RELATOS DE EXPERIÊNCIA DE UMA SOCIÓLOGA
INVESTIGANDO CRIMES DE FEMINICÍDIO

REPORTS OF THE EXPERIENCE OF A SOCIOLOGIST
INVESTIGATING CRIMES OF FEMINICIDE

 

Helma Janielle Souza de Oliveira *

 

 

DOI: https://doi.org/10.46906/caos.n31.67540.p70-94

 

 

Resumo

Este artigo tem por objetivo apresentar alguns desafios de pesquisa empírica vivenciados por uma socióloga que investiga crimes de feminicídio. Procuro exaltar as experiências subjetivas vividas por pesquisadoras(es) das ciências sociais, as quais contribuem continuamente para os confrontos necessários que nos formam sociólogas(os). Esta discussão atravessa os achados da pesquisa: O crime de feminicídio e a percepção dos agentes de justiça: uma análise sociológica a partir dos Tribunais do Júri de João Pessoa, Paraíba (OLIVEIRA, 2019), oriundos da interação no campo jurídico dos tribunais do júri, por meio da etnografia das sessões do júri e da realização de entrevistas com profissionais do direito e juízes leigos. Nesse percurso, tive que lidar com as influências que (des)favoreciam a concessão de entrevistas; as afetações emocionais da mulher-pesquisadora diante dos crimes praticados contra outras mulheres e das violências institucionais reiteradas; e as afetações profissionais da socióloga-jurista que estranha as manipulações do direito feitas pelos profissionais que debatem os crimes. Essas vivências estão demonstradas pela descrição do acesso ao campo e aos interlocutores e, especialmente, pela análise de um caso de feminicídio, que, supostamente, ocorreu para ocultar prática de abuso sexual contra a filha da vítima (enteada do réu). Os relatos de pesquisa confirmam como estive inteira no ofício de socióloga e, portanto, que as afetações vivenciadas em campo foram importantes para a construção das descrições etnográficas, para a reflexão quanto às diversas violências exercidas contra a mulher nas práticas feminicidas, como também para o desenvolvimento das minhas habilidades profissionais.

Palavras-chave: feminicídio; ofício de socióloga; desafios de pesquisa; metodologia.

 

Abstract

This article aims to presents some challenges experienced by a sociologist who investigates femicide crimes. I want to highlight the subjective experiences lived by researchers in the Social Sciences, which continually contribute to the necessary confrontations that form us as sociologists. This discussion crosses the findings of the research The crime of femicide and the perception of justice agents: a sociological analysis from the Jury Courts of João Pessoa, Paraíba (OLIVEIRA, 2019), arising from the interaction in the legal field of the jury courts, through the ethnography of jury sessions and conducting interviews with legal professionals and lay judges. Along the way, I had to deal with the influences that (dis)favored the concession of interviews; the emotional affectations of the woman-researcher, in the face of crimes committed against other women and repeated institutional violence; and the professional affectations of the sociologist-jurist, who is surprised by the manipulations of the law carried out by the professionals who debated the crimes. These experiences are demonstrated by the description of access to the field and interlocutors and, especially, by the analysis of a feminicide that supposedly occurred to hide sexual abuse against the victim's daughter (stepdaughter of the defendant). The research reports confirm how I was fully engaged as a sociologist and, therefore, that the affectations experienced in the field were important for the construction of ethnographic descriptions, for reflection on the various forms of violence exercised against women in femicide practices, as well as for the development of my professional skills.

Keywords: femicide; sociologist craft; research challenges; methodology.

 

 

O campo de pesquisa conduz a escolhas metodológicas

 

Este artigo tem por objetivo discutir sobre as afetações vivenciadas por mim durante a realização de pesquisa empírica que investigava a percepção dos agentes da justiça sobre o assassinato de mulheres entre 2015 e 2019, isto é, nos quatro primeiros anos em que a categoria feminicídio foi inserida no mundo do direito.

Ao descrever algumas sensações e reações suscitadas no campo, almejo enaltecer experiências subjetivas vividas por outras(os) pesquisadoras(es) das ciências sociais, as quais contribuem continuamente para os confrontos necessários que nos formam sociólogas(os), considerando o exercício do estranhamento e análise crítica, mesmo quando o campo de pesquisa já lhe parece familiar.

Essa discussão se apresenta como um recorte transversal dos achados da pesquisa de doutorado: O crime de feminicídio e a percepção dos agentes de justiça: uma análise sociológica a partir dos Tribunais do Júri de João Pessoa, Paraíba (OLIVEIRA, 2019), oriundos da interação com o campo jurídico dos tribunais do júri, sucedidos da etnografia das sessões de júri, da análise dos discursos presentes nas audiências de julgamento e da realização de entrevistas com agentes de justiça: juízes de direito, promotores de justiça, defensores públicos, que são os profissionais que narram o caso concreto de acordo com as interpretações técnicas da norma jurídica; e juízes leigos[1], cidadãos representantes da sociedade convocados para assumir a função de fazer justiça no que se refere aos crimes de competência dos tribunais do júri. O campo de pesquisa foram os 1º e 2º Tribunais do Júri da Capital, encontrados no Fórum Criminal Ministro Oswaldo Trigueiro de Albuquerque Mello, João Pessoa, Paraíba.

Os tribunais do júri, de certo modo, são um ambiente familiar, pois, antes de progredir no estudo das ciências sociais, mais especificamente no ofício de socióloga, eu concluíra a formação jurídica. Assim sendo, a própria construção do ensino jurídico suscita que seus formandos conheçam os saberes técnico-científicos, bem como tenham contato com os espaços onde a cena do direito acontece, onde os saberes jurídicos são operacionalizados.

De outro lado, o tribunal do júri já costuma ter acesso mais amplo, no sentido de que não só os juristas podem observar sua dinâmica. As sessões do júri são públicas, logo, pessoas alheais ao mundo jurídico, como plenas cidadãs, podem optar por assistir às audiências de instrução processual e de julgamento, conhecer os ritos e refletir sobre os assuntos ali discutidos. Esse órgão de justiça guarda seu caráter misto, em que a sociedade participa diretamente, por meio de seus representantes, da fase decisória do Júri.

Com isso, quero dizer que este campo de pesquisa não era inédito e que certas permissões e certos protocolos de acesso — formais ou informais — já eram do meu conhecimento. Contudo, as ciências sociais aperfeiçoaram meu olhar científico e minhas análises críticas sobre o próprio Direito e a prática jurídica, o que, continuamente, consiste num duplo fazer da jurista e da socióloga.

Ainda, antes mesmo de caminhar com esta pesquisa sociológica, havia alguns anos que as dinâmicas dos tribunais do júri estavam sob nossa observação, por meio dos estudos realizados pelas então integrantes do GRAV – Grupo de Relações Afetivas e Violência[2] (cf. ZAMBONI; OLIVEIRA, 2015, 2016; ZAMBONI; OLIVEIRA; NASCIMENTO, 2019). Sucederam-se investigações pautadas nas técnicas de análise de autos processuais, de observação de julgamentos, de entrevistas com profissionais do direito e, por último, entrevistas com jurados. Sempre com um olhar voltado para perceber as implicações socioculturais que modulam o direito diante de assassinatos de mulheres decorrentes de relações afetivo-conjugais, o que continua sendo um recorte expressivo dos feminicídios.

No ensejo da promulgação da Lei nº 13.105, de 9 de março de 2015 (BRASIL, 2015), que insere a categoria feminicídio como uma qualificadora do crime de homicídio, continuei atenta ao campo de pesquisa para notar como o novo vocábulo e seus significados de gênero seriam incorporados pelos agentes de justiça, isto é, como apareceriam em suas narrativas, no contrafluxo das posturas machistas e misóginas geradas pela cultura da desigualdade de gênero, frequentes nos espaços jurídicos.

O feminicídio se refere aos assassinatos de mulheres pelo fato de ser mulher (LAGARDE, 2008; CAMPOS, 2015; PASINATO, 2016). É a resposta letal à forma como a mulher expressa seus atos, gestos, atitudes, desejos, perante certas intersecções de marcadores sociais que constituem a performatividade de gênero[3] e que, a depender da construção sócio-histórica, repercute em estados de enlutamento ou invisibilidade social (BUTLER, 2015). Em termos legais, a categoria restou definida como: em razões do sexo feminino, na existência de duas circunstâncias: violência doméstica e familiar e menosprezo ou discriminação à condição de mulher.

A primeira circunstância decorre da legitimidade atribuída à Lei Maria da Penha, Lei nº 11.340, de 7 de agosto de 2006 (BRASIL, 2006), e do processo de avaliação de sua eficácia, que implicou na recomendação de tratar política e juridicamente do fenômeno do feminicídio (BRASIL, 2013). A segunda circunstância carrega um desafio a mais de inteligibilidade e reconhecimento: abrange outros comportamentos misóginos que ficavam ocultos nas qualificadoras do motivo torpe ou fútil e envolviam tortura, mutilação, ódio etc.  (CAMPOS, 2015; PRADO; SANEMATSU, 2017; OLIVEIRA; MELO; ZAMBONI, 2020). Nesses casos, os assassinatos de mulheres não seriam apenas oriundos de relações afetivo-conjugais ou doméstico-familiares abusivas; abarcam diversas performatividades de gênero, inclusive as dissonantes do sistema binário (sexual).

As sessões do júri são o último passo no fluxo do sistema criminal quando se trata de crimes dolosos contra a vida, aqueles em que se verifica a intenção de agir contra a existência humana: homicídio, infanticídio, aborto, induzimento, instigação ou auxílio a suicídio ou a automutilação — Código Penal, Arts. 121 a 128 (BRASIL, 1940). Após a investigação policial, o inquérito é remetido para apreciação de agente do Ministério Público, que avalia o oferecimento da denúncia para o Tribunal do Júri. Em primeira fase, o juiz de direito segue a instrução criminal com vista a analisar a autoria (se há indícios de que o acusado é autor do crime) e materialidade do crime (se houve a intenção de matar). Para tanto, convocam-se audiências de oitiva do acusado (com a presença de seu defensor) e de testemunhas, que se somam aos registros documentais do crime (narrativas escritas, imagens, áudios, vídeos, escritos etc.) compilados nos autos processuais. O juiz de direito, convencido da existência desses dois elementos, encaminha o caso para a segunda fase do júri: a decisória, em que juízes leigos têm o papel de absolvição ou condenação. Para tanto, 7 de 25 jurados convocados são sorteados na sessão do júri para compor o Conselho de Sentença (LOPES JR., 2019).

Na regra jurídica, o tipo do crime a ser atribuído a uma conduta violenta baseia-se nas leis existentes no tempo em que ele acontece. Desse modo, alguns crimes julgados, enquanto minha pesquisa progredia, haviam ocorrido antes do feminicídio se tornar qualificadora do crime de homicídio. Portanto, formalmente, as acusações poderiam ser agravadas com base frequentemente em motivo fútil, motivo torpe, emprego de veneno, fogo, asfixia, ou outro meio insidioso ou cruel, para assegurar ocultação de outro crime[4], mas não poderiam conter a acusação jurídica de feminicídio.

Contudo aquilo que prejudicaria uma investigação na ciência jurídica se mostra uma oportunidade de observar mudanças de contextos socioculturais tendo a sociologia por base investigativa. O feminicídio poderia alcançar inteligibilidade não apenas por meio de uma tipificação presente no inquérito policial e/ou na denúncia que o agente do Ministério Público destina ao Tribunal do Júri, mas também por meio das colocações orais apresentadas para delimitar e/ou conferir sentido de gravidade ao crime narrado, a semelhança de: “Se esse crime tivesse ocorrido depois de 2015, seria um feminicídio”; “Esse crime é resultado do machismo, da misoginia, do pensamento de um homem que pensa ser dono da mulher” (informação verbal)[5]. Logo, o campo dos tribunais do júri teria muito a demonstrar sobre as condições de precariedade (BUTLER, 2006) das vidas perdidas.

 

[...] a variedade das classificações relativas às mortes violentas é reveladora de representações que qualificam a morte em função não só da intencionalidade do ato, como prevê a legislação, mas também em função da natureza do morto, delimitando assim a existência de “seres matáveis” [...], o que pode ser pensado como uma legitimação da morte como uma forma de administração institucional e informal de conflitos (MIRANDA; PITA, 2011, p. 197).

 

A categoria assassinato de mulheres é oriunda das discussões sociológicas, e corresponde à expressão homicídio de mulheres. Em tese, seu significado não está restrito às causas pertinentes às discriminações de sexo e gênero. Entretanto, na obra Assassinato de mulheres e direitos humanos, Eva Blay (2008) deixa claro que segue a perspectiva das relações de gênero para tratar da violência contra a mulher que resulta em morte.

Por ser termo sociológico de compreensão geral para leigos e profissionais, e por haver esse aspecto de “motivações genéricas”, assassinato de mulheres foi a categoria usada na primeira parte das entrevistas, a fim de deixar os interlocutores livres para delinear os tipos e os contextos formuladores do que depois passei a chamar feminicídio. Essa decisão se coaduna com a instrução dada por Sofia Tiscornia (2011, p. 20), quando diz: “[...] o êxito não é falar em jurídico e compreendê-lo, mas que o mundo jurídico também fale em antropológico [sociológico] e o compreenda”. Quer dizer, “o etnógrafo deve ser capaz de compreender a linguagem jurídica e traduzi-la ao relato etnográfico. Por sua vez, se está interessado no diálogo com os que não são membros de sua linhagem disciplinar, tem que fazê-lo legível e compreensível para os jurídico-falantes e também para os jardineiros, poetas e navegantes que gostam de escutar e compreender” (TISCORNIA, 2011, p. 16).

 

A pesquisa qualitativa confirmou-se como o melhor caminho a ser escolhido diante do objetivo e do período do estudo. Apreender quais significados de feminicídio transpareciam e como eram manipulados (se eram) nos debates orais dos operadores jurídicos, bem como qual legitimidade os juízes leigos destinavam às narrativas em disputa, por meio de seus votos silenciosos, configurava a necessidade de uma análise de substância sobre as violências de gênero e as práticas de justiça.

 

Quanto maior o intervalo de tempo entre a realização do campo e/ou da análise dos dados e os registros das fontes de dados analisados, maior a capacidade de compreensão sobre o funcionamento do Sistema de Justiça Criminal (SILVA, 2012, p. 35).

 

Acompanhar os quatro anos iniciais de aplicação da Lei de Feminicídio no Brasil tornava inviável uma verificação quantitativa dos casos que viriam a receber a tipificação de homicídio qualificado por circunstância de feminicídio. Isto se dá por causa de critérios temporais previstos na norma processual penal[6], ou porque os passos de assunção da categoria pelas autoridades policiais e judiciárias aconteciam de modo ainda tímido, embora os assassinatos de mulheres sejam frequentemente relacionados a contextos de violências baseadas no gênero (BLAY, 2008).

Esse dado não tornou a pesquisa inexequível ou pouco interessante, pois ocorreu o manejo da categoria feminicídio nas exposições dos operadores jurídicos, e os registros de entrevistas recolheram as interpretações dadas ao fenômeno social dos assassinatos de mulheres. De toda forma, o feminicídio, antes visto apenas como uma categoria socioantropológica (LAGARDE, 2008), recebeu status de categoria jurídica. E, embora se espere que o uso regular da categoria implique em produções estatísticas mais consistentes e ações preventivas, Ana Paula Mendes de Miranda e María Victoria Pita alertam que “ao se tratar da produção de estatísticas oficiais, ou seja, de estatísticas como saberes legítimos do Estado, estávamos lidando diretamente com a “linguagem do Estado”. Uma linguagem que, ao mesmo tempo, é resultado e/ou efeito das ações, decisões e “formas de pensar o mundo” de uma burocracia que possui em si mesma um sentido, uma significação [...] (MIRANDA; PITA, 2011, p. 186).

Essas autoras investigam as políticas de produção de registros estatísticos criminais sobre mortes violentas e entendem que os operadores da justiça delimitam o que deve ser narrado e registrado numericamente. Posso dizer que os profissionais do direito reformulam os fatos criminosos por meios discursivos e performáticos, visando elementos relevantes para a configuração da condenação ou da absolvição de um réu. Conforme Marisa Corrêa: “apesar de os casos referirem situações concretas, não podemos saber se essas situações foram concebidas pelos acusadores e defensores ou se ocorreram de fato, [...], não há mais a possibilidade de, através do processo, revivê-los, fazer a caminhada inversa e chegar aos fatos reais, às relações concretas existentes por detrás de cada crime” (CORRÊA, 1983, p. 26).

A técnica de entrevista semiestruturada ensejou conversas com 10 operadores jurídicos (2 juízes de direito, 4 promotores de justiça e 4 defensores públicos) e com 18 juízes leigos. A fim de compor o perfil progressivo de análise da percepção dos juízes leigos quanto ao fenômeno do feminicídio e a inserção da Lei no campo dos tribunais do júri, essas entrevistas ocorreram de modo intermitente e com extensão temporal mais ampla (12 meses) do que as entrevistas realizadas com os operadores jurídicos (3 meses).

A etnografia das sessões do júri tornou-se imprescindível para noticiar os ritos e rituais jurídicos, para avaliar o tipo de interação estabelecido entre jurados e operadores jurídicos, bem como para confrontar dados de entrevistas com discursos acionados na prática jurídica. Inclusive, desse trabalho etnográfico, advieram minhas maiores afetações diante das narrações dos feminicídios e da visível revitimização das mulheres, o que denotava os processos de violência institucional (PRADO; SANEMATSU, 2017) exercidas pelos operadores do direito.

Estive atenta a descrever e analisar os contornos da narrativa do crime sem desconsiderar as agências das mulheres e, portanto, as ações de resistência e subversão que podem se reiterar no sentido de construir realidades mais autônomas e saídas dos contextos violentos (SCOTT, 1995; GREGORI,1993; FOUCAULT, 2014; BUTLER, 2017). Assim, os usos das categorias jurídicas vítima e réu ocorrem em atenção aos dados de pesquisa: as vítimas, necessariamente, eram as mulheres agredidas de morte e os réus foram sempre homens. Não quero, com isso, determinar a mulher com uma estrita vítima.

Cerca de 30 homicídios de mulheres apareceram no calendário de julgamentos dos Tribunais do Júri de João Pessoa entre 2015 e 2018. Majoritariamente, crimes ocorridos antes de 2015 e, então, antecedentes à vigência da Lei de Feminicídio. Fiz registros de 12 julgamentos com vítimas mulheres, sobre os quais eu só descobriria as interligações com as razões de gênero durante a sessão do júri. Desses, construí análise mais detida de 6 casos: 2 casos cujos crimes ocorreram em tempo anterior à edição da Lei de Feminicídio; 2 casos que ocorreram na vigência da Lei e a qualificadora fazia parte da denúncia; e mais 2 casos que a qualificadora do feminicídio poderia estar presente, mas que não foram assim denunciados. Neste artigo, conto sobre um deles, de acordo com o objetivo de compartilhar a minha experiência subjetiva enquanto pesquisadora.

Compartilho as minhas afetações emocionais por ser uma mulher-pesquisadora que investiga crimes praticados contra outras mulheres — e as reiteradas violências institucionais —, bem como das afetações profissionais, considerando meu saber técnico-jurídico, que me fazia estranhar as manipulações do direito feitas pelos profissionais que debatiam sobre o crime de feminicídio. Assim, compartilho meus registros etnográficos do julgamento que envolve um homem acusado pelo homicídio de sua companheira, motivado pelo suposto objetivo de impedir a mulher de denunciá-lo pela prática de abuso sexual contra a sua enteada, filha da vítima. Porém, antes de chegar a essa narrativa do crime e seu julgamento, inicio meus relatos de experiências tratando do acesso ao Fórum Criminal e, portanto, aos tribunais do júri e aos interlocutores de pesquisa, incluindo as influências que (des)favoreciam a concessão de entrevistas e que compunham os desafios da pesquisa empírica.

 

Acesso aos interlocutores: contatos, inquietudes e mudanças de posição

 

As atividades no Fórum Criminal Ministro Oswaldo Trigueiro eram divididas entre expediente interno, no turno matutino, e expediente público, no turno vespertino. Salvo nas sextas-feiras, quando prevalece o atendimento ao público, pois a jornada de trabalho dos serventuários da justiça e operadores jurídicos concentra-se nas horas da manhã e início da tarde.

O trabalho interno destina-se a que serventuários da justiça, juízes e promotores de justiça, especialmente, pudessem se dedicar à análise dos autos processuais de maneira mais compenetrada, sem interrupções para atender às demandas de advogados e de partes interessadas junto às secretarias dos juízos. Por consequência, as audiências de instrução e julgamento, comumente, eram marcadas no turno em que advogados, testemunhas, réus soltos e o público em geral pudessem circular facilmente nas dependências do prédio da Justiça Criminal. Além disso, quando o 1º Tribunal do Júri realizava as audiências de instrução processual, o 2º Tribunal do Júri se dedicava às audiências de julgamento, exceto em épocas de mutirão ou recesso judiciário.

Essa organização administrativa facilitava meu acesso ao campo dos tribunais do júri e orientava minha agenda em busca de realizar entrevistas: com jurados, a princípio, em dias de julgamento; com operadores jurídicos, o inverso. O caráter público das sessões de júri me deixava à vontade para participar delas, sem necessidade de apresentação ou solicitação formal para acesso ao Fórum Criminal. Bastaria cumprir a etiqueta do lugar e destinar-me ao 1º ou 2º Tribunal do Júri para seguir com entrevistas ou registros etnográficos.

A preferência era visitar o campo de pesquisa nos dias e horários de júri com vítima mulher, de acordo com as indicações da pauta afixada em mural. A forma simples de verificação estava na apresentação de nome feminino. Julgamento de homicídios de mulher trans, que, porventura, não tivessem realizado alteração de nome masculino para feminino, poderiam ser investigados. Todavia esses casos não foram comentados no campo ou identificados por mim no período de pesquisa.

Como não exerço o papel de operadora jurídica, nem realizo outra atividade profissional que conduza a uma presença permanente nos ambientes das instituições de Justiça, dificilmente eu seria pensada como uma advogada, juíza ou promotora de justiça. Esse meu desvio profissional tendia a me consolidar na posição de estudante — a pessoa que realiza estudo sobre assassinato de mulheres —, embora eu não tenha me anunciado dessa forma. Minhas apresentações profissionais não foram memorizadas pelos interlocutores: nem pesquisadora e, menos ainda, professora.

Enquadrada como estudante pelo imaginário de informantes e interlocutores, eu aproveitava para permanecer em meio aos acadêmicos do Direito e observar a quesitação e os votos dos jurados, quando o restante da plateia deveria se retirar do auditório. Certa ocasião, um oficial de justiça, que vez ou outra conversava comigo, demonstrou curiosidade em saber realmente qual meu interesse junto aos Tribunais do Júri, posto que, pelas observações dele, minha aparência era jovial e minhas vestimentas eram diferentes das pessoas pertencentes ao campo jurídico. Ou seja, eu poderia ser uma simples estudante de direito ou qualquer pessoa do público.

De todo modo, estar na condição de aprendiz não deixa de ser interessante diante do objetivo de auferir informações, esclarecimentos, reflexões, ponderações dos meus interlocutores. Suscita no outro o empenho do ensinar. Experiências semelhantes foram contadas por Ana Lúcia Schritzmeyer: “Graças a esses momentos de aproximações informais, tive e criei oportunidades, nesse e em outros tribunais, de conversar com jurados que, invariavelmente, uma vez esclarecidos de que eu não estava na mesma posição que eles, enquadravam-me na categoria “estudante” e tratavam-me com certo ar professoral” (SCHRITZMEYER, 2007, p. 123-124).

Aos poucos, a experiência das entrevistas me proporcionou mudanças de posição no campo e, assim, cheguei a ser vista por um grupo de agentes da justiça realmente como a pesquisadora que investiga feminicídios. Na etapa dos debates orais, faz parte do ritual que representantes da acusação e da defesa prestem cumprimentos preliminares a cada grupo de pessoas presente: ao juiz, aos representantes da Defensoria Pública ou do Ministério Público, aos policiais, aos serventuários da justiça, aos estudantes do Direito, aos familiares do réu e da vítima, entre outros. Todos os operadores jurídicos ali presentes haviam prestado entrevista e me notavam na plateia. Então, fui explicitamente destacada naquele cenário para receber cumprimento particular. Além disso, conquistei o benefício dos futuros profissionais da área: ao final do julgamento, a pesquisadora foi claramente convidada a permanecer no auditório e, então, aproximar-se do plenário, juntamente com os estudantes de Direito, para presenciar o rito de votação secreta daquele Conselho de Sentença. Também passei a ser cumprimentada como doutora, em alusão à pesquisa de doutorado.

No mais, apenas uma advogada me identificava como socióloga. Nós nos conhecemos na plateia de um caso de feminicídio, cujo julgamento ocorreu no último ano da pesquisa de campo. Ela tomava as sessões de júri como um laboratório para futuras atuações profissionais, pois, embora fosse advogada criminalista, ainda não havia trabalhado em julgamentos de homicídios.

Para as atividades de entrevista, minha opção foi realizá-las no próprio Fórum Criminal e não em locais externos. E isso tem a ver com: 1) aproveitar o ambiente voltado aos assuntos de justiça; 2) ter mais chances de convencer agentes de justiça, resistentes a conceder entrevista, 3) evitar esforços para marcar encontros extramuros com riscos de desistência e 4) esquivar-se de situações constrangedoras na relação entre entrevistadora mulher e entrevistado homem.[7]

Os operadores jurídicos, quando procurados, eram educados, atenciosos, concediam entrevistas, mas não se interessavam em facilitar minha interação com outros agentes de justiça. Quanto aos jurados, dependia do momento e da pessoa. Eles se tornaram meu maior desafio de comunicação. Eu tentava contatá-los primeiramente antes do início das audiências. Em segunda tentativa, buscava aqueles que foram dispensados da sessão do júri. Mas essas ocasiões foram minoritárias.

Experiências passadas[8] demonstraram que aqueles que se comprometiam com a entrevista para após o sorteio do Conselho de Sentença, muitas vezes, denotavam ansiedade com o tempo, desistiam, inventavam alguma desculpa e seguiam com seus pares. Nesse momento, era mais provável que jurados mais antigos, e acostumados com o ambiente, consentissem com as entrevistas, pois, mesmo sendo dispensados, gostavam de se ocupar assistindo às audiências, ali ou em outros juízos.

As situações mais constrangedoras ocorreram quando me restava abordar algum jurado na presença de outros, pois ocorriam influências expressivas no sentido de demonstrar menor importância, receio ou desconfiava quanto às perguntas que seriam feitas. O contágio social (cf. ZAMBONI; FARIA, 2018) afetava também minhas interações em campo. Na vez que uma jurada se ofereceu para ser entrevistada — apesar de várias vozes negativas ao redor —, descobri, após nossa conversa, que o fato de ela ter um filho envolvido com militância de direitos humanos a fez reconhecer meu tema como próximo aos assuntos familiares.[9]

Diante das influências adversas para acessar os jurados, estive atenta também ao dever de sigilo de opiniões sobre determinado caso jurídico a fim de decidir quais eram os momentos pertinentes para convidá-los para as entrevistas. A norma processual exige o dever de incomunicabilidade dos membros do Conselho de Sentença durante a sessão do júri. De acordo com o artigo 466, § 1º, do Código de Processo Penal: “O juiz presidente também advertirá os jurados de que, uma vez sorteados, não poderão comunicar-se entre si e com outrem, nem manifestar sua opinião sobre o processo” (BRASIL, 1941). Saliento: apenas os jurados sorteados deveriam prezar pela incomunicabilidade entre eles.

Algumas vezes, o rigor desse princípio da incomunicabilidade se estendeu para os corredores do Fórum Criminal quando certos jurados tinham dúvidas quanto a poder prestar informações sobre temas julgados, ou quando outros, sem titubear, acionavam o dever de sigilo para se esquivar do diálogo. Esses empecilhos tornaram-se um alerta para que eu evitasse solicitar entrevistas após lidas as denúncias nas sessões do júri. Contudo essas prudências não aconteciam nas conversas informais entre agentes de justiça. Aliás, até comigo, em conversas de bastidores, alguns casos eram discutidos, especialmente, quando jurados veteranos permaneciam no recinto, após a composição do Conselho de Sentença.

Afora essas nuances da pesquisa, Marcela Zamboni e Jairo Faria alertam que a regra de incomunicabilidade, ritualisticamente, mostra-se obsoleta diante das novas possibilidades de comunicação via redes sociais, especialmente por meio da facilidade em formar grupos de mensagens instantâneas em smartphones — o que pode interferir na convicção pessoal dos jurados, ou seja, “a existência de uma rede de comunicação entre os juízes leigos desempenha um papel significativo no contágio social no tribunal do júri” (ZAMBONI; FARIA, 2018, p. 214). Eu mesma mantive contato particular com duas juradas por esses meios. Entre os dados alcançados, uma jurada (veterana) tecia comentários nesse sentido:

 

[...] existem as determinações, mas não são fiscalizadas, do conselho que foi sorteado ter sigilo, do conselho não se comunicar, determinação. A juíza determina: “Desligue o celular”. Mas isso não existe aqui. Quem vai para o banheiro... Eu estou cansada de ver gente com celular dentro do banheiro passando informações... Aí, quer dizer que está ali julgando a vida de um ser humano, não é, se ele cometeu ou deixou de cometer um crime, está ali julgando a vida dele. Aí, como já aconteceu ‘n’ casos, de se botar um bandido na rua e um inocente na cadeia, existe aqui. Eu, neste tribunal [fala de um juízo em específico], aqui eu tenho 14 anos e já cansei de ver isso aqui, estou cansada de ver isso aqui. (informação verbal)[10]

 

Também houve vezes nas quais o jurado entrevistado, por iniciativa própria ou a pedido meu, convocava reservadamente algum colega para participar da pesquisa. Os oficiais de justiça, que transitam nos espaços onde os juízes leigos podiam ser encontrados, também foram bons intermediários, no sentido de apontarem para os jurados mais antigos, portanto, mais conhecidos.

A tendência dos jurados veteranos era de acolhimento àqueles não tão ambientados no Júri. Imperava o “ar professoral” (SCHRITZMEYER, 2007) no sentido de auxiliar no que fosse necessário. Inclusive, duas juradas mantiveram contato comigo via redes sociais para me enviavar avisos de júris de repercussão que aconteceriam (sem entender bem que meu interesse era por casos de feminicídio). Elas também ofereciam auxílio para intermediar minha entrada em julgamentos de maior interesse social e midiático. Ainda, quando as reencontrava no Fórum, essas juradas se dispunham a indicar futuros entrevistados ou esclarecer empecilhos para o início das sessões do júri.

 

Afetações em julgamento: violências que levam a outras violências...[11]

 

Severino[12], pedreiro, conviveu com Sônia, do lar, por cerca de 9 anos e tiveram 2 filhos. Sônia também era mãe de Samara, filha de um relacionamento anterior. Na infância, Samara sofria abusos sexuais por parte de Severino, enquanto Sônia suportava diversas violências domésticas. Quando Sônia descobriu o que acontecia com Samara, buscou apoio da sua mãe, a avó materna da menina. Constava nos autos processuais que o réu ouviu a conversa entre as mulheres e concluiu que elas planejavam ir à polícia. Para evitar a denúncia de abuso sexual, Severino teria planejado matar a companheira. Então, no dia seguinte, após um almoço em família na casa da sogra, o réu disse que iria à feira com a vítima e assim saíram de bicicleta.

Horas depois, Severino ligou para a família da companheira e avisou que Sônia havia morrido após um acidente. Os familiares a procuraram em hospitais, porém sem êxito. No outro dia, um amigo da família (e repórter policial) disse que o corpo de uma mulher havia sido encontrado nas redondezas da moradia do casal, em região de mata. Sônia foi morta por estrangulamento e seu corpo foi encontrado com resquícios de sêmen.[13] Este crime ocorreu em junho de 2013 e foi julgado quase quatro anos depois: em abril de 2017. 

A irmã, a mãe, a filha e o padrasto da vítima[14] participaram do julgamento, e afirmaram que a relação do casal era envolta por ciúmes. A irmã da vítima dizia ao juiz que Severino era “um doente”, que não deixava a companheira ir a lugar algum. Sônia visitava a família em sigilo, nos horários em que o réu saía para trabalhar, e, apreensiva, explicava: “Eu vou-me embora, pois se ele chegar e eu não estiver, ele bate em mim”. Em juízo, essa declarante confirmava que Sônia “sempre foi fiel”. O motivo do crime tinha relação com o fato de a vítima ter visto o réu “chupando o negócio da menina”, e denunciaria isso à polícia quando houvesse chance de sair de casa sem ser percebida.

A mãe da vítima chorava bastante no júri. Era difícil relembrar e recontar as circunstâncias da morte da filha. Ela tornou-se responsável pelas três crianças órfãs, e dizia que Sônia era agredida por Severino “mesmo sem ele estar bêbado”. Enquanto a senhora falava sobre os abusos que a neta sofria, o réu balançava a cabeça negativamente.

Tempos após o crime, Samara começou a namorar com um rapaz mais velho, e a avó resolveu pedir exame para avaliar se a menina era virgem.  O exame deu negativo, e o namorado comentara que isso dizia respeito a algo anterior ao namoro deles. O promotor de justiça balançou a cabeça positivamente[15], acreditando nos abusos sexuais, mesmo que laudos periciais não pudessem mais confirmá-los.

Samara, 14 anos, foi a terceira declarante. Ela falava com revolta sobre o comportamento ciumento de Severino para com a mãe dela: “Esse homem é doente. Louco. Psicopata”. A moça também foi questionada pelo juiz sobre a presença do suposto amante da mãe. Samara respondeu de modo a expressar que não o viu mais, e que ele era um homem velho, provavelmente com cerca de 75 a 80 anos, na data do júri.

 

Juiz: Saulo era velho? Mais velho do que eu? (Risos dele e da plateia)

Samara: Acho que o Sr. Saulo já morreu [de velho]!

 

Quando Samara era perguntada sobre os abusos sexuais que sofreu, o promotor de justiça e os agentes penitenciários agitavam a cabeça negativamente, como reprovação às situações de assédio, repugnação ao ato torpe narrado. Na sequência, o padrasto de Sônia declarou que Severino era violento e que a vítima tinha medo dele. Disse também que presenciou o réu, no beco da casa, ouvindo a conversa entre mãe e filha.

Após cada declaração prestada, a irmã, a mãe, a filha e o padrasto da vítima, sucessivamente, dirigiam-se ao auditório para se unir à plateia e assistir ao julgamento. Sentaram-se na fileira de cadeiras à frente de onde eu estava. Era notória a comoção dessas mulheres. Toda vez que a história do assassinato era recontada, a irmã e a mãe começavam a chorar, a ressentir. Toda vez que o réu negava os abusos sexuais, a filha se remexia na cadeira, como se ouvisse um absurdo ou estivesse enojada.

Severino confessava o assassinato, não pelo motivo apresentado na denúncia, e sim porque sua companheira o teria traído com o senhor Saulo. O réu afirmou que os viu tendo relações sexuais numa casa em construção nas proximidades da moradia do casal. Perguntado pelo juiz sobre sua reação, respondeu que ficou observando a cena por uns vinte minutos (?!). Entretanto, o assassinato de Sônia teria ocorrido dois meses depois desse suposto episódio, quando numa discussão durante a ida à feira, Sônia teria dito que “as partes dela, era para dar mesmo...”. Severino afirmava não ser violento e nunca ter agredido os filhos. Samara respira fundo nessa hora.

O réu contou que considerava o Sr. Saulo como avô, e recebia as visitas dele, mesmo percebendo o “interesse” por sua companheira. Esta declaração gerou uma expressão facial de estranhamento por parte do promotor de justiça, e provocou uma movimentação entre os membros do Conselho de Sentença. Severino dizia não ter ciúmes da companheira, o que fez as mulheres da família se inquietarem nas cadeiras.

Os agentes penitenciários ficaram com ar de riso durante o interrogatório, admirados com o cinismo do réu, enquanto os jurados mantiveram postura atenta: mãos cruzadas em cima da bancada, interessados no caso. O desassossego das mulheres da família persistia diante da inversão dos fatos narrados por elas, os quais, sopesando suas reações corporais, pareciam ser mais verídicos.

Nos debates orais, o agente de acusação dizia: “Nesse caso, não há complexidade para julgar e fazer justiça final”, isto é, para conquistar a decisão condenatória. De acordo com o agente da justiça, esse era um caso de “crime passional” por causa da reação impetuosa do réu, isto é, não premeditada, a fim de ocultar as violências sexuais. A Acusação afastava o fator dos ciúmes e alegava que o réu era um “misógino, um indivíduo que menospreza as mulheres”; que era “um pedófilo e homicida”; um “psicopata, tarado”.

Embora as descrições das violências doméstico-familiares fossem o fio condutor das narrativas sobre o crime, gostaria de destacar que o promotor de justiça não recorreu à expressão violência doméstica em seus argumentos; o que teria plausibilidade na prática jurídica, diante da existência da Lei Maria da Penha, e favoreceria os processos de inteligibilidade e reconhecibilidade das violências de gênero que constituíram aquela morte violenta. No entanto, o operador jurídico optou por ir além: suas alusões à misoginia, ao menosprezo às mulheres apontam justamente para a apreensão da segunda circunstância legal do crime de feminicídio, menosprezo e discriminação à condição de mulher, que não conta com um significado tão objetivo, todavia, abrange a primeira circunstância (cf. CAMPOS, 2015).

O promotor de justiça ressaltava que esse “seria um caso de feminicídio”, se não fosse o recorte temporal da Lei. E para reforçar suas explicações, pegou um aparelho eletrônico, seu tablet, pesquisou a definição de misoginia e leu para os jurados: “ódio às mulheres, desprezo, preconceito contra mulheres e meninas”. E comentou: “Não está sendo fácil uma mulher[16] fazer a defesa de um caso desses, mas a Defensoria é una”. Nesse empenho em convencer os jurados de que todo aquele conjunto de crimes contra mãe e filha era resultado de comportamento misógino, complementou: “O distúrbio da misoginia era a mulher ser vítima e continuar a viver com o agressor”. Existem contextos de violências que levam muitas mulheres a permanecerem forçosamente ou tacitamente em relações abusivas; afetações psicológicas que convencem a vítima de que ela seria a “culpada” pelas agressões sofridas, e que interferem na decisão genuína de uma mulher (BRASIL, 2006; PRADO; SANEMATSU, 2017).

A denúncia do homicídio seguiu com a qualificadora de “assegurar a ocultação de outro crime”, mais meio cruel (asfixia) (Código Penal, art. 121, §2º, III e IV cumulado com Lei 11.340/2006, art. 7º, I[17]). Por isso, o acontecimento dos abusos sexuais precisava ser comentado. No entanto, as colocações sobre as violências sexuais foram completamente abusivas, errôneas e distantes das prescrições da lei penal. Digo, o estupro de vulnerável pode ser informado às autoridades jurídicas pelos cuidadores da vítima menor de idade ou pela própria vítima, em sua fase adulta. Isso, dando chance à vítima, na maioridade, de decidir pela denúncia, dentro de um prazo de 20 anos. Assim sendo, Samara, completados seus 18 anos, ainda teria 20 anos para solicitar a incriminação de Severino. Inclusive, a dita “conjunção carnal” não é necessária para configurar o crime.[18] Portanto, não caberia discutir laudo sexológico em juízo e sim a declaração da vítima — no caso, Samara —, os transtornos psicológicos, as informações de testemunhas etc.

A Defesa iniciou seus argumentos anunciando que estava ali para “tocar os corações” dos juízes leigos, que era mulher temente a Deus e que a palavra de Deus diz: “com a morte começa a vida”. Em sequência, argumentou por meio das seguintes chaves de leitura: “Ninguém é obrigado a viver com outro, com quem é ciumento”; “Amor e crime andam juntos, são irmãos gêmeos”; a vítima “não atendia mais as suas obrigações sexuais”; o réu seria um “corno sem vergonha, um corno covarde” se não reagisse à (suposta) traição. Ela se preocupava em apresentar o réu como um homem trabalhador, um “cidadão de bem”, e questionava o motivo de não ter sido denunciado pelas supostas agressões à mulher e à menina — sugerindo que não haveria o que denunciar contra o réu. A defensora pública reuniu diversos comentários de cunho machista e responsabilizou a mulher pela sua própria morte: “A mulher não tem medo do homem. Ela enfrenta ‘Eu fiz isso, isso...’ [...] A mulher fica enchendo o saco. Acompanha o homem pela casa reclamando”. E continuou acusando a vítima ao anunciar que Sônia doara um filho “por não amar”, pois pobreza não é motivo para abandonar um filho. Teria sido por desamor: “Se não ama o filho, não ama o homem”. Ainda, de acordo com a Defesa, Samara tornou-se mãe aos 14 anos porque não houve cuidados maternos, foi “abandonada” por Sônia. Argumento que Samara, estando na plateia, renegou corporalmente.

Em vários momentos, o promotor de justiça balançava a cabeça em contrário ao que ouvia. Essa reação pareceu incomodar a defensora pública, que interrompeu seu discurso para questionar o porquê do gesto. De outro lado, a própria Defesa demonstrou suas afetações emocionais com o caso. Ao se referir à infidelidade “sofrida” pelo réu, curiosamente, a agente de justiça ressentia, em juízo, a mágoa que guardava do seu falecido marido por ele ter se envolvido com outras mulheres no passado. É como se ela, bem como outras pessoas que sofreram com a infidelidade de seus (suas) parceiros(as), fosse mais propensa a compreender o ato homicida de Severino.

A “vergonha” que o réu “sentiu” teria relação com o momento em que Sônia supostamente o humilhou ao dizer que “as partes dela, era para dar mesmo...”. Essa versão dos fatos implicava na hipótese de ter existido a relação extraconjugal da vítima e colocava em evidência seu comportamento “desonrado”. A defensora pública associava o assassinato de Sônia ao caso de Ângela Diniz (cf. ELUF, 2009), e chamou a mulher de “vagabunda”, por levar homens para casa.

A tese da Defesa era de homicídio privilegiado por violenta emoção, porque “quem ama também mata [...]” e “o crime de esganadura é a prova da raiva, de que ela [a vítima] provocou o sentimento exacerbado de ciúme e de raiva”. Também era requerida a diminuição da pena por arrependimento: “Ele [Severino] chorou, confessou, arrependeu-se. Ele se arrependeu porque ama”.

Quando o Juiz anunciou a sentença[19], isto é, que o réu foi condenado, não houve reação de vitória dos familiares, de terem alcançado a “justiça”. Nenhum abraço. Nenhum alívio. Sônia continuava morta e a violência sexual continuava na memória e no corpo de Samara. Todos os acontecimentos foram violentamente retomados naquela sessão do júri. Novas violências aconteceram. As institucionais: por parte dos representantes da Justiça, no exercício do rito processual que exigia que as histórias fossem revividas e recontadas, e especialmente pela defensora pública, que optou por fazer julgamentos morais contra àquelas mulheres, revitimizando-as, em favor da “irrestrita” ampla defesa do réu. Situações dessas também são apontadas na obra “Feminicídio: #InvisibilidadeMata”: “A revitimização fica evidente em procedimentos recorrentes do atendimento, como obrigar a vítima a repetir inúmeras vezes o relato sobre a violência e não acolhê-la devidamente, reproduzindo estereótipos discriminatórios nos próprios serviços. Assim, ela se torna vítima também da violência institucional, aquela perpetrada pelos próprios agentes públicos no exercício de suas funções” (PRADO; SANEMATSU, 2017, p. 95).

A descrição de momentos de comunicação não verbal daquelas mulheres se fundamenta no meu compromisso de aproximar a leitora e o leitor da delicadeza da cena e da complexidade do tema sociológico tratado. Ainda, relevam meu desejo de declarar que cada expressão corporal vista por mim, muitas vezes era sentida em mim. Portanto, o recurso dos registros de campo e, especialmente, da memória afetiva/afetada levam-me a reviver algumas sensações e a decidir compartilhá-las, inclusive, para destacar que “uma narrativa sobre violência conduz a outras narrativas sobre violência” (EFREM FILHO, 2017, p. 10).

Como disse, eu estive sentada na plateia, próxima das mulheres, todas vítimas indiretas do feminicídio, e bem atrás de Samara, também vítima direta das violências sexuais praticadas pelo réu. Eu pude perceber de perto todas as silenciosas reações corporais delas, eu sentia um misto de compaixão e impotência e de retração do meu corpo, como se eu estivesse me esquivando do abuso. Todas as vezes em que o abuso sexual sofrido pela, então criança, Samara, era resgatado nos argumentos da Acusação e, especialmente, da Defesa, eu também me “espremia”. O tom de veracidade dos abusos detalhados fora recebido por mim, e refletidos em minhas próprias emoções e expressões corporais.

Apesar da irrecuperabilidade do “fato” (CORRÊA, 1983), tanto os fatos do crime quanto os fatos das minhas afetações etnográficas, entendo que minha descrição do caso condiz com as reflexões partilhadas por Roberto Efrem Filho (2017, p. 7-8): “O ato precisa ser tecido pela palavra, (re)construído, (re)formulado. Ele, o ato, é inacessível a quem quer que não haja vivenciado ou assistido à sua deflagração. Por isso, a primeira dimensão somente existe através da segunda. Uma não precede a outra. Dialeticamente, fazem-se.”

A defensora pública chegou a questionar por que a menina se expunha frequentando a sala da casa onde morava, se sabia dos desejos sexuais do padrasto. Mais uma vez, mulheres e meninas são convocadas a restringirem suas liberdades (de ir e vir, inclusive), para não incomodar os homens, ou para se protegerem das ações machistas e misóginas. Enquanto isso, eu também retorcia meu corpo, eu também me angustiava com a posição da Samara, em especial, e várias vezes conjecturei abordá-la para dizer: “Não desanime! Não acredite nessas pessoas! Você ainda pode denunciar o estupro, no tempo que quiser! Não importa onde está o seu hímen. Você pode defender sua palavra!”.

No confronto entre a posição de mulher — que repugnava/repugna a possibilidade de sofrer uma violência sexual — e de mulher-pesquisadora, mantive meu silêncio. Minha formação jurídica também pesava no sentido de dialogar com a vítima dos abusos sexuais, inclusive, por entender um pouco mais que outros observadores sobre as omissões daqueles operadores jurídicos, bem como, sobre ações que configuravam violências simbólicas e institucionais, além de desnecessárias para se construir a acusação e a defesa do réu. Entretanto, como eu não poderia ir além disso, consolidei meu silêncio, pois eu poderia me tornar mais uma pessoa estranha que interfere na intimidade daquela vítima, a Samara.

Com a sentença proferida, temos que o Conselho de Sentença se tornou convencido dos argumentos do agente do Ministério Público, embora não possamos saber ao certo que informações pesaram para a decisão de cada jurado. Com a análise das minhas afetações, posso perceber que, semelhante aos jurados, também acolhi essa verdade real, não exatamente por concordar com a técnica de acusação do réu, mas, especialmente, pelas narrativas de violência e dor expressadas pelas declarantes, mulheres e familiares de Sônia.

Nessa esteira, sou levada a considerar que os planos de Sônia, quanto a denunciar os abusos sexuais sofridos pela filha, foram atos de resistência. A própria presença das mulheres da família em juízo, especialmente Samara, representa atos de resistência, e simboliza, portanto, as possibilidades de agências dessas mulheres frente às violências de gênero.

 

Considerações finais

 

As análises do objeto de pesquisa demonstram outra perspectiva dos desafios encontrados na construção da pesquisa empírica. Esses relatos de experiência surgem do desejo de expressar as vivências adquiridas no ensejo da pesquisa sociológica e que se entrelaçam com as subjetividades e histórias de vida da pesquisadora, o que, suponho, acometem outros profissionais das ciências sociais.

Não são apenas as dificuldades de acesso a entrevistados, isto é, de convencer os agentes da justiça da importância da pesquisa e de dedicarem um tempo para avaliar e responder às questões postas por quem conduz a entrevista: estando no ofício de socióloga, seja como estudante ou profissional. Eu tive a oportunidade de medir meus próprios limites humanos, morais, psicológicos, sociais e profissionais ao apreender os discursos apresentados sobre as diversas violências exercidas contra a mulher e as práticas feminicidas. As afetações confirmaram como estive inteira no ofício de socióloga, sem anular minhas posições e condições de mulher e jurista.

Este caso aponta também para a reflexão sobre as situações em que as próprias mulheres reproduzem ideias machistas e misóginas. Foi bastante angustiante ouvir a construção argumentativa da defensora pública sempre tentando induzir os juízes leigos a considerarem, tanto Sônia quanto Samara (quando ainda criança), como responsáveis pelas violências que sofreram, sejam os abusos sexuais, sejam as diversas violências doméstico-familiares e o assassinato (feminicídio), respectivamente. Ampla defesa do réu não significa que violências institucionais podem ser praticadas. Existe uma permissividade irrefletida no campo dos tribunais do júri.

Todavia, quando me remeto criticamente aos argumentos da Defesa, não estou prescindido da função do Ministério Público. Seu representante teria meios, por ser fiscal da lei e defensor dos grupos vulneráveis, de intervir e requerer um tratamento mais respeitoso em favor da intimidade da Samara e da memória da sua mãe, vítima do feminicídio. Ademais, reconhecendo a ocultação do crime de estupro de vulnerável em sua tese jurídica, caberia reconduzir mais esta denúncia para o Ministério Público.

No mais, descrever minhas afetações demonstra que minha comunicação com o campo de pesquisa se deu a contento, pois me permiti ser afetada por histórias, ritos e choques de conhecimentos entre duas áreas científicas, conforme aponta Favret-Saada: “esse gênero de empatia supõe, portanto, a distância: é justamente porque não se está no lugar do outro que se tenta representar ou imaginar o que seria estar lá, quais ‘sensações, percepções e pensamentos’ ter-se-ia então” (FAVRET-SAADA, 2005, p. 159).

 

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Recebido em: 02/08/2023.

Aceito em: 22/10/2023.

 

O presente trabalho foi realizado com apoio da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES), Código de Financiamento 001.

 

 



* Doutora em sociologia pela Universidade Federal da Paraíba, Brasil. E-mail: helmissima@gmail.com.

[1] Os juízes leigos são também conhecidos como jurados, júri, júri popular, tribunal do povo, colegiado popular ou tribunal popular (LOREA, 2006).

[2] Análises posteriores baseadas no campo dos tribunais do júri estão presentes nos textos: Entre o sociológico e o jurídico: narrativas sobre feminicídio em tribunais do júri (OLIVEIRA; ZAMBONI, 2020); A (re)produção de uma sentença: narrativas uníssonas sobre feminicídio em tribunais do júri (OLIVEIRA et al, 2020) e Entre feminicídio e “LGBTQI+fobia: breves considerações sobre crimes de ódio no fluxo do sistema de justiça criminal (OLIVEIRA; MELO; ZAMBONI, 2020).

[3] A performatividade significa que o gênero é construído por meio de práticas reguladoras reiteradas, isto é, da constância na repetição de atos, gestos e signos culturais que reforçam a elaboração inteligível dos corpos femininos e masculinos, e assim produzem significado (cf. BUTLER, 2017).

[4] Ver a definição e as qualificadoras do crime de homicídio no Código Penal, Art. 121 (BRASIL, 1940).

[5] Fala do Promotor de Justiça que atuou no caso que descreverei mais à frente. Audiência de julgamento realizada em abril de 2017, no Fórum Criminal da Comarca da Capital, João Pessoa, Paraíba. Não informo o juízo nem outras descrições do agente de justiça para preservar a identidade das pessoas envolvidas.

[6] Os casos registrados na pesquisa percorreram de 1 a 5 anos, entre tempo do crime e decisão de júri (OLIVEIRA, 2019). As pesquisas de Klarissa Silva (2008; 2012) trazem mais detalhes sobre o fluxo do sistema de justiça criminal para crimes de homicídios.

[7] Isso era mais uma prudência minha diante das relações desiguais de gênero. Nas vivências de pesquisa do Grupo de Relações Afetivas e Violência (GRAV), sabemos de homens que sugeriram ser entrevistados em outro local e acabaram sendo inoportunos ao obter meios de comunicação particulares de uma pesquisadora.

[8] Aquelas ensejadas pelo GRAV – Grupo de Relações Afetivas e Violência (cf. ZAMBONI; OLIVEIRA, 2015, 2016; ZAMBONI; OLIVEIRA; NASCIMENTO, 2019; OLIVEIRA; ZAMBONI, 2020; OLIVEIRA et al, 2020; OLIVEIRA; MELO; ZAMBONI, 2020).

[9] O filho da entrevistada já havia concorrido a cargo político partidário e atuava em organização não-governamental envolvida com ações sociais em favor da visibilidade às pautas das lésbicas, gays, bissexuais, travestis, transexuais e transgêneros e contra o preconceito/LGBTQIfobia.

[10] Sexo feminino, 48 anos, raça não declarada. Entrevista realizada em dezembro de 2016, no Fórum Criminal da Capital, João Pessoa, Paraíba.

[11] A descrição do caso e outras análises podem ser encontradas no capítulo 5 de minha tese: Oliveira (2019).

[12] Todos os nomes são fictícios, adotados apenas como um recurso para melhor entendimento da narrativa.

[13] O sêmen encontrado no corpo da vítima não foi periciado. Mesmo assim, a irmã da vítima acreditava que seria do réu: “Isso foi dele. Ele não voltou para ver se ela estava morta?!”. A declarante cogitava violação de cadáver, e não atinou que poderia ser material de relação sexual ocorrida ao longo do dia entre o casal.

[14] Testemunhas próximas à vítima ou ao réu são desobrigadas do dever de dizer a verdade e passam a ser ouvidas como declarantes.

[15] A existência de um laudo sexológico de Samara também foi comentada pelo promotor de justiça: foi realizado quando ela tinha 12 anos, e indicava haver hímen complacente. Por isso, não teria como dizer da virgindade ou não da adolescente, quando decorridos muitos mais que o limite de 48 horas do ato sexual. 

[16] A defensora pública que trabalhou no caso não fez parte do grupo de entrevistados. Não é uma profissional contínua nas atividades daqueles Tribunais do Júri. 

[17] Violência física no contexto doméstico e familiar, conforme a Lei Maria da Penha (BRASIL, 2006).

[18] Cf. Código Penal Brasileiro, artigo 217-A (BRASIL, 1940).

[19] Nesse momento eu estava posicionada no plenário e podia ver a família em visão diagonal, quase de frente, da plateia.

 

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Desenho de um círculo

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