ressaltar que essa cooperação só é possível a partir da estratégia adotada pelos atores políticos, isto é, tanto o Executivo tem que estar predisposto a negociar com as lideranças partidárias quanto estas também devem estar dispostas a entrar na negociação e apoiar a agenda construída pela coalizão.
Desta forma, cabe destacar outro ponto sobre a questão de agenda: no presidencialismo de coalizão, a agenda identificada como do governo é construída a partir da negociação do presidente com os líderes partidários que fazem parte da base de apoio do governo, ou seja, a agenda proposta é a agenda da coalizão. Por esse motivo, Freitas (2016) chama o sistema de presidencialismo da coalizão, para reforçar a imagem que a agenda apresentada pelo Executivo, já é a agenda negociada com a coalizão de governo. Se levarmos em conta o caráter majoritário das coalizões, então, pode-se dizer que a agenda que sai do Executivo também é a agenda da maioria do parlamento. Desta forma, a imagem, antes traçada de conflito de agendas entre o Executivo e o Legislativo, é mitigada pela própria lógica de coalizões.
As características da coalizão também importam para o resultado político. No que tange às coalizões, três características são destacadas pela literatura: 1) número de partidos que fazem parte da coalizão, 2) heterogeneidade ideológica da coalizão, e 3) proporcionalidade entre o tamanho legislativo e o tamanho no governo. A partir dessas três dimensões, pode-se apontar que quanto maior o número de partidos, maiores são os custos para manter a coalizão. Da mesma forma, quando há grande heterogeneidade ideológica na coalizão (reunindo partidos da direita e esquerda parlamentar), ou seja, quanto maior a divergência entre os membros da coalizão, maiores serão os custos para mantê-la. Por fim, uma menor proporcionalidade entre os tamanhos legislativos e governamentais potencializa a insatisfação dos membros da coalizão e as fissuras na mesma (BERTHOLINI; PEREIRA, 2017).
Estudos Legislativos: agendas de pesquisa
Como apontado anteriormente, os estudos legislativos no Brasil caminharam para uma ampla cobertura do funcionamento do Legislativo nacional, saindo de uma análise focada nas instituições externas ao próprio poder legislativo, e chegando a análises que priorizam fatores institucionais endógenos ao próprio Legislativo. Entretanto, alguns elementos do funcionamento do legislativo ainda carecem de maiores estudos. O dossiê que se segue pretende contribuir com esses estudos.
Um dos elementos da organização legislativa, que ganhara destaque na agenda de pesquisa nos últimos anos, foi o sistema de comissões. Segundo Araújo (2009), as comissões exercem importante papel na organização dos trabalhos nas casas legislativas, a dizer: a) fomentam a especialização dos parlamentares, b) permitem uma maior discussão sobre as matérias, e c) viabilizam o debate político democrático e a formação de consensos. Anastasia, Melo e Santos apontam que as comissões surgiram para facilitar o trabalho do plenário e ser um instrumento de equilíbrio entre o parlamento e o governo: “facultam a produção de decisões estáveis, contrapondo-se, portanto, ao caráter cíclico da regra majoritária e à ameaça de paralisia decisória dele decorrente”, e elas cumprem “importante papéis no exercício da accontability horizontal e vertical, na medida em que facilitam – ou dificultam – a manifestação das preferências dos diversos atores, uns perante os outros” (ANASTASIA; MELO; SANTOS, 2004, p. 103). Desta forma, para uma boa compreensão do processo decisório no Brasil, é preciso ter em conta o papel exercido pelos sistemas de comissões das casas legislativas.
Ao tratar de comissões do Congresso brasileiro, destaca-se a questão do poder conclusivo/terminativo, isto é, o poder das comissões decidirem sobre os projetos sem a necessidade de eles passarem pelo plenário, ou seja, a comissão decide se o projeto será aprovado, emendado ou rejeitado sem ouvir o plenário.[3] É digno de nota, que as comissões das duas casas legislativas possuem essa prerrogativa definida em seus regimentos. Todavia, a atuação legislativa das comissões não se limita a esse poder: mesmo quando não há a utilização do poder terminativo/conclusivo, cabe às comissões estudar os projetos e emitir relatórios sobre as matérias. Esses relatórios apontam a posição da comissão sobre o projeto (aprovar, rejeitar, substitutivo, emendar, prejudicar, arquivar) e servem de base para a decisão tomada em plenário.
Somado ao poder terminativo, também é facultado às comissões propor projetos. Lemos (2008) mostra que entre 1988 e 1994, as comissões do Senado eram responsáveis por apenas 4% das propostas na área social. Porém, sua taxa de sucesso era de 75%, muito superior a atingida por projetos apresentados individualmente (6,49%). Além disso, “nenhuma proposta de comissão foi vetada, enquanto que 22,64% das propostas parlamentares foram parcial ou totalmente vetadas pelo presidente da República” (LEMOS, 2008, p. 356).
Nas duas casas legislativas, o sistema de comissões busca representar de maneira proporcional, os partidos políticos presentes no plenário, garantindo assim uma heterogeneidade nas comissões, semelhante a apresentada pelo plenário das casas. Obviamente, essa proporcionalidade não é perfeita, já que existe a regra de representação de minorias, ou seja, mesmo que não tenham tamanho para estar representados, todos os partidos têm pelo menos uma cadeira em uma comissão. Somado a isso, há também a questão das frações ou sobras que resultam do cálculo para a distribuição de cadeiras nas comissões, o que faz com que “uma ‘fração de vaga’ que sobra em uma comissão seja compensada no preenchimento de outra” (ARAÚJO, 2009, p. 83).
Dessa maneira, nota-se que os sistemas de comissões brasileiros são complexos e estruturados, tendo importância crescente no processo legislativo brasileiro, tanto através da utilização do poder terminativo/conclusivo quanto por serem o local privilegiado da discussão para a formação dos relatórios, que serão votados em plenário. Além disso, as comissões têm forte papel na construção dos acordos legislativos – seja entre os parlamentares, seja entre esses e o Executivo (ARAÚJO, 2009). Por fim, a maneira como são formadas as comissões, respeitando a proporcionalidade entre o tamanho das bancadas e de membros nelas, pode reforçar o papel dos partidos políticos no controle da atividade legislativa (RUBIATTI, 2017a).
Sobre as comissões, há um interesse recente de pesquisa sobre o papel que elas desempenham dentro da estrutura de poder, e no funcionamento do processo legislativo. Pereira e Mueller (2000) apontam que, mesmo o pedido de urgência enfraquecendo o papel das comissões, o Executivo buscaria formar maiorias também nas comissões de seu interesse, e – juntamente com o papel informacional desempenhado pelas comissões – isso explicaria a existência de um complexo sistema de comissões na Câmara dos Deputados.
Segundo Freitas,
As comissões são, costumeiramente, tratadas como sem importância e fracas. Esta é uma visão equivocada do processo legislativo que tem como base uma única regra, a saber: a possibilidade de que, uma vez pedida urgência legislativa para um projeto, esse possa ser retirado das comissões sem deliberação das mesmas (FREITAS, 2016, p. 78).
Entretanto, ao analisar os Pedidos de Urgência, a autora constata que 22% deles são feitos após o projeto já ter passado pelas comissões, isto é, seguido o rito ordinário. Portanto, esses Pedidos de Urgência não visam encurtar o debate legislativo, nem contornar as comissões, mas são um instrumento utilizado para colocar o projeto em pauta.
Amaral, ao estudar os projetos iniciados na 1ª Sessão Legislativa da 50ª Legislatura, aponta que
a maioria das matérias aprovadas tramitou no Legislativo sem urgência, ou seja, 65 proposições (44% delas) tramitaram em regime de urgência e 82 proposições (56% delas) tramitaram sem urgência, a maioria nas comissões. Logo, a pauta de Plenário foi praticamente toda composta de matérias com urgência (AMARAL, 2011, p. 162).
Segundo a autora, as rejeições na Câmara dos Deputados são feitas mais frequentemente nas comissões, isto é, “a matéria rejeitada nas comissões foi 91% superior à matéria rejeitada em Plenário” (AMARAL, 2011, p. 158). Além disso, as aprovações também seriam ligeiramente superiores nas comissões. Por fim, elas também apresentariam importante papel na apresentação de emendas e substitutivos.
Desta forma, Freitas destaca o papel dos Relatores nas comissões como os responsáveis por instruir o processo de discussão e debate dos projetos no interior das comissões. Em suma,
As comissões têm um papel institucional a desempenhar, qual seja, o de avaliar os projetos, deliberar sobre eles, convocar audiências públicas e reunir informação técnica para avaliá-los de forma embasada. O relator, escolhido pelo presidente da comissão, é o ator responsável pela coordenação desse processo. Cabe a ele reunir informações e repassá-las aos demais membros da comissão por meio de seu parecer. Cabe a ele também articular a negociação em torno das propostas. Todos os parlamentares têm a oportunidade de apresentar emendas ao projeto, inclusive o relator, o qual, além de emendar o projeto, pode apresentar um substitutivo. Regimentalmente o relator é um ator chave no processo de tramitação de uma matéria (FREITAS, 2016, p. 81).
Santos, Rennó (2002) e Santos (2002) apontam as diferenças existentes na indicação de membros para as comissões entre os períodos 1946-64 e pós-1988. Neste caso, em contextos onde há menor disciplina, e os partidos funcionam a partir da lógica de facções, e há semelhança entre os poderes dos líderes partidários e presidentes das comissões, a questão da fidelidade partidária ganha importância na alocação dos presidentes das comissões (SANTOS; RENNÓ, 2002). Santos (2002) diz que os fatores levados em consideração para a nomeação de membros pelos líderes partidários é a expertise, e que a questão da lealdade partidária só é significativa no período 1946-64, ou seja, no presidencialismo de coalizão facccionalizado. Em suma,
Em um modelo faccional, os líderes combinam os critérios de lealdade partidária e a qualidade de especialistas em políticas públicas, estipulando um grau mínimo de lealdade para um parlamentar ser indicado para uma comissão muito importante, ao passo que no modelo racionalizado, apenas a qualidade de especialista apareceu como determinante (SANTOS, 2002, p. 257).
Além desses trabalhos sobre as comissões em geral, há também investigações sobre comissões específicas (RICCI; LEMOS, 2004; LEMOS, 2008; LEMOS; RANINCHESKI, 2008; RIBEIRAL, 1998).
Neste dossiê, o artigo “Mudanças institucionais e suas consequências: uma análise do sistema de comissões brasileiro”, de Vitor Vasquez e Géssica de Freitas, aborda a questão do sistema de comissões da Câmara dos Deputados a partir das mudanças institucionais ocorridas no período de 1989 a 2018. Partindo da análise de 27 mudanças ocasionadas pelos Projetos de Resolução da Câmara dos Deputados, os autores apontam que há uma clara intensão dos atores políticos em fortalecer o sistema de comissões dessa casa Legislativa. Desta forma, os Projetos de Resolução tratados indicam: 1) que inicialmente eles tratavam de elementos organizacionais que balizam o procedimento legislativo (como, por exemplo, definição de prazos para o tratamento de matérias), mas com o passar do tempo, passaram a reforçar o poder de agenda das comissões, e 2) há também um aumento no número de comissões, mostrando uma preocupação com a especialização no processo legislativo, e, consequentemente, uma diminuição do número de membros em cada comissão; entretanto, essa diminuição não afetaria todas as comissões da mesma forma, inclusive com comissões mais antigas mantendo ou ampliando o seu número de membros. Os achados do artigo corroboram a bibliografia recente dos estudos legislativos, que apontam a crescente importância das comissões no processo decisório brasileiro (ALMEIDA, 2015, 2019; FREITAS, 2016; SANTOS; ALMEIDA, 2011).
Apesar desse crescimento dos estudos sobre as comissões, pouca atenção tem sido dada ao sistema de comissões no Senado federal: com exceção de Lemos (2008) e Lemos e Ranincheski (2008), os trabalhos que tratam dessa temática, se focam na Câmara dos Deputados. Levando-se em conta o caráter simétrico do sistema bicameral brasileiro, torna-se relevante o estudo das comissões na Câmara Alta.
Ao falar de bicameralismo, duas dimensões apresentadas por Lijphart (2008) são utilizadas para avaliar sua força, a dizer: simetria e incongruência. Em resumo, a primeira se refere aos poderes que as casas legislativas possuem para participar do processo decisório; já incongruência está relacionada à diferença na forma de seleção dos membros de cada casa. Observando essas duas dimensões, Llanos (2002) e Llanos e Nolte (2003) analisam os sistemas bicamerais das Américas. Para realizar esse trabalho, os autores (LLANOS; NOLTE, 2003) formulam nove dispositivos institucionais, que reforçam a incongruência,[4] e seis dispositivos para a simetria.[5] Utilizando essa análise, o sistema bicameral brasileiro é classificado como forte, isto é, conjuga forte simetria com alto grau de incongruência.
Outra questão, a se tratar sobre o bicameralismo brasileiro, é apontada por Neiva (2008): o Senado brasileiro se encontra entre os mais fortes entre cinquenta e um países.[6] Para o autor, a existência de um sistema bicameral está vinculada ao federalismo, mas a força da Câmara Alta está vinculada ao sistema de governo, sendo os senados dos países presidencialistas, os que apresentam maior número de funções e maiores poderes para agir na política nacional.
Mesmo que a justificativa formal para a existência do Senado brasileiro seja a representação igualitária dos entes federados (estados), estudos sobre a produção legislativa dessa casa indicam que a atuação dos Senadores não obedece uma lógica estritamente territorial ou paroquial. Ao contrário, assim como na Câmara do Deputados, o que se observa é um comportamento partidário. Neiva e Soares (2013) mostram, que as variáveis referentes a partidos e coalizão de partidos governantes, são mais relevantes para explicar o comportamento dos senadores em plenário, e que a influência dos governadores não se mostra expressiva, isso tanto para as matérias legislativas gerais, quanto para as de cunho federativo. Consequentemente, “não se confirmou a ideia de ‘uma assembleia composta por vinte e sete estados’ ou de que os ‘barões da federação’ tenham se tornado um ‘quarto poder da República’” (NEIVA; SOARES, 2013, p. 110).
Somado a isso, Araújo (2008) aponta, que as iniciativas presentes no Senado, não são predominantemente paroquiais, mas sim nacionais. Na mesma direção, Ricci (2008), ao analisar as iniciativas legislativas da Câmara dos Deputados e do Senado, aponta que as políticas locais ocupam espaço minoritário em ambas as casas. Em suma, a imagem dos senadores, como tendo uma atuação voltada primordialmente para seus estados de origem, não se sustentaria com os dados sobre comportamento parlamentar e sobre as iniciativas legislativas.
Cabe notar que o Senado tem, além de suas funções de iniciar projetos de lei, a função de câmara revisora. Esse ponto se destaca, uma vez que todo projeto iniciado por deputados federais, Executivo, Tribunais Superiores e outros agentes, que possuem a prerrogativa de iniciativa, começam seu trâmite pela Câmara dos Deputados, colocando o Senado como segunda casa. Rubiatti (2017) aponta que o Senado apresenta significativa capacidade de retenção de projetos, isto é, parte dos projetos que passam por revisão na Câmara Alta, acabam retidos (arquivados por força do regimento, rejeitados, prejudicados). Entretanto, essa casa legislativa não se apresenta como obstrucionista, uma vez que mais da metade dos projetos em revisão continuam seu tramite bicameral (retornam para a câmara de origem, caso emendados ou apresentado substitutivo, ou seguem para a sanção presidencial). Esse tratamento dos projetos em revisão no Senado, varia de acordo com o propositor, sendo os projetos do Executivo aprovados com maior frequência e maior rapidez, enquanto os projetos apresentados por deputados tendem a demorar mais, e a serem retidos com maior frequência no processo de revisão na Câmara Alta (RUBIATTI, 2017, 2018).
No presente dossiê, os artigos de Fabiano da Silva Pereira –“Comissões permanentes e perfil parlamentar: análise sócio-política das comissões temáticas de fiscalização e controle do Senado brasileiro (1993 - 2018)” –, Jonatas Nogueira Aguiar de Souza e Silva – “A Comissão de Direitos Humanos e Legislação Participativa (CDH) no Senado brasileiro: um estudo sobre sua composição (2005-2018)” – e Wesley Rodrigues Santos Ferreira – “Perfil sociopolítico dos membros da Comissão da Agricultura e Reforma Agrária do Senado Federal” –, buscam contribuir com os estudos legislativos a partir do estudo de comissões do Senado Federal. A partir de uma análise da composição de diferentes comissões, os autores apontam tanto características políticas (partidos a que pertencem, posição no eixo governo-oposição) quanto sociodemográficas (gênero, região, escolaridade), além de destacar os elementos de expertise e seniority dos membros de suas respectivas comissões. Assim, a partir dos elementos propostos pela bibliografia sobre comissões no Brasil, os autores buscam mapear a composição das comissões no Senado Federal.
Outra agenda dos estudos legislativos brasileiros se refere à questão orçamentária e às Emendas Individuais dos parlamentares ao orçamento. Nessa linha há, grosso modo, duas abordagens. A primeira linha de análise aponta que as emendas parlamentares são utilizadas como moeda de troca, isto é, o Executivo liberaria as emendas em troca de apoio parlamentar para sua agenda; aqui destaca-se a visão de que essa troca se daria entre o Executivo e parlamentares individuais. Complementar a esse argumento, o uso das emendas seria uma “moeda de baixo custo”, uma vez que o montante de recursos disponíveis para serem emendados por parlamentares, é baixo frente ao total do orçamento (PEREIRA; MUELLER, 2002, 2003). A segunda abordagem parte de uma crítica a essa linha, uma vez que a construção da base de apoio ao Executivo se daria em bases partidárias e não individuais. Desta forma, a liberação de emendas ao orçamento também seguiria uma lógica partidária, não sendo uma “moeda de troca” entre o Executivo e parlamentares individuais (FIGUEIREDO; LIMONGI, 1999, 2002, 2005, 2008). No dossiê que se segue, o artigo de Raul Bonfim e Vitor Eduardo Veras de Sandes-Freitas trata da questão orçamentária, tratando do ciclo financeiro e orçamentário em dois períodos distintos: antes e depois da aprovação da “PEC do Orçamento Impositivo” (2012-2013 e 2014-2017, respectivamente). O trabalho demonstra o domínio do Executivo não apenas no montante final de recursos implementados, mas sim em todo o ciclo, apresentando um complexo cenário no que tange à temática das emendas individuais ao orçamento.
Quando se trata do processo legislativo no Brasil, há forte foco nas iniciativas legais do Executivo e do Legislativo. Entretanto, outros atores também podem iniciar projetos de lei: esse é o caso das Iniciativas Populares de Lei. Apesar de residuais, essas iniciativas acabam por passar pelo trâmite legislativo e, em número muito reduzido, são transformadas em Lei. O artigo de Arley Felipe Santos Bitencourt Amanajás trata da tramitação do projeto de Lei dos crimes hediondo na Câmara dos Deputados. Cabe notar que os trabalhos que tratam da temática das leis de iniciativas populares, em geral, focam nos elementos externos ao próprio processo legislativo (apoios de grupos da sociedade civil, mídia, organizações patrocinadoras etc.). Nesse ponto, o artigo contribui por mudar o foco do olhar para dentro do próprio legislativo, apontando a importância dos líderes partidários, das comissões parlamentares e da “adoção” da iniciativa por grupos políticos no interior do próprio legislativo – uma vez que há problemas técnicos para conferir as assinaturas, o projeto só entra no legislativo porque foi assumido pelo próprio Executivo.
Os dois outros artigos do dossiê tratam dos impactos de elementos vinculados às eleições sobre a Câmara dos Deputados. O artigo de Laís Tojal Coelho de Barros aponta os efeitos da Lei de cotas de gênero sobre a eleição de deputadas, apontando o seu baixo impacto nas eleições para essa casa legislativa. Mesmo não apresentando um forte resultado sobre o número de deputadas federais, o artigo aponta a lei de cotas como um avanço para a participação feminina na política, pois demonstra a desigualdade entre os gêneros e as desvantagens das mulheres na política. O artigo de Rodrigo Dolandeli dos Santos e Marcela Gimenes Tanaka aborda a questão da importância do financiamento partidário nas candidaturas dos Deputados Federais, em especial nos maiores distritos. Além disso, o artigo também mostra que os candidatos com maior capital político, também concentram os recursos distribuídos pelos partidos, e que os candidatos financiados pelos meios empresariais também concentram o financiamento dos partidos.
Desta forma, o presente dossiê aborda a questão do legislativo sobre diversas óticas, seja organizacional, acompanhamento de matérias especificas, perfil, relação com o Executivo ou sua vinculação com características eleitorais, trazendo assim um amplo leque de contribuições para a área de estudos legislativos.
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Recebido em: 29/11/2019.
Aceito em: 15/12/2019.
* Doutor em Ciência Política (Unicamp/Brasil). Professor do Programa de Pós-Graduação em Ciência Política e da Faculdade de Ciências Sociais da UFPA/Brasil. Coordenador do Grupo de pesquisa "Instituições Políticas: Processo Decisório e Controle". E-mail: bcrubiatti@hotmail.com.
[1] Essas tendências seriam formadas pela avaliação positiva do governo e bom desempenho econômico. Em contextos como esse, os parlamentares de apoio ao governo acabariam se beneficiando eleitoralmente (MAYHEW, 2004).
[2] Aqui cabe notar que a política adotada será de governo. Sendo assim, a reivindicação feita pelo parlamentar é sobre fazer o governo adotar determinada política. Outro ponto sobre essa estratégia é que a reivindicação de crédito deve ser crível, o que reforça a adoção de políticas localizadas, uma vez que seria menos crível que um parlamentar médio fosse responsável pela adoção de grandes políticas nacionais (MAYHEW, 2004).
[3] Cabe notar que, em ambas as casas, o plenário pode recorrer da decisão das comissões. Para isso é necessário um requerimento que conte com certo número de apoios, e que seja feito em tempo definido regimentalmente.
[4] São eles: 1) representação de interesses provinciais e minoritários na Câmara Alta; 2) representação populacional em ambas as câmaras, porém com distritos e fórmula eleitoral diferentes; 3) representação de não eleitos; 4) eleições indiretas para senadores; 5) tamanho diferente dos corpos de cada câmara; 6) mínimo de idade maior para a segunda câmara; 7) requisitos mínimos de expertise para a Câmara Alta; 8) duração de mandatos diferentes; e 9) renovação parcial da Câmara Alta (LLANOS; NOLTE, 2003).
[5] Para a simetria são considerados: 1) o Senado pode apresentar projetos de lei, modificar ou negar qualquer legislação; 2) origem indistinta dos projetos de lei em ambas as câmaras; 3) sistema de resolução de desacordos entre as câmaras de natureza bicameral; 4) instrumentos de controle do Poder Executivo semelhantes em ambas as câmaras; 5) participação do Senado em nomeações; e 6) divisão bicameral das tarefas de julgamento político (LLANOS; NOLTE, 2003).
[6] O índice de força elaborado por Pedro Neiva (2008) é composto de vinte e sete indicadores, divididos em quatro grupos: 1) indicadores relacionados com a função de legislar, 2) controlar autoridades, 3) nomeações, e 4) outras atribuições menores. A partir desse índice, o Senado brasileiro atinge 31 pontos, ficando atrás apenas da câmara boliviana.