OS NEGROS DE PEDRA D’ÁGUA

THE BLACKS OF PEDRA D’ÁGUA

 

Maristela Oliveira de Andrade *

 


DOI: https://doi.org/10.46906/caos.n26.57467.p311-318

 

 

LIMA, Elizabeth Christina de A. Os negros de Pedra d’Água: um estudo de identidade étnica - história, parentesco e territorialidade numa comunidade rural. São Paulo: Mentes Abertas; Campina Grande: EdUEPB, 2020.

 

Com grande alegria recebi um exemplar deste livro como presente da autora, que recuperou sua pesquisa de trinta anos atrás em uma comunidade rural negra do agreste paraibano, que merecia há muito ter sido publicada. Com a Constituição de 1988, as comunidades rurais negras foram reconhecidas como remanescentes de quilombos com direitos fundiários e culturais, e as pesquisas sobre os quilombolas se multiplicaram. Daí a importância desse livro que tornou acessíveis dados valiosos sobre quilombolas logo após a promulgação da constituição, tendo em vista o interesse que se formou no âmbito da antropologia pelas comunidades quilombolas. Qualifico a pesquisa de Elizabeth — Bebete para quem a conhece — como pioneira na Paraíba no estudo antropológico das comunidades quilombolas, realizada quinze anos depois do estudo precursor de Josefa Salete Cavalcanti sobre a comunidade do Talhado (CAVALCANTI, 1975). Não poderia deixar de destacar a qualidade do acervo fotográfico da pesquisa que integra o livro, e constitui um produto à parte a merecer um tratamento fotoetnográfico ou museológico. 

O livro foi fiel ao título ao realizar um percurso etnográfico que revelou a construção da identidade étnica dos negros de Pedra d’Água a partir dos usos do território compondo uma tessitura complexa que envolveu as narrativas de origem. No processo de formação da identidade étnica, a autora não partiu da categoria de remanescente de quilombo, mas de comunidade rural negra, de modo a respeitar a autoidentificação dos negros de Pedra d’Água na época da pesquisa, e tomando por base a literatura antropológica sobre estas comunidades brasileiras até então. Aliás, a importância do estudo de Bebete decorre de sua realização em 1990, considerando que os laudos antropológicos de reconhecimento dos quilombolas foram realizados no período entre 1992 e 2003 segundo Arruti (2006), e o reconhecimento do direito aos territórios ocupados, após 2003.  Esse dado temporal explica a resistência das famílias de Pedra d’Água em se autorreconhecerem como remanescentes de escravos, tendo em vista que as narrativas dos idosos sobre o fundador da comunidade não corrobora com a origem escrava. Oito anos depois, Vandilo dos Santos (1998), em pesquisa na comunidade do Talhado, depara-se com a mesma resistência. Em meados do século XIX, negros livres temiam o retorno à escravidão com o recrutamento forçado para a guerra do Paraguai, e buscaram terras distantes como refúgio e resistência às investidas de captura de homens jovens e fortes, como os negros, nas feiras no período da revolta do Quebra Quilos.

O livro foi composto de forma a preservar, na medida do possível, o formato original de dissertação de mestrado como forma de manter o frescor de juventude deste trabalho iniciatório e prenúncio de uma carreira sólida de pesquisadora da autora. Na apresentação, ela atualizou a situação da comunidade indicando o reconhecimento como comunidade remanescente quilombola pela Fundação Palmares em 2005, e a realização de um laudo antropológico a pedido do INCRA em 2011 pelo prof. Rogério Zeferino seu colega da UFCG.[1] Até o momento, a comunidade espera pela titulação definitiva de suas terras, no entanto, o reconhecimento facilitou o acesso da comunidade a várias políticas públicas de eletrificação rural e hídricas com a construção de cisternas, entre outras. Acesso verificado em outras comunidades quilombolas da Paraíba, como a comunidade do Senhor do Bonfim em Areia, a primeira na Paraíba a obter a titulação de suas terras, conforme estudo de Peralta e Andrade (2013).

Na sua estrutura, o livro foi composto em cinco capítulos densos. Começa com uma explanação sobre os caminhos metodológicos da pesquisa e sobre o processo de aproximação da pesquisadora com as famílias e com os moradores escolhidos como colaboradores da pesquisa, que foi definida como um estudo de caso e um estudo etnográfico consistente (GEERTZ, 1978), graças à estada da pesquisadora na comunidade durante a investigação, que permitiu uma boa descrição do terreno da pesquisa e das famílias residentes, começando por reunir as narrativas orais dos mais velhos sobre a origem da comunidade que convergiam para um ancestral comum, Manuel Paulo Grande. A etnografia produzida ao longo dos capítulos revela os múltiplos aspectos da vida cotidiana de uma comunidade de agricultores e criadores de animais, começando pelas relações com o território a partir do ancestral fundador, trisavô e bisavô comum de quase todas as famílias que lá viviam. Como resultado, foi desenhado um retrato tão abrangente quanto possível da vida cotidiana das famílias de Pedra d’Água, revelando a dinâmica interna dos arranjos familiares, assim como as relações externas e interétnicas com as comunidades vizinhas e propriedades rurais.

As regras de acesso à terra e de vizinhança emergiam das relações de parentesco das famílias com o ancestral comum, de modo que a construção das novas moradias dos herdeiros seguia a regra de proximidade da casa dos pais do noivo ou da noiva. Ao privilegiar o parcelamento da terra para moradia dos herdeiros em detrimento das áreas para os plantios, as famílias encontraram um mecanismo para assegurar a continuidade do grupo de parentesco através do território. Para suprir a necessidade de terras para alimentar as famílias, foi identificada a prática do arrendamento de terras vizinhas para agricultura, como estratégia diante da escassez de terras para agricultura na comunidade. Porém, na época da pesquisa, esta estratégia já mostrava sinais de possível abandono, devido à decisão dos proprietários das terras arrendadas de substituir as terras agrícolas por pastos para o gado. As estratégias de manutenção do território, por meio dos casamentos com parentes e das práticas culturais, exprimiam um modo singular de apropriação do território como reforço da importância da diversidade cultural. Partindo de uma boa base teórica sobre os territórios negros, como Almeida (1988) e Bandeira (1991) entre outros, propôs sua própria visão dos territórios negros:

 

A territorialidade negra não emerge do desejo de isolamento do “mundo branco”, de uma resposta ao preconceito étnico, mas de um agrupamento de indivíduos que, munidos de um ordenamento cultural, socializam um saber cultural que é extensivo a todo o grupo (LIMA, 2020, p. 47).

 

No capítulo seguinte, Bebete compôs o quadro das atividades produtivas das famílias de Pedra d’Água distribuídas de forma sucessiva em um calendário anual obedecendo aos períodos de plantio e colheita dos diferentes produtos agrícolas cultivados pelas famílias (milho, feijão, mandioca e frutas como banana, coco e manga), além de considerar a divisão de tarefas entre homens e mulheres. Embora tivessem uma rotina intensa de trabalho ao longo do ano, demonstrando uma excepcional racionalidade produtiva para retirar da terra seu sustento, combinando plantio, criação de animais, produção de farinha e artesanato, eles tinham uma vida de privação, e sem acesso a serviços públicos básicos. Essa condição de penúria era percebida pela presença de muitas casas de taipa cobertas de palha, típicas dos mocambos — as poucas moradias de alvenaria existentes eram de tijolo produzido pelos próprios moradores —, ausência de energia elétrica e abastecimento de água encanada. A produção era voltada para atender primordialmente o consumo das famílias, com poucas sobras para vender nas feiras de distritos vizinhos, devido à limitação de terras para plantio. Havia a criação de animais em pequeno número (gado bovino, porcos, cabras e aves), que eram usados como “bens de reserva”, ou uma espécie de poupança, que se revelou um marcador da desigualdade entre as famílias. As que possuíam vacas e porcos — os bens mais valiosos, embora não ultrapassasse duas unidades por família — eram as mais “ricas”. Já as cabras e aves eram bens acessíveis à maioria dos moradores. Os cuidados com os animais de criação, especialmente com a alimentação, pertenciam às mulheres como parte das suas tarefas domésticas, não sendo reconhecido como trabalho, apesar da importância econômica desses bens para as famílias. A venda dos animais vinha atender as necessidades das famílias proprietárias para financiar viagens para o Sul em busca de trabalho, em ocasiões de casamentos, tratamento de doenças graves. Entretanto era o roçado, como trabalho dos homens, o mais valorizado por garantir o alimento das famílias no dia a dia.

A prática da migração sazonal para o corte de cana (trabalho alugado) na zona da mata paraibana, ou para o Sul em trabalho na construção civil, era mais uma estratégia de sobrevivência adotada por muitos moradores. Com a migração, sobretudo dos homens, as mulheres permaneciam trabalhando em todas as frentes de atividades, embora pelo caráter sazonal, eles retornavam para a renovação dos roçados. Os relatos das mais jovens revelam a saudade dos maridos; e das mais velhas, uma aceitação da situação como inevitável. As atividades artesanais estavam voltadas para o complemento de renda, e ao mesmo tempo para o consumo doméstico. O artesanato de renda de labirinto se destacou como trabalho das mulheres voltado para venda, já a produção de louça de barro por uma única artesã e a confecção de tijolos pelos homens eram voltados também para o consumo interno. Havia uma venda com itens não produzidos pelas famílias, e várias casas dos moradores vendiam querosene e cachaça, itens indispensáveis para iluminação das casas e para aliviar o sofrimento dos moradores da comunidade. Com isso, a economia local tinha um caráter doméstico e de autossustento sobretudo, embora contassem com algumas entradas de recursos externos com as vendas dos trabalhos de renda de labirinto, de animais de criação e de mão de obra alugada.

Um fator de conflito e desigualdade na economia interna se dava no uso da casa de farinha pertencente a uma família da comunidade, que abria as portas a outras famílias em troca de uma parte da farinha produzida, montante superior ao cobrado por casas de farinha de fora da comunidade. Com isso, as famílias optavam por outra casa de farinha, apesar das despesas de transporte em lombo de burros. O saber e a liderança feminina foram identificados especialmente em duas mulheres, a parteira e rezadeira, e a liderança de uma mulher que fazia a mediação entre a comunidade e os políticos para suas reivindicações, sendo reconhecida pela comunidade. Com esse levantamento minucioso, foi possível identificar os especialistas da comunidade, com destaque para as mulheres.

No capítulo final, foi a vez de tratar das formas de sociabilidade no lazer e práticas religiosas internas, sendo as externas envolvidas em tensões como fruto das relações raciais e interétnicas. No primeiro plano, ela tratou das práticas culturais internas, começando com um registro das diferentes formas de lazer dentro da comunidade, onde aparecem, em primeiro lugar, as festas juninas com as danças de ciranda no terreiro onde são armadas fogueiras.[2] As devoções se revelam no gosto pelas estampas de santo e fotos da família em painéis nas paredes das salas das casas, como mostram as fotos contidas no livro. Os jogos de futebol e de tabuleiro para os meninos e homens, e a preparação da caieira para queima de tijolos, considerada como atividade de lazer dos homens porque durante a queima se divertiam com danças de ciranda regadas a bebidas.  

Quanto às relações raciais e interétnicas, Bebete se baseia em Cardoso de Oliveira (1972), e lista as situações em que os conflitos se sobressaíam, começando no contexto da igreja católica. Era necessário que brancos e negros dividissem o mesmo espaço em igreja situada em comunidade vizinha, devido à ausência de capela na comunidade, o que gerava discórdias em relação às celebrações dos santos. A comunidade contava apenas com um salão/capela. A Pastoral do Negro criada pelo arcebispo negro da Paraíba Dom José Maria Pires, com atuação nas comunidades rurais negras, para onde eram enviados missionários negros, que além da evangelização levavam programas de hortas comunitárias e o “Projeto Cabra”, como estímulo a atividades coletivas, num modelo similar ao preconizado pela economia solidária. O sucesso desses programas foi limitado pela reação contrária de vários moradores que se recusaram a aceitar as regras coletivistas dos programas, já que as organizações produtivas familiares não agregam necessariamente práticas distributivas.

Outros espaços de tensões raciais e interétnicas ocorriam nas festas em comunidades vizinhas, nas idas à feira, nas escolas inexistentes na comunidade e nos casamentos interraciais. Inúmeros relatos de conflitos raciais deram conta de um cenário cruel de discriminação racial em todas as esferas: igreja, feira, escola e festas. A análise produzida questiona a ideologia da democracia racial que negligencia as relações interraciais na prática. No contexto das escolas, foi relatado que professoras indicavam que o maior número de reprovação era dos alunos de Pedra d’Água, e de que uma delas teria dito que não gostava de receber os alunos negros na escola dela. Já os casamentos interraciais provocavam reações de resistência por parte das famílias de Pedra d’Água, que consideravam como casamento preferencial o que se fazia na comunidade entre os parentes, ou entre negros, de modo a evitar os conflitos no meio familiar e a crítica social de reprovação a casais interétnicos. Foi relatado que na história da comunidade houve apenas três casamentos interétnicos, havendo depoimentos que começam a flexibilizar esta visão, tais como: “de uns tempos pra cá baldiaro tudo”, ou “achei bonito, branquinho com pretim, clareou mai a famia” (LIMA, 2020, p. 233).  Nos depoimentos sobre as festas fora da comunidade, foram relatadas várias práticas de exclusão dos negros de Pedra d’Água, em algumas situações apenas as moças negras eram convidadas para as festas, com exclusão dos rapazes.

Partindo das tensões e conflitos abertos nas relações raciais e interétnicas vividas pela comunidade de Pedra d’Água, Bebete definiu uma área em torno do território pesquisado com comunidades vizinhas identificada por fronteiras interétnicas conforme Barth (1969). Fronteiras que ela assim definia: “As duas espacialidades: o território negro e o espaço branco, contrastam-se e se fundem em uma relação mesclada de impressões e representações que ora aproximam, ora separam os grupos em relação” (LIMA, 2020, p. 233).

Do tecido formado pelas duas espacialidades para compor as fronteiras interétnicas foi detectado que elas atuam fortalecendo o sentimento de pertencimento dos negros de Pedra d’Água a uma identidade étnica baseada em um grupo consanguíneo e guardião da memória de seu ancestral comum, cujos vínculos retrocedem a cinco gerações.

Ao fim do seu percurso etnográfico, Bebete conseguiu construir uma imagem sensível e acurada do modo de vida quilombola, até 1990, reconhecendo a singularidade de Pedra d’Água por meio de uma tessitura que envolveu o território, o parentesco e as fronteiras interétnicas, que levou ao confronto com o sofrimento da discriminação racial. Esse tecido, comum ao universo das comunidades rurais negras, delimita uma identidade étnica, cujo estudo continua significativo trinta anos depois, daí sua importância fundamental para os novos pesquisadores no terreno.

 

Referências

 

ALMEIDA, Alfredo Wagner Berno de. Terras de preto, terras de santo e terras de índio – posse comunal e conflito. Revista de Humanidades, Brasília, n. 1, ano 4, p. 42-48, 1988.

ARRUTI, José Maurício A. Mocambo: antropologia e história do processo de formação quilombola. Bauru-SP: Edusc, 2006.

BANDEIRA, Maria de Lourdes. Terra e territorialidade negra no Brasil contemporâneo. In: ENCONTRO ANUAL DA ANPOCS, 15., 1991, Caxambu. Anais [...]. Caxambu: Hotel Glória, 1991, p.1-33.

BARTH, Fredrik. Groups and boundaries. London; Bergen-Oslo: Universities Forgalet; George Allen and Unwin, 1969.

CAVALCANTI, Josefa Salete. Talhado: um estudo de organização social e política. 1975. Dissertação (Mestrado em Antropologia Social) — PPGAS, Museu Nacional, Rio de Janeiro, 1975.

GEERTZ, Cliford. A interpretação das culturas. Rio de Janeiro: Zahar, 1978.

LIMA, Elizabeth Christina de A. A fábrica dos sonhos: a invenção da festa junina no espaço urbano. 2. ed. Campina Grande: EDUFCG, 2008.

LIMA, Elizabeth Christina de A. Os negros de Pedra d’Água: um estudo de identidade étnica – história, parentesco e territorialidade numa comunidade rural. São Paulo: Mentes Abertas; Campina Grande: EdUEPB, 2020.

NASCIMENTO, Rogério Humberto Zeferino. Nós somos outros: apontamentos em torno do exercício da pesquisa antropológica nos quilombos de Pedra d’Água e Vaca Morta/PB. In: BANAL, Alberto; FORTES, Maria Ester Pereira (Orgs.). Quilombos da Paraíba: a realidade de hoje e os desafios para o futuro. João Pessoa: Imprell Editora, 2013, p. 106-127.

OLIVEIRA. Roberto Cardoso de. Problemas e hipóteses relativas à fricção interétnica. In: OLIVEIRA. Roberto Cardoso de. A sociologia do Brasil indígena. São Paulo: Tempo Brasileiro, USP, 1972, p. 83-131.

PERALTA, Rosa Eugenia, ANDRADE, Maristela Oliveira. Acesso a direitos e parecerias transformam paisagem do brejo paraibano. In: BANAL, Alberto; FORTES, Maria Ester Pereira (Orgs.). Quilombos da Paraíba: a realidade de hoje e os desafios para o futuro. João Pessoa: Imprell Editora, 2013, p. 226-249.

SANTOS, José Vandilo. Negros do Talhado: estudo sobre a identidade étnica de uma comunidade rural. 1998. Dissertação (Mestrado em Sociologia Rural) — Universidade Federal de Campina Grande, Campina Grande, 1998.

 

Recebido em: 29/01/2021.

Aceito em: 08/03/2021.

DOI: https://doi.org/10.46906/caos.n26.57467.p311-318

 



* Doutorado em Étude Latino-Americaine/Anthropossociologie des Religions pelo IHEAL/Université de Paris III/França. Professora titular aposentada do Departamento de Ciências Sociais/UFPB/Brasil. Professora voluntária nos Programas de Pós-Graduação em Antropologia e em Desenvolvimento e Meio Ambiente/UFPB/Brasil. E-mail: andrademaristela@hotmail.com.

[1] A experiência de produção do laudo gerou a publicação de um texto escrito a partir do relatório da pesquisa. Ver Nascimento (2013).

[2] O interesse pelo estudo das festas juninas viria a ser mais tarde o campo de estudo de Bebete, tema da sua tese de doutorado, transformada em livro: Lima (2008).

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