O PROJETO POLÍTICO DO CAPITALISMO FINANCEIRO E A FLEXIBILIZAÇÃO DO TRABALHO: contribuições de Luciano Gallino

THE POLITICAL PROJECT OF FINANCIAL CAPITALISM AND THE FLEXIBILITY OF WORK: contributions of Luciano Gallino

 

Letícia Negrão Chamma *

Vinícius Azevedo **

 

DOI: https://doi.org/10.46906/caos.n31.67352.p161-178

 

 

 

Resumo

O presente ensaio tem como objetivo introduzir as ideias e as contribuições do sociólogo italiano Luciano Gallino (1927-2015) para a compreensão do finanzcapitalismo — capitalismo financeiro —, bem como o contexto de emergência, a caracterização e atuação nas últimas décadas dessa nova etapa do capitalismo globalizado. Para Gallino, esse cenário político e econômico conduziu a sucessivas reformas e mudanças na vida econômica, no trabalho, nas manifestações culturais e sociais que criaram uma nova forma de extrair valor. O modo como o trabalho precário e flexibilizado funda uma forma de luta de classes gestada dentro do projeto político e econômico da globalização é utilizado como uma ilustração. Concluímos que as contribuições de Gallino para a compreensão dos limites do capitalismo financeiro e da flexibilização do trabalho têm potencial de inspirar a superação dessas condições.

Palavras-chave: capitalismo financeiro; flexibilização do trabalho; Luciano Gallino; sociologia contemporânea.

 

Abstract

The aim of this essay is to introduce the ideas and contributions of the Italian sociologist Luciano Gallino (1927-2015) to for the understanding of finanzcapitalismo – financial capitalism –, as well as the context of emergence, characterization and performance in the last decades of this new stage of globalized capitalism. For Gallino, this political and economic scenario has led to successive reforms and changes in economic life work, labor, cultural and social manifestations that have created a new way of extracting value. The way in which precarious and flexible work underpins a form of class struggle gestated within the political and economic project of globalization is used as an illustration. We conclude that Gallino's contributions to understanding the limits of financial capitalism and the flexibilization of work have the potential to inspire the overcoming of these conditions.

Keywords: financial capitalism; flexibilization of work; Luciano Gallino; contemporary sociology.

 

O cenário político e econômico do advento do capitalismo globalizado

 

As décadas finais do último século são acompanhadas por intensas mudanças em inúmeros campos dos componentes culturais, políticos e econômicos que abarcam a vida social. A tarefa fundamentalmente política a qual o movimento da globalização se empenhou na tentativa de recuperar o primado do capitalismo sobre a economia, a política e a cultura foi realizada ante um cenário totalmente abalado e reconfigurado do período Pós-Segunda Guerra Mundial e de surgimento de uma forma de Estado de “bem-estar social” (1945-1975). Diante disso, o fim da democracia moderna também significou o fim da relativa segurança material e imaterial conquistada pela classe trabalhadora a partir do reconhecimento dos direitos sociais e econômicos e da estabilidade dos empregos.

O pensador britânico Eric Hobsbawm (1917-2012) identifica, em A era dos extremos, que a globalização “é uma divisão mundial cada vez mais elaborada e complexa dos postos de trabalho; uma rede cada vez maior de fluxos e intercâmbios que ligam todas as partes da economia mundial ao sistema global” (HOBSBAWN, 1994, p. 92). Isso posto, as deliberações e resoluções dos representantes oficiais dos Estados sob a alcunha presidencial, de chancelaria e de chefia de Estado ou de governo foram importantes atalhos para redesenhar a trama que culminaria na implementação de políticas econômicas à altura de um capitalismo globalizado — gerando benesses diretas aos bancos, às grandes corporações transnacionais e ônus às classes subalternas.

O capitalismo financeiro, fenômeno associado à globalização econômica e cultural, é, em concordância com o sociólogo italiano Luciano Gallino (2011), um extenso processo intensificado sobretudo após a restauração capitalista na União das Repúblicas Socialistas Soviéticas (URSS) e das demais experiências socialistas do leste europeu. Essa ordem histórica gestou um novo cenário de luta de classes por meio de contínuas reformas políticas e econômicas de Estado. O impacto dessas reformas “pelo alto”[1] significou a contenção real do salário dos trabalhadores e o derrogamento das conquistas dos direitos econômicos e sociais derivados do período do Estado social. A diminuição do Estado foi responsável por, ao mesmo tempo, formar a classe capitalista transnacional e aviar e impulsionar as trocas econômicas no mercado global.

O processo de financeirização do capital, junto com a sua globalização, está acompanhado do desenvolvimento e da cristalização do neoliberalismo, que estrutura e legitima a ação política e econômica de modo a restaurar uma hegemonia que hoje já se mostrou global, do capital que se desloca, que não possui limites e nem restrições. Diferente de outros autores, como o filósofo Pierre Dardot, o sociólogo Christian Laval e a cientista política Wendy Brown, que também formulam uma crítica ao neoliberalismo como forma de civilização, Gallino (2012) não o considera uma racionalidade, mas sim uma ideologia que tem a sua origem com a perda de poder da classe capitalista no já citado período da democracia moderna (1945-1975). Assim, o sociólogo italiano não parte da razão neoliberal para compreender as atuais deformações do trabalho, mas estabelece como largada e horizonte o próprio modo de produção capitalista, a sua atual forma financeira e a produção de um novo modo de extrair valor: o trabalho flexível

Nesse sentido, o presente ensaio tem como objetivo introduzir as ideias e as contribuições do sociólogo italiano Luciano Gallino (1927-2015) para a compreensão do finanzcapitalismo — capitalismo financeiro —, bem como o contexto de emergência, a caracterização e atuação nas últimas décadas dessa nova etapa do capitalismo globalizado. Apresenta cinco seções: nas duas primeiras, buscaremos traçar e identificar os componentes do capitalismo financeiro como nova forma de extração de valor a partir da perspectiva de Gallino (2011), e as características do desenvolvimento dessa civilização, bem como seus efeitos na constituição do ser humano flexibilizado; na terceira seção, expomos o papel da ideologia neoliberal na ressignificação da sociedade capitalista; em sequência, na seção quatro e cinco, evidenciaremos de que maneira o trabalho flexível e precário se constitui como uma forma de luta de classes desenvolvida pelo projeto político e econômico da globalização.

 

Caracterização do finanzcapitalismo

Luciano Gallino define e caracteriza o capitalismo financeiro como “uma megamáquina construída para extrair valor”[2] (GALLINO, 2011, p. 7). Essa megamáquina, para o autor, é potente e eficiente, e tem como alicerce a massa de seres humanos, na qual é capaz de extrair valor do trabalho, bem como dos ecossistemas, para concentrar e potencializar os capitais. Contudo, o autor adverte que o processo de extração de valor se distingue do processo de produção de valor, uma vez que

 

Ocorre a produção do valor quando se constrói uma casa ou uma escola, quando é criado um novo medicamento, com a construção de um trabalho remunerado [...]. Ao contrário, a extração de valor ocorre quando se provoca um aumento do preço das casas manipulando as taxas de juros ou as condições do empréstimo; é imposto um preço artificiosamente mais alto ao novo medicamento; aumentam os ritmos de trabalho, mas não os salários, [...] ou quando se destrói um bosque para fazer um estacionamento de carros. (GALLINO, 2011, p. 8).

 

E dessa maneira, o autor conclui que para os capitalistas não existe o desejo da produção, mas sim de controle por meio da megamáquina intitulada capitalismo. Logo, “não é correto dizer que o capital tem poder. O capital é o poder” (GALLINO, 2011, p. 8). O poder de decidir, controlar e estabelecer os locais onde estão nas relações de produção e quem são os beneficiários da produção de coisas, valores e necessidades. Além de modificar, transmudar e dar cabo à natureza e aos ecossistemas por onde passa e extrai valor.

Para Gallino, o modelo industrial difere do finanzcapitalismo, uma vez que o primeiro busca obter dinheiro a partir de mercadorias, enquanto o segundo, por meio do próprio dinheiro. Não há mais a perseguição pela produção de mercadorias, o que existe, portanto, é uma constante busca pela aplicação e investimento na circulação do mercado financeiro com a intenção de obter cada vez mais lucro (GALLINO, 2011). A megamáquina capitalista foi capaz de introduzir, a contar da década de 1990, um considerável aumento nos valores das bolsas, semelhando-se a um processo inflacionário.

Verifica-se a alteração de época do capitalismo, a variação de capital operada pelo dinheiro, gerando mais dinheiro, e que resulta em um violento processo de financeirização dos indivíduos, das famílias, dos negócios e igualmente dos Estados-nacionais. A vida continuadamente endividada converte-se em retrato comum da existência dentro do capitalismo financeiro que reproduz em cada indivíduo a rede global da descomunal extração de mais-valor. Observa-se, portanto, a formação de um “proletariado global” (GALLINO, 2012, p. 83) incapaz de planejar o futuro, incerto em relação ao presente e dependente de empréstimos bancários — quando estes são concedidos. Não é à toa que o Brasil atingiu, no ano de 2020, a média de 66,5% de famílias endividadas, segundo a Confederação Nacional do Comércio de Bens, Serviços e Turismo (CNC), a média mais alta desde 2010, quando se iniciou a pesquisa sobre o endividamento (GALVÊAS, 2021).

O “sistema bancocêntrico”, como é utilizado por Gallino (2011, p. 10) para descrever o sistema financeiro que suporta e alimenta o franzcapitalismo, cumpre posição central no sustento do sistema financial e, igualmente, na globalização política e econômica. Tal globalização fez-se como utensílio indispensável da economia financeira para oportunizar e dar respaldo ao avanço do capitalismo como estrutura de funcionamento de um governo global, “capaz de unificar as civilizações pré-existentes em uma só civilização mundo e, ao mesmo tempo, de esvaziar de substância e de sentido o processo democrático” (GALLINO, 2011, p. 14).

 

A civilização-mundo e o primado da economia sob a política

 

Gallino parte da definição de civilização como o conjunto particular e historicamente delimitado em que a política, a economia, a cultura e a comunidade são ordenadas por um longo período (GALLINO, 2011). A partir dessa premissa, encontra-se, então, o que se pode chamar de civilização ocidental, por exemplo. O autor denuncia o processo de “ocidentalização do mundo”, traduzido na amplitude do alcance da cultura ocidental em escala globalizada, notadamente em ritmo acelerado nas últimas décadas. No entanto, Gallino (2011, p. 18) adverte que não se trata de uma “civilização ocidental alargada”, mas uma “civilização-mundo”, composta por características originais.

Para Gallino, essa nova forma global de civilização está marcada por três características fundamentais. A primeira delas corresponde à transposição mútua entre componentes estruturais com as formas de organização social. Dessa forma, para ele, “a economia aparece intimamente entrelaçada com a política; a cultura é manifestada simultaneamente como reflexo e instrumento de promoção de tal vínculo; na comunidade, ou no sistema sociodemográfico — o lugar físico e simbólico onde se reproduzem as pessoas e as suas formas básicas de convivência — foram introduzidas formas de cultura e de agir próprias do sistema econômico” (GALLINO, 2011, p. 18).

A partir dessa primeira asserção apresentada por Gallino, é possível estabelecer um paralelo presente em Karl Marx, em sua Carta a Pável V. Annenkov, escrita pelo pensador alemão em 1846. Ainda que o capitalismo vigente no século XIX fosse o industrial, a passagem dessa forma de capitalismo ao finanzcapitalismo e os impactos culturais, discutidos por Gallino, é ilustrada por Marx como “[...] os homens são forçados, a partir do momento em que o modo do seu comércio já não corresponde às forças produtivas adquiridas, a mudar todas as suas formas sociais tradicionais” (MARX, 2007). Em outras palavras, o processo de “ocidentalização” do mundo é o sopro de vida necessário para avançar o desenvolvimento do capitalismo na nova roupagem financeirizada. Significa, grosso modo, que para o capitalismo financeiro adentrar em novas fronteiras, os elementos da cultura local devem ser suplantados pelos componentes culturais e civilizacionais do Ocidente. Da mesma forma, anuncia Marx: “Assim, as formas econômicas sob as quais os homens produzem, consomem, trocam, são transitórias e históricas. Com novas faculdades produtivas adquiridas, os homens mudam o seu modo de produção e, com o modo de produção, mudam todas as relações económicas, que não foram senão as relações necessárias desse modo de produção determinado” (MARX, 2007).

É preciso alertar, no entanto, que o capitalismo financeiro não é um novo modo de produção que substituiu o capitalismo industrial dos escritos de Marx. Como alertado anteriormente, o finanzcapitalismo de Gallino é uma nova forma de extração de valor.

O segundo elemento desse processo registrado por Gallino é a quebra de limites no que diz respeito à satisfação de necessidades de recursos no comércio globalmente integrado. De outra maneira, se nos séculos anteriores a exploração de colônias era fonte de captura de recursos para venda no comércio europeu, agora, após a paulatina quebra de limites fronteiriços e culturais, a expropriação e o saque de civilizações longevas não são mais necessários da forma como existiram nos séculos do capitalismo incipiente — dado que, para Gallino (2011, p. 18), não há civilizações no tempo vigente, mas sim uma nova civilização de nível planetário.

A terceira característica é a interconexão entre as economias, o mercado de trabalho e a cultura, de tal modo que “qualquer evento que ocorra em uma delas produz efeitos imediatos, e às vezes instantâneos, nas outras” (GALLINO, 2011, p. 19), criando relações de interdependência entre as sociedades e as respectivas economias. O autor aponta o controle de diversas empresas transnacionais estadunidenses e europeias na produção dos postos de trabalho pelo mundo, arquitetado a partir das trocas comerciais pela World Trade Organization e pelo sem-número de acordos internacionais em ação desde o século XX.

Passado quase um século desde o início da venda de produtos do mercado de entretenimento estadunidense, os impactos do capitalismo financeiro, em conjunto com a impetuosa rede de informações trazidas pelas tecnologias de comunicação, mostram-se eficazes em unificar e homogeneizar a cultura e as civilizações em forma de produtos de massa: produções cinematográficas, televisivas e musicais (GALLINO, 2011). É esse um dos aspectos do projeto político da globalização: reduzir o poder da massa nas mais diversas esferas da vida, não apenas econômica e política, mas também cultural, transformá-la em ornamento, ou seja, em “reflexo estético da racionalidade aspirada pelo sistema econômico dominante” (KRACAUER, 2009, p. 95).

O processo de financeirização fez com que as margens de atuação da política tenham se limitado e restringido. As novas ferramentas desenvolvidas pelo capitalismo em curso engenham, como aponta Gallino (2011), novos instrumentos de poupança, de investimento e de gestão de patrimônios, fazendo com que as balizas das finanças empresariais ou familiares sejam excedidas sem qualquer tipo de controle dos Estados. Pelo contrário: o caminho para ultrapassar os limites entre a economia e a política foram abertos pela própria política, seus parlamentares e leis. Trata-se, na verdade, de um mútuo acordo realizado em meados de 1980 entre política e economia, entre Estado e sistema financeiro, em que as leis e os sistemas jurídicos implementados tinham como intuito garantir, legitimar e incentivar as ações das grandes corporações transnacionais (GALLINO, 2012).

Trazendo em voga a crítica de Gramsci, retomada pelo próprio Gallino em Gramsci y las ciencias sociales, a política é reduzida pelas doutrinas positivistas fundantes da ciência política como sinônimo de “política parlamentarista” (GALLINO, 1985, p. 11), pelo fato de que “antes de regular a economia para adaptá-la à sociedade, a política se comprometeu a adaptar a sociedade à economia” (GALLINO, 2011, p. 23). A política assume o papel de último socorrista daqueles que constantemente são açoitados pela economia sustentada pelo capitalismo financeiro e pelas privatizações concedidas pela primeira — além da atividade de especulação dos bancos e abertura política à livre circulação de capitais, da qual desfrutam os políticos europeus e estadunidenses.

De igual natureza, Gallino demonstra que as revolving doors (portas giratórias) representaram um acentuado “intercâmbio de pessoas” entre cargos do governo e dirigentes de instituições financeiras privadas, em que os últimos “[...] tornaram-se ministros ou membros titulares de importantes cargos públicos nos Estados Unidos e no Reino Unido, na França, na Alemanha e na Itália; ex-ministros tornaram-se dirigentes de grandes bancos, enquanto os principais gerentes de bancos foram nomeados ministros” (GALLINO, 2011, p. 24).

Não raro, esse mesmo fenômeno pode ser igualmente observado em terras latino-americanas. Esse desmedido — e por vezes turbulento — processo de fluxo entre dirigentes de instituições privadas e importantes cargos nos setores da economia nacional não acidentalmente guiou a consecutivas concessões públicas a órgãos privados e perda de direitos dos trabalhadores. Da educação às incessantes reformas trabalhistas, os dirigentes de instituições privadas com altos cargos públicos conduziram o presente e o futuro das vidas brasileiras trabalhadoras diretamente ao lamaçal da servidão econômica imperialista. A Base Nacional Comum Curricular (BNCC), o Novo Ensino Médio (NEM), a reforma da previdência e trabalhista são exemplos que estancam uma política econômica com profundas e imbricadas relações com a essência do capitalismo financeiro, como denunciam Motta e Frigotto (2017) no tocante às medidas e reformas educacionais e a relação trabalho-educação, e Silva (2018) a respeito do movimento de “contrarreforma” previdenciária e trabalhista.

 

O papel da ideologia no processo de ressignificação da sociedade anterior ao capitalismo financeiro

 

É sabido, pelo menos desde os escritos de Marx e Engels (2007), que as ideias dominantes de uma época são as ideias da classe dominante. Igualmente é de conhecimento geral que a cruzada da economia sobre o terreno da política não seria realizada de modo perspicaz sem o subsídio cultural da ideologia. É a partir dessa esteira que, para Gallino (2011, p. 25), “talvez nenhuma formação ideológica historicamente precedente à ideologia neoliberal soube atravessar com tamanha determinação e especificidade aplicativa estes limites que se encontram em comum com a política e a economia”.

A grande recessão e a crise de 1929 sinalizaram que o capitalismo estava em estado febril: o encantamento pelo seu modo de sociabilidade e padrão de vida sofreu duros golpes. Incumbiram-se do contragolpe os teóricos da Escola Austríaca (Ludwig von Mises e Friedrich von Hayek), da Escola de Friburgo (Wilhelm Röpke e Walter Eucken) e, mais tarde, da Escola de Chicago (Frank Knight, Gary Stanley Becker e Milton Friedman). Entre o final dos anos 1930 e início dos anos 1950, a tarefa inicial era a de restabelecer a reputação e estima do modo de vida advindo do capitalismo (GALLINO, 2011).

Não é de se estranhar, no entanto, a atuação e empenho desses professores e economistas citados na bem-sucedida tentativa de contornar os efeitos de uma sequência de crises intimamente ligadas ao modo de operação do capitalismo. Não somente a política, mas as próprias ideias e a filosofia são sobrepujadas no processo de mudança de sentido de uma época tangenciada pela posse e pelo lucro. A extensão das ideias, dos preconceitos e de todo um modo de vida é parte da trágica totalidade que se apresenta como teoria econômica. Destarte:

 

Os indivíduos que compõem a classe dominante possuem, entre outras coisas, também consciência e, por isso, pensam; na medida em que dominam como classe e determinam todo o âmbito de uma época histórica, é evidente que eles o fazem em toda a sua extensão, portanto, entre outras coisas, que eles dominam também como pensadores, como produtores de ideias, que regulam a produção e a distribuição das ideias de seu tempo; e, por conseguinte, que suas ideias são as ideias dominantes da época. (MARX; ENGELS, 2007, p. 47).

 

A partir da década de 1980 e, sobretudo, após o fim da URSS, o neoliberalismo aumenta a sua capacidade em vitoriosamente ressignificar toda a sociedade capitalista. Todavia, não ressignifica só o Estado-nação, como também o próprio senso da história. As forças históricas agem para que seus valores, simbolicamente e politicamente, tornem-se os valores de uma sociedade, envolto de uma coletividade. Por consequência, a nova forma de sujeição do indivíduo ao capital, que Marx apontou como contrapartida da “liberdade subjetiva” e da “emancipação do indivíduo com relação à tradição” (DARDOT; LAVAL, 2016, p. 323), implicou na conversão do neoliberalismo de “doutrina econômica e política” para “teoria do mundo” (GALLINO, 2012, p. 56), ou seja, para a ideologia dominante da era global.

Gallino aponta que tal processo tem origem no ano de 1947, quando o economista austríaco Friedrich von Hayek funda a Mont Pèlerin Society[3], em Chardonne, Suíça, em parceria com o economista estadunidense Milton Friedman, e por meio dessa instituição desenvolve uma série de valores e concepções de mundo, culminando numa gigantesca batalha cultural e formas de avaliação da realidade tendo como força motriz as think tanks.[4]

 

Do pós-guerra até hoje, “reservatórios de pensamento” (think tanks) altamente equipados, financiados por grupos financeiros e corporações industriais em vários países, têm contribuído poderosamente para a afirmação quase universal do neoliberalismo, [...] produziram uma enorme quantidade de relatórios e memorandos, públicos e reservados, que consideravelmente influenciaram o ensino universitário, os meios de comunicação e informação e as políticas econômicas dos governos. Simultaneamente foram criadas reuniões periódicas dessas associações, onde se encontravam os maiores expoentes das finanças e da indústria mundial, ornamentadas por alguns políticos e acadêmicos, que serviram por décadas para coordenar eficazmente a ofensiva neoliberal em todo o mundo. Mediante tais instrumentos, como notou sagazmente um estudioso austríaco, o neoliberalismo implementou com sucesso, mas a favor do capitalismo, o conceito de hegemonia cultural elaborado por um marxista, Antonio Gramsci. (GALLINO, 2011, p. 27).

 

O curso desse pensamento foi capaz de gerar a ideia em torno de uma sociedade unidimensional, na qual o indivíduo tem imensa dificuldade de aparecer socialmente, e o livre mercado passa a ser um axioma. Ou seja, um fato considerado verdadeiro em si mesmo. Por consequência, os capitais não devem ter uma regulamentação do mercado. O processo de demonização da figura do Estado surge como uma resposta à ideia de que a sua ação econômica é catastrófica e improdutiva ou gasto de dinheiro desnecessário, sendo necessário a privatização das funções econômicas e políticas das ações que o Estado desenvolveu na primeira modernidade.

O sociólogo italiano reconhece que a sociedade unidimensional caracteriza os valores fundamentais do neoliberalismo, posto que a virtuosidade se localiza no mercado e não na política, modificando profundamente a geometria dantes existente tanto no sistema político quanto no sistema jurídico do Welfare State — isto é, uma forma de Estado em que o próprio Estado é responsável pela promoção da igualdade social e atua como gestor da economia. No trabalho, os sindicatos e partidos políticos tradicionais perdem a importância, não sendo mais necessários na negociação e conquista de direitos devido à ideia de que a liberdade negativa não deveria estar associada à liberdade positiva, que produz entre os grupos consensos, acordos e compromissos em organizar uma vida coletiva.

 

O Diário póstumo de um flexível e a precarização do trabalho

 

A abertura de capitais via projetos de lei e ações “pelo alto” foi inaugurada na primeira parte dos anos 1980 na França pelo presidente François Mitterrand e por Jacques Delors, ministro da economia e finanças francês. Em seguida e na mesma década, os governos de Margaret Thatcher no Reino Unido e de Helmut Kohl na Alemanha aplicaram políticas semelhantes. Posteriormente, na década de 1990, o governo italiano deu seguimento à política de liberalização do movimento de capitais. Nos Estados Unidos da América, os governos do republicano Ronald Reagan (primeiro mandato, 1981) e do democrata Bill Clinton (final do segundo mandato, 2000) adotaram políticas equivalentes às dos governos europeus (GALLINO, 2011).

Não ocasionalmente, Jacques Delors, ainda na década de 1980, torna-se presidente da Comissão Europeia (CE) com apoio de François Mitterrand e Helmut Kohl. Na década seguinte, em 1996, ele organiza e publica o relatório para a UNESCO da Comissão Internacional sobre a Educação para o século XXI, sob o título Educação: um tesouro a descobrir. O documento defende quatro pilares fundamentais para a educação do novo século, que devem fazer com que o estudante aprenda a conhecer, fazer, conviver e ser um indivíduo apto a conviver ante o modo de vida atravessado pela hipercompetitividade neoliberal. Faz-se necessário, portanto, manipular novas habilidades, competências e saberes capazes de forjar o novo trabalhador e mão de obra instruídos ao trabalho flexível e incerto.

As condições e as ideias dominantes existentes no período do capitalismo financeiro revelaram, interminavelmente, transformações significativas no trabalho e, em especial, na vida daqueles que dependem do trabalho: os trabalhadores. Se por um lado a promessa de simplificação e flexibilização do trabalho inicialmente parecia atraente, por outro lado, o endurecimento e o gradual esvaziamento das políticas de proteção ao emprego desvelaram a face obscura desse processo.

A crônica Diário póstumo de um flexível, publicada em 2002 por Luciano Gallino no jornal italiano La Repubblica, faz críticas e aponta horizontes para a ampla e complexa ressignificação do trabalho trazida pelo capitalismo financeiro. O texto retrata o diário fictício de um trabalhador que, ao longo de toda sua trajetória de trabalho, encontra-se como “flexível”, ou seja, trabalha por contratos e com profissões distintas e fragmentadas. Nota-se a mudança de convicções e perspectivas com o passar dos meses e anos. No início, ainda na juventude, o autor do diário mostra-se entusiasta com a modalidade de trabalho, como evidenciado no trecho:

 

Outubro 2001. A flexibilidade me agrada. Deixa-me livre para organizar o meu tempo. Sou independente. Ulteriormente deparo com faces novas. Trabalhar em fábricas sempre diversas é uma bela experiência. Enriquece a minha capacidade profissional e me permite ainda empregá-la melhor. (GALLINO, 2009, p. 1).

 

A possibilidade de ser livre e independente são apostas que atraíram não somente o autor do diário, mas também convenceram toda a sociedade com o que Gallino (2009, p. 3) chama de “culto da flexibilidade”. O que está por trás do cenário descrito na crônica é o retorno da força de trabalho à forma da mercadoria de baixo custo que deve ser sucessivamente diminuída — um processo cultural, econômico e político que pôs fim à construção social que reconheceu que o trabalho não é uma mercadoria, mas um direito fundamental da vida do indivíduo e cidadão na sociedade moderna.

Isso ocorre por conta do desequilíbrio de classes e à posterior ideia de que partidos e sindicatos são desnecessários. Esses elementos geram a destruição do contrato nacional de trabalho e a construção do trabalho flexível por tempo determinado, passível de ser rompido sem penalização jurídica e política. Tal como apresenta a crônica, ainda que de modo fictício: “Dezembro 2018. A empresa, na qual sentia que estava andando bem, me dispensou. Protestei recordando que o meu contrato era por tempo indeterminado. Explicaram-me gentilmente que desde quando o estatuto dos trabalhadores foi abolido, indeterminado significa somente que a empresa é quem decide quando o contrato termina” (GALLINO, 2009, p. 2).

O trabalho torna-se desprotegido economicamente como também politicamente. A perda de direitos sociais alinha-se igualmente com a perda de reconhecimento social, como nos mostra Gallino: “o fato é que, depois de tantos trabalhos, nem eu sei quem sou, que coisa sou” (2009, p. 2). A vida, além do trabalho, tornou-se precária. Para o conjunto cada vez maior de trabalhadores assalariados a vida tornou-se adiada: não se pode fazer mais planos: “Janeiro 2006. A minha companheira S. gostaria de ter um filho. Eu também gostaria. Mas ela é ainda uma flexível — está fazendo um tempo parcial — e se algo acontecer e estivermos todos os dois sem trabalho, entre um emprego e outro, não o faremos” (GALLINO, 2009, p. 1).

E nem mesmo se pode descrever a atuação profissional. Antunes e Druck (2015, p. 19) apresentam aspectos da informalidade e desproteção no trabalho como o capital em busca pela “racionalidade formal”, representado pelo acentuado aumento de ocupações continuamente submetidas a contratos temporários, sem estabilidade, nem registro formal, atuando dentro ou fora do âmbito produtivo das empresas, seja em atividades mais instáveis ou temporárias, ou mesmo na condição de desempregado. As empresas, impulsionadas por essa busca, flexibilizam as relações de trabalho, a jornada e a remuneração, adotando “novas relações e formas de trabalho que frequentemente assumem feição informal” (ANTUNES; DRUCK, 2015, p. 19). A confusão sobre a própria identidade enquanto trabalhador reflete também na saúde. O trabalhador flexível tem que escolher entre o trabalho ou uma vida digna e saudável:

 

Julho 2016. Minha mãe queria saber com precisão qual trabalho faço. É para dizer aos parentes, aos amigos que pedem notícias. Afirma que a colocam em mal-estar por não saber responder que seu filho, dizendo assim, é eletricista ou empregado no cartório, ou desenhista de folhetos. Queria saber responder, porque agora tenho um aspecto envelhecido. O fato é que, depois de tantos trabalhos, nem eu sei quem sou, que coisa sou. Há algum tempo, sinto-me mal das costas. Marquei uma consulta. (GALLINO, 2009, p. 2).

 

Pode-se ilustrar, após a recuperação de aspectos da crônica, que a vida precária e sem perspectivas fabrica o estado permanente de endividamento, promove uma ruptura dos vínculos afetivos na família, no trabalho e na sociedade, levando a construção social do hiperindividualismo e ao fim do nós. O acúmulo na vida diária gera incertezas, inseguranças e medos, seja do desemprego, da queda à marginalidade ou de danos psicológicos causados pela ausência de expectativas ou esperança.

 

Trabalho precário e luta de classes na era global

 

There is no alternative [“não há alternativa”]: esse foi o slogan político utilizado por Margaret Thatcher para indicar a vitória do sistema capitalista e da economia de mercado. O fato é que esta aparentemente simples frase possui uma conotação muito mais ampla. A afirmação de que “não há alternativa” ao que hoje se constitui como finanzcapitalismo implica em uma série de ideias apresentadas como inquestionáveis, exatas e reais. Cimentadas na mentalidade de cada indivíduo e constatadas enquanto valor da sociedade em geral, essas ideias formam as premissas da ideologia neoliberal: 1) os sindicatos perderam sua função social, política e econômica; 2) o mercado é a fonte maior de utilidade e trabalho; 3) o setor público é ineficiente, ao passo que o privado é produtivo e justo; e 4) não há mais luta de classes, pois a própria distinção entre as classes sociais não existe mais (GALLINO, 2012).

Por mais que essas ideias sejam amplamente disseminadas no conjunto da sociedade, isso não significa que elas apresentem fundamentos sólidos. Muito pelo contrário, para Gallino (2012, p. VI), elas possuem como testemunha da sua realidade o estado de mundo no qual vivemos. O que significa dizer que a luta de classes nunca foi mais real — mesmo que não possua visibilidade no cotidiano —, na medida em que continua ditando o senso e o significado da história do capitalismo. Na verdade, o que tem sido desconsiderado, sobretudo a partir da restauração capitalista na União Soviética, é que a luta de classes não acabou, mas sim que o capitalismo está vencendo, e que hoje constrói uma nova forma de extração de valor: o trabalho flexível.

De acordo com Gallino (2012), o trabalho flexível é uma expressão do deslocamento dos capitais e da flexibilização da produção no capitalismo financeiro, que consiste no movimento reativo da classe capitalista no que diz respeito à expansão dos direitos conquistados no período da democracia moderna e do Estado social. Em outras palavras, a flexibilidade do trabalho faz parte do projeto político e econômico da globalização de acumulação de capital a partir da redução do poder da classe trabalhadora. A classe capitalista foi capaz de perceber que, uma das formas de fragmentar o movimento operário e sindical presentes nos países fortemente industrializados, seria também realizar um movimento de deslocamento, redirecionando os fluxos de capital. Assim, a Europa e os Estados Unidos viram, a partir de 1980, um projeto de desindustrialização, realocando as fábricas na América Latina e na Ásia.

O que fica claro é que a redução dos custos para a produção de uma mercadoria, que não tem os gastos diminuídos na sua confecção, somente pode resultar na diminuição do salário da classe trabalhadora. E é por isso que a flexibilidade está intimamente associada com a precariedade: além de um ser uma fonte de ansiedade, medos e angústias, também significa uma redução dos direitos duramente conquistados, realizando um movimento de invasão da condição de trabalho na condição de vida (GALLINO, 2010).

A precariedade está, portanto, intimamente ligada com a segurança, não só material, mas também imaterial. As questões da proteção física e da garantia de renda e previdenciária vêm acompanhadas da necessidade de representação de interesses e da possibilidade de estabelecer objetivos de longo prazo. O trabalho flexível não garante nenhuma dessas seguranças. Pelo contrário, exponencia a precariedade a partir da moderação salarial. Sob o véu do culto da produtividade, da competição e da valorização, é possível aumentar o lucro das empresas diminuindo a qualidade de vida e de trabalho do proletariado, que, ao endividar-se, aceita trabalhos cada vez mais precários (GALLINO, 2010, 2012).

É interessante notar como a ideologia neoliberal é capaz de retirar dos indivíduos todo e qualquer direito e, ao mesmo tempo, mostrar-se como solução: para a grande parcela da população, é o mercado o centro de referência maior. A ideia de que o mercado exerce qualquer função melhor do que o serviço público não diz respeito somente ao combate do desemprego, mas também às respostas sobre os princípios e os valores de uma sociedade, e sobre as questões ontológicas de um indivíduo. Dessa forma, o finanzcapitalismo adentra “novos campos da vida social, da existência humana e da natureza” (GALLINO, 2012, p. 48), buscando novas fontes de extração de valor. O fato é que o trabalho flexível altera todas as esferas da vida, todas as pessoas, Estados, e suas instituições, moldando os agentes de acordo com a figura do ser humano “construído e governado como pedaço de capital humano” (BROWN, 2015, p. 10).

Além disso, os contratos precários dificultam o acúmulo de experiência profissional, muito menos a construção de uma “identidade laborativa”, alicerce da identidade pessoal e social (GALLINO, 2010, p. 79). Alves (2011) mostra que a flexibilização das relações de trabalho, acompanhada do desmonte dos coletivos de trabalho, provoca a dessubjetivação de classe, característica que leva à dissolução da memória pública da luta de classes. As sucessivas derrotas das lutas sindicais frente às políticas neoliberais significaram, de modo semelhante, a desvalorização da prática política coletivista e predomínio do individualismo como guia da vida social. A ausência dessa identidade, em conjunto à hipercompetitividade e ao hiperindividualismo exacerbados pela ideologia neoliberal, dificulta a percepção dos interesses comuns e a organização do “proletariado global” (GALLINO, 2012, p. 83), o que reduz a capacidade de influenciar e controlar as decisões tomadas pelas grandes corporações multinacionais. Desse modo, o finanzcapitalismo aprimora uma das estratégias mais relevantes da luta de classes: impossibilitar que o trabalhador projete, idealize e planeje o futuro.

Assim, na mesma medida em que o trabalho flexível resulta em um “esvaziamento quase total do senso do trabalho” (GALLINO, 2012, p. 174), ele provoca um esgotamento do sentido da própria vida: o capitalismo, ao transformar o trabalho em mercadoria, desumaniza o ser humano. Ao reduzir os indivíduos à miséria e oferecer um trabalho cada vez mais precário, o capital se expõe enquanto uma relação social entre burguesia e proletariado, isto é, enquanto luta de classe. Isto posto, Gallino (2012, p. 195) evidencia a necessidade do retorno à dialética entre as classes sociais que expressem no debate público “interesses, visões de mundo, projetos para o futuro fundamentalmente diferentes” daquele naturalizado pela ideologia dominante. O resgate da dialética, portanto, significa compreender que há alternativa à economia política e ao projeto econômico e político da globalização.

 

Conclusão

 

A megamáquina apresentada por Luciano Gallino, bem como suas raízes históricas e sustentáculos políticos, permite-nos compreender o funcionamento do capitalismo financeiro e identificar contrastes com a sua forma industrial. Se, no passado, os Estados-nações tinham como característica a cunhagem da moeda e, em relação ao dinheiro, a emissão como forma equivalente universal da mercadoria a partir da produção do capital fabril, no finanzcapitalismo, a extração de valor ultrapassa as fábricas e os vapores, e se dissolve nos juros de crédito, no encarecimento da vida e na estagnação dos salários.

A contribuição de Gallino para a sociologia em tempos de precarização e flexibilização do trabalho apresenta uma nova reorganização internacional das classes e do poder, a qual vem sendo construída em todos os âmbitos da vida por meio da cultura, da política e da economia. A era do capitalismo financeirizado foi capaz de produzir um novo processo civilizatório, em que as sólidas geometrias políticas da modernidade, tais como família, Estado, classe e partido paulatinamente perderam o prestígio e relevância. A brevidade e fluidez tornam-se linha oficial das relações na medida que universalizam o modo de produção capitalista.

A extração de valor faz com que essa megamáquina nos pareça indestrutível, com o poder de tudo controlar e esvaziar na medida do necessário para avançar e expandir o lucro. No entanto, Gallino afirma que a megamáquina do capitalismo financeiro se mostrará insustentável no passo em que as “massas de seres humanos” compreenderem os limitantes e as contradições da máquina que os opera e domina. Se trata, portanto, de “entender a que ponto a crise em essência da civilização-mundo, de que tal caráter é intimamente parte, terá que avançar até forçá-lo a reconhecer a própria insustentabilidade”, para que “quando tal reconhecimento ocorrer em larga escala, a megamáquina do capitalismo financeiro se encontrará rapidamente privada dos servos-unidade humanos indispensáveis ao seu funcionamento”, assevera Gallino (2011, p. 320).

Caso esse reconhecimento não ocorra, Gallino provoca, em seu Diário póstumo de um Flexível, que nos aproximaremos cada vez mais do “homem flexível”. Com a vida cada vez mais precária e pretérita, passível de ações sociais lesivas aos outros ou autolesivas, a megamáquina, dantes celebrada, pode dar cabo daquele que lhe é subordinado.

 

Referências

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Recebido em: 17/07/2023.

Aceito em: 06/11/2023.

 

 



* Mestra em ciências sociais pela Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho” (Unesp), Brasil. E-mail: leticia.chamma@unesp.br.

** Graduado em ciências sociais pela Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho” (Unesp), Brasil. E-mail: vinicius.azevedo@unesp.br.

[1] Conjunto de reformas de ordem política, social ou econômica levadas a cabo por meio da ação do Estado.

[2] Essa e outras passagens de Gallino são traduções livres dos autores.

[3] Organização internacional composta por filósofos, economistas e políticos de todo o mundo e tem como objetivo promover os princípios e valores do liberalismo.

[4] Força em criar associações, grupos de pesquisa, meios de comunicação, institutos privados, seminários e colóquios de ideias.

 

 

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