“DEVORAÇÃO E MOBILIDADE”: a antropo(filo)fagia de Oswald de Andrade[1]
“DEVOURING AND MOBILITY”: Oswald de Andrade’s anthropo(philo)phagy
DOI: https://doi.org/10.46906/caos.n26.59358.p219-244
Resumo
O presente ensaio busca apresentar o literato Oswald de Andrade como o formulador de uma antropo-filosofia, ou uma antropologia política antropofágica, que erige tanto um peculiar pensamento político decolonial brasileiro, bem como uma reflexão filosófica “metacultural”. Para tanto, analisou-se a vida e obra do autor a fim de compreender como a noção de antropofagia atua em duas instâncias, uma discursiva e outra normativa. Por fim, considera-se que se trata de um ensaio antropofágico, e, assim sendo, empreendeu-se uma linguagem discursiva que buscou ser minimamente fiel às propostas estéticas do autor analisado, que, no entanto, não se faz usual no âmbito acadêmico.
Palavras-chave: Antropofagia; Decolonialismo; Sociologia do Conhecimento; Modernismo Brasileiro.
Abstract
The essay seeks to present the writer Oswald de Andrade as the formulator of an anthropo-philosophy, or an anthropophagic political anthropology, which issues both in a peculiar Brazilian decolonial political thought, as well as a “metacultural” philosophical reflection. To this end, the author's life and work were analyzed in order to understand how the notion of anthropophagy operates on two levels, one discursive and the other normative. Finally, given that this is an anthropophagic essay, a discursive language was utilized that sought to be minimally faithful to the aesthetic proposals of the author analysed; a fact not common in the academic field.
Keywords: Anthropophagy; Decolonialism; Sociology of Knowledge; Brazilian Modernism.
Introdução
A massa [...] há de chegar ao biscoito fino que eu fabrico.
Oswald de Andrade (1940, p. 49)
No Brasil do início do século XX, pensadores, literatos, políticos e artistas de todas as ordens ocuparam-se em dar contornos à fisionomia e psychē da jovem nação então em construção. No entanto, as marcas do passado escravista e, por conseguinte, a massa negra liberta de lumpens era compreendida como uma âncora que atravancava o deslanche da nação idealizada.
Para muitos políticos e literatos da virada dos séculos XIX-XX o binômio atrasado-moderno tratava-se antes de um paradoxo facilmente solucionável, com a importação de mão de obra branca e tecnologias das nações industriais. Para os proto-sociólogos e intelectuais das artes da época, o caráter atrasado-moderno era tão só a síntese de uma dialética abismal resultante do encontro de diferentes e inventivas culturas que, pelo seu inevitável choque, tornavam-se descontínuas e passíveis da formulação de uma (nova) tradição.
Oswald de Andrade, personagem paradigmático da intelligentsia da época, foi um verdadeiro “escritor que fez da vida romance e poesia, e fez do romance e da poesia um apêndice da vida” (CANDIDO, 1976, p. xi). Vida ou Romance? Indagou Antônio Cândido em seu “prefácio inútil” sobre Oswald de Andrade.
De todo modo, reação, mais que ação, caracteriza a obra e a pessoa que foi este pensador iconoclasta. Afinal, em seu último ensaio, de 1953, intitulado A marcha das utopias, Oswald retomou 25 anos depois da publicação do Manifesto antropófago a noção antropo-filosófica de Antropofagia, embora de forma crítica, para reagir contra a superficialidade das filosofias liberais-humanistas pelas quais se orientam as ciências e a sociedade moderna.
Em vista do exposto, o presente ensaio tem em sua pretensa ousadia, por um lado, apresentar a dimensão discursiva da noção de antropofagia, e, por outro, uma dimensão normativa através do pensamento antropo-filosófico de Oswald de Andrade. Trata-se, portanto, da articulação e mediação de um tipo de antropologia política — antropofágica — que erige tanto um peculiar pensamento decolonial, bem como uma reflexão “metacultural” que, segundo Viveiros de Castro (2008, p. 25), é a “mais original produzida na América Latina até hoje”, o que lhe confere o estatuto de “grande teórico da multiplicidade”.
Para a consecução do presente ensaio, recorreu-se ao método documental de interpretação de Karl Mannheim (1980) e ao método epistemológico-crítico de Walter Benjamin (2013) para, por um lado, desvelar as distintas visões de mundo e seus deslizes semânticos ao longo da institucionalização do Estado brasileiro, e, por outro lado, localizar a importância do pensador Oswald de Andrade no rol dos grandes intérpretes do Brasil.[2]
A primeira parte do ensaio, intitulada “devoração e mobilidade”, apresenta a dimensão narrativa da Antropofagia através da metáfora da barbárie instituída pela própria civilização em seu processo de expansão e desenvolvimento capitalista. Considera-se, portanto, a Antropofagia como uma metáfora da Modernidade.
“Oswald Canibal”, segunda parte do presente trabalho, apresenta uma breve biografia do literato, pensador e boêmio Oswald de Andrade. Através de sua privilegiada condição social, Oswald lança-se ao front da vanguarda como ator político e, ao radicalizar o pensamento modernista vigente na década de 1920, com seu Manifesto Antropófago (1928), fornece uma tática-cultural de decolonização, bem como aponta para novas e insuspeitas direções no campo das artes, da política, da filosofia e das ciências em geral.
A terceira parte do trabalho segue uma abordagem pós-estruturalista e apresenta a dimensão normativa da antropologia política de Oswald de Andrade. Trata-se, portanto, de uma proposta um tanto audaciosa, uma vez que ela pretende compreender, através da antropo-filosofia de Oswald de Andrade uma prática paradisíaca dotada de pulsão orgiástica que é capaz de instaurar uma nova ordem, senão social, uma nova ordem subjetiva através da transmutação corrente do self. Emerge, assim, um tipo de filosofia política prática que compreende o campo de sobredeterminação — antropofagia — através de sua capacidade de mediação e articulação do social, e que revela o quanto a sociedade brasileira “ainda se debate nas tenazes raivosas da reação por não ter levado às últimas consequências a certeza de sua alma primitiva. O que sobrenada, sobrenada no caos” (ANDRADE, 2011a, p. 281, grifo nosso).
A quarta e última parte se trata das considerações finais, e traz uma reflexão social, política e filosófica pela qual apontamos a antropo-filosofia de Oswald de Andrade, ou a articulação política antropofágica, como uma saída da “crise geral da consciência universal”.
Devoração e mobilidade
O meu destino é de um paraquedista que se lança sobre uma formação inimiga: ser estraçalhado.
Oswald de Andrade (1940, p. 49)
Para introduzir o presente ensaio, faz-se necessário explicar previamente a escolha do título. Apropriamo-nos da expressão “devoração e mobilidade” forjada por Antonio Candido ao referir-se a Oswald de Andrade para descrever sua capacidade surpreendente de absorver o mundo, triturá-lo para recompô-lo (CÂNDIDO, 2011, p. 49), como forma de caracterizar não só o literato, mas o próprio espírito moderno, a ideia de seu tempo; voraz e veloz.
Devoração e mobilidade não são apenas as características do próprio Oswald-antropófago, são características que se apresentam como marcas de um tempo que se abriu de forma violenta, e que segue a sua própria marcha sem nunca voltar atrás. Marcas que foram gravadas na história pela emergência das massas vorazes e famintas e pela velocidade imprimida pelos avanços tecnológicos, pela mercantilização do mundo da vida (HABERMAS, 1984). Estes são temas que foram apreendidos e compreendidos pela sociologia e pela psicologia como características por excelência da modernidade.
Marx (1978), por exemplo, apresenta-nos a modernidade através da aceleração dos processos de produção na economia capitalista, que por sua vez produziu o homem alienado. Por outro lado, Weber (2011) compreendeu a modernidade através do crescente processo de desencantamento do mundo e racionalização burocrática. Durkheim (2010) compreende a modernidade através do processo de diferenciação, que, catalisado pela industrialização, converteu radicalmente as antigas solidariedades mecânicas em formas orgânicas de solidariedade. Simmel (2005) nos apresenta a modernidade como uma espécie de intensificação da vida nervosa, que eleva os tipos de individualidades na vida em metrópoles. Em outras palavras, os clássicos da sociologia tratam, cada qual em seu tempo moderno, do mal-estar generalizado da civilização e da cultura, parafraseando Freud.
Devoração e mobilidade, portanto, são características de um tempo aberto pelo próprio choque de “civilizações” e da civilização. O homem civilizado é bárbaro; ou vive em um tempo de extrema barbárie. Primeiro ele foi devorado pelo horizonte, o além-mar. Depois, foi devorado pelos povos do além-mar, o antropófago-canibal. Por fim, todo o antropoceno vem sendo devorado por suas próprias criações. Devorado pelo espaço, devorado pelo tempo, devorado pela cidade, devorado pelo trabalho e pela máquina (industrial, econômica, burocrática etc.). Para viver na cosmópole, os homens devem devorar antes de serem devorados.
No contexto brasileiro, São Paulo converteu-se rapidamente de província em metrópole cosmopolita, “brotou súbita e inexplicavelmente, como um colossal cogumelo depois da chuva, era um enigma para seus próprios habitantes, perplexos, tentando entendê-lo como podiam, enquanto lutavam para não serem devorados” (SEVCENKO, 1992, p. 31). A cidade do início do século XX traduz bem essa ideia de ser devorado pelo espaço-tempo, bem como evidencia a necessidade da devoração para a instituição do novo. Antropofagia, devorar italianos, japoneses, turcos, armênios, poloneses, holandeses e húngaros. Declinar tudo e todos.
A expressão devoração e mobilidade fornece “carne e sangue”, como diria Malinowski (1976), para preencher o esqueleto vazio das construções abstratas e compreender a modernidade e os dispositivos para a constituição desse novo ser. Pela invenção. A síntese. Devorar a carne e mover o sangue pela força da imagem poética: antropofagia. Pela expressividade do axioma: “Só me interessa o que não é meu. Lei do homem. Lei do antropófago” (ANDRADE, 2011a, p. 67).
A expressão devoração e mobilidade, como referida a Oswald, compreende a própria noção de antropofagia como uma metáfora exemplar da modernidade, já que ela devora tudo e todos. Modernidade de barbáries. Das sombras. O bellum omnium contra omnes reverberado pelas Guerras Mundiais, que, segundo Walter Benjamin (1986, p. 198) “devoram tudo isso, a cultura e o homem”, e, para Hannah Arendt (2014, p. 55), “todas as camadas da nação”. A antropofagia, desse modo, é capaz de descrever o homem que é o objeto deglutido pelo espaço-tempo e a máquina de deglutição do espaço-tempo, o Homem.
Como alternativa, a antropofagia aciona um mecanismo de resistência do sujeito em ser nivelado e consumido como objeto técnico-social (SIMMEL, 2005). É nesse sentido que se pode compreender as respostas — ativas e reativas — de Oswald de Andrade às reações nacionalistas de sua época.[3] Contra o homem da caverna tecnicizado, “ergueu-se o homem social, tecnizado também” (ANDRADE, 1991, p. 65). Reação à ordem e ao progresso. Reação ao positivismo, ao utilitarismo, ao evolucionismo e, sobretudo, à eugenia.[4] A antropofagia-cultural de Oswald de Andrade é nacional sem ser ufano-patriota, e não deve ser interpretada como uma mera expressão cultural nacionalista.
“A poesia existe nos fatos” (ANDRADE, 2011a, p. 59). Fez-se então Pau-Brasil, nacional, sem ser patriótico, prenunciando o instinto caraíba. “Contra todas as sublimações antagônicas. Contra a realidade social, vestida e opressora […] a realidade sem complexos, sem loucuras, sem prostituições e sem penitenciárias no matriarcado de Pindorama” (ANDRADE, 2011a, p. 71).
Antropofagia, industrialização e expansão da economia. Força centrípeta de imigração, São Paulo: a capital do café. Guararapes, “Japoneses/Turcos/Miguéis/ Os hotéis parecem roupas alugadas/Negros como um compêndio de história pátria/ Mas que sujeito loiro” (ANDRADE, 1971, p. 105). Oswald promove uma inversão completa, positiva os aspectos negativos da Reação Nacionalista através de uma operação poética (BERTELLI, 2012).
A questão nacional e a afirmação da autenticidade do Brasil diante das nações aliadas. Um mundo bestializado diante da barbárie da civilização. Devoração de um tempo marcado por guerras de dimensões jamais vistas. “Vejamos como Hitler e Mussolini puseram a serviço da humanidade os seus préstimos” (ANDRADE, 1991, p. 63).
No artigo intitulado “Qual Mussolini que vamos enforcar?” Oswald é peremptório: “Está provada a unidade do troglodita. Hitler-Mussolini, os produtos carnais da grande indústria burguesa, deram ao mundo a imagem do homem da caverna civilizado” (ANDRADE, 1991, p. 65). E aponta uma saída que, segundo Silviano Santiago (1991, p. 19), “guarda ainda grande atualidade em virtude do quadro universalizante em que se inscreve”. Esta saída é através da “mulatização”.
Perguntava-me a revista Diretrizes [...] que se devia fazer da Alemanha depois da guerra? [...] É preciso alfabetizar esse monstrengo. Há dentro dela um raio esquivo de luz. É o de seu Humanismo. É o que vem de Goethe e através de Heine produz Thomas Mann. A Alemanha racista, purista e recordista, precisa ser educada pelo nosso mulato, pelo chinês, pelo índio mais atrasado do Peru ou do México, pelo africano do Sudão. E precisa ser misturada de uma vez para sempre. Precisa ser desfeita no melting-pot do futuro. Precisa mulatizar-se (ANDRADE, 1991, p. 19).
Devoração e mobilidade. Para a pesquisadora Leyla Perrone-Moisés, a dialética de Oswald de Andrade permite superar “todo complexo de inferioridade por ter vindo depois”, além de “resolver os problemas de má consciência patriótica que nos levam a oscilar entre a admiração beata da cultura europeia e as reivindicações estreitas e xenófobas pelo autenticamente nacional” (PERRONE-MOISÉS, 1990, p. 98-99).
Maria Cândida Ferreira de Almeida, em seu artigo Só a antropofagia nos une (2005), reverbera as observações do historiador americano Richard Morse (2011), para quem História e Literatura revelam “o multiverso da identidade latino-americana”. Afirma a autora:
A esta linhagem pertence o poeta Oswald de Andrade que, com suas muitas facetas de escritor, foi ensaísta, crítico literário e o filósofo da antropofagia, um conceito de vida calcado no primitivo que ele propôs como artefato para pensar a cultura americana, diante de seu dilema de “estar tensionado entre a sedução ocidental e as reverberações da [nossa] própria história” (ALMEIDA, 2005, p. 121, os grifos da autora).
Autores como Richard Morse, Maria Cândido Ferreira de Almeida e Suely Rolnik, ao analisarem as propostas de Oswald de Andrade, apontam como “o discurso estético tem sido a via, mesmo que heterodoxa, essencial para as reflexões sobre o poder” (ALMEIDA, 2005, p. 121).
Devorar o colonizador e mover o colonizado. Ou simplesmente decolonizar através de uma operação heroica de construção de uma linguagem que, sendo própria, seria capaz de engendrar novas formas de sentir, pensar e agir.
Na proposta estético-discursiva, a forma, apreende-se também o conteúdo normativo antropofágico. Trata-se antes de uma questão ôntica maior, da Política, e não apenas um problema ontológico, do ser, ou do político (MOUFFE, 2015). Trata-se de como as estruturas de poder constitutivas da modernidade instauram uma totalidade que impossibilita a lógica de justiça social. Portanto devorar é a melhor maneira de significar (RIBEIRO; DOMINGOS, 2013) e ressignificar o self para, então, libertar-se da visão de mundo que naturaliza como um primado valorativo a posição social desigual pelo sucesso individual.
Devoração e mobilidade. Comensalidade e ecumenismo. Antropofagia-Ideia. Prática cultural e filosofia política agonística contra a cidadania restrita e a desigualdade latente. Uma perspectiva crítica e periférica: deglutir o colonialismo para neutralizar seu poder ideológico
Oswald Canibal: a negação do ócio de “um homem sem profissão”
A vida e obra de um escritor são a mesma coisa.
Principalmente quando ele é sincero. Quando nada esconde.
Oswald de Andrade (2011b, p. 95)
Vida ou romance? As ideias políticas de Oswald de Andrade confundem e fundem o criador e a criatura no Oswald Canibal, o devorador de mundos, articulador de ideias e mediador de extremos. Eixo de articulação, Oswald canibal, campo de sobredeterminação: utopia antropofágica.
Entende-se por articulação toda prática que institui uma relação entre elementos dispersos, e que consiste na produção de pontos nodais que fixa um sentido parcial, embora precário, através do esforço necessário para limitar a contingência histórica (LACLAU; MOUFFE, 2015, p. 188). Já o conceito de sobredeterminação[5], pego de empréstimo da psicanálise, traduz a nossa proposta de interpretação do perfil sociopolítico de Oswald de Andrade, bem como do empreendimento de uma espécie de epistemologia-crítica, ou mesmo uma ontologia política, do pensamento antropofágico.
Vanguardista, bufão, burguês, mulherengo e boêmio. Oswald de Andrade é uma personagem paradigmática na constelação de intelectuais e intérpretes do Brasil. Sua posição privilegiada e marginal destoa dos demais pensadores brasileiros (MARTINS, 2001, p. 2). Com uma vasta produção intelectual de caráter transdisciplinar, Oswald de Andrade transitou entre os mais variados gêneros literários e formas, e debruçou-se sobre os mais diversos objetos, porém manteve um tipo de fidelidade temática que foi recorrentemente problematizada em vida pelo autor (LIMA, 2016, p. 298).
Atento às transformações culturais e tecnológicas de sua época, Oswald não se absteve de emitir opiniões carregadas de juízos de valor antagônicos aos juízos hegemônicos de seus contemporâneos. No bojo de sua vasta produção, a preocupação não era apenas com as diferenças imanentes, mas com a desigualdade que transcende a exclusão social.
O autor, ora compreendido por pura pilhéria, blague, ou mesmo sarcasmo de um burguês-boêmio e iconoclasta, por muitas vezes mal compreendido, e por outras, visto como o grande expoente da vanguarda modernista, ou ainda, “o gênio que dá regra à arte” como disse Kant (2005, p. 153), não se aquietava diante da gerência das desigualdades exercida por seu próprio meio político social. Para Roger Bastide (1946), Oswald foi a decomposição desse romantismo amoroso da família burguesa (ANDRADE, 1991, p. 67). De todo modo, quando nos deparamos com as poesias, as críticas ácidas e os gongos intelectuais promovidos por Oswald de Andrade, torna-se irrefutável que o autor sabia muito bem que “... a burguesia é tão impermeável quanto é sensível a todo tipo de ação” (BENJAMIN, 1986, p. 29).
Desde a fundação de O Pirralho[6] (1911) e da garçonnière da rua Líbero Badaró, 67 (1917-1918) [7] podemos acompanhar ativamente a vida mundana, política e social não só da emergente cidade, que se via na posição de vanguarda nacional, mas do próprio Oswald Canibal (NUNES, 1978), que se lançou ao front da própria vanguarda paulistana para afrontá-la. Com seu estilo de vida herdado da vida boêmia e literária da capital, Rio de Janeiro, onde o campo literário e o campo político fundiam-se em um tipo de elite cultural dominada pela Academia Brasileira de Letras, Oswald logo se apresentou como uma espécie de promotor da vanguarda para a transformação cultural necessária.
No Brasil, o movimento artístico de vanguarda, cujas bases sólidas foram lançadas na Semana de Arte Moderna de 1922, radicalizou suas próprias raízes primitivas, o que resultou no empreendimento estético-político representado pelo Manifesto da Poesia Pau-Brasil (1924).[8] Ao radicalizar o seu caráter social e político, através do Manifesto Antropófago (1928)[9], institui uma espécie de linha de fuga ao problema da cópia, ou seja, da condição de meros reprodutores dos modelos estrangeiros, e de uma sobredeterminação histórica, ou uma ordem simbólica plural em significados, que, por fim, era determinada em última instância pela posição periférica de ex-colônia.
Cabe notar que há uma ligação entre os dois manifestos elaborados por Oswald. Poder-se-ia até mesmo dizer que já havia uma estética antropofágica anterior aos manifestos, apenas não havia o discurso-prático antropófago. Podemos apreender ambas as dimensões em todas as atuações deste “homem sem profissão”, maneira como o próprio Oswald se intitulou.
Segundo Rubens Oliveira Martins (2001), que analisou a trajetória de Oswald de Andrade até o início dos anos de 1920, o literato, devido a sua posição de classe e considerável autonomia, gozava de dois tipos de liberdades; uma definida nos limites possíveis da diferenciação e outra circunscrita pela normatização do próprio campo intelectual. Com isso, Martins ressalta a figura de Oswald como um tipo de intelectual entre dois mundos, cuja formação no trânsito entre a boêmia típica e a boêmia dourada, e sua condição abastada permitiu-lhe transformar-se em um intelectual independente, assim como engendrar uma nova forma de atuação na vida intelectual.
Oswald deve ser compreendido como um elemento articulatório ou mesmo como o eixo de mediação que faz do popular erudito e do suposto erudito um populismo-nacionalista nocivo para a independência cultural e liberalização política da sociedade. A sua posição privilegiada lhe permitiu engendrar uma prática discursiva que, anos mais tarde, tornar-se-á hegemônica não por suas mãos, mas através da mitificação do herói sem caráter Macunaíma (1928), de Mário de Andrade, do símbolo nacional que virou o quadro de Tarsila do Amaral, o Abaporu (1928), ambos absorvidos acriticamente, de sobremodo, pelo Estado-nacional brasileiro. Em contrapartida, a tradição antropofágica instaurada por Oswald desliza recorrentemente entre formas e ideias, mãos e mentes diversas; das gerações da arte concreta e neoconcreta dos grupos paulista Ruptura (1952) e carioca Frente (1956), do Cinema Novo de Glauber Rocha ou do Cinema Marginal de Rogério Sganzerla, entre tantos outros. Por inspiração antropofágica e herdeiros diretos, o teatro vivo do grupo Teatro Oficina Uzina Uzona, que em 1967 encenou pela primeira vez O rei da vela, teatro donde surgiu um novo manifesto, Tropicalismo, e um movimento cultural que gozará de ampla legitimação popular. Todas estas expressões artísticas reclamaram contra a situação política, social e cultural do país atado pelo subdesenvolvimento.
Mas a força poética do discurso de Oswald, neste caso, de seu “texto profano” — cujos frutos caem no tempo certo (BENJAMIN, 1987, p. 18) —, nos mostra a potência subterrânea contida na sua ideia de antropofagia; que foi capaz de ser ressignificada recorrentemente ao longo desses últimos oitenta anos, como podemos observar no breve levantamento do estado da arte do conceito (antropofagia cultural). E agora, por nós, também entendida como um campo de sobredeterminação da cultura brasileira.
A literalidade da metáfora “Antropofagia” contém o significante dos significantes da cultura brasileira; absorver o estrangeiro ou o mundo exterior passou a ser uma questão de ordem. Seu símbolo, antes de ser o guerreiro tupinambá canibal, passou a ser seu filho, o mestiço bandeirante, devorador de almas, assimilador por natureza precária; um verdadeiro etnocida.[10]
A escolha do manifesto como forma de apresentação de seu discurso indica a necessidade de legitimação do autor e, por conseguinte, do campo, diante de seu público. Não obstante, todo o manifesto apresenta a sua narrativa em tom de conclamação e não esconde o seu caráter persuasivo. De toda forma, a escolha de um grande veículo de comunicação na capital federal, Rio de Janeiro, como instrumento para fazer ressoar suas ideias, cristaliza o caráter político de Oswald de Andrade e de sua vanguarda de antropófagos (CARDOSO, 2015, p. 339). Portanto, através da ação imperativa, o discurso-prático convoca o público para participar e legitimar tanto a sua comunidade imaginada de canibais como o seu próprio espaço no campo artístico.
O discurso oswaldiano, não obstante seu caráter gongórico e provocativo, se encontra tão intimamente ligado ao contexto de sua época que propõe a reconciliação com o mundo não somente pelas suas práticas carnavalescas, dentre as quais a antropofagia aparece como a alegoria suprema, mas pelo seu empreendimento de desencantamento da linguagem e da retórica oficial. “Contra o falar difícil, contra todas as catequeses” … “Nenhuma fórmula para a contemporânea expressão do mundo. Ver com olhos livres” (ANDRADE, 2011a, p. 65).
Os elementos como a boemia, o riso, o obsceno, a marginalidade das personagens e dos temas nas obras de Oswald se confundem facilmente com a vida pessoal do autor. Tais elementos de foro subjetivo serviram como categorias de análise para Bertelli (2012) apreender a operação política da estética oswaldiana. Elementos que se encontram em diálogo direto com a historicidade dos fatos sociais e políticos deste sujeito em ação, atento às bruscas transformações de seu tempo.
O tom jocoso das revistas e jornais, dos manifestos artísticos e das críticas político-culturais, anunciava a transformação pela qual a esfera pública brasileira, sobretudo a paulistana, passava. O riso, ou a ironia oswaldiana, pode ser compreendido não só como a evidência de uma crítica, mas como uma necessidade de deslegitimar a hegemonia política e/ou cultural das classes que representavam os resíduos tradicionalistas e conservadores incompatíveis com o “mundo desencantado” do contábil “espírito moderno”, marcado pelo “embotamento frente à distinção das coisas” (SIMMEL, 2005, p. 581).
O riso empreendido ao longo das obras de Oswald, e que se confunde com a fama de sua persona como o clown da burguesia, pode ser considerado como uma tentativa de “reconciliação com o mundo”, ou uma tentativa de ordenação do mundo através do discurso-ação que ironiza os aspectos da vida social e política das classes dirigentes, reduzindo-os, assim, à esfera do risível, tal como na análise de Bertelli da moral burguesa (ARENDT, 1975 apud BERTELLI, 2012, p. 541).[11] Tal feito só se torna possível devido à existência de um mundo/esfera-pública que se encontra sempre em aberto, onde os indivíduos que “partilham o sensível” (RANCIÈRE, 2005 apud BERTELLI, 2012, p. 544) — os elementos estéticos — acabam por tomar parte de seus lugares não só como um produto do social, mas como produtores de política.
Com o empréstimo do argumento de Roberto Schwarz (2000), pode-se pensar em uma realidade na qual as ideias se encontram “fora do lugar''. Não apenas as ideias, mas também “os objetos” e as “técnicas práticas” estariam "fora do lugar" (NITSCHACK, 2016, p. 166). Nessa perspectiva, compreende-se o discurso antropofágico de Oswald como uma espécie de “reverberação de uma verdade nascendo diante de seus próprios olhos” (FOUCAULT, 2013, p. 46).
Por outro lado, a síntese de Oswald, pela própria ideia de antropofagia, mostra a universalidade da barbárie em termos de civilização e cultura, e expressa-se antes pelas múltiplas características e a função social ordenadora do tabu, que, em sua “transformação permanente em totem” (ANDRADE, 2011a, p. 69), é capaz de comportar o velho e novo, o atrasado e moderno, bem como a civilização e a barbárie como “unidades contraditórias"[12] do desenvolvimento humano em sua “marcha da utopia”.
Da impossibilidade do social à antropo(filo)fagia política
Para fazer poesia avançada, revolucionária, enfim, que de algum modo
sirva ao progresso humano, uma condição essencial se impõe,
que a poesia não se preste a humorismo e blague para o gozo das direitas.
Oswald de Andrade (2011b, p. 53)
O pensamento social e político de Oswald de Andrade, longe de inverter a polaridade das relações sociais e humanas supostamente antagônicas, apresenta uma crítica e uma saída transversal e alternativa às narrativas liberais que conservam na fórmula a visão de indivíduos potencialmente iguais, porém desiguais em termos de competência (FRANCO, 1976), o mecanismo normativo universal para a segregação e exclusão social.
Ao pensar a contemporaneidade como uma disjunção irreconciliável devido à intensa dilatação dos processos de alienação e reificação do mundo e dos homens, também pensamos a “antropofagia-cultural” como um point de capiton ou um campo de sobredeterminação, cuja força da “pulsão subterrânea” da alegoria oswaldiana nos possibilita exercê-la em sua potência filosófica, ou seja, como “prática paradisíaca”. Assim, a ideia de antropofagia, discurso-prático dotado de pulsão orgiástica, propõe-se instaurador de um mundo ao articular um próprio regime estético, transversal e alternativo, porém concorde enquanto “partilha do sensível”[13] (RANCIÈRE, 2005).
Antropofagia, portanto, opera um discurso articulador e mediador que age como um campo simbólico, e cuja partícula sensível, seu ponto fixo, pode e deve ser constantemente ressignificado como forma de reinvenção dos homens e da sociedade. Para tanto, a antropofagia-ideia deve ser discurso dotado de ação, ou seja, uma “prática paradisíaca”; “onde a questão da identidade seria um tema completamente secundário e subordinado”, e “os eus que incorporam o cosmos não conhecem nenhuma outridade e nenhuma preocupação por sua identidade” (NITSCHACK, 2008, p. 5).
Antropofagia-cultural é, portanto, um tipo de proposta político-filosófica (universal) que rechaça o universalismo das filosofias humanistas para empreender seu próprio humanismo, através da prática paradisíaca que opera tanto como um discurso que propõe uma permanente reformulação da identidade quanto uma prática articulatória que visa à eliminação do antagonista pela inclusão, pela assimilação completa. Portanto para excluir o outro, este outro que é sempre um perigo, é preciso incorporá-lo. “Morte e vida das hipóteses. Da equação eu parte do kosmos ao axioma kosmos parte do eu. Subsistência. Conhecimento. Antropofagia” (ANDRADE, 2011a, p. 70).
Ao contrário do que se pode pensar dessa noção de “prática paradisíaca”, que se apresenta como um tipo de desprezo ao próximo, o deglutir o outro, do antropófago moderno — simbólica e sensualmente —, trata-se de fazer ele próprio se servir como elemento de articulação que conduz os fluxos de informação, para então, através da transmutação individual obtida pelo intercâmbio das potências, garantir que a sociedade não se asfixie. A utopia oswaldiana, dessa forma, deve ser encarada como uma proposta universal e não apenas mais um “bolo no levedo crescido” do nacionalismo-primitivismo.
Antropofagia é a “única lei do mundo” (ANDRADE, 2011a, p. 70.). A estrutura argumentativa de Oswald de Andrade não é ingênua nem tampouco está a favor de um universalismo qualquer. Oswald postula “um novo universalismo (que no fundo é mais antigo) — não o universalismo ocidental da tradição judaico-cristã nem o universalismo do Iluminismo que prega um universalismo em nome da razão” (NITSCHACK, 2008, p. 6). Oswald acusa um novo universalismo, tão antigo quanto a própria Antiguidade, e postula uma nova filosofia, que nada tem de nova. Atualmente, acusam-no de formular uma crítica certeira à mentalidade ocidental. Nas palavras do filólogo e filósofo alemão Horst Nitschack, a filosofia antropofágica de Oswald de Andrade foi “o primeiro argumento fundamental contra a civilização ocidental” (NITSCHACK, 2008, p. 6).
Observa-se que o discurso do antropófago Oswald propõe uma reconciliação com o mundo. Em suma, ele busca conformar em sua noção da antropofagia-cultural um tipo de filosofia trágica que opera antes como uma espécie de prática paradisíaca; já que propõe a formulação de uma (não)identidade cujo princípio é manter-se sempre aberta ao mundo.
Na dialética antropófaga de Oswald, observamos o quanto o mundo moderno da máquina social despótica é tão devorador quanto o homem que o habita. Poder-se-ia até entender o discurso antropofágico como uma grande máquina de atração que sucede a repulsa do mundo sobrecodificado; mas não é apenas assim, pois ele assimila e recodifica o caos constante pelo qual se expressa a realidade. Da mesma forma que Oswald acusa a não totalidade da história, ao postular um universalismo não doutrinário, ele também acusa que o homem historicizado pelo tempo, no qual “tudo estremece”,[14] necessita sempre de uma "reconfiguração reflexiva" [denkende umbildung] (WEBER, 2011) para digerir e metabolizar o passado, os traumas e os fantasmas das mazelas cotidianas.
Entender a proposta oswaldiana da antropofagia-cultural enquanto uma síntese que produz esta espécie de “corpo sem órgãos”, que nada mais é que um campo de sobredeterminação, é compreendê-la como um “campo de identidades que nunca conseguem ser plenamente fixadas” (LACLAU; MOUFFE, 2015, p. 185).
Na noção de antropofagia cultural, observamos não um “corpo sem órgãos” (DELEUZE; GUATTARI, 2011), mas órgãos sem um corpo específico. E justamente por não haver um corpo, um socius, é que podemos auferir a ideia de um discurso “maquínico” que, sendo convertido em um campo simbólico sobredeterminante, propõe nada mais que uma prática articulatória permanente de criação e transmutação do self (si mesmo).
Se a controversa noção de “máquina” está associada à concepção do inconsciente enquanto um “corpo sem órgãos”, isso se dá porque a máquina “define a operação por excelência do desejo”. A noção de máquina indica a capacidade de “agenciar elementos de uma infinita variedade de universos”, produzindo não só a realidade subjetiva, mas engendrando múltiplas figuras da realidade (ROLNIK, 2000, p. 10).
Ao nos apropriarmos da ideia de máquina de Deleuze e Guattari podemos desenhar com luz e contraste essa superfície sensível que é a foto da antropofagia no imaginário ocidental. Assim, nos deparamos com o calótipo da antropofagia, sua imagem negativa/positiva, reveladora de memórias/histórias que são operadas por desejos de emoldurar os fragmentos da experiência sensível e sensual em figuras que estabelecem um mundo-objeto, real.
O “inconsciente maquínico antropofágico”, ao contrário do cinocéfalo canibal Estado despótico — máquina social territorial/socius —, nos permite a metaforização de “órgãos sem corpo”, mas sem inverter a proposição de Deleuze e Guattari, de sua noção de inconsciente-máquina, que tanto é produzido pelos desejos como deles se tornam um produto. A antropofagia, assim, é uma “máquina miraculante” que atrai os órgãos imanentes da terra; que podem ser metaforizados pela boca, estômago e ânus; ou, o que come, o que digere e o que expele. A máquina miraculante antropofágica, dessa forma, é capaz de agregar uma constelação de metáforas, “entre cultura, política e religião frente aos desafios históricos do colonialismo e as atuais potencialidades oferecidas pelo uso de técnicas (tecnologias) mais avançadas” (NITSCHACK, 2016, p. 162). A antropofagia-cultural é interpretada por nós como uma máquina miraculante porque se ocupa de regenerar o corpo negado pelo paranoico. O paranoico é aquele que suspeita de forma generalizada do Outro-eu, e é, de certa forma, o canibal-antropófago moderno; movido por seus órgãos primitivos e sensíveis — boca, estômago e ânus — a “máquina territorial primitiva”, cujo socius é imanente.
A unidade imanente da terra como motor imóvel dá lugar à unidade transcendente de natureza totalmente distinta, que é a unidade de Estado; o corpo pleno já não é o da terra, mas o do Déspota, o Inengendrado, que se encarrega agora tanto da fertilidade do solo como da chuva do céu e da apropriação geral das forças produtivas. O socius primitivo selvagem era, portanto, a única máquina territorial em sentido estrito. E o funcionamento de uma tal máquina consiste no seguinte: declinar aliança e filiação, declinar as linhagens sobre o corpo da terra, antes que haja um estado (DELEUZE; GUATTARI, 2011, p. 194)
Antropofagia, máquina miraculante de regeneração da máquina territorial primitiva. Símbolo que reúne uma série de elementos díspares, mas que é apreendido e condensado pela palavra, pela literalidade da metáfora, pela operação da linguagem em seu duplo movimento — alegoria. Palavra que é sempre discurso dramatizado ou uma prática produzida pelo seu próprio campo semântico. “É que a palavra ‘palavra‘ [parole] significa algo que vai muito mais longe do que aquilo que chamamos assim. É também uma ação” (LACAN, 1953). E as ações podem ser tanto metaforizadas e simbolizadas como também podem servir de alegorias, já que “todo indivíduo pode servir para alegoria, assim como um caso individual para uma regra geral” (NIETZSCHE, 2005, p. 12).
Portanto cada indivíduo apreende as emanações de um símbolo de acordo com a própria produção desejante. Símbolos se tornam repositórios de significações, depósitos de significados, linguagens significantes, células pelas quais se estruturam os sentidos de ordem e de caos. Assim, entendemos que “a ideia é da ordem da linguagem” (BENJAMIN, 2013, p. 13), e que a linguagem se confunde com a ordem do simbólico justamente porque o simbólico se inscreve no real. Isso se dá porque o símbolo em si não é um elemento diferencial, mas sim uma estrutura capilar que institui um tipo de ordem mediante o jogo de elementos significantes através do discurso (LACAN, 1953). A palavra, nesse sentido, “desempenha este papel essencial de mediação; […] isto é, de algo que trocam os dois parceiros em presença, a partir do momento em que foi realizada” (LACAN, 1953, online).
A extensa obra de Oswald de Andrade também nos apresenta a ideia de máquina como eixo de articulação. É “o trabalho contra o detalhe naturalista — pela síntese; contra a morbidez romântica — pelo equilíbrio geômetra e pelo acabamento técnico; contra a cópia, pela invenção e pela surpresa” (ANDRADE, 2011a, p. 63). Em outras palavras, a máquina antropofágica de Oswald opera entre a utopia do real e a distopia subjetiva, como um tipo de unidade argumentativa subjacente à sua filosofia e tática político-cultural. É, portanto, uma espécie de relação mecânica com o mundo no sentido de uma necessária simbiose entre o criado e o incriado, entre o mito e o logos, uma vez que “a verdade é sempre a realidade interpretada, acompanhada a um fim construtivo e pedagógico” (ANDRADE, 2011b, p. 139).
Para o nosso autor, palavra e ação constituem um único discurso-prático. Observa-se como a articulação e a mediação da “palavra-símbolo” desliza em matéria, historicamente, de acordo com a produção desejante que é tão só um produto social. Segundo Deleuze e Guattari (2011, p. 46), “há tão somente o desejo e o social”. Esta afirmativa prediz que o campo social como ordem simbólica “é percorrido pelo desejo, que é seu produto historicamente determinado”. É nesse sentido que podemos entender a antropofagia enquanto uma produção desejante da máquina territorial primitiva, cuja declinação das alianças e da filiação tem por objetivo único a reafirmação da diferença através da eliminação da desigualdade. Afinal, torno-me Deus devorando meu inimigo, portanto, devoro o inimigo que é Deus, para tornar-me o próprio inimigo.
Antropofagia, palavra significante-significado, ação e reação. É, portanto, um discurso de sentido prático, uma espécie de antropofilosofia política que evidencia o desejo gregário através da instituição de um bem-comum, eudaimonia (εὐδαιμονία), sensivelmente partilhado através da deglutição das partes ditas exclusivas, οἶκοι, privadas, idios — idiotes. Em outras palavras, a antropo-filo-fagia opera de forma decolonial quando descortina que os notáveis ou o “exclusivo” não é apenas o particular, bem como tudo aquilo que é aparentemente peculiar a um indivíduo. Por fim, a proposta crítica antropofágica acusa a condição de exclusão ou de não pertença do elemento estigmatizado (o tabu) de um socius universal. Afinal, a desumana exclusão social só se dá porque existe um eixo de mediação despótico e pretensamente total de articulação dos elementos conflitantes, seja em forma de regime político (democracia-liberal), seja em forma de doutrina econômica (capitalismo).
Algumas correntes de estudos apontam que a proposta de Oswald se trata de uma leitura sobre a identidade nacional. O autor certamente propõe um reencontro do Brasil consigo mesmo através da retomada do discurso sobre a virtuosa consumação da vingança pelo antropófago tupi. No entanto, omitem tais estudos que a vingança é a vingança das massas famintas e vorazes por desejo de justiça. Portanto, diria Oswald, radical e surreal, somos “primitivos” e/ou naturalmente dadaístas, cubistas, modernos surrealistas. Num tempo mítico, “tínhamos o comunismo”, “a língua surrealista”. “A idade de ouro. Catiti Catiti / Imara Notiá / Notiá Imara / Ipeju” (ANDRADE, 2011a, p. 70).
É, portanto, através da experiência mística do surrealismo que podemos compreender as bases de construção para uma possível realidade onde logos e mitos se fundem em uma nova razão — alternativa — sensível, sensual e sensória (POMPEU, 2019); “a base dupla e presente — a floresta e a escola” (ANDRADE, 2011a, p. 65). Pois, no ato de devorar o estrangeiro, de se interessar pelo que não é meu, faço de tudo meu, minha propriedade; “lei do homem”.
Cumpre anotar que esta ideia de assimilação por incorporação muitas vezes é interpretada e consumada de forma equivocada por meio da noção de aculturação. O jornalista Marcelo Coelho, em seu artigo intitulado “Antropofagia é hoje sinônimo de importação”, publicado na Folha de São Paulo em outubro de 1998, faz uma grande ressalva acerca das distorções do conceito de antropofagia, e traz à luz um exemplo mais que simbólico:
[…] O conceito vai ficando enganoso. Antropofagia, a meu ver, é menos o ato de influenciar-se pelo estrangeiro e mais o ato de negá-lo. A devoração não é, creio eu, confissão de dependência estética. Temos, na verdade, uma distorção ideológica que diz muito a respeito da conjuntura nacional. No fundo, é da política econômica do governo Fernando Henrique que se trata. Iludimo-nos, ao longo destes quatro anos, com a promessa de capitais externos. Deleitamo-nos com quinquilharias importadas. Tudo, na verdade, reproduzia a síndrome da dependência econômica (COELHO, 1998, online).
Como devorar o estrangeiro está em nossa gênese histórica, então, a incorporação de elementos exógenos se encontra de forma mais que determinante em nossa genética cultural. Uma sobredeterminação e um tipo de habitus; e aqui falamos de um habitus nacional, de uma disposição inconsciente mediante a socialização histórica por parte do Estado em seu intuito de forjar uma identidade nacional total.
A ontologia política antropofágica ressalta as diferenças e a multiplicidade que constituem o todo “uno e indivisível” universal, para então desvelar a impossibilidade de justiça e igualdade social das ditas filosofias liberais-iluministas. Por um lado, a crítica antropofágica permite observar o quanto a desigualdade corresponde a uma ordem de transcendência, uma vez que ela requer a operação de um discurso que institui o nós-deles. Antropofagia para devorar o discurso opressor da igualdade e do mérito subjacente à fábula liberal, fábrica de desigualdades e injustiças sociais. “A magia e a vida. Tínhamos a relação e a distribuição dos bens físicos, dos bens morais, dos bens dignários. E sabíamos transpor o mistério e a morte com o auxílio de algumas formas gramaticais” (ANDRADE, 2011a, p. 70).
Operação estética e política para acusar o falso universalismo “trazido nas caravelas”. Oswald ressalta: “Se Deus é a consciência do Universo Incriado, Guaraci é a mãe dos viventes. Jaci é a mãe dos vegetais” (ANDRADE, 2011a, p. 70.). Em outras palavras, Oswald nos diz que a igualdade fabulada pelos escolásticos-humanistas e pelas filosofias liberais-iluministas existe, porém reside num único fator expresso pelo espírito humano, que é o fato de todos sermos diferentes e dotados de juízos distintivos.
A antropofagia revela a natureza do óbvio, tão caro para as mentes e corpos recalcados pela máquina despótica, que é a impossibilidade de justiça social sob a forma da igualdade-liberal; essa, confundida largamente com as democracias-ocidentais e sistemas representativos das democracias-pluralistas. Em contrapartida, ao ressaltar o caráter imanente da diferença, ou “a contribuição milionária de todos os erros”, a antropo-filo-fagia de Oswald de Andrade aponta que a igualdade e a justiça social só se realizam quando “um negro gira a manivela do desvio rotativo em que estais”. “Negras de jóqueis”. “Rui Barbosa: uma cartola na Senegâmbia”. (ANDRADE, 2011a, p. 59-61). “Contra a Memória fonte do costume. A experiência pessoal renovada” (ANDRADE, 2011a, p. 73). “A crise da filosofia messiânica” para a injunção histórica “da economia do Ser (Matriarcado)” (ANDRADE, 2011a, p. 191). A antropo-filo-fagia propõe-se uma fórmula epistemológica-crítica de decolonização de mentes e corpos capaz de acusar a impossibilidade de justiça sem que haja a eficácia da democracia-racial e de gênero.
Considerações finais
O despertar da modernidade — canibal —, sobredeterminado pelo Grande Cinocéfalo Estado-nacional, trouxe à tona toda sorte de externalidade negativa que cada empresa humana, em síntese conjuntiva com a máquina despótica, pode produzir. Quando se desvela o Estado de classes, evidencia-se a corrupção que lhe é inerente. Esta devora não em metáforas, mas literalmente todos aqueles que são postos às suas margens.
A antropo-filo-fagia se pretende “lei universal”, “valor absoluto”, ou, elemento síntese — mediação, articulação e sobredeterminação — da dialética abismal entre a própria Natureza e as Culturas (no plural), bem como das dicotomias entre significado e significante, pois, “lá onde o crer deixa de estar presente nas representações, a autoridade, agora sem fundamento, é logo abandonada e seu poder desmorona, minado do interior” (CERTEAU, 2011, p. 11).
Antropofagia é tática política (BERTELLI, 2012), prática paradisíaca e filosofia trágica (NITSCHACK, 2008; NUNES, 1979); teoria revolucionária (VIVEIROS DE CASTRO, 2008); é, portanto, a conclamação de um estado de vanguarda natural e permanente sem nenhum líder que não seja eu mesmo. “Nota Insistente”, maio de 1928, diz a Revista de Antropofagia, nº 1, página 08: “A descida Antropofágica não é uma revolução literária. Nem social. Nem política. Nem religiosa. Ela é tudo isso ao mesmo tempo”[15].
Dessa forma, compreende-se a antropo-filo-fagia como uma fórmula que visa interditar “a emergência de um poder político individual, central e separado” (CLASTRES, 2013, p. 225). Eis a importância de uma nova sociologia e filosofia completamente nova, “oriundas possivelmente dos Canibais de Montaigne, venham varrer a confusão de que se utilizam, para não parecer os atrasados e os aventureiros fantasmais do passado” (ANDRADE, 2011a, p. 281).
Oswald, na esteira do filósofo francês, diz que devemos nos alimentar dos desejos desprovidos de qualquer valor social positivo, que se apresenta sob a forma de valor absoluto. Portanto desprovidos dos mecanismos de defesa do Eu e dos “imperativos categóricos” trazidos pelas caravelas. Antropofagia denuncia “que o consenso dominante tende a obscurecer e obliterar" a natureza do óbvio, o despotismo pelo qual a sociedade se encontra simbolicamente organizada (MOUFFE, 2013, p. 190). Observa-se que a desigualdade e a exclusão social são tão somente produtos da esfera nada-neutra do chamado Estado-nacional, que se encontra a serviço de governos regidos quase que exclusivamente por interesses privados. Antropofagia para questionar o caráter ôntico das políticas.
No Brasil, onde vive-se recorrentes ataques ao empreendimento democrático, bem como em diversos momentos de crises econômicas, a antropo-filo-fagia fez-se reativa; fosse como resposta ou como proposta em contraponto, uma nova perspectiva, uma nova escala, transmutação nacional para superação das crises.
O tripé pelo qual desenvolvemos a antropo-filo-fagia corresponde a uma tática cultural de decolonização; a uma metáfora da barbárie capitalista; e, por fim, uma filosofia-prática paradisíaca que consagra o valor da diferença pelo desprendimento e pela capacidade de fornecer uma resposta efetiva e eficaz para o mundo que produz a desigualdade no interior do discurso liberal e igualitário.
Da antropofagia ritual tupi à antropofagia-cultural de Oswald de Andrade, o importante é superar e absorver socialmente as desigualdades transcendentes pela compreensão de que as diferenças são imanentes e naturais. A filosofia política antropofágica, portanto, é uma crítica e um elogio da multiplicidade do ser e da plasticidade da sociedade, embora nunca oblitere o conflito, nem os subjetivos nem os objetivos. Antropofagia é uma visão permanente do “estado-crítico” do mundo, que requer a presença de todos para a articulação de novas formas de ser e estar através da devoração e mobilidade de todo o conteúdo trágico da vida para, então, superá-la. A antropo-filo-fagia é a reafirmação da diferença através da eliminação da desigualdade.
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Aceito em: 13/05/21.
DOI: https://doi.org/10.46906/caos.n26.59358.p219-244
[1] O presente ensaio foi desenvolvido a partir da monografia apresentada para a obtenção do grau de bacharel em Ciências Sociais pela Universidade Federal da Paraíba no ano de 2018.
* Bacharel em Ciências Sociais e mestrando do Programa de Pós-Graduação em Ciência Política e Relações Internacionais, ambos pela Universidade Federal da Paraíba/Brasil. E-mail: josemauropompeu@gmail.com.
[2] Benjamin ressalta que, “onde só os extremos são necessários”, a palavra se converte em ideia que se materializa como símbolo. Dessa forma, cabe ao investigador restituir o caráter simbólico da representação, “que é o oposto de toda comunicação orientada para o exterior” (BENJAMIN, 2013, p. 11), para então compreender “as experiências ligadas a uma mesma estrutura, que por sua vez constitui-se como base comum das experiências que perpassam a vida de múltiplos indivíduos” (MANNHEIM, 1980, p. 101).
[3] Trata-se da crítica ao nacionalismo ufanista e ao ideário de Sampaio Dória, que pregava uma reação da cultura pela supremacia nacional (SEVCENKO, 1992, p. 246).
[4] A formação do discurso de nação passava antes por uma revisão histórica que teve por princípio lançar a “Paulistânia cabocla” como motor desenvolvimentista do país em construção. Figura-se, então, os bandeirantes como os verdadeiros donos da terra, “uma vez que assumiriam uma posição mais elevada do que ‘negros’ e ‘mestiços’, já que estes teriam pouco ‘capital eugênico’” (COSTA, 2014, p. 831).
[5] Acerca da noção de sobredeterminação, dizem Laclau e Mouffe: “… é um tipo bastante preciso de fusão que envolve uma dimensão simbólica e uma pluralidade de significados. O conceito de sobredeterminação é constituído no campo simbólico, e não tem qualquer sentido fora dele. Consequentemente, o sentido potencial mais profundo do enunciado de Althusser de que tudo que existe no social é sobredeterminado, é a asserção de que o social constitui-se como ordem simbólica” (LACLAU; MOUFFE, 2015, p. 169).
[6] Semanário que contou com participação de Alcântara Machado e Juó Bananère e a colaboração de Di Cavalcanti, considerada a revista mais importante do período em São Paulo (MARTINS, 2001, p.32).
[7] Frequentavam a garçonière figuras como Monteiro Lobato e Menotti Del Picchia, mais tarde desafetos pessoais e adversários políticos de Oswald de Andrade.
[8] O Manifesto da Poesia Pau-Brasil teve sua estreia em 18/03/1924 no caderno Letras & Arte do jornal Correio do Amanhã.
[9] Publicado na Revista de Antropofagia (1929), fundada por Raul Bopp, Antônio de Alcântara Machado e Oswald de Andrade. A revista circulou de maio de 1928 a fevereiro de 1929, e teve como colaboradores modernistas da primeira geração (1922) como Plínio Salgado, Mário de Andrade, Jorge de Lima, Carlos Drummond de Andrade, Manuel Bandeira, Menotti del Picchia, Oswaldo Costa, Murilo Mendes, Augusto Meyer, Pedro Nava etc.
[10] De acordo com Pierre Clastres (2014) o etnocídio trata-se de “uma negação positiva, no sentido de que ela quer suprimir o inferior enquanto inferior para içá-lo ao nível superior” (p. 80) e “resulta na dissolução do múltiplo no Um” (p. 83).
[11] Citação de Hannah Arendt referida a Lessing: “o tipo de riso de Lessing em Minna von Barnhelm tenta realizar a conciliação do mundo. Tal riso ajuda a pessoa a encontrar um lugar no mundo, mas ironicamente, isto é, sem vender a alma a ele” (ARENDT, 2008, p. 15-16).
[12] O conceito de “unidade contraditória”, cunhado por Maria Sylvia de Carvalho Franco, “remete a uma compreensão sociológica afinada à historicidade do processo social, e que a pessoalização das relações sociais e das práticas de poder não produz as mesmas sociedades que se formavam nas experiências históricas europeias, elas respondiam de modos próprios a determinações mais gerais da expansão do capitalismo e da construção da sociedade moderna” (BOTELHO, 2013, p. 254). Entende-se, portanto, que a “noção de ‘unidade contraditória’ carrega consigo o próprio princípio da ‘dominação pessoal/colonialidade’ como um tipo de ‘estrutura psíquica’ do próprio capitalismo, que comporta continuidades de séries históricas e produz, pela descontinuidade da violência permanente, histórias heterogêneas” (POMPEU, 2019, p. 286).
[13] “Denomino partilha do sensível o sistema de evidências sensíveis que revela, ao mesmo tempo, a existência de um comum e dos recortes que nele definem lugares e suas partes respectivas. Uma partilha do sensível fixa portanto, ao mesmo tempo, um comum partilhado e partes exclusivas. Essa repartição das partes e dos lugares se funda numa partilha de espaços, tempos e tipos de atividade que determina propriamente a maneira como um comum se presta à participação e como uns e outros tomam parte nessa partilha” (RANCIÈRE, 2005, p. 15).
[14] Termo cunhado por Ernst Troeltsch (1865-1923) para se referir à crise do historicismo europeu de 1900.
[15] Cumpre ressaltar a interpretação do pensador marxista peruano José Mariátegui, para quem a revolução surrealista dos anos de 1920 “não [foi] um simples fenômeno literário, mas um complexo fenômeno espiritual. Não se trata de uma moda artística, mas de um protesto do espírito” (MARIÁTEGUI, 1988, p. 105).
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