FAT STUDIES: entrevista com Cat Pausé

 

FAT STUDIES: interview with Cat Pausé

 

Cat Pausé*

Nicole Pontes**

 

https://doi.org/10.46906/caos.n28.62500.p95-100

 

Caitlin Clare Pausé — Cat Pausé — foi especialista na área dos Fat Studies, professora da Massey University (Nova Zelândia) e diretora do Centro de Libertação das Pessoas Gordas. Coeditou The Routledge International Handbook of Fat Studies (PAUSÉ; TAYLOR, 2021) e coordenaria a próxima conferência Fat Studies: Rights, Personhood, Disposability que ocorrerá online em julho de 2022.[1] Sua pesquisa está focada nos efeitos do estigma da gordura na saúde e no bem-estar de indivíduos gordos e como os ativistas gordos resistem ao “Apocalipse Gordo”. Ela foi defensora de uma nova ética da gordura que se centralize numa epistemologia da gordura. Seu programa de rádio e podcast, Friend of Marilyn,[2] vem apresentando trabalhos acadêmicos e discussões sobre gordura, bem como introduzindo temas e indivíduos ligados ao ativismo gordo desde 2011. A presente entrevista[3] foi realizada em janeiro de 2022 por Nicole Pontes, professora e pesquisadora da Universidade Federal Rural de Pernambuco, Unidade Acadêmica de Serra Talhada, como parte de um projeto para estreitar laços e ampliar o acesso da comunidade acadêmica brasileira interessada nos Fat Studies aos autores e autoras da área mundo afora. A entrevista foi realizada em reunião virtual por meio do aplicativo Zoom. Respostas mais pontuais às questões específicas foram enviadas por e-mails. Toda a comunicação foi estabelecida em inglês, e as respostas traduzidas para o português pela entrevistadora.

 

Nicole — Olá, Cat! É um prazer enorme poder realizar esta entrevista. Queria começar pedindo que você nos conte um pouco sobre sua formação em ciências sociais e como você chegou à área de estudos do corpo gordo (Fat Studies)?

Cat — Minhas duas primeiras graduações foram em Sociologia, e sou feminista desde que fui capaz de ter consciência sobre minha própria mente. Minha dissertação de doutorado explorou a identidade do peso em mulheres supergordas (como eu), e uma das participantes me perguntou se eu já tinha lido The Obesity Myth (O mito da obesidade, ainda sem tradução no Brasil) de Paul Campos (2004). Eu não tinha, mas adicionei à minha pilha crescente de “leia esses livros quando terminar seu doutorado”. Depois que me formei e me mudei para a Nova Zelândia, e superei o choque de ambas as mudanças de vida, comecei a ler por prazer novamente. E o livro de Paul mudou minha vida.

Sempre fui gorda. E passei muito tempo em guerra com meu corpo quando era mais jovem. Mas mesmo quando eu “sabia” que eu era “ruim, insalubre, nojenta, embaraçosa”, mesmo quando eu tentava desesperadamente não ser mais gorda, sempre havia uma vozinha na minha cabeça dizendo que não havia nada de errado comigo. O livro de Paul reforçou para mim que a maioria das coisas que me ensinaram sobre a relação entre gordura, saúde, comida e corpos eram besteiras. E a partir daí, comecei a ler mais materiais de Estudos Críticos da Obesidade (como Michael Gard) e, eventualmente, Fat Studies (como Sam Murray). Assim que descobri a Gordosfera (Fatosphere) — política gorda online[4] —mergulhei fundo nessa nova maneira de pensar sobre minha gordura. Muito rapidamente depois disso minha pesquisa mudou de foco para fazer parte dos Fat Studies.

Nicole — Os pesquisadores e o público em geral consideram os estudos de gordura como uma nova área de investigação científica em expansão. Embora no Brasil, essa área de estudos esteja realmente se fortalecendo agora, em países como Reino Unido, EUA e Nova Zelândia, os Fat Studies já vêm se desenvolvendo há pelo menos 30 anos. O que você considera como os elementos fundadores da disciplina, e como eles se desenvolveram ao longo do tempo?

Cat — Podemos identificar acadêmicos, como Esther Rothblum, que produzem na área de estudos sobre a gordura há décadas. E os ativistas gordos têm trabalhado pela libertação dos corpos gordos por mais tempo do que isso. Quanto ao surgimento da disciplina em si, acredito que a publicação do The Fat Studies Reader em 2009, e a revista acadêmica Fat Studies: an International Journal of Body Weight and Society, da Taylor & Francis em 2011, são pontos-chave. A conferência FSNZ – Fat Studies New Zeland, que começou em 2012, é a única conferência dedicada aos Fat Studies em andamento no mundo. Sua existência fala do crescimento do campo e do empenho dos estudiosos que atuam nesse espaço.

Nicole — Qual é o papel das ciências médicas nos estudos de gordura?

Cat — Acredito que os Fat Studies, como área interdisciplinar, têm muito espaço para o engajamento com outras disciplinas. Acredito que pesquisadores da área da saúde poderiam conduzir a ciência médica usando uma epistemologia gorda e uma metodologia gorda — garantindo que a ética gorda esteja em vigor. Infelizmente, atualmente as ciências médicas são quase inteiramente baseadas em estudos da obesidade, patologizando o corpo gordo e propondo “curas”.

Nicole — Qual é a conexão entre ativismo e academia no campo dos Fat Studies e das ações antigordofobia?

Cat — O ativismo gordo veio primeiro, e muito sobre o que sabemos e entendemos sobre gordura e atitudes gordofóbicas, vem das práticas e experiências de ativistas. Um dos pontos fortes da área de Fat Studies, na minha opinião, é que reconhecemos que a produção de conhecimento não é algo exclusivo, apenas para acadêmicos. Os ativistas gordos há muito se engajam na produção de conhecimento gordo, e continuam a fazê-lo hoje.

Nicole — Como a interseção entre gordura e raça foi desenvolvida nos Fat Studies? Qual o papel que conceitos como raça têm na reorganização de como a gordura é percebida ao longo da história?

Cat — Nossas atitudes antigordura modernas são baseadas na supremacia branca e em como a branquitude usava o tamanho do corpo como uma forma de delinear quem era branco e quem não era. Nunca podemos perder isso de vista.

Infelizmente, o campo dos Fat Studies ainda é predominantemente branco. A maioria dos estudiosos da área são brancos. A maioria está localizada no Norte Global. Alguns estão fazendo um bom trabalho ao falar sobre branquitude e o papel da branquitude em suas pesquisas e, há grandes acadêmicos e ativistas que trabalharam (e estão trabalhando atualmente) na interseção entre gordura e raça, especialmente na interseção entre a negritude e a gordura nos Estados Unidos. No entanto ainda precisamos de mais acadêmicos na área dos Fat Studies em todo o Sul Global. Precisamos de estudos que explorem a interseção entre gordura e raça/etnia em todo o mundo — assim como na área da gordura e indigeneidade (povos originários) também.

Nicole — As questões de classe também são consideradas nas discussões dos Fat Studies? Pergunto isso porque, no Brasil, a classe parece desempenhar um papel predominante na definição não apenas de quais corpos são considerados aceitáveis, mas também na produção de um limite muito claro para o acesso a nichos “plus size” em moda, design, relacionamentos amorosos etc.

Cat — Tem, certamente, mas não o suficiente. Precisamos de muito mais estudos sobre a interseção entre classe e gordura. E adicionando raça/etnia a essa interseção também.

Nicole — Quais você acha que são os conceitos mais essenciais para os Fat Studies que alguém disposto a se aventurar por esse caminho deve estar atento para produzir uma análise de boa qualidade?

Cat — Em sua essência, a área de Fat Studies centra o corpo gordo — a pessoa gorda e a gordura em suas análises. E faz isso sem patologizar a gordura, ou assumir uma posição deficitária desde o início. Os Fat Studies abraçam uma epistemologia da gordura; a crença de que as pessoas gordas são as que melhor sabem o que é ser gorda. Nós somos os especialistas em gordura e quais são nossas experiências vividas.

Nicole — Quais são alguns dos desafios atuais na área de Fat Studies?

Cat — Como compartilhei anteriormente, a área de Fat Studies, atualmente, é incrivelmente branca e quase inteiramente baseada no Norte Global. Acredito que essa seja a maior fraqueza do campo, e sua expansão é a necessidade mais premente.

Nicole — Que desenvolvimentos você prevê para os estudos de gordura nos próximos dez anos?

Cat — Acabamos de inaugurar o Center for Fat Liberation & Scholarship — um centro dedicado a apoiar estudantes de doutorado em todo o mundo que estão desenvolvendo trabalhos na área dos Fat Studies. Espero que o Centro ajude a produzir a próxima geração de acadêmicos de Fat Studies. Espero que os Fat Studies continuem a se desenvolver na América do Sul e em toda a Europa — espero que na Ásia e na África também. Espero que os acadêmicos e ativistas dos Fat Studies em todo o mundo sejam capazes de se conectar uns com os outros em nosso trabalho e em companheirismo.

Espero que existam muitas áreas a serem desenvolvidas como linhas de pesquisa nos Fat Studies. Precisamos dos Fat Studies para aprofundar a compreensão sobre os papéis das estruturas sociais nas experiências vividas das pessoas gordas e a forma como a gordura é socialmente construída. Precisamos de arqueologia gorda, explorando as culturas materiais de pessoas gordas ao redor do mundo, tanto no passado quanto no presente. Precisamos de economia da gordura, explorando como o tamanho do corpo influencia nas questões econômicas, e como a gordura produz novas economias. Precisamos de uma história gorda, explorando as histórias de pessoas gordas e comunidades gordas ao redor do mundo e considerando como podem ser os futuros gordos. Precisamos de ciência política gorda, explorando o papel que o tamanho do corpo desempenha nas ideologias e atividades políticas. E precisamos da psicologia gorda, explorando a experiência vivida de indivíduos gordos e como a mente adota, revisa e reforça as atitudes gordas.

Estou muito empolgada com o futuro da disciplina. Eu acredito que é um futuro muito FARTO!

Nicole — Eu adoraria se você pudesse indicar alguns espaços de mídia interativa (redes sociais, podcasts etc.) e referências acadêmicas para que nossos leitores possam acompanhar os desenvolvimentos acadêmicos mais recentes na área e, também, o ativismo gordo.

Cat — Podcasts não acadêmicos: Fatties Talk Back, Friend of Marilyn, Fat.So!

A National Association to Advance Fat Aceeptance (NAAFA) tem produzido ótimos Webinários[5] nos últimos anos. Por fim, organizo o Fat Studies MOOO[6], que são sessões que acontecem uma vez por mês sobre um tópico diferente em Fat Studies com convidados que pesquisam ou atuam na área.

 

Referências

 

CAMPOS, Paul. The obesity myth: why America's obsession with weight is hazardous to your health. New York, NY: Gotham Books, 2004.

PAUSÉ, cat; TAYLOR, Sonya R. (ed.). The Routledge internacional handbook of fat studies. New York, NY: Routledge, 2021.

 

Recebido em: 10/03/22.

Aceito em: 03/05/22.

 

https://doi.org/10.46906/caos.n28.62500.p95-100

 

 



* Professora da Massey University/Nova Zelândia. PhD em Desenvolvimento Humano pela Texas Tech University/EUA. E-mail: C.Pause@massey.ac.nz.

** Professora da Universidade Federal Rural de Pernambuco. Doutora em Sociologia pela Universidade Federal da Paraíba/Brasil. E-mail: nicole.pontes@ufrpe.br.

[1] https://www.fsnz.org/fsnz-2022.

[2] https://www.friendofmarilyn.com/.

[3] N. E.: esta entrevista foi feita em janeiro de 2022, e o manuscrito foi submetido à Revista Caos em 10 de março. No dia 25 desse mês, estando o manuscrito no prelo, fomos surpreendidos com a triste notícia do falecimento da entrevistada. Cat Pausé morreu aos 42 anos de idade enquanto dormia em sua residência em Palmerston North, Nova Zelândia. O seu nome é, na atualidade, uma das mais importantes referências nos estudos do corpo gordo (Fat Studies).

[4] N. E.: refere-se à rede de blogs, sites pessoais e outros recursos presente na internet mantidos por e voltados para pessoas gordas.

[5] https://naafa.org/webinars.

[6] https://www.friendofmarilyn.com/fatstudiesmooo.

 

_____________________

Desenho de um círculo

Descrição gerada automaticamente com confiança médiaÉ permitido compartilhar (copiar e redistribuir em qualquer suporte ou formato) e adaptar (remixar, transformar e “criar a partir de”) este material, desde que observados os termos da Licença  CC BY-NC 4.0.