JESSÉ SOUZA E SUA CRÍTICA À “SOCIEDADE ESCRAVOCRATA” BRASILEIRA CONTEMPORÂNEA

JESSÉ SOUZA AND HIS CRITIQUE OF CONTEMPORARY BRAZILIAN “SLAVE SOCIETY”

Maria Clara Lima de Menezes*

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DOI: https://doi.org/10.46906/caos.n25.52905.p207-214

 

 

SOUZA, Jessé. A elite do atraso: da escravidão à Lava-Jato. Rio de Janeiro: LeYa, 2017.

 

 

A elite do atraso, publicado em 2017, é um livro do sociólogo brasileiro Jessé Souza.  A obra faz parte de uma série de trabalhos publicados pelo autor sobre as mudanças nas conjunturas política e social do Brasil contemporâneo. Tem como ponto de partida e chegada o caso do golpe/impeachment da então presidenta Dilma Rousseff e os desdobramentos da Operação Lava-Jato[1]. Amparado pelas teses sobre as relações de poder e dominação presentes na obra de Max Weber, Souza elabora sua análise no livro aqui resenhado, criticando a herança europeia extremamente presente no trabalho dos nossos intelectuais, especialmente do século XX, e os desdobramentos causados pela escravidão na formação da sociedade brasileira, especialmente das suas elites.

Para se ter uma maior compreensão das ideias e análises apresentadas pelo autor nesse livro, é interessante ressaltar que ele é precedido por uma série de outras obras que propõem uma base para a discussão sobre a herança escravocrata das elites brasileiras e suas ramificações nos cenários político e social do Brasil atual. Tal análise se inicia em 2000 com a publicação de A modernização seletiva[2]: uma reinterpretação do dilema brasileiro (SOUZA, 2000), expressado a partir de uma perspectiva dominante que os brasileiros têm sobre si, seja na prática da dinâmica social ou institucional. Já em 2003, temos A construção social da subcidadania: para uma sociologia política da modernidade periférica (SOUZA, 2003) que vai dar embasamento a outro trabalho publicado em 2018, intitulado Subcidadania brasileira: para entender o país além do jeitinho brasileiro (SOUZA, 2018b). O acréscimo de pesquisas empíricas ao trabalho do sociólogo é observado em A ralé brasileira: quem é e como vive (SOUZA, 2009), que recebe críticas direcionadas a sua escolha do termo “ralé”, afinal, esse e outros termos utilizados pelo autor procuram, por meio de um tom provocativo, um alcance social mais amplo, abrangendo as grandes massas e projetando-o ao posto de intelectual público.

Logo após A ralé, em 2010, temos a publicação de Os batalhadores brasileiros: nova classe média ou nova classe trabalhadora? (SOUZA, 2010), no qual o autor assume sua posição em relação ao debate empreendido por diversos intelectuais, entre eles Marcelo Neri[3], André Singer[4] e Ruy Braga[5], sobre a existência ou não de uma nova classe média. Para ele, não existiria uma nova classe média, mas sim uma classe de trabalhadores que batalham diariamente para se colocar no mercado de trabalho em busca de formas de se reproduzir, social e economicamente. Logo depois, em 2015, publica o trabalho intitulado A tolice da inteligência brasileira: ou como o país se deixa manipular pela elite (SOUZA, 2015), no qual tem início o fulcro de seus trabalhos mais recentes, quando ele começa a elaborar sua crítica mais direcionada à visão dominante das elites brasileiras, ainda presas a normas e preconceitos escravocratas e sendo por esses alimentadas.

Em 2016, no calor dos acontecimentos, surge a publicação de A radiografia do golpe: entenda como e por que você foi enganado (SOUZA, 2016), logo depois do golpe/impeachment que sofreram a presidenta Dilma Rousseff e a frágil democracia brasileira. Performado pelas elites do Estado e pelas elites econômicas, as quais o autor chamará na obra aqui resenhada de “a elite do atraso”, donas do poder e forjadas na escravidão.

Essas elites, construídas no período da escravidão oficial, influenciam diretamente os contextos político, social e econômico do Brasil atual, criando consigo uma sociedade regida por normas e hábitos escravocratas.  A partir dessas questões, A elite do atraso é dividido em três partes e tem como objetivo entender historicamente a atual crise brasileira, na qual, nas palavras do autor, há também uma crise de ideias. O revisionismo histórico empreendido por diversos países a partir da ascensão da extrema direita no governo tem sua implementação aqui no Brasil a partir do governo de Michel Temer (2016-2018), continuada e intensificada no governo do atual presidente Jair Bolsonaro. Essa crise de ideias é tratada a partir da imagem que temos de nós mesmos e de qual o real trabalho de nossos intelectuais, tanto na construção quanto na desconstrução dessas ideias. Para o autor, a corrupção como característica principal da política brasileira — ideia essa que também deu subsídio ao golpe de 2016 — é uma fraude que tem como objetivo encobrir a verdadeira realidade. Mesmo com a totalidade que a corrupção assume no nosso entendimento de uma falácia política, ela compõe uma parte, de acordo com o autor, do “atraso” político que reproduz a ideia de Nação.

A origem desse trabalho se debruça sobre a formulação de uma resposta crítica ao livro de Sérgio Buarque de Holanda, Raízes do Brasil, de 1936 (HOLANDA, 2015). Na obra que ficaria conhecida como clássico e o propulsor da sociologia brasileira, uma ideia de nação é construída sobre os pilares de um povo amoroso e com um jeitinho especial, o “jeitinho brasileiro”. Ao passo que propõe uma análise das características fundantes da nação e promove o início do debate social tendo como base o próprio Brasil, propicia também um distanciamento entre a sociedade contemporânea que tem início do século XX e suas bases forjadas no processo de acumulação escravista. O que levará à elaboração de uma falsa, ou melhor, inexistente democracia racial[6] que permeia o trabalho de Gilberto Freyre, contemporâneo de Sérgio Buarque de Holanda.

Quanto à crítica de Souza a ambos, ele parte, principalmente do entendimento de que foi nas classes médias que se construíram as principais formulações críticas a respeito do Brasil. Era (se ainda não é) nessa camada que residia maior parte dos intelectuais e acadêmicos, por vezes com um entendimento restrito da realidade cotidiana da maioria da população.

As três partes da obra também se dividem em três ideias que se complementam e visam dar sustentação à tese do autor: 1) Em A escravidão é nosso berço, o autor analisa como a sociedade colonial e escravista promoveu uma base tanto para as características que viriam a construir o ideal de nação quanto para o próprio crescimento econômico das elites da época e que evoluem tornando-se os donos do poder na atualidade. Com isso, o autor também faz uma crítica a Raymundo Faoro, ao analisar a própria concepção do que é ser brasileiro e quais os elementos que compõem nossa sociedade. Na tentativa de romper com o patrimonialismo trazido de Portugal e a premissa, mesmo que mínima, da existência de uma democracia racial, que faz com que os danos causados pelo empreendimento da escravidão sejam tratados apenas como um problema de violência e não um ativo formador da realidade brasileira. A naturalidade com que esses preceitos logram posição de entendimento comum dentro da sociedade brasileira contribui para o falso entendimento das mudanças correntes nessa realidade; como se o presente não precisasse do passado para ser entendido e o futuro parecesse algo completamente alheio à realidade comum.

No tópico 2, As classes sociais do Brasil moderno, Souza se debruça, recuperando trabalhos citados acima, sobre o entendimento de que as novas classes sociais do Brasil moderno são forjadas pelos ganhos trazidos pela escravidão. E sobre o próprio conflito gerado pela pergunta principal: “Há, de fato, uma nova classe média?”, o que representa um medo das classes médias frente ao avanço de um tipo de mobilidade social dos grupos subalternos — agora com possibilidade de acesso a créditos — e a presença deles em ambientes que, no passado nem tão distante, eram lugares próprios das classes médias e de certas elites. Justamente numa esfera pública que é “colonizada pelo dinheiro” e que representa um arranjo das elites com as classes médias para manterem seus lugares de origem e seu moralismo próprio, passando a criticar qualquer acordo populista e dando “cara” a esse pacto antipopular entre as elites e as classes médias.

A crise brasileira trazida pelo pacto antipopular carece de ideais próprias, sejam reprodutíveis ou fruto de nova criação. É aí que, no tópico 3), A corrupção real e a corrupção dos tolos, o autor aborda a realidade do atraso político e a naturalização da operação Lava-Jato como uma verdadeira arma contra a corrupção. Por essa razão, a necessidade de divisão entre uma corrupção real, fruto do processo histórico, e a corrupção dos tolos. Para que se verifique a naturalização de ideias comuns que serviram como substrato para a fundação de um mito nacional (CHAUÍ, 2000) em união com os meios de propaganda em massa, como é o caso da televisão.

Essa relação se verifica, especialmente quando a grande mídia, na concepção do autor, encabeçada pela Rede Globo, fundada por uma elite e que comanda os rumos do Estado, faz chamada para as manifestações entre 2013 e 2016, que representaram um apelo maior à suposta crise trazida pelo PT. Tudo isso contribuiu para criação de um fosso entre o governo de Dilma Rousseff, as elites, as classes médias e a mídia, que serviu como chave principal para unir também as camadas mais baixas nesse grupo usado como bandeira para a campanha de Bolsonaro em 2018 e seu grande apelo popular.

Durante todo o texto, Souza assume uma postura extremamente crítica dos acontecimentos recentes da história brasileira, até com uma certa ironia e quase negação dos clássicos que serviram como propulsor para a formalização das ciências sociais brasileiras, mas que ao mesmo tempo ajudaram na criação de uma ideia dominante acerca de temas fundantes da nossa sociedade: violência, racismo, trabalho informal, entre outros. A linguagem crítica, mas acessível ao entendimento comum, com usos esparsos de ideias e termos próprios do arcabouço sociológico, une-se a uma imagem pública que o autor possui, aparecendo como alcançável à população e ao debate, ao contrário dos intelectuais duros e de gabinete. Essa linguagem não está presente apenas em seus trabalhos publicados sempre à luz dos acontecimentos — como o caso do livro A radiografia do golpe, de 2016 — e sempre com um título chamativo e provocante, que faz uso de elementos visuais e estéticos que não permitem que nos distanciemos da ideia principal da obra. Mas também se apresenta na postura adotada por ele em situações públicas, como em palestras e entrevistas.

Para alguns, essa posição adotada pelo autor pode servir como mecanismo de aproximação dos leitores com suas obras. Para outros, e para além da primeira ideia, pode parecer como um entendimento rápido da sociedade e a mobilização do público leitor, mas, talvez, sem propiciar os elementos necessários para alterar a realidade de maneira efetiva. Com pouco foco nos dados empíricos e com uma crítica direta e fervorosa aos próprios integrantes das ciências sociais do Brasil, o autor fica ainda mais sujeito a processos de reinterpretações, como também a críticas mais duras.

A elite do atraso critica ferozmente essas elites e seus jogos políticos e midiáticos. Mas também vem servir como uma crítica à forma como as ciências sociais se institucionalizaram e sobre que bases. Entretanto não convém ao autor colocar seus integrantes em caixinhas de “herói” ou “vilão”, mas sim como ponto de partida para pensar a sociologia, a linguagem e a postura de acadêmicos enquanto elementos mais dinâmicos e acessíveis ao público externo à Academia, de onde a maioria deles extraem seus “objetos” de pesquisa.

Suas obras recentes, A classe média no espelho: sua história, seus sonhos e ilusões, sua realidade (SOUZA, 2018a) e A guerra contra o Brasil (SOUZA, 2020), devem servir como ponto de chegada para as obras anteriormente mencionadas. Especialmente a partir dos desdobramentos políticos da pandemia do novo coronavírus (Covid-19), que vem a tornar mais visível a necropolítica[7]   implementada pelo atual governo, bem como a postura dessas elites em relação a essa nova crise humanitária que estamos enfrentando.

 

Referências          

 

BRAGA, Ruy. A política do precariado: do populismo à hegemonia lulista. São Paulo: Boitempo, 2012.

CHAUÍ, Marilena. Brasil: mito fundador e sociedade autoritária. São Paulo: Editora Perseu Abramo, 2000.

HOLANDA, Sérgio Buarque de. Raízes do Brasil. São Paulo: Companhia das Letras, 2015.

MBEMBE, Achille. Necropolítica: biopoder, soberania, estado de exceção, política de morte. São Paulo: N-1 Edições, 2018.

NERI, Marcelo. A nova classe média: o lado brilhante da base da pirâmide. São Paulo: Editora Saraiva, 2012.

NERI, Marcelo (coord.). A nova classe média. Rio de Janeiro: FVG/IBRE, 2008.

NOGUEIRA, Oracy. Preconceito racial de marca e preconceito racial de origem - sugestão de um quadro de referência para a interpretação do material sobre relações raciais no Brasil. Tempo Social, v. 19, n. 1, p. 287-308, 2007. DOI: https://doi.org/10.1590/S0103-20702007000100015. Disponível em: https://www.scielo.br/scielo.php?pid=S0103-20702007000100015&script=sci_abstract&tlng=pt. Acesso em: 30 out. 2020.

SINGER, André. O lulismo em crise; um quebra-cabeça do período Dilma (2011-2016). São Paulo: Companhia das Letras, 2018.

SINGER, André. Os sentidos do lulismo: reforma gradual e pacto conservador. São Paulo: Companhia das Letras, 2012.

SOUZA, Jessé. A guerra contra o Brasil. Rio de Janeiro: Estação Brasil, 2020.

SOUZA, Jessé. A classe média no espelho: sua história, seus sonhos e ilusões, sua realidade. Rio de Janeiro: Estação Brasil, 2018a.

SOUZA, Jessé. Subcidadania brasileira: para entender o país além do jeitinho brasileiro. Rio de Janeiro: LeYa, 2018b.

SOUZA, Jessé. A elite do atraso: da escravidão à Lava-Jato. Rio de Janeiro: LeYa, 2017.

SOUZA, Jessé.  A radiografia do golpe: entenda como e por que você foi enganado. Rio de Janeiro: LeYa, 2016.

SOUZA, Jessé. A tolice da inteligência brasileira: ou como o país se deixa manipular pela elite. Rio de Janeiro: LeYa, 2015.

SOUZA, Jessé. Os batalhadores brasileiros: nova classe média ou nova classe trabalhadora?  Belo Horizonte: Editora UFMG, 2010.

SOUZA, Jessé. A ralé brasileira: quem é e como vive. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2009.

SOUZA, Jessé. A construção social da subcidadania: para uma sociologia política da modernidade periférica. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2003.

SOUZA, Jessé. A modernização seletiva: uma reinterpretação do dilema brasileiro. Brasília: Editora da UNB, 2000.

 

Recebido em: 29/05/20.

Aceito em: 18/08/20.

 

 

DOI: https://doi.org/10.46906/caos.n25.52905.p207-214

 

 



* Graduanda em ciências sociais na Universidade Federal da Paraíba (UFPB/Brasil), participante do Laboratório de Estudos e Pesquisas em Políticas Públicas e Trabalho (LAEPT). E-mail: claraamenezess@gmail.com.

[1] Operação empreendida pelo Governo Federal, a partir de 2014, e que tinha como objetivo a apuração de diversos esquemas de lavagem de dinheiro responsáveis por mobilizar bilhões de reais em propina.

[2] O termo “modernização seletiva” se insere numa discussão que aborda a visão da modernização ocorrida no Brasil, especialmente durante o século XX e a “aposta” na super industrialização como aspecto principal para elevar o país à condição de potência e/ou de grande participante no cenário da economia global que estava surgindo na época, especialmente após a Segunda Guerra Mundial e o que ficou conhecido como “os anos dourados do capitalismo”. No entanto, essa modernização convivia (e convive) livremente com o tido como “arcaico”, criando uma sociedade desigual, tanto em renda quanto em oportunidades.

[3] As relações que seriam da pressuposta nova classe média é expressa por Neri em duas ocasiões. Primeiramente em 2008, numa coletânea de artigos coordenado por ele e organizado pela Fundação Getúlio Vargas (FGV), na qual definem a classe média, analisam as mudanças no “bolo distributivo”, entre outras questões. E publicado novamente em outra ocasião, em 2012. Ver Neri (2008, p. 70; 2012, p. 32).

[4] Duas obras de André Singer, especificamente, se inserem nessa esteira de análise sobre os últimos anos da história política brasileira e a ascensão e derrocada dos governos de esquerda. Para isso, ver Singer (2012, p. 280; 2018, p. 392).

[5] O autor chama o que seria essa “nova classe média” de “precariado”, conceito que é mais bem elaborado em Braga (2012, p. 264).

[6] A visão da democracia racial só acha campo para seu desenvolvimento por causa da ótica do racismo de cor no Brasil, e não de origem como é o caso dos Estados Unidos. O racismo de cor baseia sua separação e preconceito quase que unicamente na cor da pele, entre uma camada mais apropriada e uma menos apropriada, em que, no último degrau, está a população negra. Ver Nogueira (2007).

[7] A necropolítica é discutida de forma mais direta e se popularizou a partir da obra de Achille Mbembe, numa análise que mostra os desarranjos causados pelo pensamento modernizador entre os séculos XIX e XX, e a saída da chave de análise apenas da escravidão oficial entre os séculos XVI e XIX, no Brasil especificamente, e é levado para as novas colônias contemporâneas e que vivem num eterno estado de exceção: racista, violento e autoritário. Ver Mbembe (2018, p. 80).