“NÃO SOMOS FÃS DE CANALHA”: poéticas políticas
afrodiaspóricas na 34ª Bienal de São Paulo

“WE ARE NOT FANS OF SCOUNDRELS”: afrodiasporic
political poetics at the 34th
Bienal de São Paulo

 

Janaina Machado*

 


DOI: https://doi.org/10.46906/caos.n26.57367.p29-54

 

Resumo

O presente texto busca propor uma reflexão crítica a respeito das poéticas políticas da negritude apresentadas na mostra Vento da programação da 34ª Bienal de São Paulo realizada em 2020. Com intuito de analisar essas intervenções artísticas a partir da noção de corpo-testemunha de Stênio Soares, autodeterminação e autorrevelação da escritora feminista Audre Lorde,  noções de  poéticas dos filósofos Achille Mbembe e Édouard Glissant, e a radiografia dos Racionais MC´S,  busco sistematizar as poéticas políticas apresentadas na mostra Vento pelo recorte da produção artística afrodiaspórica em torno da reflexão sobre os discursos éticos e poéticos nelas presentes. Neste texto, as poéticas políticas afrodiaspóricas são interpretadas como síntese da radiografia poética da negritude. Em suma, busca-se contribuir para os estudos da participação e mapeamento de artistas afrodiaspóricos na história das bienais de São Paulo.

Palavras-chave: Poéticas Políticas da Negritude; Poética da Relação; Radiografia; Bienais de São Paulo.

 

Abstract

The present text seeks to propose a critical reflection on the political poetics of blackness presented in the exhibition Vento from the program of the 34th Bienal de São Paulo 1n 2020. I aim to analyze these artistic interventions: the notion of body-witness of Stênio Soares in his reflections on self-determination; the idea of self-disclosure in the work of feminist writer Audre Lorde; notions of poetics of philosophers Achille Mbembe and Édouard Glissant; and the thinking of Racionais MC´S, on radiography. By this means I aim to systematize the political poetics presented in the exhibition Vento by focusing on aphrodiasporic artistic production around the reflection on the ethical and poetic discourses in these works.  In this text, aphrodiasporic political poetics are interpreted as a synthesis of radiographic poetics of blackness.  In short, it seeks to contribute to studies of the participation and mapping of aphrodiasporic artists in the history of the São Paulo Biennials.

Keywords: Political Poetics of Negritude; Poetics of Relation; Radiography; São Paulo Biennials.

 

 

Introdução

 

Historicamente, as edições das exposições das bienais de São Paulo acontecem há mais de seis décadas, e ao longo de suas edições, artistas afrodiaspóricos e africanos têm marcado presença com suas poéticas políticas apresentando reflexões críticas germinadas pelo repertório político-cultural da negritude.

Renata Felinto (2016), em sua tese de doutorado: A construção da identidade afrodescendente por meio das artes visuais contemporâneas: estudos de produções e de poéticas, apreende que a historiografia oficial privilegiou as visualidades e estéticas herdadas ou provenientes da matriz europeia em detrimento das de matrizes indígena e africana. A partir dessa reflexão, a autora observa que a ausência da atenção aos estudos da produção de artistas afroidentificados colabora para a lacuna na história da arte brasileira.

Neste texto, ao trazer o recorte sobre as poéticas políticas construídas pelos artistas da diáspora africana e de África, cerco as produções artísticas que são elaboradas por artistas visuais negros e negras que têm promovido em suas pesquisas poéticas sensibilidades a partir do entrelaçamento com o lócus de interlocução política que eles ocupam, ou seja, essas produções artísticas afrodiaspóricas dizem respeito à encruzilhada do ser sujeito político negro situado, não desprendido de sua condição racial e repertório político sócio-histórico, como diria a pesquisadora e artista visual Renata Felinto (2016). Sendo assim, essas poéticas políticas dão inteligibilidade ao que situo como a potência da síntese da radiografia poética da negritude. Em outras palavras, quero salientar que ao buscar trabalhar com a noção de síntese radiográfica, estou estabelecendo diálogo com o álbum Raio X Brasil dos Racionais MC´S. A síntese é uma maneira de demonstrar como determinadas expressões artísticas (considerando linguagem e temas abordados), elaboradas por artistas negros ao tratar de questões complexas que tematizam questões raciais no campo do sensível, seja por meio da linguagem da música ou nas demais linguagens das artes visuais, conseguem demonstrar suas interpretações, críticas e investigações sobre a realidade social que vivem de forma sintética. E essa forma sintética, devido à linguagem do sensível, consegue aumentar a dimensão e dar visibilidade ao fenômeno observado.

Dito de outra maneira, quero dizer que há uma produção artística elaborada por artistas negros e negras que trazem abordagens que conversam com o campo do debate crítico das relações étnico-raciais.

É em diálogo com esse pensamento que endosso a perspectiva contraepistemicida que pressupõe trazer à tona a produção de conhecimento e saberes produzidos por sujeitos historicamente subalternizados, neste caso, tendo como centro as produções de artistas negros no campo das artes visuais, considerando a possibilidade de interface reflexiva entre os escopos epistemológicos que organizam uma certa atenção crítica a respeito dos regimes de verdade e de visualidade.

Em vista disso, tomo as poéticas políticas afrodiaspóricas formuladas pelo elenco de artistas negros selecionados para a mostra Vento da programação da 34ª edição da Bienal de São Paulo (Faz escuro mas eu canto),[1] a saber:  Paulo Nazareth, Musa Michelle Mattiuzzi, Neo Muyanga & Coletivo em Legítima Defesa e Deana Lawson como poéticas do corpo-testemunha (SOARES, 2020) que expressam indícios de experiências fundadas numa poética da relação (GLISSANT, 2011).

 Isto quer dizer que a produção artística articulada por artistas negros e negras reverberam perspectivas situadas por meio da criação estética que respondem à sua condição política e racial no mundo, relação que se expressa de forma relacional e não unilateral, ou seja, são poéticas que convocam leituras das relações sociais que são estruturalmente racializadas. 

Vale pontuar que no pensamento glissantiano, a reflexão a respeito da relação corresponde a situar as identidades, culturas, línguas em dinâmicas relacionais e rizomáticas, isto é, abertas à relação e não fechadas em si mesmas. A relação que o autor situa compreende a pensar nos pontos de contato, fricção, diferenças e aberturas. No entanto, partindo do pressuposto de que a relação criada e imposta a partir da modernidade pelos povos europeus em relação aos povos ameríndios e africanos se deu a partir de choques, redução de humanidades, violências e abismos pluralizados. Nesse sentido, este texto tem por objetivo refletir sobre a maneira que a produção artística elaborada por artistas negros traz à temática da relação.

O escritor martinicano Édouard Glissant, em seu célebre ensaio Poética da relação, nos diz que:

 

A experiência do abismo está no abismo e fora dele.  O desconhecido-absoluto que era a projeção do abismo e que transportava eternamente o abismo-matriz e o abismo infinito, tornou-se por fim conhecimento. Não só conhecimento particular, apetite, sofrimento e fruição de um povo particular, não só isso, mas o conhecimento do Todo, que aumenta com a experiência do abismo e que no Todo liberta o saber da Relação. (...) Os povos não vivem da exceção. A relação não é feita de estranheza, mas de conhecimento partilhado. Podemos dizer agora que essa experiência do abismo é a coisa mais bem partilhada.  (GLISSANT, 2011, p. 19). 

 

A partir da breve explanação apresentada por Glissant (2011) em torno da metáfora do abismo, é possível refletir sobre questões que englobam a experiência afrodiaspórica e da negritude que se deu num contexto de relação e partilha. Nesse caso, a metáfora do abismo contribui para evocar o terreno político e social que revela as relações vivenciadas por sujeitos negros e negras na contemporaneidade, as quais são perpassadas pela memória coletiva, assim como suscitadas pelas lutas travadas contra a opressão racial.

O apontamento de Glissant dialoga com a análise que proponho a partir das poéticas políticas afrodiaspóricas apresentadas na mostra Vento da 34ª Bienal de São Paulo, como poéticas do corpo-testemunha fundadas numa poética da relação que evoca conhecimento partilhado a partir de si em relação ao Todo. Se para o autor, a experiência do abismo — no que se refere às experiências da violência, desumanização imposta pelo tráfico transatlântico — gerou relação e partilha, criando memória coletivizada, pode-se dizer que essas experiências também colaboram para o engajamento no campo sensível em que as experiências da negritude produzem depoimentos e testemunhos a partir da relação com o outro.

Stênio Soares (2020), ao propor o conceito de corpo-testemunha chama atenção para percebermos que existe uma produção de artistas negros de diferentes linguagens com um discurso que denuncia e confronta as formas de opressão. Para Soares, a produção desses artistas cerca um fenômeno social e macropolítico, mas que é percebido e expresso sob o ponto de vista dos indivíduos.  O autor mostra como esse discurso se reaproxima e reafirma um debate exposto e argumentado coletivamente. Seguindo a orientação de Soares, as poéticas da negritude são saberes, formas de pensamento e conhecimento sobre a resistência das pessoas negras.

Para corroborar com a análise dos discursos éticos e poéticos em torno da produção dos artistas afrodiaspóricos apresentados na mostra Vento, faz-se imprescindível abrir diálogo com o pensamento da escritora Audre Lorde (2015) que elabora as noções de autodeterminação e autorrevelação para situar questões a respeito da partilha e compromisso de transformar o silêncio em linguagem e ação. Lorde aponta questões que nos levam a refletir sobre os construtos poéticos e estéticos apropriados pelos artistas afrodiaspóricos, que põem em estado de visibilidade e confronto as transparências e opacidades a partir de suas poéticas, evidenciando vestígios e indícios de relações fundadas numa dinâmica sociopolítica. Dessa forma, ao trazer o pensamento de Audre Lorde para esta reflexão, procuro evidenciar que as poéticas da negritude elaboradas  pelos artistas negros no campo das artes correspondem a estratégias sensíveis comprometidas com a práxis do “dessilencimanento”, ou seja, essas produções apontam para fenômenos sociais e macropolíticos que estão em relação de dialogicidade com a agenda política da diáspora negra, e nesse sentido, elas expressam poéticas autorreveladas por desvelar relações sociais que ainda se expressam como coloniais, e também revelam agenciamentos a partir da experiência da negritude que evidenciam autodeterminação e resistências.

Dessa maneira, discorrer sobre as poéticas políticas afrodiaspóricas apresentadas na exposição da programação da 34ª Bienal de São Paulo, leva-nos a trazer para a superfície a afirmação que o filósofo Achille Mbembe apresenta em seu ensaio Crítica da razão negra a respeito das criações artísticas negras, apontando o seguinte:

 

Para as comunidades cuja história foi sobretudo a do aviltamento e da humilhação, a criação religiosa e artística representou, muitas vezes, a derradeira fortaleza contra as forças de desumanização e de morte. Esta dupla criação marcou profundamente a práxis política. No fundo, sempre foi o seu invólucro metafísico e estético, sendo uma das funções da arte e da religião precisamente a de entreter a esperança de sair do mundo tal como ele foi e como é, de renascer para a vida e de continuar a festa (MBEMBE, 2017, p. 290).

 

Achille Mbembe argumenta que a obra de arte sempre esteve na sua natureza de opacificar e mimetizar tudo, as formas e as aparências originais. Para ele, a crítica radical da raça poderia trazer à democracia um tal contributo, tão utópico e metafísico como estético. Nesse sentido, abrir o debate sobre essas poéticas da negritude é atentar-se para o lugar da partilha e como o campo do sensível é alinhado ao político.

Dessa forma, ao enfatizar os significados de potência, síntese e radiografia neste texto pretendo evidenciar que essas poéticas políticas, de maneira singular, contribuem para análise socioculturais. Para tanto, estabeleço paralelo com a epistemologia inflamada dos Racionais MC´S, grupo de rap de maior importância no país. Formado no final da década de 80 sob a liderança de Mano Brown, juntamente com Ice Blue, Edi Rock e KL Jay. O grupo já lançou seis álbuns e um DVD ao longo de sua carreira. De acordo com a afirmação de Mano Brown em uma entrevista concedida à revista Showbizz em 1998, “somos os pretos mais perigosos do país” (BROWN, 1998), em suma, apreendo esse pensamento como referencial teórico frutífero para o exercício analítico.

Lançar mão do conhecimento produzido pelos Racionais MC´S a partir de sua interlocução no campo do debate crítico das relações étnico-raciais, é apreender esses saberes como premissas epistemológicas que também são enviesadas por uma linguagem artística específica, no caso, a linguagem do rap, em que o traço ético e o estético caminham juntos.

É nesse sentido que articulo a racionalidade operada a partir dos Racionais como uma maneira de compreender as poéticas políticas conformadas pela síntese e partilha sobre os processos sociopolíticos da experiência social negra.  No que toca à produção de conhecimento sobre a sociedade, pontuo que a linguagem do rap dos Racionais apresenta um tom sintético na forma de dizer e informar sobre o fenômeno social que observa e testemunha. A síntese também é constituinte das demais linguagens do campo das artes, dando um caráter expressivo para as observações sobre as complexidades humanas.

A partir dessa configuração, mobilizo o pensamento dos Racionais MC´S inspirado na  produção de conhecimento que o grupo apresenta na obra Raio X Brasil de 1993, como uma maneira de se pensar numa síntese da radiografia minuciosa do país, visto que nesta obra, os Racionais elaboram uma episteme radiográfica  que expressa enunciações de um corpo-testemunha que depõe a partir da realidade em que se está sensivelmente imerso, depondo sobre as mazelas estruturais e estruturantes da sociedade brasileira. É importante frisar que o álbum Raio X Brasil promoveu a projeção do grupo para além da esfera cultural periférica, apresentando as músicas consideradas carro-chefe pela audiência e crítica da época, nos sucessos da narrativa pesada em O homem na estrada e Fim de semana no parque. Nesse sentido, ao inscrever o pensamento do grupo em torno da perspectiva radiográfica, procuro dar relevo às transparências e opacidades sobre a chave interpretativa que o grupo apresenta em diálogo com a análise das poéticas da negritude apresentadas na mostra Vento. Para ilustrar esse pensamento radiográfico, os Racionais já apresentam na canção Fim de semana no parque, a seguinte enunciação: “1993, fudidamente voltando, Racionais! Usando e abusando da nossa liberdade de expressão. Um dos poucos direitos que o jovem negro ainda tem nesse país. Você está entrando no mundo da informação, autoconhecimento, denúncia e diversão. Esse é o Raio X do Brasil. seja bem-vindo” (FIM, 1993).

Nesse enunciado, os Racionais evidenciam seu agenciamento e o teor sintético e de tom inflamado, como comumente é usual na linguagem do rap, que será desenvolvido ao longo da obra, demonstrando assim, a inscrição de seu pensamento na lógica da potência da síntese radiográfica da negritude que se desdobra ao longo do disco, desvelando exames das camadas profundas de um país arraigado às relações e violências coloniais.

Vale dizer que evocar este cenário poético a partir do corpo-testemunha articulado pelo pensamento dos Racionais MC´S, ajuda-nos a emergir a análise sobre as poéticas políticas dos artistas afrodiaspóricos apresentados na mostra Vento da programação da 34ª Bienal de São Paulo. Ainda seguindo essa orientação, Angela Davis (2017) — no ensaio A arte na linha de frente: mandato para uma cultura do povo — nos diz que a arte progressista pode ajudar as pessoas a aprender não apenas sobre as forças objetivas em ação na sociedade em que vivem, mas também sobre o caráter intensamente social de suas vidas interiores. Para ela, a arte pode incitar as pessoas no sentido de emancipação social.

De acordo com o texto curatorial sobre a mostra Vento, assinada pelos curadores Jacopo Crivelli Visconti e Paulo Miyada, a exposição Vento, intitulada em referência ao filme de 1978 da artista estadunidense Joan Jonas, torna o vento visível, metaforizando algo que está no vazio, revelando-o que está cheio, ou seja, revela transformações, autorrevelações, como diria Audre Lorde ([1977] 2015).

Por este eixo, pode-se dizer que Vento funciona como o lócus para compreender a arte como um campo de encontro, resistência e ruptura, a partir das poéticas da relação. Sendo assim, interessa-nos neste texto, trazer reflexões críticas sobre a maneira em que a produção dos artistas afrodiaspóricos apresentou suas radiografias poéticas nesta mostra.

 

 

Vista da obra  <i>Wind</i> [Vento] (1968), de Joan Jonas na exposição Vento. Foto: Levi Fanan/ Fundação Bienal de São Paulo

Figura 1 – Vista da obra Wind (1968) de Joan Jonas, na exposição Vento. | Foto: Levi Fanan. Fundação Bienal de São Paulo.

 

 

Sobre as poéticas políticas afrodiaspóricas

 

Tecer reflexões críticas a respeito das poéticas afrodiaspóricas apresentadas na mostra Vento, a partir da análise dos trabalhos de Paulo Nazareth, Musa Michelle Mattiuzzi e Neo Muyanga & Coletivo em Legítima Defesa, é ater-se, primeiramente, ao caráter radiográfico dessas poéticas. Ao chamar a atenção para esse aspecto, argumento que a própria exposição metaforiza a partir da categoria “vento”, ou seja, a possibilidade de tornar visível o que é invisível a partir de uma poética da relação, ou recorrendo ao vocabulário da física, por meio da circulação ou movimentação das massas de ar, neste caso, das movimentações a partir dos encontros das poéticas e dos/as artistas.

Cumpre dizer que de acordo com a curadoria, a exposição vento carrega o eco, que é ao mesmo tempo a lembrança do que foi dito e sua reverberação futuro adentro. Vento, analogamente, funciona como o índice desta edição da Bienal, no sentido de que aponta alguns dos temas que voltarão expandidos na exposição de setembro do ano seguinte, e ao mesmo tempo, refere-se ao que já aconteceu, assim como o índice constitui, em semiótica, o rastro.

Nesse sentido, ao abordar as poéticas políticas afrodiaspóricas pelo viés radiográfico, considera-se as imbricações entre as transparências e opacidades autorreveladas, focalizando, assim, as políticas de visibilidade. Achille Mbembe (2017) apreende que ver não é a mesma coisa que olhar, já que podemos olhar sem ver. Para ele, aquilo que vemos não é efetivamente aquilo que é. O filósofo segue afirmando que “olhar” e “ver” solicitam redes de sentidos às malhas de uma história. Por essa ótica, as poéticas políticas afrodiaspóricas apresentadas na mostra Vento, por meio de suas linguagens artísticas, apresentaram-nos radiografias poéticas que sintetizam as imbricações entre o “ver” e o “olhar”, desafiando, a partir das temáticas apresentadas, a distribuição colonial do olhar. Vale dizer que algumas poéticas políticas apresentadas trouxeram em sua composição a linguagem da música de produção negra, dado que nos permite acrescentar não apenas o foco numa política do visível, mas também na política do dito, já que dizer, falar é existir absolutamente para o outro, como nos ensina Frantz Fanon (2008).

Dito isso, a artista performática, escritora e pesquisadora paulistana Musa Michelle Mattiuzzi apresentou o vídeo da performance: Experimentando o vermelho em dilúvio que se trata de um registro da performance realizada em 2016 na cidade do Rio de Janeiro. Essa performance integra a trilogia Memórias da plantação, composta por outras duas ações (Merci beaucoup, blanco!, de 2017 e A dívida impagável, de 2018). Artista premiada e de grande expressão no circuito de artes tem participado de importantes eventos na cena nacional e internacional. Sua pesquisa circunscreve-se as questões em torno do corpo, da linguagem da performance, violência colonial, racismo, cura e feminino negro.

No vídeo da performance: Experimentando o vermelho em dilúvio apresentado em 2020 na mostra da Bienal de São Paulo, Musa lança mão do body art que é uma prática artística que versa sobre a utilização do corpo como veículo de expressão, a artista apresenta o seu corpo como o lócus para a realização de intervenções. Nessa performance, ela traz à superfície o corpo negro feminino como suporte máximo e radical para sua expressão e intenção artística. A atenção que coloco na expressão radical diz respeito à artista desreificar o corpo feminino negro, alçando-o a outro status de presença. Quero dizer que na compreensão da performance que tem o corpo como expressão máxima, ou conforme nos apresenta Paul Zumthor (2002), a performance não apenas se liga ao corpo, mas por ele se liga ao espaço. Esse laço se valoriza por uma noção, a de teatralidade. Para Zumthor, a intencionalidade do performer quando é percebida pelo espectador — o lugar cênico que é construído — dá sentido à percepção do espaço semiotizado que marca uma alteridade espacial, de maneira a construir o ato performativo. Na performance, Experimentando o vermelho em dilúvio, a artista teatraliza, isto é, reconstrói cenas do contexto colonial, contexto que é partilhado com o espectador. A performer reencena o drama colonial promovendo em sua ação performática uma caminhada pelas ruas do centro da cidade do Rio de Janeiro em direção ao monumento de Zumbi dos Palmares.

Musa inicia sua ação performática confeccionando uma peça de tortura, especificamente uma máscara, simbolizando a máscara de flandres aos moldes do dispositivo de silenciamento que era utilizado pelos senhores brancos como instrumento de castigo aos africanos/as escravizados/as. A artista encaixa o instrumento de tortura no rosto, e vai fixando a peça com agulhas na face.

Na ação poética de colocar a máscara, a artista rememora a política do sadismo colonial que se utilizou do corpo negro. Temos o sujeito negro como objeto, recorrendo à interpretação de Mbembe (2017), diríamos que homens e mulheres originários da África foram transformados em homens-objetos, homens-mercadoria e homens-moedas, ou seja, o humano reificado. Ao longo da performance, a artista caminha sangrando com o dispositivo de tortura pelas ruas do Rio rumo ao monumento de Zumbi dos Palmares. Desse modo, o espaço público, ao ser penetrado pela presença da performer é transfigurado em seu espaço cênico. Com a chegada da performer ao monumento, cada agulha que perfurava violentamente o rosto da artista para fixar a máscara é removido num gesto de lentidão, que nos lança para o passado colonial, semiotizando outro espaço-tempo no qual ainda percebemos as amarras persistentes desse passado não tão longínquo, e a partir daí, Musa desreifica esse corpo negro feminino, de um corpo emudecido a um corpo-livre sem amarras, um corpo-voz que pode falar e ser visto, expressando-se a partir dos seus próprios termos políticos de existência, ou seja, mostra-se como um corpo autorrevelado.

 

Figura 2 – Vista do vídeo Experimentando o vermelho em dilúvio (2020), de Musa Michelle Mattiuzzi na exposição Vento. | Foto: Jacopo Crivelli Visconti.

 

Musa presentifica um corpo negro feminino que desafia a política colonial sustentada pela perspectiva do “ver” ou “não ver” e “falar”, tornando audível, visto, decifrável e articulado. Na ação performática, a artista traz à existência uma presença duplamente inflamada que potencializa uma radiografia poética por meio da presença, isto é, a presença, ao se pôr em confronto, amplifica sua dimensão física, retoma a humanidade que foi silenciada pelas amarras da opressão. É a presentificação do corpo que é capaz de depor, em seus próprios termos, as amarras e possibilidades de desarticulação e desreificação do sujeito negro, especificamente da sujeita negra, se nos debruçarmos sobre as experiências sociais das mulheres negras que historicamente têm sido silenciadas e desqualificadas.

 A artista promove fissuras múltiplas em sua ação performática, é o espaço-tempo em diálogo expandido que vai dando o tom na cena performática. Sensivelmente, a artista amplifica seu corpo-voz poético, trazendo para a cena a linguagem da música vernacular da tradição afro-estadunidense que era entoada desde o contexto da plantation no século XIX, e continuada na prática de trabalho no contexto do cárcere nas prisões sulistas no século posterior. Assim, entra em cena mais um dispositivo poético expresso pelo gênero prison song encarnado na canção No more my lawd de 1947, canção gravada na penitenciária de Mississipi em Parchaman por Alan Lomax (1915-2002). Dito isso, o uso da música na cena performática evidencia uma síntese da radiografia poética da negritude, testemunhando e depondo sobre um espaço-tempo ainda atravessado pela violência colonial no momento presente. Pensar nesse dispositivo poético utilizado pela artista, é, primeiramente, ater-se ao uso de dispositivos na dimensão de procedimentos criativos que dão extensão aos corpos dos performers. Em Experimentando o vermelho em dilúvio, o uso desse procedimento amplifica o corpo-voz-discursivo negro, que estabelece uma relação polêmica com outros discursos e práticas sociais ainda vivos (MACHADO, 2020). Assim, essa amplificação produz e endossa a abertura de mais um espaço de enunciação a partir de vozes negras. Considero que ao recorrer ao uso da música, a performer incorpora o ressoar de outras vozes dando intensidade à sua presença e ao seu discurso.

Assim, quando enfoco o ressoar de vozes que amplifica a voz da artista, pretendo registrar a potência expressiva dos ecos-mundo da plantation e das prisões, o que na produção de Mattiuzzi se expressa pelo dispositivo do uso da música que nasceu no contexto de trabalho nas plantações no regime da escravidão, e se prolongou na política de encarceramento da população negra afro-estadunidense nas prisões contemporâneas. Em termos glissantianos, o autor traz a noção de ecos-mundo para precisar esse fenômeno instaurado na Modernidade. Para ele, os ecos-mundo se deixam perceber como o grito da plantação transfigurado em palavras do mundo. A imposição de três séculos pesou tanto que quando essa palavra germinou, ela cresceu em pleno campo da Modernidade, isto é, nasceu para todos (GLISSANT, 2011).

 

Figura 3 – Vista da obra Experimentando o vermelho em dilúvio (2016), de Musa Michelle Mattiuzzi na exposição Vento. | Foto: Janaína Machado

 

Outro dado importante expresso na cena performática da artista, diz respeito ao gesto do punho cerrado, que expressa historicamente o gesto emblemático da luta afrodiaspórica por emancipação e justiça. A artista encerra a performance trazendo a simbologia dos punhos cerrados em frente ao monumento de Zumbi dos Palmares, o que caracteriza as possibilidades de amplificação do corpo-testemunha da artista. Em suma, no vídeo da performance, Musa Mattiuzzi expressa uma síntese da radiografia poética da negritude que se dá a partir do corpo como suporte, corpo que compreendemos como fundamento que dá a medida e as dimensões do mundo.

Contudo, em Experimentando o vermelho em dilúvio, a artista investe na construção de uma presentificação corpórea, que transita num gesto temporal que expande e torna aguda a sua presença, marcando a posição de um corpo-testemunha autônomo. Esse corpo transborda e partilha o conhecimento do abismo, ele apresenta testemunhos, depoimentos e radiografias que se dão a partir do corpo e, sendo assim, é apenas pelo corpo que eles podem informar as experiências coloniais que atravessam as experiências coletivas fundadas na relação. Nas palavras de Édouard Glissant (2011, p. 19), trata-se “não só conhecimento particular, apetite, sofrimento e fruição de um povo particular, não só isso, mas o conhecimento do Todo, que aumenta com a experiência do abismo e que no Todo liberta o saber da Relação”.

 

Figura 4 – Vista da obra Experimentando o vermelho em dilúvio (2016), de Musa Michelle Mattiuzzi na exposição Vento. | Foto: Janaína Machado

 

Para adentrar o universo da análise da performance [A] flor da pele, de Paulo Nazareth, artista visual nascido em Governador Valadares, Minas Gerais.  A pesquisa poética de Nazareth gira em torno de questões políticas, identidade afro-indígena e temas correlatos.

A performance [A] flor da pele abriu a mostra Vento em novembro de 2020. Para falar sobre ela, recorro ao diálogo com a epistemologia inflamada dos Racionais MC ́s apresentada na poética da música Júri racional do álbum Raio X Brasil que traz o seguinte mote: “o nosso júri é racional e não falha! Não somos fãs de canalha” (JÚRI, 1993). Nessa música, o pensamento do grupo expressa uma poética inflamada da desalienação do sujeito negro. Racionais apresentam sob a poética musical pesada da música Cissy Strut, gravada em 1969, da banda de funk instrumental estadunidense The Meters, versos inflamados sobre o processo de alienação de sujeitos negros. A partir de um cenário de dinamismo propiciado pela poética musical, o grupo constrói discursivamente o espaço do tribunal desempenhando o papel de júri e juiz que julga os processos comportamentais de base colonial do sujeito negro. Porém, como sabemos que os processos coloniais se dão em dimensões historicamente relacionais, dessa maneira, seria possível reencenar uma outra poética fundada numa superação das relações coloniais na contemporaneidade?

Dito isso, é importante trazer a voz de Frantz Fanon (2008) que, em sua radiografia traçada em Pele negra, máscaras brancas, diz-nos que a verdadeira desalienação do negro implica uma súbita tomada de consciência das realidades econômicas e sociais em que se vive. Para Fanon, só há complexo de inferioridade após um duplo processo: — inicialmente econômico; — em seguida pela interiorização, ou melhor, pela epidermização dessa inferioridade. Neste ponto, pode-se aferir que tanto o processo de racialização como de alienação passa pelo crivo de encaixar-se na imagem do branco, e sendo assim, assumir radicalmente a cultura branca. Expostas, brevemente, essas radiografias epistemológicas, ao focalizar a poética política apresentada por Paulo Nazareth na performance [A] flor da pele, verifica-se que o artista instaura uma cena performática que traz o gesto como a expressão de sua obra.

Stênio Soares (2017), evocando reflexões sobre as artes da cena e do corpo, salienta que, assim como o documento é fundamental para a memória histórica, o gesto nos convida e nos exige uma atenção à experiência do ato.  Assim, quando observamos a construção do ato performativo na performance [A] flor da pele de Nazareth, aprendemos que o corpo-testemunha que o artista apresenta, a partir da linguagem da performance, dar a ver uma síntese radiográfica constituída pelo gesto. É a radiografia da poética do gesto da desalienação. Neste texto, a categoria desalienação é interpretada como a possibilidade de reestruturação do mundo tanto a partir das dimensões simbólicas quanto das objetivas.

Na performance de Nazareth, o artista constrói em cena um corpo-voz-poético que teatraliza a ruptura do roteiro colonial em que a condição do sujeito negro é sintetizada como o corpo-mercadoria, o corpo-objeto e moeda como já mencionado por Mbembe (2017), e reiterado por Fanon (2008), em que em sua conclusão se trata de um objeto em meio a outros objetos, ou seja, sujeito enclausurado e “hifienizado” (grifo meu)  pela situação colonial na condição de passividade,  esse corpo-testemunha executa uma outra possibilidade de ato de transferência, em que um repertório autêntico, mediado por uma gestualidade inflamada, depõe a partir da emergência da desalienação e reestruturação do mundo, reinscrição que também se dá pela ordem contraespistemicida.

Achille Mbembe (2017) salienta que para partilhar, restituir este mundo que é nosso, será necessário, àqueles e àquelas que passaram por processos de abstração e de coisificação na história, a parte da humanidade que lhes foi roubada. Para ele, o significante “reparação” remete ao processo de reunião de partes que foram amputadas para a reparação de laços que foram quebrados, reinstaurando o jogo da reciprocidade, sem o qual não se pode atingir a humanidade. A partir daí, é possível interpretar a performance de Paulo Nazareth como um gesto da negritude que reivindica a própria possibilidade da construção de uma consciência comum do mundo.

Na obra de Nazareth, a gestualidade é postulada a partir do gesto que eu situo como o gesto da desalienação. Assim, no início da cena, o artista apresenta o encontro de dois performers, o nigeriano Abudulfatai Bimbo Aledeke e o guineense Duarte Adelino Féna, que se deslocam em direções opostas pelo pavilhão da Bienal de São Paulo, especificamente no espaço do térreo, portando facas em uma das mãos, se dirigindo lentamente para um suposto confronto. Por meio da gestualidade do duelo, os performers, ambos descalços e trajando vestimentas brancas teatralizam um confronto mortal.

Ao término do deslocamento para o encontro, os performers se deparam com um saco de farinha que funciona como um dispositivo poético que se encontra suspenso e é o mediador imediato do suposto duelo entre os performers. A partir daí, eles, num gesto sincronizado, começam a desferir golpes também sincronizados sobre o objeto suspenso até que a farinha comece a se espalhar pelo chão. Após vários golpes dados ao saco, e a farinha praticamente toda no chão, os performers ainda em um tom de duelo se olham e caminham lentamente ao redor do saco suspenso, e trocam de lugar dirigindo-se para os extremos do espaço do Pavilhão em que estavam posicionados, ainda portando as facas em uma das mãos. Neste ponto, pode-se indagar ao que remeteria esse gesto? O que essa radiografia do gesto estaria expondo, revelando? Como ler o corpo negro numa estrutura branca que ainda é uma espécie de caldo do legado colonial? Ou como pensar em possibilidades de processos de desalienação a partir da distribuição da violência, ou melhor, do “desmonopólio” da violência colonial?

 

Figura 5 – [A] flor da pele. | Os performers Abudulfatai Bimbo Aledeke e Duarte Adelino Féna na abertura da exposição Vento no Pavilhão Bienal. | Foto: Levi Fanan. | Fundação Bienal de São Paulo.

 

Ainda no fluxo da cena performática, surge uma terceira performer, a artista Fatumata Binta que, ao entrar em cena, caminha lentamente em direção ao saco de farinha que se encontra suspenso. A performer atravessa o Pavilhão em direção ao dispositivo com passos minuciosos, observa os vestígios da farinha que se encontram espalhados pelo chão, e começa a varrer, reorganizando o conteúdo em formato circular até finalizar a ação pelo gesto da varredura. Ao esboçar esta breve reflexão sobre a performance [A] flor da pele de Paulo Nazareth, apreendo que o artista apresenta o gesto como uma forma de sintetizar o agenciamento a partir do escopo da experiência da negritude.

 

Figura 6 – A performer guineense Fatumata Binta varre e reorganiza a farinha que cai do saco suspenso na performance [A] flor da pele de Paulo Nazareth. 2020. | Foto: Levi Fannan. | Fundação Bienal de São Paulo.

 

Corroborando com a ideia de síntese da poética da radiografia do gesto da negritude, o artista Paulo Nazareth também apresentou a escultura minimalista Tommie, 2017, composta por um figurinha metálica apoiada em frágeis e minúsculas hastes de madeira a ponto de desmoronar. Essa obra faz alusão ao gesto dos punhos cerrados que se tornou emblemático no episódio da Olímpiadas de 68 no México, em que os atletas negros, Tommie Smith e John Carlos, envoltos numa gestualidade gramatical contestatória, isto é, descalços e com cachecol e luva preta ergueram os punhos cerrados, endossando a política do protesto negro contra a discriminação racial. 

Nazareth, ao trazer essa escultura minimalista carregada da simbologia do gesto negro desalienado para o Pavilhão branco da Bienal — com mais de seus sessenta anos de existência, dimensionado em três pavimentos, conformado por curvas da estética modernista numa área de pelo menos 39800 m2 —, redimensiona a poética do gesto a partir da potencialização de garantir visibilidade ao gesto. Numa configuração do exercício do gesto enquanto pensamento e ação e, como também, no plano da opacidade e da transparência, a obra Tommie, 2017 evidencia a poética do corpo-testemunha que explode, depondo politicamente o gesto e a memória. Nazareth dá a ver, maximizando o gesto numa política autodeterminada e autorrevelada, assim como nos orienta Audre Lorde ([1977] 2015).

 

Figura 7 – Vista da escultura Tommie, 2017, de Paulo Nazareth, em exposição no 3º andar do Pavilhão da Bienal de São Paulo. | Foto: Danilo Pera

 

Já o artista sonoro e libretista sul-africano Neo Muyanga nascido em Joanesburgo, África do Sul, desenvolve uma pesquisa contínua acerca de diversas sonoridades que compõem a história da canção de protesto no contexto pan-africano e diaspórico. Apresentou na mostra Vento, juntamente com o grupo de artistas paulistanos, formado desde 2015, o Coletivo em Legítima Defesa, e a artista multimídia londrina Bianca Turner, a compilação do registro da performance sonora Amazing Grace XIII que abriu a 34ª edição da Bienal de São Paulo em fevereiro de 2020. Amazing Grace, que em português significa Maravilhosa Graça ou Graça Sublime, é uma peça sonora que se refere a um dos hinos mais conhecidos da tradição cristã, mas no contexto da história da experiência afro-estadunidense, esse hino foi ressignificado e tem sido executado em diálogo com essa experiência social.

 

Figura 8 – Frame do vídeo do ensaio dos performers no Pavilhão da Bienal. | Fundação Bienal de São Paulo.

 

Esse vídeo traz uma síntese poética radiográfica da encruzilhada a partir das trocas culturais da negritude mediadas pelo canto e pela música. Por meio de imagens com interferência de animações da artista londrina Bianca Turner, as imagens que compõem o vídeo trazem ondas do mar, o mapa do triângulo transatlântico do tráfico de escravos, imagens de personagens emblemáticas da história da política negra diaspórica e imagens do performers do Coletivo em Legítima Defesa ensaiando, traçando uma gramática negra corporal a partir do gesto marcado nos passos dos performers configurando a constituição de um corpo-testemunhal negro marcando e reverberando o espaço do Pavilhão da Bienal.

É importante destacar que o espaço do Pavilhão é ocupado não apenas por cenas com os corpos dos performers, mas que também redimensionam um espaço a partir da intervenção de imagens com símbolos do poderio colonial mediado por cartografia e imagens com simbologias coloniais.

Assim, o Pavilhão se funde com a nau, isto é, com a caravela, sintetizando o cruzamento de espaço-tempo de uma dinâmica colonial que ainda percebemos como processo contínuo no país. Quando Zumthor (2002) fala em espaço cênico, em espaço semiotizado, é por meio dessa alteridade espacial, também porque não vocalizada, que percebemos a radiografia a partir da negritude que expressa a poética da relação.

Vale dizer que as imagens que o vídeo traz são atravessados por vozes e pelo canto, especificamente traz um diálogo com a ópera e com o canto expresso pelo gênero spirituals que diz respeito ao gênero musical de tradição oral africana, surgido no contexto da escravidão. Obviamente, esse canto se liga aos cantos de trabalho e, posteriormente, o gênero foi incorporado à tradição litúrgica da comunidade afro-estadunidense. Neo Muyanga elabora um corpo-voz que, por meio da poética da linguagem do canto, vai conformando uma poética política negra da encruzilhada.

 

Figura 9 – Frame do vídeo do ensaio dos performers no Pavilhão da Bienal. | Tecido para projeção das imagens. | Fundação Bienal de São Paulo.

 

Desse modo, refletindo sobre a compilação do vídeo da performance Amazing grace XIII, é possível falar de uma poética da radiografia da encruzilhada no sentido elaborado pela teórica Leda Martins a respeito do conceito de encruzilhada; ela nos diz que a cultura negra também é, epistemologicamente, o lugar das encruzilhadas. Ou seja, deriva-se dos cruzamentos de diferentes culturas e sistemas simbólicos. Leda Martins elabora a seguinte reflexão em torno da ideia de encruzilhadas, a saber:

 

Desses processos de cruzamentos transnacionais, multiétnicos e multilingüísticos, variadas formações vernaculares emergem, algumas vestindo novas faces, outras mimetizando, com sutis diferenças, antigos estilos. Na tentativa de melhor apreender a variedade dinâmica desses processos de trânsito sígnico, interações e intersecções, utilizo-me do termo encruzilhada como uma clave teórica que nos permite clivar as formas híbridas que daí emergem (MARTINS, 2002, p. 73, grifo da autora). 

 

Em conformidade aos apontamentos de Leda Martins, pode-se dizer que a compilação do vídeo Amazing grace XIII elabora uma poética na perspectiva de um raio X da encruzilhada, em que percebemos trocas simbólicas e reelaborações a partir da experiência negra afrodiaspórica em contexto de trocas com outros repertórios culturais.

A performance sonora, simbolicamente, traz a fusão do corpo-voz-político e que, em termos  a partir da perspectiva dos Racionais MC ́S, diríamos que apresenta o Fio da navalha (FIO, 1993) , isto é, traz uma sustentação pela música negra pluralizada, e encruzilhadas de ritmos, e continuidades,  musicalidade que é elaborada desde o contexto da plantation, abarcando das possibilidades de recriação estética e pensamento político às formas mais modernas e contemporâneas de difusão e circulação, como por exemplo, a música rap. Importa salientar que na música Fio da navalha dos Racionais, o grupo apresenta a mistura de rap com base harmônica da gaita, o que evoca as ramificações da música negra, e durante a execução da música, o grupo traz a seguinte enunciação: “A música negra é como uma grande árvore/ Com vários galhos e tal/ O rap é um, o reggae é outro,/ O samba também”.

A performance sonora Amazing grace XIII, cujo título evoca uma canção portadora de uma carga simbólica como instrumento de luta emancipatória da diáspora negra, evoca o teor da encruzilhada no que se refere ao contexto de criação e trocas simbólicas, já que a canção foi composta por um homem branco escravista, e que a elaborou após uma espécie de epifania, e que mais tarde se transforma num hino para as comunidades negras num plano transnacional. Édouard Glissant (2011) fala em grito prolongado para abordar sobre essa tecnologia negra mediada pela linguagem da música que nasceu do silêncio, ou seja, nasceu do contexto da colonização e opressão racial. Nesse sentido, a poética sonora expressa em Amazing grace mobiliza uma radiografia da encruzilhada em que o corpo-voz e espaço se fundem.

Já a fotógrafa estadunidense Deana Lawson, que também trabalha com vídeo, apresentou o vídeo Sem título que trazia uma compilação de imagens a partir do referencial cultural afrodiaspórico e africano. Vale dizer que Lawson pesquisa assuntos relacionados à identidade, gênero, espiritualidade, sexualidade e família no campo da negritude.

O vídeo Sem título apresentou uma espécie de arquivo visual que entrecruzava imagens do referencial cultural afrodiaspórico, especificamente dos Estados Unidos e imagens de cenas de países africanos. As imagens da obra de Lawson nos convidam a nos posicionarmos como observadores do universo da cultura negra urbana, cosmopolita no entrecruzamento com as práticas culturais africanas. Sob uma perspectiva etnográfica, a artista dá a ver indícios e rastros das trocas culturais dos sistemas simbólicos diaspóricos, como diria Stuart Hall (2000). Cada imagem apresentada mostra cenas de comportamentos, hábitos, ritos, significados e valores com minúcia descritiva sobre as imbricações culturais africana e afrodiaspórica. As cenas iniciais do vídeo, no contexto afrodiaspórico, mostram jovens que trazem uma corporeidade vinculada à estética da cultura hip-hop. São gestos expressivos realizados com as mãos, marcando uma gestualidade própria distintiva dentro das comunidades negras. Esses gestos testemunham e depõem pertença e identidades. Se o gesto é ação, na cultura negra urbana, essa práxis está ligada à possibilidade de radiografar usos e sentidos.

 

Figura 10 – Frame do vídeo Sem título. | Gestos da artista Deana Lawson no Pavilhão da Bienal. Fundação Bienal de São Paulo.

 

A partir daí, outras imagens vão surgindo, trazendo uma dinâmica entrecruzada em que percebemos cenas alternadas do contexto afro-estadunidense e africano por meio de imagens que preenchem a tela com festas, cortejos, festivais, acessórios, vestuários, cores e texturas, dança, som e com sujeitos de diferentes idades.

Neste compilado de imagens, Deana Lawson reposiciona não apenas o espectador no âmbito do corpo-testemunha, mas evidencia a inscrição desse lugar na macropolítica cultural da diáspora. As imagens que mostram esse corpo-testemunha africano trazem cenas de sociedades tradicionais repleta símbolos, signos e corporeidades singulares que apontam o lugar da encruzilhada da negritude, como Leda Martins nos informa (MARTINS, 2002).

 

Figura 11 – Frame do vídeo Sem título. | Chefe de estado de sociedade tradicional, por Deana Lawson no Pavilhão da Bienal. | Fundação Bienal de São Paulo.

 

As cenas apresentadas por Lawson nos convidam a apreciar imagens que ora se mesclam, ora se fundem, se distanciam e se aproximam num ritmo acelerado. As cenas de cada imagem vão nos conduzindo a construir uma rede de sentidos e significados que estão interligados numa poética da relação.

Para Stuart Hall (200), é por meio dos significados produzidos pelas representações que damos sentidos à nossa experiência e àquilo que somos. Por essa ótica, Lawson evidencia uma prática de significação cultural que abrange diálogos ininterruptos entre África e diáspora.

Contudo, seguindo essa confluência, a partir do pensamento dos Racionais MC´S na música Fio da navalha, poderíamos dizer que as imagens que a artista apresenta se entrecruzam, marcando o encontro entre a tradição e a modernidade. E é esse depoimento e testemunho transnacional que colabora para a reverberação de uma síntese da poética das trocas simbólicas em que se percebe rizomas poéticos, memórias coletivas, tendo a práxis cultural da negritude como um importante tom para radiografar o hibridismo e sincretismos que se constitui num continuum.

 

Considerações finais

 

Contudo as poéticas políticas afrodiaspóricas, apresentadas na mostra Vento da programação da 34ª Bienal de São Paulo no ano de 2020, expressam sínteses radiográficas a partir da experiência da negritude. Essas poéticas evocam expressões éticas e estéticas de um corpo-testemunha que se propõe a radiografar testemunhos e depoimentos a partir das estratégias sensíveis oferecidas pelo campo da arte. Cada temática abordada, enviesada por diferentes linguagens, insere-nos na vasta área de reflexões do debate crítico das relações étnico-raciais. Sendo assim, é a partir desse campo de investigação que este texto buscou se debruçar sobre as questões levantadas por cada produção artística. Essas reflexões podem contribuir para análises mais aprofundadas sobre a inscrição da experiência da negritude a partir do entendimento desse corpo que se expande no campo da arte como corpo-testemunha, que trata de questões que lhes são pertinentes, assim como as possibilidades de tradução e sínteses como chave de leitura das relações sociais, uma vez que essas poéticas se ocupam de radiografar os choques, as subversões, as recriações, as encruzilhadas culturais e as tensões radicalizadas. Nesse sentido, o lugar do corpo-testemunha articulado nessas poéticas revela complexidades que permeiam as relações humanas de uma forma específica e muito singular que a linguagem da arte consegue dar a ver. E é essa inteligibilidade que, devido a sua condição sintética, propicia a compreensão do mundo das relações ancoradas em abismos históricos e contemporâneos.

 

Referências

 

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ZUMTHOR. Paul. Performance, recepção, leitura. 2. ed. São Paulo: Cosac Naify, 2002.

 

Recebido em: 24/01/2021.

Aceito em: 05/04/2021.

DOI: https://doi.org/10.46906/caos.n26.57367.p29-54

 

 



* Mestranda do Programa de Pós-Graduação em Estudos Étnicos e Africanos da UFBA/Brasil. Bacharel em linguística pela Universidade de São Paulo/Brasil.  E-mail: jjana26@yahoo.com.br.

[1] A 34ª edição da Bienal de São Paulo (Faz escuro mas eu canto) tem como equipe curatorial:  Jacopo Crivelli Visconti como curador geral, Paulo Miyada como curador adjunto e Carla Zaccagnini, Francesco Stocchi e Ruth Estévez como curadores convidados.  E o título da mostra, Faz escuro mas eu canto, foi inspirado num verso do poeta amazonense Thiago de Mello, publicado em 1965. Para saber mais acesse: http://34.bienal.org.br/.

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