CAOS – Revista Eletrônica de Ciências Sociais. João Pessoa, n. 24, p. 7-10, jan./jun. 2020
DOI: https://doi.org/10.46906/caos.n24.52856.p7-10
Cenas do romance de G. H. Wells, publicado no final do século XIX, caberiam adequadamente para descrever o momento atual. Primeiramente, por se tratar de uma atmosfera que aflige a humanidade, ameaçando instituições seculares que zoneiam as pessoas em seus “quadradinhos”, uns melhores, outros piores. Não importa cor, raça, sexo, gênero, religião, idade... o vírus se interessa por todos. Em segundo lugar, porque a ameaça não é humana, embora seja deste planeta, ainda que para muitos, a potencialização do seu agente epidemiológico seja fruto da antropização: séculos de descaso, exploração, depredação da natureza. O fato é que estamos passando por um período da nossa história que é estranho e perigoso, opaco e incerto. Quadro que se agrava pela conjuntura política que nos envolve, marcada por um governo nitidamente despreparado para gerenciar qualquer crise, apto mais a criá-las. Costumes se convulsionam; muitos apostam que a vida nunca mais será a mesma. Perplexos, assistimos à desaceleração potente de algo que — por definição — não pode parar. O capitalismo recebe golpes: o seu ubíquo arranjo neoliberal sofre uma freada brusca para desespero dos seus pusilânimes mentores. Como diz David Harvey — página 18 do livro que Mylena Serafim resenhou para este número —, “se eu quisesse ser antropomórfico e metafórico sobre isso, concluiria que a COVID-19 é a vingança da natureza por mais de quarenta anos de maus-tratos grosseiros e abusivos da natureza sob a tutela de um extrativismo neoliberal violento e desregulado”.
Intensos são os esforços científicos em busca de respostas. Os dossiês de última hora, fóruns, lives, observatórios de todo tipo pululam por aí, motivados e alvoroçados por uma ameaça, a qual a prática cotidiana do fazer e ensinar ciência pouco tem a oferecer na imediaticidade dos fatos. Nessas horas, professores viram alunos. É preciso aprender; é premente — como uma entidade espiritual — sair de si sem sair de casa. O “remédio” mais eficaz, enquanto o remédio com rótulo não chega, é o milenar toque de recolher, ainda que metamorfoseado com palavras de nosso tempo. Uma erupção do passado nos faz experimentar a sensação de viver na Idade Média: ornamentada barrocamente com bits, bytes, wireless, google, networks etc. Uma singularidade abriu-se no tecido espaço-tempo. Que não a atravesse, oxalá, um ditador.
Apocalípticos e integrados, pessimistas e otimistas à parte, o fato é que a vida continuará — não para os mais de 25 mil brasileiros mortos até o momento da redação deste editorial. Contudo a gravidade de uma pandemia não deve desviar a atenção das endemias, elas se potencializam mutuamente. — O risco, por outro lado, é que com o foco todo voltado para a pandemia, pode-se deixar a “porteira” aberta à passagem de “boiadas infralegais”, como propôs um certo ministro brasileiro do meio ambiente. — Quantas pessoas ainda morrem de câncer diariamente no mundo? Quantas são ceifadas pela desnutrição? Quantas perecem por doenças infecciosas, como a tuberculose, controladas há tempo, mas potencializadas pelas desigualdades sociais? E quantas ainda são vítimas de outros tipos de endemias que grassam nossa sociedade? A exemplo de Clayton Tomaz de Souza — Alph —, aluno da UFPB, assassinado e abandonado em lugar ermo no último fevereiro.
Depois da tempestade virá a calmaria. Para quem? Quem sairá fortalecido desta crise? Quem serão os alienígenas a serem destruídos pelo micro-organismo como na história de Wells? Permitam-me citar mais uma vez David Harvey (p. 21): “[...] o progresso da COVID-19 exibe todas as características de uma pandemia de classe, de gênero e de raça. Embora os esforços de mitigação estejam convenientemente camuflados na retórica de que ‘estamos todos juntos nisto’ [...]”. Pois é, nem tão distópico assim.
*
Apesar de começar este editorial falando sobre essa pandemia — ao custo de sacrificar a coesão, mas não poderia fazê-lo de outro modo —, este número não se dedica ao assunto, com exceção da resenha já referida acima. Inicia-se com o dossiê que resultou do trabalho coletivo de professores e alunos, a partir da implementação de atividades no Programa de Iniciação à Docência do curso de Ciências Sociais da UFPB, no Instituto Federal da Paraíba, campus de João Pessoa. A experiência — coordenada pelos professores Rita de Cássia Melo Santos e Adolfo Wagner — produziu cinco artigos, um relato de experiência e um ensaio visual, além da “apresentação do dossiê” de autoria dos organizadores.
Na sequência, apresenta uma seção especial dedicada ao antropólogo Fernando Giobellina Brumana, falecido no ano passado. Ele é uma referência na antropologia, não só na Espanha e na Argentina, mas também no Brasil, especialmente no campo das religiões afro-brasileiras ou subalternas como as denominava. Suas ligações com a UFPB datam de várias décadas: em cursos que ministrou no Programa de Pós-Graduação em Sociologia ou participação em eventos promovidos pelo Programa de Pós-Graduação em Ciências das Religiões. A seção traz produções de amigos-admiradores do autor e da sua obra, a exemplo do texto de abertura de Fernanda Arêas Peixoto; o texto poético de Vagner Gonçalves da Silva; a resenha de Maristela Andrade e uma resenha de minha autoria. Faço ainda menção à participação de Hortesia Caro Sánchez, viúva de Fernando, que, dos bastidores, deu colaboração inestimável para a composição desta homenagem.
A seção de artigos se inicia com o texto de Ianne Paulo Macedo, no qual ela relata casos de “sujeitos oncológicos” usuários do SUS na cidade de Teresina. Trata-se da análise de dados etnográficos elaborados por ocasião da pesquisa que deu origem a sua dissertação de mestrado em antropologia. Descreve as estratégias adotadas pelos sujeitos frente ao diagnóstico terminal da doença: o recurso à espiritualidade e às medicinas alternativas.
Marco Vinicius de Castro traz um ensaio sobre um tema bastante caro às ciências sociais, ou seja, a relação indivíduo-sociedade, procurando identificar (des)continuidades entre o pensamento sociológico clássico (Marx, Durkheim e Weber) e o pensamento de autores da “antropologia filosófica”, especialmente de Thomas Hobbes, Rousseau, David Hume e Tocqueville. A revisão bibliográfica empreendida leva-o a propor que há uma relação de continuidade e descontinuidade entre os dois grupos no que tange à articulação conceitual entre indivíduo e sociedade.
Na seção de resenhas, Mylena Serafim da Silva escruta o livro recém publicado sobre a pandemia da Covid-19. Uma pequena coletânea de textos produzidos por autores reconhecidos internacionalmente no campo das ciências humanas. Não se trata, meramente de textos sobre a pandemia, senão sobre desigualdades sociais a partir de uma perspectiva crítica em relação ao capitalismo. São textos produzidos por filósofos e cientistas sociais de grande envergadura, como Mike Davis, David Harvey, Alain Birh, Raúl Zibechi, Alain Badiou e Slavoj Zizek.
Em seguida, Maysa Carvalho de Souza entrevista a antropóloga Luciana Chianca, professora, pesquisadora e extensionista exemplar da Universidade Federal da Paraíba. A entrevistada fala de sua trajetória acadêmica, apresenta suas perspectivas sobre o ensino, a pesquisa e extensão, comenta alguns de seus projetos e livros, e por último, exorta a geração de cientistas sociais que está se formando a também extrair o que ela extraiu prazerosa, profissional e existencialmente das ciências sociais.
Fechando o número — expressão de um desejo que se realiza, alimentado desde quando fui editor da Revista Política e Trabalho —, oferece-se aos leitores um pouco da obra da eminente, porém esquecida socióloga britânica, Harriet Martineau. Fábio Liberal nos apresenta uma excelente tradução — elogiada por Terry Mulhall — do primeiro capítulo do livro How to observe morals and manners, publicação de 1838, cujo teor metodológico se antecipa mais de meio século Às regras do método sociológico de Durkheim. Não é só nisso que sua obra é pioneira, o capítulo aqui traduzido afigura-se, apesar das marcas positivistas, como um forte exemplo de relativismo cultural avant la lettre. É fato que a vasta produção da autora merece ser mais conhecida, porém é carente de traduções para nossa língua. Nesse sentido, espera-se que outros de seus textos possam ser traduzidos nos próximos números.
Antecedendo os finalmente, gostaria de registrar agradecimentos a todos e todas que, em tempo recorde e sem escusas, avaliaram os manuscritos com solicitude e competência. Uma menção em destaque a Adriano de León e Terry Mulhall por terem se ocupado com a revisão da língua inglesa.
Por último, peço permissão aos autores para dedicar este número a, além do homenageado especial, todas as vítimas brasileiras da Covid-19 e a Alph, vítima de outras “doenças” que ainda nos matam e nos maltratam impunemente.
Boa leitura.
O editor.
DOI: https://doi.org/10.46906/caos.n24.52856.p7-10