OBRAS LITERÁRIAS COMO INSTRUMENTO DE ENSINO DE SOCIOLOGIA: a realidade social por trás das páginas de ficção

 

LITERARY WORKS AS AN INSTRUMENT OF SOCIOLOGY TEACHING: the social reality behind the pages of fiction

 

Roberta do Nascimento Mello*

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DOI: https://doi.org/10.46906/caos.n24.50769.p101-115

 

 

Resumo

O presente trabalho tem por objetivo refletir acerca das metodologias e instrumentos de ensino da disciplina Sociologia no IFPB – Campus João Pessoa/PB por meio de obras literárias infantojuvenis, resultado de um projeto por mim desenvolvido na condição de integrante do PIBID – Projeto Institucional de Bolsas de Início à Docência, do curso de Ciências Sociais da UFPB Campus I, coordenado pelos professores Rita de Cássia Melo Santos (DCS/UFPB) e Adolfo Wagner (IFPB), fruto de dezoito de meses de atuação dentro do Instituto Federal, tanto em acompanhamento das aulas quanto com a realização de oficinas de cunho intervencionista junto aos alunos do ensino médio técnico integrado. Para além desta participação, também foi realizado no decorrer do processo de pesquisa, o levantamento do acervo bibliográfico da Biblioteca Nilo Peçanha, a única do instituto, assim como o levantamento das sugestões de leituras contidas no livro didático em uso pelos docentes. O resultado deste trabalho visa contribuir para uma maior efetividade do ensino da sociologia a partir da mediação pedagógica por meio do uso das obras literárias. Por se tratar de um projeto de intervenção na dinâmica do IFPB, para alcançar seus objetivos, parto de um contato direto com o campo, alunos e professores do Instituto.

Palavras-chave: Ensino; Sociologia; Literatura; Educação Básica.

 

Abstract

The objective of the present is to reflect on the methodologies and teaching instruments of teaching sociology at IFPB-campus João Pessoa/PB through children's and youth literary works. The research is the result of a project developed by the author as a member of PIBID (Institutional Project of Scholarships for Teacher Initiation), of the Social Sciences Course at UFPB Campus I. It was coordinated by professors Rita de Cássia Melo Santos (DCS/UFPB) and Adolfo Wagner (IFPB). It is the fruit of eighteen months of work at the Federal Institute, both in monitoring classes and convening workshops with an interventionist bias with students at an integrated technical high school. In addition to this participation, a survey of the bibliographic collection of the Nilo Peçanha Library (the only one of the institute), was also conducted during the research process, as well as a review of suggestions for readings contained in the textbook in use by teachers. The research aims to contribute to greater effectiveness of sociology teaching resulting from the pedagogical mediation with recourse to these literary works. Because it is a project that will serve as a means of future intervention in the dynamics of IFPB, and in order to realize its objectives, it is based upon direct contact with the field and with the students and teachers of the Institute.

Keywords: Teaching; Sociology; Literature; Basic Education.

 

 

Introdução

 

Este trabalho tem por objetivo refletir sobre metodologias e instrumentos de ensino da disciplina Sociologia no Instituto Federal da Paraíba (IFPB/Campus João Pessoa). Coloca em destaque o papel didático-pedagógico de obras literárias infantojuvenis. Pretende-se, que a partir das leituras de livros paradidáticos, se promova discussões pautadas nas temáticas abordadas pela disciplina no ensino médio, que visam, de acordo com as Orientações Curriculares Nacionais (OCN) do ensino de sociologia, “compreender os elementos da argumentação – lógicos e empíricos – que justificam um modo de ser de uma sociedade, classe, grupo social e mesmo comunidade” (BRASIL, 2006, p. 105).

Este artigo resulta de um projeto por mim desenvolvido, na condição de integrante do PIBID - Projeto Institucional de Bolsas de Início à Docência, do curso de Ciências Sociais da UFPB Campus I, coordenado pelos professores Rita de Cássia Melo Santos (DCS/UFPB) e Adolfo Wagner (IFPB). Sua duração estendeu-se por 18 meses, entre agosto de 2018 e dezembro de 2019, período no qual os bolsistas planejaram, desenvolveram e aplicaram os projetos de intervenção pedagógica dentro da instituição, relacionados ao ensino de sociologia.

Ao se apropriar da pedagogia freiriana, a proposta de trabalho visa a uma tentativa de aproximação dos conteúdos dados em sala de aula com a realidade do aluno e com os seus interesses. Freire (1981) nos alerta sobre as palavras e os textos dos livros didáticos que não estão relacionado à experiência de vida dos discentes. Pensando nisso, a proposta parte de três pressupostos: os interesses dos alunos, as necessidades vistas pelo professor em sala de aula e a discussão de temas importantes no ensino da sociologia. Conciliando os pressupostos ao uso de materiais paradidáticos, ou seja, obras chamadas best-sellers do gênero literário infantojuvenil. Por isso, privilegiamos em nossa escolha, obras do gênero que estejam em diálogo com as temáticas da disciplina. E assim, que os títulos possam funcionar como forma de introdução a temas que visam articular conceitos, teorias e realidade social partindo-se de casos concretos (BRASIL, 2006), o propósito é que esses livros sejam bem aproveitados como instrumentos de ensino em sala de aula.

 

1 A leitura de obras de ficção e o ensino de sociologia

 

Pereira (2016) nos fala sobre a importância da formação inicial em elementos de antropologia, ciência política e sociologia para que os estudantes possam formular melhor sua compreensão sobre aspectos presentes no debate público. Isso deve aproximá-los da disciplina Sociologia, e esta por sua vez, deve se aproximar dos alunos, tal como se mostra a preocupação das OCN de sociologia: “deve haver uma adequação em termos de linguagem, objetos, temas e reconstrução da história das Ciências Sociais para a fase de aprendizagem dos jovens – como de resto se sabe que qualquer discurso deve levar em consideração o público-alvo” (BRASIL, 2006, p. 107).

Alguns estudos (ISLABÃO et al., 2016; SARAIVA; KASPARI; WELTER, 2018; PAIVA; PAULINA; PASSOS, 2006) falam sobre o uso de obras literárias infantojuvenis como mecanismo de ensino, mas nenhum deles dialoga diretamente com o ensino da sociologia, estão voltados ao ensino de português e literatura, no qual se enfatiza as exemplificações de gêneros literários e de incentivo à leitura. A falta de propagação do uso de obras literárias como mecanismo de ensino de outras disciplinas da educação básica foi uma das motivações para desenvolvimento deste trabalho, além, claro, do interesse pessoal acerca do tema, e de inquietações que vieram se consolidando no decorrer da minha vida acadêmica e das minhas experiencias em sala de aula, principalmente quando essas experiências foram permeadas de um desejo de ver a construção do senso crítico pelos discentes.

Atualmente, percebemos que muitos livros infantojuvenis, principalmente alguns best-sellers, abordam temáticas sociais que seriam muito enriquecedoras para o ensino da sociologia no ensino médio. Além de ser uma forma de democratizar e facilitar o entendimento dos alunos das temáticas, conceitos e teorias usados nos pressupostos metodológicos da disciplina de ensino de sociologia no ensino médio (BRASIL, 2006), o uso desses livros (lidos e bastante comentados pelos jovens), pode proporcionar uma discussão mais engajada com os alunos em sala de aula, tendo em vista que eles terão como base um exemplo concreto e por eles dominado. Além de fugir da dimensão dos “textos escolares” stricto sensu, que muitas vezes causam nos estudantes certa resistência à leitura.

Como mencionado acima, o projeto foi realizado com alunos do ensino médio e com a participação de professores de sociologia do Instituto, durante o período de dezoito meses. Uma parcela deste período foi dedicada ao levantamento de dados estatísticos sobre o IFPB. A equipe (bolsistas do PIBID[1]) construiu nos primeiros meses um diagnóstico quantitativo e qualitativo do IFPB, com dados acerca do número de alunos, do número de cursos oferecidos, das dinâmicas destes cursos, dos movimentos estudantis presentes no Instituto etc. Posteriormente, o projeto geral se desmembrou e começamos a trabalhar nos nossos interesses pessoais e acadêmicos, ainda tendo como base dois eixos: “educação e sociologia” e o “contexto do IFPB”. Com esse desmembramento, foram criados dois grupos: o “conhecer” e o “expressar”. Ao passo que um grupo se dedicava à investigação sobre os aspectos do Instituto, o outro se dedicava à construção de oficinas com um propósito intervencionista.

Com a divisão de subprojetos fundamentados nos pressupostos acima, cada bolsista se debruçou sobre sua proposta. Em relação à minha proposta, a ideia inicial foi a criação de um clube de literatura dentro do IFPB, no qual os livros seriam lidos, discutidos e relacionados aos temas da disciplina Sociologia, mais precisamente os eixos: gênero, educação e religião, questão indígena; racismo; violência na escola e sexualidade. Esses eixos foram definidos em conjunto, fundamentados nos interesses dos bolsistas.

Infelizmente, a ideia inicial do clube não teve êxito devido ao esvaziamento das oficinas, e com isso, o projeto foi adaptado. Na experiência em sala de aula com os alunos do 2º ano de Controle Ambiental, quando ministrei uma aula sobre gênero como requisito na disciplina de Estágio IV do curso de ciências sociais, o professor supervisor sugeriu a criação de ciclos de debates temáticos, cuja ideia foi bem aceita pelos alunos. Depois surgiu a proposta de aliar o projeto do clube de literatura ao ciclo de debates. Infelizmente, a ideia do ciclo também não logrou êxito. A causa principal do fracasso foi a crise na educação que enfrentamos em 2019, com os cortes nos institutos federais, e as manifestações que este fato desencadeou.

Mas apesar da crise que enfrentamos, a equipe do PIBID discutiu formas de superar os obstáculos e assim dar continuidade aos projetos. Daí, surgiu a ideia da utilização da literatura de cordel.[2]

No entanto, até chegarmos ao ponto de colocar em prática a nova proposta, alguns levantamentos de dados foram necessários, entre eles, dos livros didáticos de sociologia usados nos últimos anos no Instituto, em especial, o livro adotado atualmente como parâmetro para o ensino médio (SILVA, 2016). Algumas questões se mostraram norteadoras para esta pesquisa bibliográfica. Por exemplo, procuramos saber se os livros didáticos de sociologia traziam indicações de leituras complementares que abarcassem os livros de literatura infantojuvenil. Em caso afirmativo, quais eram as indicações e a que temas estavam associados?

 

2 De que ficção afinal estamos falando?

 

Inicialmente, foi realizado um levantamento do acervo bibliográfico da biblioteca Nilo Peçanha, onde fiz várias visitas durante o período de dois meses, mais precisamente, o meu alvo foram as seções de ficção/romance/literatura infantojuvenil. Além de levantamento do acervo, também verifiquei os números de retiradas dos livros, de empréstimos realizados pelos alunos. Após fazer esse levantamento, parti para a segunda fase de coleta de dados nos livros didáticos de sociologia. Foi realizada a consulta nos livros do Programa Nacional do Livro e do Material Didático (PNLD), tanto o que está em voga (2018, 2019 e 2020) quanto os antigos (2011, 2012, 2013 e 2014, 2015 e 2016), de modo a identificar os temas abordados e as indicações bibliográficas trazidas por eles.

Iniciei a comparação buscando encontrar um ponto de ligação entre a temática abordada nos livros e os temas de ensino de sociologia. Esse exercício de comparação teve início nos livros encontrados na biblioteca e nas indicações dos livros didáticos, mas também em uma lista de livros selecionados, cujas temáticas são apropriadas ao ensino de sociologia, tendo em mente a mediação pedagógica que os resultados da pesquisa deveriam promover, no esforço de aproximar os assuntos das aulas aos interesses e realidades do alunado.

Em visita à biblioteca do Instituto, mais precisamente à seção de literatura infantil e juvenil, foi observado um acervo bem diversificado do gênero, desde livros nacionais a livros de literatura estrangeira, contendo obras clássicas e contemporâneas.

 Dentre os títulos catalogados, recebem destaque os livros da autora nacional Paula Pimenta, cujos livros infantojuvenis abordam assuntos sobre adolescência e os seus problemas. As saídas dos seus livros são bem assíduas: cada um contém, em média, 25 empréstimos desde o ano de 2017, conforme registro na ficha de empréstimo. Da autora, o acervo contém 10 livros. Foram também localizados os livros de Verônica Roth, autora estadunidense da aclamada saga Divergente.[3] A saída desses livros é um pouco menor do que os anteriores, mas ainda assim é significativa, a média é de 20 empréstimos por exemplares desde o ano de 2017. Foram encontrados 4 exemplares de cada livro da série na seção. Importante salientar que na consulta aos livros didáticos, especificamente do PNLD em voga, há a indicação do filme Divergente que é uma adaptação do livro homônimo.[4] No livro do PNLD, a indicação do filme em questão é feita no capítulo sobre socialização e controle social, e mais precisamente no tópico sobre interação social.

Também foram localizados exemplares dos livros da escritora estadunidense Suzanne Collins, autora da trilogia Jogos vorazes, da qual localizei exemplares do segundo e do terceiro livro[5]. O filme, adaptação do livro homônimo, também é indicado no livro didático, no mesmo capítulo sobre socialização e controle social, mas no tópico sobre controle social. Analisando este  ponto de concordância entre o acervo bibliográfico da biblioteca do Instituto e as indicações do livro didático usado em sala de aula por alunos e professores, já se consegue visualizar uma abertura à utilização desses instrumentos em sala de aula, principalmente porque são reforçadas pelas indicações das adaptações em formato de filmes.

Próximo à seção de literatura infantojuvenil foi localizada a seção de ficção e narrativa em prosa, onde também se encontraram obras literárias que podem ser abordadas no projeto. Os livros As Brumas de Avalon, uma releitura da história do Rei Arthur, um clássico da literatura; livros de Dan Brown, autor de O Código da Vinci e Anjos e demônios; O menino do pijama listrado de John Boyne, que é um grande referencial utilizado quando os temas abordados são a 2º Guerra Mundial, o preconceito e intolerância religiosa e racial. Ainda nessa seção, identifiquei os livros da série As crônicas de gelo e fogo do autor George R. R. Martin.

O levantamento demonstra que a biblioteca disponibiliza o gênero literário infantojuvenil para os alunos, o que pode vir a facilitar a receptividade deles ao nosso propósito. Ainda mais considerando os números de empréstimos das obras em questão, além de contarmos com a disponibilidade de acesso a vários títulos gratuitamente no Domínio Público e à venda nas plataformas digitais como Amazon, Saraiva, Cultura etc.

No livro didático, foram encontradas ainda duas indicações de leituras nacionais de autores importantes e reconhecidos, como Machado de Assis e Ariano Suassuna. Há também indicações de filmes (nacionais e estrangeiros) que ilustram o tema trabalhado nas unidades. Muitos desses filmes são adaptações de grandes obras literárias, a exemplo do filme 12 Anos de Escravidão[6] que aparece como uma das sugestões para se trabalhar o tema racismo.

 

3 Conectando ficção e ciências sociais

 

Quantas vezes, ao lermos sinopses dos mais diversos livros, encontramos elementos semelhantes aos da sociedade que nos rodeia? Até mesmo as histórias mais fantasiosas têm um elemento ou outro que não difere muito da nossa realidade, seja o jogo político; as relações de poder de gênero, classe e raça; as normas e regras da sociedade etc. Pensar nisto nos convida a refletir sobre um possível uso dos livros de ficção no ensino das mais diversas áreas das ciências humanas, em especial, no ensino da sociologia para a educação básica.

Conectar as histórias contidas nos mais diversos livros de ficção ao ensino de sociologia, a meu ver, pode ser uma maneira de aproximar a disciplina ao aluno, fixar sua atenção nos debates que podem vir a ocorrer nas salas de aula. Sendo assim, trago alguns títulos que podem ser utilizados como instrumentos no ensino da disciplina. Para isto, realizei uma curadoria de alguns títulos seguindo alguns critérios: i) se encaixarem nos critérios de ficção; ii) censura até dezesseis anos; e iii) abordem algum tema que se aproxime da sociologia. Para a seleção dos títulos, realizei uma análise dos assuntos apresentados pelo livro didático utilizado pelo IFPB, utilizei também as anotações de campo, registradas nas aulas que acompanhei durante o estágio. A partir da seleção dos temas, cataloguei-os em subgrupos para facilitar o direcionamento de cada livro para determinados temas. Os subgrupos são compostos por temas afins e que podem se encaixar em uma mesma linha de debate:

Subgrupo 1: socialização, controle social, poder, política, estado e violência;

Subgrupo 2: gênero e sexualidade; e

Subgrupo 3: questão racial, etnicidades, movimentos sociais e direitos humanos.

Para o primeiro subgrupo, selecionei os seguintes títulos:

Divergente da autora Veronica Roth;

O doador de memórias de Lois Lowry;

Olhos d’água de Conceição Evaristo;

O sol na cabeça de Giovanni Martins;

Jogos vorazes da autora Suzanne Collins.

Cada um deles aborda, de uma forma ou outra, seja com elementos mínimos ou com basicamente toda história voltada a tal assunto, os temas selecionados para este subgrupo.

O livro Divergente, o primeiro da trilogia, narra a vida da personagem Tris Prior, que vive em um mundo distópico, onde a população é dividida em grupos a partir de algumas características pessoais. Quando crianças, os sujeitos vivem na mesma “facção” (como são chamados os grupos) dos pais, e apenas ao atingir a maioridade é que podem escolher se permanecem na facção na qual foram criados ou mudam e nunca mais têm contato com a sua família original, pois sua nova família passa a ser a facção escolhida. Veronica Roth aborda o controle social e a socialização de forma bastante interessante e fácil, tanto no modo de criação do indivíduo quanto na sua maioridade, com a sociedade e as autoridades controlando suas vontades, interferindo na escolha da nova facção e, consequentemente, na socialização do indivíduo nesta sua nova “família”.

O doador de memórias também aborda o controle social, cujo cenário também é um mundo distópico. O livro se concentra na história de Jonas, um adolescente que vive nesta sociedade onde não há sentimentos e nem emoções. Os filhos são adotados, diariamente crianças e adultos são obrigados a tomar uma pílula oferecida pelo governo, os adultos trabalham em profissões determinadas pelo governo em uma cerimônia de passagem para a maioridade. Jonas, o protagonista, na referida cerimônia é destinado a ser o novo “guardião das memórias”. Com isso, ele começa a viver na companhia do atual guardião de memórias, que pouco a pouco faz a doação das lembranças a Jonas. São lembranças de um mundo anterior à atual forma de governo, na qual havia sentimentos, com animais, risos e emoções. Este livro tem uma adaptação cinematográfica lançada em 2014. Na versão cinematográfica, a cada vez que Jonas recebe uma memória, ele passar a ver em cores aquilo que estava em preto e branco. O livro ilustra bem o quanto o controle social é nítido em nossa sociedade, nos leva a refletir além do controle social, colocando em foco o poder do Estado. É importante salientar que a adaptação cinematográfica consta entre as indicações dos livros didáticos usados pelos alunos.

Os livros Olhos d’água e O sol na cabeça, ambas obras nacionais, trazem contos que retratam a violência que acomete a população afro-brasileira. O primeiro trabalha mais a violência e a desigualdade, e tem como protagonistas mulheres, enquanto o segundo narra a infância e adolescência de diversos moradores das favelas do Rio de Janeiro.

E por último, o livro Jogos vorazes. Nele, conhecemos Katniss Everdeen, uma garota de dezesseis anos que vive em um mundo distópico, onde a população é dividida em distritos: do um ao doze, sendo o primeiro o mais rico, e o último o mais pobre. Todo ano, o governo da Capital, como forma de punir uma rebelião que ocorreu há mais de setenta anos, promove os Jogos Vorazes, um reality show no qual cada distrito é representado por um casal para, em uma arena, lutarem até a morte, sobrando apenas um casal vencedor. Na história fica nítida a questão do poder do Estado sobre a sociedade.

Para o segundo subgrupo, foram selecionados os seguintes títulos:

Eu sou Malala de Malala Yousalfzai;

Vox de Christina Dalcher;

Um milhão de finais felizes de Vitor Martins;

Conectadas de Clara Alves; e

Viagem solitária de João Nery.

Em Eu sou Malala, somos apresentados à história de Malala Yousalfzai, a pessoa mais jovem a ganhar o prêmio Nobel da Paz, depois de sua luta pelo direito à educação para as meninas do Paquistão. Já em Vox, a autora narra a história da neurocientista Jean McClellan, moradora de uma cidade americana com um governo conservador e religioso que permite às mulheres que falem apenas 100 palavras ao dia. Os livros, Um milhão de finais felizes e Conectadas, ambos nacionais, tratam da descoberta e dos dilemas da orientação sexual, e abordam, junto a isso, o preconceito e a intolerância ao movimento LGBTQUIA+. E por último, o livro Viagem solitária traz a história de vida de João Nery, o primeiro homem transexual do Brasil a fazer a redesignação de sexo.

Para o terceiro subgrupo foram selecionados os seguintes títulos:

O ódio que você semeia de Angie Thomas, e

Eu sei por que os pássaros cantam na gaiola de Maya Angelou.

Em O ódio que você semeia, a autora nos conta a história da jovem Starr, que depois do assassinato do amigo Khalil pelos guardas da universidade em que estudam, começa um movimento contra o genocídio negro nos EUA e contra o armamento dos seguranças da universidade. Em Eu sei por que os pássaros cantam na gaiola, Maya Angelou conta, de forma romanceada, a sua infância e adolescência narrando as diversas dificuldades enfrentadas por ela por conta da sua cor.

Além destes títulos e temas mencionados, muitos outros podem ser adicionados à lista. Como, por exemplo, os livros da autora nigeriana Buchi Emecheta que tem três livros traduzidos e publicados no Brasil: As alegrias da maternidade (2018), No fundo do poço (2019) e A cidadã de segunda classe (2018). Neles, a autora trabalha temas sobre a maternidade, elementos e símbolos da cultura nigeriana, imigração dos povos africanos para a Europa, serviços de assistência social, preconceito racial, estereótipos de famílias etc. Vale ressaltar que os livros dela não foram localizados na biblioteca do Instituto, e nem nas sugestões de leituras complementares do livro didático, talvez, devido ao pouco tempo de lançamento dos livros no Brasil.

Os livros escolhidos têm um ponto em comum, conforme já enfatizado: abordam em seu enredo temas que são objetos dos debates promovidos pela disciplina de sociologia na educação básica. Esses livros, e muito outros não aqui citados, conectam o ensino com a leitura. A ficção se aproxima muito da nossa realidade social, e mesmo estando dentro das páginas, os acontecimentos narrados pelos autores não estão muito distantes daquilo que debatemos, ensinamos e vivemos.

 

4 Na prática: usando a literatura de cordel como instrumento de ensino e avaliação

 

No decorrer das atividades realizadas no IFPB, a equipe teve a oportunidade de trabalhar cada instrumento de ensino na prática de uma sala de aula. No meu caso, fiz o uso da literatura em uma turma de 3º ano de Controle Ambiental. Por razões já informadas, redirecionei o projeto inicialmente pensado como clube de leitura, depois ciclo de debates para atividades práticas com a literatura de cordel, um estilo de literatura popular, constituído e propagado no Nordeste brasileiro (GARCIA, 2015).

Esta atividade prática foi dividida em quatro etapas e aplicada em quatro aulas na turma. A primeira etapa foi realizada no dia 10 de outubro de 2019, com a apresentação do conceito de poder, tema geral a ser trabalhado e embasar os textos em cordel que os alunos viriam a construir posteriormente. A segunda etapa consistiu em uma oficina de construção de cordel, as técnicas de produção e de organização do texto. A terceira etapa foi a da produção desses cordéis pelos alunos, tendo como requisito a narração de uma situação de relação cotidiana de poder, pensando o contexto do próprio IFPB. A quarta e última etapa foi a das apresentações dos textos finalizados: a turma foi separada em grupos de quatro alunos, e neste último dia, cada grupo apresentou a sua produção cordelista.

A ideia geral dessa atividade, que compôs uma parte da nota bimestral dos alunos, foi trabalhar o conteúdo programático de forma a levá-los a aprender sobre as relações de poder de maneira crítica e reflexiva. Aliado vem o diferencial: que os alunos sejam estimulados a produzir algo que vai muito além de uma reposta pronta. O processo de criação do cordel estimulou a criatividade de cada um. Em uma mesma atividade conseguimos trabalhar a temática de poder, o incentivo à criatividade e a cultura popular nordestina a qual o cordel tão bem representa.

 

 

Imagem 1: Cordel criado por aluno da turma de 3º ano de Controle Ambiental do IFPB

 

LAMENTOS DE UM ESTUDANTE

 

Venho aqui pra te falar

Da minha dor e sofrimento

Meu nome é “aluno do IF”

Hoje te mostro meu lamento

Quando entrei não me falaram

Que era pior que casamento

 

Entro de dia e saio de noite

Sem tempo pra respirar

Todo dia é um tormento

Tanta prova pra estudar

Tô pior do que um jumento

Nem tenho tempo pra pastar

 

Cobram demais do estudante

Mas não investem na educação

Gasto 7 reais no almoço

Pra ter que comer no chão

Quando a gente passa mal

Nem tem médico pra tirar pressão

 

Desse jeito não dá pra ficar

Estudando o dia todo

Com medo de reprovar

Tô quase levando a cama

Porque já tô morando lá

 

Mas agora tamo esperto

A gente não vai se calar não

Tamo indo pra rua lutar pela educação

Porque pra provar que aqui só tem cabra macho

A arma é o livro na mão

 

 

 

Imagem 2: Cordel criado pelos alunos da turma de 3º ano de Controle Ambiental do IFPB

 

O anjo disfarçado

 

A história é difícil não dá pra amador não

Quem já se viu professor que é doutor não tem educação

Trata os alunos como boneco que não vale um tostão

Mas se um miudinho pisa no seu calo ele vira o cão

Razão quase nunca tem, mas com um rei na barriga não abre mão

De pequena só tem tamanho, mas de brabeza

É pior do que bicho do meu sertão

 

A história não acabou não, ainda nem chegou a hora boa

Tem um que ela chama de medíocre e tem outros que até chora

Piedade né com ela não, se o aluno falar demais

O pai vai ter que vir pra reunião, querendo ou não

De tanto se desgostar tem aluno que as aulas dela só faz gazear

Mas isso né bom não, já que o bichinho vai ficar de recuperação

E correr o risco de passar mais um ano nesse rojão

 

Aqui os aluno tão ficando é doido

De a domingo a domingo é só fazendo esforço

Porque se fraquejar, um rebanho de coisa vai juntar

Aí os pobre não vai saber pra quem rezar

Mas a vida é assim não é tudo maravilha

Mas pelo menos o mundo podia ter mais alegria

Não tendo aula no dia que a gente não queria

 

 

 

Considerações finais

 

Refletir sobre o uso dos livros de ficção como instrumento de ensino, leva o professor a um esforço de buscar atrair a atenção dos discentes para a sua disciplina. Este artigo propõe um exercício de aproximação dos conteúdos disciplinares com a realidade dos alunos, realidade que, muitas vezes, é narrada nas páginas de obras de ficção. É um elemento a mais para o/a professor/a se posicionar em uma luta por uma maior democratização do ensino da sociologia. Reafirmar a importância da disciplina no entendimento e compreensão do que é viver em sociedade, dos problemas da sociedade, das formas de governo e de poder, e de quem somos, enquanto sujeitos dessa sociedade, em todos os seus eixos, são os esforços que motivam este trabalho.

Além disso, os últimos eventos que têm acontecido no nosso país em relação à literatura, como, por exemplo, o ato explícito de censura que houve na Bienal Internacional do Livro em 2019 no Rio de Janeiro, no qual a Secretaria de Educação do Estado chegou ao evento com ordens de recolher e proibir a exposição de livros ditos como “imorais”. Em sua maioria, os livros que se encaixavam nesta “categoria” eram aqueles que abordavam alguma temática LGBTQUIA+.  Outro fato ocorreu em fevereiro de 2020, quando uma notícia circulou no país, referente ao Memorando 4/2020 da Secretaria Estadual de Educação de Rondônia, divulgando uma lista de obras proibidas de serem usadas pelos professores da educação básica, com ordem de recolhê-las das escolas estaduais. O “índice de livros proibidos” contém 43 títulos, entre eles grandes clássicos da literatura brasileira como Macunaíma de Mário de Andrade, Memórias Póstumas de Brás Cubas de Machado de Assis e outros. A justificativa pauta-se na existência de “conteúdos inadequados para crianças e adolescentes” nos referidos livros.

Esses atos de pura censura que aconteceram nos últimos meses, demonstram claramente que a literatura tem o seu papel na construção do sujeito crítico, afinal ela está sendo alvo de ataques de uma onda conservadora que se alastra pelo país. Sabemos bem que se avaliarmos a história do nosso país, tudo que tem sido censurado é porque representa algum tipo de ameaça aos detentores do poder. O que me leva a pensar que, ao aliar essa literatura com a sociologia, a construção da criticidade do adolescente que está inserido em um sistema educacional no qual as relações de poder dominam, aconteça de forma muito mais fomentada.

Isso tudo nos leva a questionar o próprio papel dessas duas esferas que têm sido ameaçadas historicamente quando nos encontramos em sistemas de governo conservadores como o atual. A sociologia e a literatura não são alvos só por um acaso, há um motivo para o conservadorismo atacá-las tão explicitamente como sempre fez. Pensar nesses motivos é refletir sobre o papel da sociologia e da literatura, é refletir sobre os modos que podemos adotar para driblar estes ataques. Particularmente, vejo que a melhor forma de continuarmos resistindo é cumprir os nossos objetivos de ajudar a construir a criticidade do aluno de hoje que já é o cidadão de amanhã.

 

Referências

BRASIL. Orientações curriculares para o ensino médio: ciências humanas e suas tecnologias. Brasília: Ministério da Educação, Secretaria de Educação Básica, 2006. Disponível em: http://portal.mec.gov.br/seb/arquivos/pdf/book_volume_03_internet.pdf. Acesso em 28/04/20.

FREIRE, Paulo. Professora sim, tia não: cartas a quem ousa ensinar. 18. ed. São Paulo: Olho d’Água, 2007.

GARCIA, Pedro Goés. O cangaço no cordel e a construção de uma identidade regionalista pelo migrante nordestino (1950–1928). 2015. Dissertação (Mestrado em História Social) – Faculdade de Formação de Professores, Universidade Estadual do Rio de Janeiro, São Gonçalo-RJ, 2015.

ISLABÃO, Valéria Alessandra Coelho et al. Leitura literária na escola: uma reconquista. In: IV ENCONTRO DE EDUCAÇÃO MATEMÁTICA NOS ANOS INICIAIS E III COLÓQUIO DE PRÁTICAS LETRADAS, 2016, São Carlos. Anais [...]. São Carlos: UFScar, 2016, p. 1-9. Disponível em: http://www.pnaic.ufscar.br/files/events/annals/1befbde2be143d313164d1887942d997.pdf. Acesso em: 28/04/20.

PAIVA, Aparecida; PAULINO, Graça e PASSOS, Marta. Literatura e leitura literária na formação escolar: caderno do professor. Belo Horizonte: Ceale, 2006.

PEREIRA, Thiago Igrassia. Ensino de sociologia e educação popular: problematizando a escola pública. Inter-Legere. Natal - RN, n. 18, p. 133-149, jan./jun. de 2016. Disponível em: https://periodicos.ufrn.br/interlegere/article/view/10818. Acesso em: 28/04/20.

SARAIVA, Juracy Asmann; KASPARI, Tatiane; WELTER, Marcia Rohr. Da leitura na escola para a leitura do mundo: roteiros de leitura como proposta pedagógica. Caderno Seminal Digital, n. 29, v. 29, p. 32-65, 2018. Disponível em: https://www.e-publicacoes.uerj.br/index.php/cadernoseminal/article/view/30970. Acesso em: 28/04/20.

SILVA, Afrânio et al. Sociologia em movimento. 2. ed. São Paulo: Moderna, 2016.

 

 

Recebido em: 20/02/20.

Aceito em: 29/04/20.

 

DOI: https://doi.org/10.46906/caos.n24.50769.p101-115

 

 

 

 

 

 

 



* Mestranda em Antropologia – PPGA/UFPB/Brasil. E-mail: roberta.mello.21jan@gmail.com

[1] Programa Institucional de Bolsa de Iniciação à Docência do Ministério da Educação. Este programa oferece bolsas a alunos em formação nos cursos de licenciatura para que atuem como estagiários, em escolas públicas da educação básica.

[2] Falarei sobre isso no tópico 4, a seguir.

[3] A saga é uma trilogia comercial voltada para o público infantojuvenil. Compreende os três livros: Divergente, publicado em 2011; Insurgente, publicado em 2012; e Convergente, publicado em 2013.

[4] Lançado em 2014, conta a história de uma adolescente em uma cidade dos EUA. O enredo se desenrola em um cenário distópico, que funciona como metáfora para caracterizar as crises típicas da adolescência, marcada pelas escolhas que precisam ser feitas.

[5] Compõem a trilogia: Jogos vorazes (2008), Em chamas (2009) e A esperança (2010).

[6] Filme britânico-estadunidense lançado em 2013. Adaptação do livro homônimo, autobiografia de Solomon Northup publicada em 1853.