OLHARES INTERSECCIONAIS SOBRE PROCESSOS JUDICIAIS DE FEMINICÍDIO NA AMAZÔNIA ACREANA

INTERSECTIONAL VIEWS ON JUDICIAL PROCEEDINGS OF
FEMINICIDE IN THE ACREAN AMAZON

 

Emylli Tavares do Nascimento *

Leonísia Moura Fernandes **

Muana Moura de Oliveira ***

 

DOI: https://doi.org/10.46906/caos.n31.67624.p95-126

 

 

Resumo

Nos últimos anos, o Acre tem despontado entre os estados no topo do ranking nacional como um dos estados que mais mata mulheres por razões de gênero. No período que compreende os anos de 2018 a 2022, sessenta mortes violentas de mulheres foram como feminicídios em inquéritos e processos que tramitam no território acreano. Diante dessa realidade, este trabalho é resultado preliminar de uma pesquisa documental realizada, em 2022 e 2023, com processos de feminicídio no Acre. A partir de dois casos analisados, busca-se evidenciar em quais contextos as mortes violentas de mulheres são enquadradas por agentes de Estado enquanto feminicídios, investigando o (não) uso da hipótese legal de “menosprezo e discriminação” (art. 121, § 2o-A, II do Código Penal) para (des)caracterizar o crime. De modo específico, almeja-se também analisar as relações de poder que operam de forma interseccional para garantir ou impedir a inteligibilidade de feminicídio nos processos. Para tanto, tem-se como fonte de pesquisa os laudos periciais e processos criminais, disponibilizados no Sistema de Automação Judicial do Tribunal de Justiça do Estado do Acre (SAJ/TJ), e os dados gerais sobre feminicídio produzidos pelo Centro de Atendimento à Vítima (CAV) — órgão vinculado ao Ministério Público do Acre. Adotando-se a literatura sociológica e jurídica sobre feminicídio e os estudos sobre interseccionalidades, percebe-se que relações de gênero, raça, classe e território perfazem os processos e que as mortes de mulheres fora do contexto de violência doméstica e familiar são ininteligíveis perante as instâncias do Sistema de Justiça Criminal Acreano.

Palavras-chave: feminicídio; processos judiciais; Acre; interseccionalidades.

 

Abstract

In recent years, Acre has emerged among the states at the top of the national ranking as one of the states that most kills women for gender reasons. In the period from 2018 to 2022, sixty violent deaths of women were classified as feminicides in inquiries and processes that are being carried out in Acre. Faced with this reality, this work is the preliminary result of a documentary research carried out, in 2022 and 2023, with feminicide processes in Acre. Based on two cases analyzed, we want to show in which contexts the violent deaths of women are framed by State agents as feminicides, investigating the (non) use of the legal hypothesis of “belittlement and discrimination” (art. 121, § 2o -A, II of the Penal Code) to (mis)characterize the crime. Specifically, the aim is also to analyze the power relations that operate in an intersectional way to guarantee or prevent the intelligibility of feminicide in the processes. For this purpose, the source of research is the expert reports and the criminal prosecutions, available in the Sistema de Automação Judicial do Tribunal de Justiça do Estado do Acre (SAJ/TJ), and the general data on feminicide produced by the Centro de Atendimento à Vítima (CAV) — agency linked to the Ministério Público do Acre. Adopting the sociological and legal literature on feminicide and studies on intersectionality, it is clear that gender, race, class and territory relations make up the processes and that the deaths of women outside the context of domestic and family violence are unintelligible to elements of the Acrean criminal justice system.

Keywords: feminicide; criminal court cases; Acre; intersectionality.

 

Introdução

 

Nos últimos anos, o estado do Acre tem figurado no topo do ranking nacional das cinco unidades federativas que mais matam mulheres por razões de gênero, segundo dados do Anuário Brasileiro de Segurança Pública. Mais especificamente, os números catalogados pelo Ministério Público do Acre (MP/AC) indicam que, no período compreendido entre 2018 a 2022, ocorreram 150 mortes violentas de mulheres, dentre as quais sessenta foram classificadas como feminicídio pelos agentes de Estado. Estimando-se que tenha havido uma vítima de feminicídio a cada mês dos últimos cinco anos, mas com uma sensível diminuição tanto nos números de homicídios de mulheres quanto nos de feminicídios a cada ano (MINISTÉRIO PÚBLICO DO ESTADO DO ACRE, 2023; REGO, 2023).

Vale notar que as discussões sociológicas e jurídicas sobre a categoria femícidio/feminicídio no território latino-americano e caribenho fazem referências aos estudos iniciais da socióloga sul-africana Diana Russell (2012) que, ao discursar no Tribunal Internacional de Crimes Contra as Mulheres em Bruxelas, no ano de 1976, utilizou pela primeira vez o termo “femicídio” (femicide) para assinalar as mortes de mulheres por homens pelo fato de serem mulheres.

Posteriormente, na obra Femicide: the politics of woman killing, Diana Russell e Jane Caputi (1992) designaram o femicídio como o ápice brutal de um “continuum de terror antifeminino”, considerando que a vida das mulheres é marcada por uma série de violências, como abusos físicos e verbais, assédio sexual, heterossexualidade e maternidade forçada, mutilações genitais etc., decorrentes do ódio e do desprezo que caracterizam a discriminação ao gênero feminino no sistema patriarcal. Para as autoras, denominar as mortes de mulheres que resultam dessas violências como femicídios significa apontar seu caráter misógino e retirar a pretensa neutralidade do termo “homicídio” (RUSSELL; CAPUTI, 1992, p. 12).

Por sua vez, o termo feminicídio resulta das contribuições propostas pela antropóloga e deputada mexicana Marcela Lagarde (2006), no contexto das mortes violentas de mulheres em Ciudad Juárez. Desde os anos 1990, as mulheres mexicanas da região passaram a ser assassinadas em rituais de terror com elevado nível de crueldade e desprezo aos corpos femininos, que eram despejados em campos de cultivo de algodão ou nas vias públicas da cidade. Com o transcurso do tempo e a ausência de respostas ou a apresentação de culpados plausíveis por parte do poder público, várias pesquisadoras e organizações da sociedade civil elaboraram a tese de que os assassinatos de mulheres ocorriam nos entremeios das disputas por poder de grupos locais, com o envolvimento direto ou indireto de agentes de Estado.

Portanto, a designação do feminicídio desenvolvida por Marcela Lagarde almejava salientar a impunidade, negligência, omissão e conveniência do Estado, do México em particular, quanto às mortes de mulheres em condições brutais, inserindo o elemento político ao conceito. Esses elementos foram reconhecidos pela Corte Interamericana de Direitos Humanos (Corte IDH) da OEA, em 16 de novembro de 2009, ao julgar o caso González y Otras (Campo Algodonero) Vs. México, e responsabilizar o Estado mexicano pela omissão em investigar e punir os culpados pelas mortes violentas de mulheres em Ciudad Juárez. Na sentença proferida pela Corte IDH, reconheceu-se que as mortes ocorreram em um “contexto de discriminação e violência contra a mulher” e que os crimes cometidos em Ciudad Juárez tratam-se de “feminicídios” ou “homicídios em razão de gênero” (CORTE IDH, 2009).

As legislações penais que tratam sobre mortes violentas de mulheres, nos países latino-americanos e caribenhos, utilizam tanto a expressão femicídio quanto feminicídio, pois, embora haja diferenças conceituais, o que se sobressai de ambos os conceitos é a preocupação comum em ressaltar que esses crimes são produtos sociais da discriminação e da desigualdade de gênero. Nesse sentido, pelo menos 18 países da América Latina e do Caribe já produziram leis criminalizadoras do femicídio/feminicídio[1]: Argentina (2012); Bolívia (2013); Brasil (2015); Chile (2010); Colômbia (2015); Costa Rica (2007); El Salvador (2010); Equador (2014); Guatemala (2008); Honduras (2013); México (2012); Nicarágua (2012); Panamá (2013); Paraguai (2016); Peru (2013); República Dominicana (2014), Uruguai (2017) e Venezuela (2014) (NASCIMENTO, 2021a, p. 149).

No Brasil, os debates sobre a criminalização do feminicídio foram densificados a partir de uma Comissão Parlamentar Mista de Inquérito (CPMI), instaurada no Congresso Nacional para averiguar os resultados obtidos após seis anos de promulgação da Lei nº 11.340/2006, a Lei Maria da Penha, que criou mecanismos para coibir a violência doméstica e familiar contra a mulher. Um dos encaminhamentos retirados na CPMI consistiu precisamente na elaboração de uma legislação específica, visando punir os assassinatos de mulheres cometidos em razão da discriminação e do ódio ao gênero feminino e decorrentes de falhas estatais quanto ao dever de garantir segurança e proteção às mulheres (CAMPOS, 2015).

O projeto originário da lei de feminicídio no Brasil (PLS nº 292/2013), formulado pelas ativistas e parlamentares que compuseram a CPMI da Lei Maria da Penha, conceituava o feminicídio como a “forma extrema de violência de gênero que resulta na morte da mulher”, diante da ocorrência de uma ou mais circunstâncias: a) relação íntima de afeto ou parentesco, por afinidade ou consanguinidade, entre a vítima e o agressor, no presente ou no passado; b) prática de qualquer tipo de violência sexual contra a vítima, antes ou após a morte; c) mutilação ou desfiguração antes ou após a morte (CAMPOS, 2015, p. 107). Notoriamente, o projeto recebeu influências diretas das teorias sociológicas e antropológicas feministas citadas acima, trazendo de forma implícita as noções de continuum de terror e de misoginia, esforçando-se para demonstrar como a discriminação de gênero se materializa nos corpos femininos pela violência sexual, bem como pelo ódio e desprezo a qualquer símbolo de feminilidade, por meio da violenta brutalização do rosto, seios, órgãos genitais, ventre etc.

Contudo, por razões políticas e jurídicas, o projeto originário do feminicídio sofreu intensas modificações no Congresso Nacional[2] (CAMPOS, 2015), sendo aprovado por meio da Lei nº 13.104/2015, para qualificar o crime de homicídio quando cometido contra a mulher por razão de condição de sexo feminino, diante de circunstâncias que envolvam violência doméstica e familiar e menosprezo ou discriminação à condição de mulher, nos termos do art. 121, § 2o-A, I, II do Código Penal brasileiro.

Quase dez anos passados desde a promulgação da Lei de Feminicídio no Brasil, várias pesquisas e dados processuais indicam a consolidação da qualificadora no cenário jurídico brasileiro no que concerne às mortes violentas de mulheres que se enquadram na hipótese legal de violência doméstica e familiar. No entanto, o significado e a aplicação da hipótese de lei, menosprezo e discriminação à condição de mulher nos processos de homicídio feminino, aparentemente, permanece sendo uma incógnita para os agentes de Estado (VILLA; 2018; OLIVEIRA; ZAMBONI; NASCIMENTO; LEITE, 2020; NASCIMENTO, 2021a), bem como desprovida de maior interesse no âmbito da pesquisa acadêmica e das atuações da sociedade civil organizada (HUZIOKA, 2017).

          Seguindo as pistas deixadas pela socióloga Wânia Pasinato (2011), que debate sobre os riscos de utilizar o feminicídio como categoria abrangente para tratar sobre circunstâncias e cenários diferentes relacionados às mortes violentas de mulheres,  iniciamos, no ano de 2022, com o apoio do Programa Institucional de Bolsas de Iniciação Científica da Universidade Federal do Acre (PIBIC/UFAC), uma pesquisa documental com inquéritos e processos judiciais instaurados entre os anos de 2018 a 2022, no estado do Acre, nos quais a qualificadora de feminicídio é apontada em alguma fase do procedimento penal. Nosso interesse consistia em analisar em quais contextos as mortes violentas de mulheres são enquadradas por agentes de Estado como feminicídios, sobretudo para investigar o (não) uso da hipótese de menosprezo e discriminação nos processos criminais em trâmite no território acreano. No que interessa para este artigo, informamos que o processamento de casos de homicídio, inclusive daqueles qualificados como feminicídio, têm início na esfera administrativa com a abertura de inquérito policial e posterior remessa ao Ministério Público para oferecimento de denúncia, inaugurando a ação penal. A competência para o processamento e julgamento de crimes dolosos contra a vida pertence ao órgão do Tribunal do Júri, por meio de procedimento dividido em duas fases: na primeira delas, um juiz de direito realiza a instrução processual e emite a decisão de pronúncia do réu, dando início à segunda fase, que culmina com o julgamento propriamente dito, realizado pelo Conselho de Sentença, composto por pessoas da sociedade civil. Por fim, o magistrado elabora e publica a sentença absolutória ou condenatória do réu (TÁVORA; ALENCAR, 2018), na qual consta a fundamentação jurídica do caso. Em outros termos, para uma pessoa ser condenada por feminicídio é necessário, via de regra, que os promotores de justiça denunciem o crime de homicídio com a qualificadora do feminicídio[3]; posteriormente, os juízes de direito pronunciem o réu naqueles termos e, finalmente, que o Conselho de Sentença acate a qualificadora, fazendo constar na sentença a condenação por feminicídio por violência doméstica e familiar ou menosprezo ou discriminação à condição de mulher.

          Considerando essa dinâmica processual, nossa investigação partiu de uma relação de processos criminais disponibilizada pelo Centro de Atendimento à Vítima (CAV) e elaborada pelo Observatório da Violência de Gênero (OBSGênero), órgãos vinculados ao Ministério Público do Estado do Acre.[4] Nesse levantamento, estão catalogados todos os homicídios femininos consumados que, em alguma fase da persecução penal, foram qualificados como feminicídio, dividindo-se os casos conforme as hipóteses de violência doméstica e familiar ou de menosprezo ou discriminação. Durante os anos de 2018 a 2022, de um total de sessenta casos identificados como feminicídios, somente quatro casos foram apontados na relação do CAV como possíveis feminicídios em circunstâncias distintas à violência doméstica e familiar. Assim, o segundo passo da pesquisa consistiu precisamente no acesso ao Sistema de Automação Judicial do Tribunal de Justiça do Estado do Acre (SAJ/TJ) para analisar os casos indicados, que aparentemente fugiam do cenário de feminicídio decorrente de violência conjugal.

De forma resumida, o primeiro processo remete ao ano de 2018 e trata-se da morte violenta de uma mulher em via pública, com características de execução. No inquérito, o investigador de polícia assinala: Execução motivada possivelmente por motivos passionais ou envolvimento com facções. Até hoje, o caso segue sendo investigado sem estimativa para desfecho processual. Por outro lado, o segundo caso é do ano de 2020 e versa sobre a morte violenta de uma agricultora rural, por meio de tiro de espingarda na região do pescoço, disparado por aquele que era seu filho de criação. O processo, entretanto, foi encerrado em virtude da extinção da punibilidade do réu, pela morte em confronto com a polícia no momento da prisão.

Por sua vez, as análises oportunizadas neste artigo têm como base os dois últimos processos judiciais indicados pelo CAV, que remetem aos anos de 2021 e de 2022. O mais antigo deles refere-se à morte violenta da vítima A.L.L.M., supostamente assassinada por seu cunhado. O acusado fora denunciado por feminicídio, de forma genérica, e, posteriormente, pronunciado com a hipótese de violência doméstica e familiar, a qual foi confirmada na sentença condenatória. Nos autos judiciais, destacam-se as disputas em torno das teses argumentativas que ora apontavam uma provável violência sexual e ora sinalizavam um possível envolvimento da vítima com facções criminosas.

Por fim, o quarto processo versa sobre a morte violenta de M.C.R.C, assassinada a facadas no tórax e no abdômen por seu vizinho, no interior do estado do Acre, tendo como suposta motivação uma discussão ocorrida entre ambos sobre a derrubada de um poste de energia elétrica. Em que pese esse processo ter sido indicado como feminicídio na fase do inquérito policial, a promotoria de justiça não apresenta a qualificadora na denúncia e ela tampouco foi adicionada por ocasião da pronúncia do réu pelo juiz de Direito.

Portanto, os resultados aqui expostos são decorrentes de análises preliminares da pesquisa documental em andamento. Explicamos que a primeira etapa da pesquisa consistiu na análise do documento fornecido pelo CAV (o levantamento dos casos de feminicídio no Acre), que reúne uma série de informações sobre vítimas e acusados, como idade e faixa etária; cor e etnia; estado civil e religião; naturalidade e domicílio; escolaridade, profissão, ocupação e nível econômico; tipo ou a inexistência de relacionamento entre autor e vítima; a presença ou não de filhos; além de informações acerca da materialidade, da motivação do crime e, sobretudo, a indicação sobre a qualificação como feminicídio na hipótese de violência doméstica e familiar ou menosprezo e discriminação à condição de mulher. A análise preliminar deste documento nos forneceu pistas essenciais sobre as relações de gênero, sexualidade, classe, território e criminalização que atuam de modo simultâneo na feitura das mortes violentas de mulheres.

Na etapa subsequente, realizamos o estudo pormenorizado dos processos criminais, analisando laudos periciais, testemunhos, peças de denúncia, pronúncia e sentenças judiciais, obtidos mediante acesso ao Sistema de Automação Judicial do Tribunal de Justiça do Estado do Acre (SAJ/TJ). Salientamos que a análise dos processos judiciais partiu da concepção de interseccionalidade (BHATTACHARYA, 2019; DAVIS, 2016; MCCLINTOCK, 2010), como ferramenta metodológica e analítica para identificar como as relações de poder de gênero, sexualidade, raça, classe, território e criminalização surgem nas narrativas dos atores jurídicos e podem influenciar na qualificação do caso como feminicídio.

Por meio do aprofundamento dos casos de A.L.L.M e M.C.R.C, almejamos evidenciar neste artigo como a qualificadora de feminicídio pode surgir ou desaparecer nos autos judiciais, a depender das relações de poder que constituem as narrativas elaboradas pelos atores jurídicos, averiguando o (não) uso e a fundamentação da hipótese legal de menosprezo e discriminação à condição de mulher em casos que fogem do cenário de violência conjugal.

Aliando esse referencial teórico com a  literatura sociológica e jurídica feminista sobre feminicídio (CAMPOS, 2015; PASINATO, 2011; SEGATO, 2006; VILLA, 2018) e os dados extraídos do campo de pesquisa, destacamos as relações de poder que operam de forma interseccional para garantir ou impedir a inteligibilidade de feminicídio nos processos judiciais, e constatamos que as mortes de mulheres fora do contexto de violência doméstica e familiar são ininteligíveis perante as instâncias do Sistema de Justiça Criminal Acreano.

 

O mundo doméstico e familiar versus o mundo do crime na composição de narrativas sobre feminicídio

 

Os dados catalogados pelo Atlas da Violência (CERQUEIRA et al., 2021) sobre as mortes violentas de mulheres no Brasil, entre a década de 2009 a 2019, retratam um fenômeno complexo e curioso: as unidades federativas brasileiras que apresentam as maiores taxas desses crimes são muito semelhantes, quase idênticas, às unidades que possuem os maiores índices nacionais de homicídios em geral. Com efeito, estados como Rio Grande do Norte, Ceará, Acre e Roraima aparecem continuamente no topo da lista dessas classificações estatísticas, alternando poucas posições entre si.

Esses números formam um verdadeiro mapa da violência, cujas trilhas que percorrem os estados com maior taxa de letalidade são coincidentes com a rota traçada para o escoamento de mercadorias, armas de fogo e drogas ilícitas nas atividades operadas por facções criminosas em mercados ilegais. De modo geral, desde o ano de 2016, o aumento nas taxas de violência letal na Amazônia e no Nordeste tem sido acompanhado de um acirramento nas disputas entre o Primeiro Comando da Capital (PCC) e o Comando Vermelho (CV), em virtude da necessidade de expansão dos territórios para alcançar novos mercados para o varejo local e para a exportação de drogas ilícitas, como têm indicado os estudos de Manso e Dias (2018) e de Gabriel Feltran (2018). Nesse processo de expansão, novas alianças com facções regionais foram forjadas, a exemplo da Família do Norte (Amazonas), Guardiões do Estado (Ceará), Sindicato do Crime (Rio Grande do Norte); Bonde dos 13 (Acre), dentre muitas outras.

O estado do Acre, estrategicamente localizado numa zona de fronteira internacional do Brasil com a Bolívia e o Peru, não passou incólume a esse processo de expansão das facções do Sudeste do país e seus aliados. Esta nova dinâmica comercial transformou a realidade das cidades acreanas, alterando as formas de convivência em geral, mas especialmente nos sistemas prisionais e socioeducativos do Estado; arregimentando a população não branca e pobre para o trabalho com atividades ilícitas em localidades periféricas da zona rural e urbana, promovendo a intensificação da violência nos entremeios das disputas por território com as facções rivais.

No que interessa a este artigo, verificamos que a presença das facções criminais tem igualmente reorganizado as práticas judiciárias, tensionando fronteiras narrativas que opõem ilusoriamente o “mundo do crime”[5] do “mundo doméstico-familiar”, no tocante aos processos de feminicídio. Queremos indicar com isso que as narrativas relacionadas às facções passam a integrar, com intensidades variáveis, os processos judiciais que retratam as mortes violentas de mulheres: seja porque elas foram as vítimas letais de uma violência perpetrada por homens que possuíam alguma relação com o “mundo do crime”, seja porque elas mesmas estavam próximas demais ou integravam efetivamente as atividades criminais das facções.

Em nossa pesquisa, dos quatro processos judiciais indicados pelo Centro de Atendimento à Vítima do MP/AC, como possíveis casos de feminicídio em circunstâncias diversas da violência conjugal, em três deles havia alguma referência às facções criminais que operam no estado acreano. Em outros termos, nos processos, há cada vez mais a articulação de vítimas e acusados que são descritos como “envolvidos” ou “participantes” do “mundo do crime”, de modo que se faz necessário reconhecer que outras relações sociais — além de gênero e de sexualidade — passam a integrar as disputas judiciais pela (des)caracterização da violência letal contra as mulheres como feminicídio nos processos criminais.

 Por consequência, para uma análise mais complexa dessas mortes femininas e de sua representação processual, mostra-se imprescindível adotar uma perspectiva interseccional (DAVIS, 2016; MCCLINTOCK, 2010) para compreender como ocorrem a criminalização das experiências de classe territorialmente situadas e os processos de racialização dos sujeitos implicados nos atos de violência feminicida por meio do exame dos autos judiciais.

Para tanto, damos início ao estudo de caso sobre a morte violenta da vítima A.L.L.M, que foi assassinada por seu cunhado, na capital Rio Branco (Acre), no ano de 2021. De acordo com os dados coletados nos autos judiciais, a mulher possuía 41 anos de idade, estava solteira e havia retornado do estado do Mato Grosso há cerca de duas semanas, passando a residir na casa de sua mãe e a exercer trabalhos informais como manicure. Na data do crime em questão, a vítima, sua irmã e seu cunhado passaram o dia em um churrasco, e à noite, dirigiram-se à residência da irmã, localizada no bairro da Cidade do Povo, que recebeu este nome por ser composto somente por unidades habitacionais oriundas do Programa de Moradia do Poder Público, situando-se na zona rural de Rio Branco, na saída da cidade, em direção ao estado de Rondônia.

De acordo com a versão extraída do interrogatório do acusado, ao chegarem em casa, os três passaram a jogar baralho, mas logo a irmã da vítima decidiu se recolher para dormir. Nesse momento, o acusado afirma que a vítima lhe pediu que comprasse drogas ilícitas e, assim, ambos teriam consumido cocaína enquanto assistiam à televisão e jogavam baralho. No dia seguinte, depois que sua esposa havia partido para o trabalho, o acusado narrou que foi surpreendido com a visita de dois “traficantes” do bairro da Cidade do Povo, os quais portavam armas de fogo e começaram a indagar sobre sua cunhada, desconfiados que a futura vítima pertencesse à outra facção criminal e fosse uma “X9”. O acusado apontou que os dois rapazes teriam enforcado a mulher até a morte e o teriam obrigado, por meio de ameaças, a utilizar seu carro para levar o corpo da vítima e descartá-lo no interior da mata situada no Ramal da Encrenca, na BR-364.

Desconfiada do desaparecimento da vítima, a irmã procurou a delegacia de polícia para relatar as suspeitas que alimentava sobre envolvimento de seu companheiro no crime. Conforme consta da peça de denúncia, elaborada pelo Ministério Público, a irmã percebeu que seu companheiro estava com lesões na altura do rosto, semelhante a uma “unhada”, o que era suspeito, pois a vítima utilizava unha de fibra, gerando indícios de que provavelmente teria entrado em luta corporal com o acusado.

Em virtude da “ocultação de cadáver”, o corpo da vítima só foi encontrado pela polícia dias após o crime, em avançado estado de decomposição, o que inviabilizou a identificação da causa da morte pela perícia criminal. Classificada como parda pelo legista, a vítima vestia um sutiã vermelho na parte superior e na parte inferior uma calça jeans, embora seu corpo estivesse coberto por galhos de árvores. A ausência de vestimentas adequadas levou a irmã da vítima a suspeitar de possível violência sexual, mas essa teoria foi descartada com base no laudo negativo da necropsia. É importante salientar que, posteriormente, foi realizada perícia no lençol da cama em que a vítima havia dormido no dia do crime, e nele foi constatada a presença de sêmen, o que poderia corroborar a tese de violência sexual, no entanto não houve investimento narrativo por parte da promotoria neste sentido.

A partir desse cenário, duas versões para o crime passaram a figurar nos autos judiciais: a primeira delas consistia na tese de negativa de autoria do acusado, traçando conexões com as narrativas sobre o “mundo do crime”, pois os “traficantes” de drogas ilícitas do bairro teriam sido os responsáveis pela morte da vítima por suspeitarem que ela pertencesse à outra facção criminal e repassasse informações, tendo aquele apenas ocultado o corpo por estar submetido a coação física e moral. Nessa versão, o acusado também seria vítima, por ter sofrido lesões corporais nas mãos dos “traficantes”, os quais teriam organizado um “tribunal do crime”[6] para forçá-lo a confessar falsamente a morte, sob o risco de perder sua vida. Tal versão foi parcialmente acatada pela investigação policial, haja vista que o relatório do inquérito indica somente os tipos penais de “ocultação de cadáver” (art. 211 do Código Penal (BRASIL, 1940)) e “posse e porte ilegal de arma de fogo” (art. 12 e 14 da Lei nº 10.826/2003 (BRASIL, 2003)).

A segunda versão, por sua vez, conforma seus limites narrativos com o mundo doméstico-familiar, apontando o cunhado como responsável pela morte e explicando que o crime apenas se tornou possível em razão de ser a vítima mulher, com a qual tinha relacionamento próximo, aproveitando-se, portanto, dessa circunstância, como, ainda, utilizando-se de recurso que dificultou a defesa da ofendida, nos termos da denúncia formulada pelo agente do Ministério Público do Acre. De acordo com o promotor, a vítima foi surpreendida pelo acusado, com quem se encontrava sozinha na casa da irmã, local em que se sentia “segura” e “sem desconfiar que algo muito grave poderia lhe ocorrer”. Assim, o cunhado é denunciado pelo crime de homicídio, qualificado por meio de “traição, emboscada ou mediante dissimulação ou outro recurso que dificulte ou torne impossível a defesa do ofendido” e pelo fato de o crime ter sido praticado “contra mulher por razões de condição de sexo feminino” (art. 121, § 2º, IV e VI, Código Penal); além da “ocultação de cadáver” (art. 211 do Código Penal).

A análise dessas versões de narrativas possíveis para o crime confirma, primeiramente, o caráter irrecuperável dos atos relativos à quebra da regra jurídica não matar, como tão bem assinalou a antropóloga Mariza Corrêa (1983) em seu trabalho pioneiro Morte em família: representações jurídicas de papéis sexuais. Como notou Corrêa, as relações sociais concretas que oportunizaram os atos de violência não podem ser plenamente reconstituídas e a produção do processo judicial ocorre a partir da seleção de provas e teses que serão ou não respaldadas juridicamente para compor os autos. É por isso que, quando analisamos processos judiciais, é mais viável conhecer sobre a gestão estatal das mortes e sobre a (in)adequação moral dos sujeitos, de acordo com os documentos processuais e as narrativas dos atores jurídicos, do que sobre a experiência das mortes violentas propriamente ditas (CORRÊA, 1983, p. 23-25).

Ademais, a escolha dos atores jurídicos sobre qual versão adotar para fins de elaboração da tese de defesa ou de acusação dos sujeitos envolvidos no crime, depende da (des)conformidade de vítima e acusado a uma série de convenções morais, constituídas por relações de gênero, sexualidade, classe, racialização, territorialização e criminalização (CORRÊA, 1983; ZAMBONI, OLIVEIRA, NASCIMENTO, 2019; NASCIMENTO, 2021a).

No caso em exame, notamos que a vítima A.L.L.M era uma mulher pobre, sobrevivendo do trabalho informal como manicure, parda, moradora de um bairro periférico reconhecido pelo senso comum como “perigoso”, na cidade de Rio Branco. Essas relações de poder de gênero, classe, racialização e territorialização não devem ser simplesmente consideradas como razões da morte, mas como pistas que nos auxiliam a compreender sua desconstituição pelos agentes da delegacia de polícia como uma possível vítima de feminicídio.

Operando simultaneamente, essas relações de poder oportunizam a criminalização dessa mulher na esfera administrativa, visto que ela estava próxima demais às narrativas relacionadas ao “mundo do crime”, era potencialmente uma usuária de cocaína e poderia ter “envolvimento” com o tráfico local. Seus trânsitos suspeitos entre o Acre e Rondônia, ambos estados de fronteira com a Bolívia (rotas de tráfico), tornavam-na uma provável integrante de facção criminal perante os olhos dos policiais, o suficiente para que a versão levantada pelo acusado seja considerada plausível e acatada pelo delegado, afastando a tipificação da conduta de homicídio como sendo de sua autoria.

          Por seu turno, as relações de poder também perfazem a versão elaborada pelo promotor de justiça para explicar o crime, a qual demanda necessariamente o esforço de legitimação da vítima. Ora, em sua peça de denúncia, o Ministério Público escolhe qualificar o crime não apenas como feminicídio, em razão da condição de sexo feminino, o que já evidencia as relações de gênero no caso; mas também adiciona a qualificadora de traição como recurso que dificultou ou impossibilitou a defesa da ofendida. Essa última qualificadora é justificada nas narrativas generificadas do promotor de justiça, em razão de a casa dever ser um local de segurança para as mulheres, espaço no qual não se espera ser sujeita a graves violências.

Nessa argumentação, a vítima é situada dentro dos limites territoriais da casa que simboliza o lócus especial de feminilidade doméstica, ao contrário dos perigos que circundam a territorialização do “mundo do crime”, no âmbito público. Além disso, as relações de gênero e de sexualidade constituem a representação de A.L.L.M como possível vítima indefesa perante as investidas sexuais do acusado. Essas narrativas que remetem à noção feminilizada sobre vulnerabilidade ganham sentido nas peças e nas disputas promovidas pelos atores jurídicos, na medida em que são articuladas às convenções hegemônicas de passividade, indefensabilidade e sofrimento feminino, fornecendo condições de possibilidade para a aceitação da qualificadora de feminicídio (NASCIMENTO, 2021a, p. 98). Dessa forma, outra não poderia ser a tese da acusação senão a de que o crime somente ocorreu pela proximidade do réu que era cunhado da vítima, isto é, aproveitando-se dessa relação de parentesco familiar para trair a confiança da mulher que se encontrava indefesa e vulnerável.

          De outro lado, como bem observou Roberto Efrem Filho (2017), a consolidação da vítima nos autos judiciais pressupõe a materialização do seu oposto, mediante a representação da figura do algoz. Assim, sobre o acusado, D.M.P. — homem pardo, de 30 anos de idade, trabalhador informal como marceneiro — recaíam as investidas narrativas sobre sua participação no “mundo do crime”. Vejam, o acusado já havia sido condenado por roubo e portava tornozeleira eletrônica, indicando que cumpria o resto da pena em regime aberto. Como também, havia confessado na delegacia de polícia e na presença do juiz ser usuário de drogas ilícitas, participando de trocas comerciais com “traficantes do bairro”, além de ter ocultado o corpo da vítima no “Ramal da Encrenca”, conhecido como local para realização de atividades ilícitas. Percebemos que as relações de gênero masculinizadas, de classe, de racialização e territorialização novamente atuaram no caso, dessa vez para consolidar a criminalização da figura do réu, já considerado ao longo dos autos como uma ameaça à garantia da ordem pública, motivo pelo qual fora decretada sua prisão cautelar para responder ao processo judicial encarcerado.

Como se não fossem suficientes as narrativas que apontavam indícios de participação nas dinâmicas criminais das facções locais, a sua ex-companheira testemunhou em plenário afirmando que ela e a filha do casal já sofreram violência doméstica em suas mãos, consolidando a deslegitimação do réu tanto como um cidadão perigoso à ordem pública, quanto à ordem privada. Além disso, nas peças do inquérito policial foram ventiladas suspeitas de envolvimento do acusado no caso de homicídio e violência sexual de uma jovem, moradora do estado vizinho de Rondônia, além de outra violência sexual em Rio Branco. Notem que este sujeito não se conforma narrativamente nem à figura do homem trabalhador, nem a do pai e marido amoroso, apta a abonar os desvios criminais nos processos que vão a julgamento nos tribunais do júri (CORRÊA, 1983).

          Por isso mesmo, a consequência é a pronúncia do réu pelo juiz de direito nos termos do artigo 121, § 2º, VI, §2º-A, I, do Código Penal brasileiro. Significa dizer que, a priori, a peça de denúncia formulada pelo Ministério Público é acatada pelo magistrado em termos quase semelhantes, a diferença é a expressa indicação de que a qualificadora de feminicídio encontra-se presente no caso em razão da violência doméstica e familiar.

          Em seguida, ao ser levado a julgamento pelo Conselho de Sentença que compõe o Tribunal do Júri, as relações de poder que legitimaram a vítima e oportunizaram o processo de criminalização do réu são confirmadas em plenário por meio da sentença condenatória a vinte anos e cinco meses de reclusão e trinta dias-multa, consoante a tese que fora construída pela promotoria de justiça e acatada pelo grupo de julgadores.

          Diante desse resultado, desejamos tecer alguns apontamentos. Primeiro, constata-se que os limites domésticos da casa e as relações de familiaridade foram determinantes para o enquadramento da qualificadora do feminicídio no caso concreto, a qual, recordamos, não havia sido ventilada no início das investigações na esfera policial. Foi necessário acionar as convenções narrativas em torno da família, de suas relações de irmandade e maternidade, além de seu caráter indefeso e vulnerável para legitimar a mulher como uma vítima de fato e de direito.

A análise dos processos judiciais nos permite vislumbrar que as mortes violentas de mulheres apenas são caracterizadas como feminicídios quando as narrativas conseguem representar as vítimas de acordo com certas convenções generificadas, as quais reconhecem o feminino como dócil, frágil, materno, circunscrito ao espaço privado da casa e limitada às performances familiares. O preocupante é que tais convenções — constituídas por noções de gênero, classe e de racialização — não são capazes de representar todas as mulheres, tampouco todos os cenários possíveis de mortes violentas em razão do gênero feminino.

Nesse sentido, os estudos interseccionais de Anne McClintock (2010) e Angela Davis (2016) há muito já apontaram que essa representação de feminilidade hegemônica, mediante convenções de docilidade e vulnerabilidade, recato doméstico e pureza sexual, faz referência às mulheres brancas de classe média. As análises desenvolvidas por Anne McClintock, em Couro imperial (2010), mostram como a instituição do culto à domesticidade, no século XIX, foi algo crucial para a produção de identidades masculinizáveis e feminilizáveis, que marcavam a branquitude e a negritude entre os povos colonizados, a classe trabalhadora e as classes médias burguesas. Nas práticas imperialistas e colonialistas, a identidade das mulheres brancas das classes médias constituía-se através de convenções acerca da sua pureza sexual e racial, do decoro doméstico e pela impossibilidade de integrar o mercado de trabalho remunerado; ao passo que as mulheres racializadas das classes trabalhadoras eram retratadas por convenções relativas à prática sexual inter-racial e ao trabalho pesado e remunerado no espaço público, seja como empregadas domésticas ou como prostitutas. As mulheres das terras colonizadas eram os símbolos do império para a degeneração sexual e racial, figurando como as espécies que seriam naturalmente primitivas e bestializadas.  

Aplicando esses estudos para analisar o caso em concreto podemos inferir o porquê de o promotor de justiça não investir esforços narrativos sobre a tese de violência sexual, mesmo tendo sido juntado aos autos o laudo pericial que constatou haver sêmen no lençol de cama da vítima. Em teoria, a narrativa de violência sexual também estaria apta a qualificar juridicamente o crime como feminicídio por meio da hipótese de menosprezo ou discriminação à condição de mulher, diante da violação ao corpo feminino. Ocorre que a articulação de certas relações de poder sobre a figura da vítima — mulher pobre, parda, moradora de um bairro periférico, com trânsitos e relações suspeitos com o mercado local de drogas ilícitas — poderia dar margens à defesa para formular narrativas desabonadoras, pondo em xeque o comportamento sexual da vítima e suscitando teorias sobre uma relação extraconjugal dela com o acusado (companheiro de sua irmã). Na dúvida, a promotoria de justiça escolhe a narrativa que já está consolidada nas práticas judiciárias e no meio social habitado pelos jurados, isto é, a tese objetiva de violência doméstica e familiar.

Pelo mesmo motivo, a tese de feminicídio por violência doméstica e familiar também é mais eficaz para afastar as narrativas de criminalização que sugeriam o envolvimento da vítima com as facções criminais. No processo de A.L.L.M, relações de gênero e de território são tensionadas ao máximo para feminilizar a vítima e fixá-la à casa e à família nas narrativas judiciais, dessa forma, o caso passa a se enquadrar no repertório dos feminicídios por violência doméstica e familiar enquanto crimes que ocorrem no espaço doméstico e privado e vitimizam mulheres nas mãos de (ex)maridos, companheiros ou familiares. Paralelamente, o acionamento dessas relações de gênero e de território servem para opor narrativamente o caso da vítima daqueles crimes realizados no espaço público, que envolvem os sujeitos masculinizados e racializados, implicados nos confrontos e acertos de contas que constituem violentamente as operações do mercado de drogas ilícitas. Se nos crimes de feminicídio temos mulheres vítimas feminilizadas como indefesas, vulneráveis e dedicadas ao lar; os crimes de violência urbana envolvendo roubo e tráfico operam como seu avesso narrativo (NASCIMENTO, 2021b), nos quais vemos vítimas masculinizadas como homens perigosos, violentos e dedicados ao mundo do crime. Ao refletir sobre as mortes de mulheres no Brasil em artigo publicado no ano de 2011, a socióloga Wânia Pasinato já alertava para essa lógica dicotômica que separa espaço público e privado e que reverbera nas pesquisas e políticas públicas sobre violência de gênero, trazendo como consequências: o desconhecimento sobre “a interface entre violência urbana/criminalidade urbana e gênero, inclusive sobre o impacto que essa criminalidade produz na vida das mulheres” e a reprodução dos tradicionais “papéis sociais de gênero”, impedindo o reconhecimento da violência contra as mulheres como verdadeiro problema de segurança pública  (PASINATO, 2011, p. 240-241).

          Com a promulgação e a aplicação da Lei de Feminicídio, percebemos que longe de desmistificar essas fronteiras ilusórias entre economia e espaço doméstico e economia e espaço público, os agentes estatais trabalham com o reforço narrativo dessas normas sociais, definindo moralidades e estabelecendo representações generificadas sobre os sujeitos envolvidos nos processos judiciais.

 Isso é evidenciado nos processos de feminicídio pelo fato de a qualificadora estar atuando como o exterior constitutivo (FOUCAULT, 2014) ou o avesso narrativo (NASCIMENTO, 2021b) dos crimes relacionados ao tráfico de drogas e às facções criminais, como explicado acima. O feminicídio, como crime que vitimiza mulheres em razão de gênero, ganha significado nas narrativas judiciais ao ser identificado objetivamente com o mundo doméstico e familiar em oposição aos processos relacionados ao mundo do crime, identificados por meio da violência urbana que ocorre no espaço público masculinizado. Como consequência, notamos que a complexidade da realidade social e das mortes violentas precisa ser simplificada nos processos para se enquadrar em uma das duas narrativas jurídicas possíveis, excluindo outros cenários, motivos e circunstâncias relativos às mortes. Assim, não há margem para investimento narrativo sobre a hipótese de feminicídio por menosprezo e discriminação à condição de mulher, de maneira que a moldura de inteligibilidade da qualificadora é reduzida à primeira hipótese, e sequer são consideradas narrativas sobre ódio, desprezo, violação e mutilação aos corpos femininos.

 

A invisibilidade do gênero na qualificação de mortes violentas de mulheres entremeadas nos espaços público e privado

 

M.C.R.C foi uma mulher parda, casada, agricultora e produtora rural nascida em Mâncio Lima, cidade localizada no interior do Acre, mais especificamente na mesorregião do Vale do Juruá.[7] Com 55 anos de idade, foi também na zona rural de Mâncio Lima que ela teve sua vida ceifada, na tarde de uma sexta-feira de 2022, após sete facadas, de arma tipo punhal, desferidas por um vizinho, um jovem de 21 anos (D.S.S) que, segundo testemunhou o marido de M.C.R.C, prestava serviços esporádicos para sua família, como a limpeza do roçado.

A materialidade do crime resta comprovada pelo laudo de exame cadavérico acostado aos autos processuais, que indica a causa mortis por choque hemorrágico em razão dos múltiplos ferimentos, mas o que motivou D.S.S a provocar tais ferimentos é o ponto de reflexão sobre o qual o Sistema de Justiça tem de se debruçar no bojo da persecução penal. Pouco mais de um ano após o fato, o processo ainda não foi levado para apreciação e julgamento pelo Conselho de Sentença, composto por pessoas leigas que desempenham a função de juiz natural nos casos dolosos de competência do Tribunal do Júri.  No entanto, a partir dos dados presentes nos autos do inquérito policial, na denúncia ofertada pelo Ministério Público e na sentença de pronúncia dada pelo Juiz de Direito, já é possível traçar impressões acerca da inteligibilidade que o Sistema de Justiça Criminal no Acre possui acerca do vocabulário violento do feminicídio (VILLA, 2018).

Dos autos processuais, especialmente do depoimento do réu, as supostas motivações que o levaram ao cometimento do crime residem em uma “chamada de atenção” que este levou da vítima após ter “rolado um pau que segurava a fiação de energia no terreno”.[8] O depoimento do marido de M.C.R.C revela que o poste derrubado seria para levar energia à casa de farinha da família de sua esposa, que estava em construção, e por isso ela teria discutido com D.S.S.

Diante desse contexto, a autoridade policial interpretou a morte violenta de M.C.R.C como homicídio (art. 121 do Código Penal Brasileiro) qualificado por motivo fútil (inciso II), mediante recurso que dificultou sua defesa (inciso IV) e como um feminicídio (inciso VI). A representação da autoridade policial ao Ministério Público não fundamentou nenhum dos dispositivos apontados na qualificação do homicídio de M.C.R.C, tampouco especificou quais dos incisos do §2º-A confirmariam que o crime envolveu “razões de condição de sexo feminino” para se caracterizar como um feminicídio, se por contexto de “violência doméstica e familiar” (inciso I), ou se por “menosprezo ou discriminação à condição de mulher” (inciso II).

A peça de denúncia ofertada pelo Ministério Público, por sua vez, endossa as qualificadoras de motivo fútil, brevemente apontado como a “chamada de atenção” que M.C.R.C deu ao réu, e a de emprego de meio que dificultou a defesa da vítima, afirmando que ela teria sido pega sozinha e desprevenida quando, ao atender ao chamado do acusado no portão de sua casa, este ter lhe desferido as facadas sem que ela tivesse chance de se defender.  Não há qualquer menção à qualificadora de feminicídio aventada no inquérito policial, desconsiderando, portanto, quaisquer circunstâncias relacionadas a relações de gênero no contexto do homicídio de M.C.R.C. Na ocasião da sentença, a despeito da ampla liberdade que o Código de Processo Penal brasileiro (art. 413, §1º) confere ao membro do Judiciário para classificar a conduta do acusado ao tipo penal, qualificadoras e agravantes que entender cabíveis, o órgão julgador decide por pronunciar o réu nos exatos termos das argumentações fáticas e jurídicas propostas pelo Ministério Público. Novamente, o Sistema de Justiça silencia acerca da possibilidade de razões de gênero na produção desse homicídio, precariamente aventada no Inquérito Policial, encerrando, assim, a possibilidade desses debates no caso.

No entanto, a imagem do corpo sem vida e ensanguentado de M.C.R.C estendido no portão entreaberto de sua casa parece extrapolar sua condição de indício e elemento probatório, acionando significados da gramática da violência de gênero. As mortes violentas de mulheres produzem imagens de brutalidade nas duas dimensões amalgamadas propostas por Efrem Filho (2017), no sentido dialético de trazer à tona tanto o corpo brutalizado pelo ato da violência, quanto o corpo brutalizado pelas narrativas de violência acerca do ato, sem as quais não podemos ter acesso a este, como afirmamos anteriormente com Corrêa (1983).

 Encontrada com a boca ensanguentada, braços levantados acima da cabeça e dobrada sobre as duas pernas, a metade do lado esquerdo do corpo de M.C.R.C está disposta dentro de casa, enquanto a outra metade está na rua, separadas pelo portão de madeira. O corpo de M.C.R.C se deita, a um só tempo, como uma linha de divisão e de ligação entre as esferas pública e doméstica, conformando-se como um gesto simbólico que aciona propriedades semânticas das relações sociais na manifestação da violência (VILLA, 2018). Se o pensamento liberal e suas instituições se dedicaram a instalar divisões artificiais entre os universos público e privado, a conexão intrínseca entre essas duas esferas sociais é um dos poucos pontos de convergência entre as mais diversas práxis feministas.

Após décadas de militância política, mudanças legislativas e educação social na pauta da violência contra mulheres no espaço doméstico, há razoável inteligibilidade desse fenômeno que escancara como há relações desiguais de poder no mundo privado, e que, em suma, o pessoal é político (HUZIOKA, 2017). De outra feita, a não ser que partamos da premissa de ausência de misoginia fora das relações íntimas, importa considerar que há pouca ou nenhuma inteligibilidade acerca da violência que alcança as mulheres no mundo do trabalho, do mercado e da política (PENALVA, 2020). A imagem de brutalidade do corpo morto de M.C.R.C nos autos processuais sintetiza a complexidade do vocabulário do feminicídio, o qual articula relações de gênero, racialização, classe, território etc. na confecção da dimensão expressiva desse crime (EFREM FILHO, 2017; SEGATO, 2006).

O réu prestava serviços ocasionais para a vítima e sua família, frequentava a sua casa, mas não havia laços de afeto entre eles, sua ligação era o mundo do trabalho. Como a imagem do corpo estirado de M.C.R.C, a relação que precede o crime está entremeada entre as duas esferas sociais. Em um dos estados que apresenta as maiores taxas de feminicídio do Brasil, questionamos a rapidez com que a perspectiva de gênero foi descartada na linha investigativa da acusação, em desconformidade com o que indica o protocolo de feminicídio[9] a todas as instâncias do Sistema de Justiça na persecução penal de mortes de mulheres que apresentem sinais de violência (BRASIL, 2016).

M.C.R.C veio a óbito em razão dos ferimentos em seu abdômen e tórax. O laudo cadavérico afirma ter encontrado sete perfurações, enquanto o acusado afirma ter desferido não sete, mas três facadas. De toda forma, há um lapso temporal em que o crime é idealizado e executado que não pode ser ignorado: o tempo em que o réu vai em casa buscar a faca após a discussão com a vítima, segue até a casa dela, chama-a no portão e aguarda sua chegada até a ferir letalmente. Da audiência de instrução, é possível deduzir que a tese central da defesa será o quadro de sofrimento psíquico que o acusado possui em razão das crises de epilepsia que apresenta desde bebê. Segundo o mesmo, ele teria sentido uma raiva tão grande gerada pela discussão, que teria apresentado uma crise e ficado “fora de si”. Porém, até nossas últimas incursões nos autos processuais, não há nenhum pedido de incidente de insanidade mental.

Fazer o enquadramento legal desse contexto como motivo fútil, ou seja, “manifestamente desproporcional à gravidade do fato e à intensidade do motivo” (NUCCI, 2020), certamente atende ao objetivo central do processamento do crime de se realizar como “forma institucional e ritual de vingança”, encontrando um culpado e lhe atribuindo uma pena pelo ato (BARATTA, 1993, p. 51). No entanto, essa opção interpretativa pouco avança na compreensão dos contextos que tornam possível as mortes de mulheres por razões de gênero, o que parece não ser uma prioridade para o Sistema de Justiça, impossibilitando um dos objetivos do protocolo: ampliar ações preventivas a casos de violência contra mulheres, a partir da compreensão dos contextos que tornam feminicídios possíveis.

Mesmo antes da tipificação da qualificadora de feminicídio no Código Penal, parte da literatura especializada já questionava a utilidade tática de amalgamar mortes violentas de mulheres sob uma categoria homogeneizante como feminicídio, tendo em vista a ampla diversidade na condição de existência das mulheres, atravessadas por multiplicidades de relações sociais muitas vezes contraditórias e mesmo antagônicas entre si. Pasinato (2011) questiona se não haveria mais potência interpretativa e política em desagregar as mortes violentas de mulheres, explorando contextos particulares a fim de alcançar formulações teóricas e intervenções estatais mais específicas.

Todavia, como pontua Huzioka (2017), importa notar que é próprio da lógica jurídica lidar com os conflitos sociais desde uma perspectiva que individualiza e isola as partes de seus contextos, produzindo respostas homogeneizadoras desde as formulações legislativas, perpassando os ritos processuais e seu manejo pelos agentes públicos e privados. De modo que, apesar de o Sistema de Justiça Criminal deter potencial para ser um espaço privilegiado destas reflexões, esbarra, todavia, nas condições sócio-históricas que o estruturam como espaço de legitimação e reprodução das relações de poder. Essa dinâmica institucional combinada ao letramento limitado de seus agentes na gramática da violência contra mulheres reforça a percepção de Lagarde (2004) do feminicídio como crime de Estado, uma vez que conta com sua tolerância e negligência ao não ser capaz de enxergar suas diversas possibilidades de ocorrência.

Campos (2015) entende que a qualificadora que possibilita enquadrar casos de feminicídio motivados por menosprezo ou discriminação à condição de mulher traz o ganho político de se evidenciar as razões de gênero que motivam homicídios que até poderiam ser enquadrados como torpe ou fútil, levando à condenação criminal, mas sem contribuir na compreensão do fenômeno das mortes violentas de mulheres baseadas na misoginia. Outrossim, apesar do amplo sentido que a qualificadora detém, Campos (2015) enxerga que a não taxatividade na descrição dessas possibilidades, tal como nas versões iniciais do projeto de lei (PL nº 292/2013), evita que a defesa levante argumentos de bis in idem por muitas delas já estarem descritas em outros dispositivos.

Concordamos com Pasinato (2011) que pensar as mortes violentas de mulheres apenas pelo viés das relações de gênero é insuficiente para compreendê-las em suas complexidades, uma vez que é impossível isolar apenas um aspecto das estruturas de poder que atravessam as relações humanas. E é justamente por isso que entendemos que pensar tais mortes em termos de feminicídio não limita a identificação de outras relações de poder que vulnerabilizam as mulheres em sua condição de gênero e demais relações sociais, as quais não se sobrepõem na vida cotidiana, mas se perfazem mutuamente de forma dinâmica e contraditória (MCCLINTOCK, 2010).

No exemplo da persecução penal em comento, a possibilidade de motivações de gênero no homicídio de M.C.R.C foi considerada apenas uma vez, pela autoridade policial, que não apresentou nenhuma fundamentação para essa sinalização, bem como para nenhuma das outras qualificadoras que suscitou. Paralelo a isso, o órgão acusador sequer considera a possibilidade ou se debruça para fundamentar o afastamento da qualificadora de feminicídio na classificação penal, toada que seguirá o judiciário. Nas imagens de brutalidade que o Sistema de Justiça elabora para tornar a morte de M.C.R.C. acessível e inteligível, há um emaranhado de relações sócio-históricas entre aquela e o acusado que não são lidas, acarretando o desaparecimento de discussões acerca da possibilidade de feminicídio sem qualquer fundamentação fática ou jurídica.

Se a relação de trabalho pré-existente entre vítima e réu — com aquela na condição de “empregadora” deste — teve algum impacto nas motivações do crime, só pode figurar no campo especulativo agora. Mas Bhattacharya (2019) compreende que as dinâmicas do mundo do trabalho estão intimamente associadas às do controle das mulheres e das violências que sofrem. Seja porque, no caso de algumas, sua presença fica mais evidente no espaço público, ou porque passam a ocupar funções de autoridade ou de menor subalternidade no mundo do trabalho, ou ainda porque não estão apenas desempenhando o papel de feminilidade da dona de casa dócil, voltada apenas para a realização infindável das tarefas domésticas. Para Bhattacharya, os feminicídios motivados por honra, quer dizer, por razões de ciúmes e posse de mulheres, são um aspecto do extremo das violências de gênero, mas a autora chama a atenção para violências que “parece[m] ocorrer em nome da perda da autoridade ou controle ‘tradicional’ masculino” (BHATTACHARYA, 2019, p. 32). E esse controle que se estende para além das relações íntimas evidencia a clivagem ilusória entre os espaços público e doméstico.

É possível que ter sido repreendido por uma mulher que pagava pelos seus serviços tenha sido gatilho suficiente para enraivecer D.S.S a ponto de matá-la. Não sabemos. Mas é inegável que a compreensão adequada dos contextos de produção de feminicídios demanda articulação entre as expressões de poder das relações de classe, raça, gênero e território. M.C.R.C morreu porque tentou defender seu espaço de trabalho e de subsistência: a casa de farinha da família.

Se comparado ao resto do Brasil, a colonização do território que viria a se tornar o Acre é bastante recente. Datando do final do século XIX, a ocupação do Acre por pessoas não originárias está associada com as demandas imperialistas de Inglaterra e Estados Unidos pela extração de seringa, matéria-prima para a confecção de toda sorte de produtos de borracha. Muitos povos indígenas foram escravizados para realizar os cortes nas seringueiras, mas a principal mão de obra empregada foi a grande leva de migrantes nordestinos que, empobrecidos pela indústria da seca, viram-se obrigados a procurar melhores condições de vida em outras localidades, como a Amazônia.

Como a grande maioria dos migrantes era composta por homens, a presença de mulheres era escassa e, consequentemente, elas tornaram-se mercadoria. As migrantes nordestinas e suas descendentes eram vendidas, raptadas, doadas e presenteadas na dinâmica da “seringalidade”[10] (WOLFF, 1998). Ademais, também era comum a captura de mulheres indígenas, muitas vezes ainda meninas, para se tornarem esposas, vendidas ou premiadas a outrem como tal. As que conseguiam fugir, mas eram recapturadas, foram torturadas e, muitas vezes, assassinadas (MANCHINERI, 2020). Vale frisar que ter uma esposa nas colocações de seringais deteve um papel muito maior do que apenas a satisfação sexual. Trabalhando em condições de extrema vulnerabilidade alimentar, insalubridade e violência patronal, a esposa, além de mais um apoio para a extração de seringa, exercia o papel de aprovisionamento social, quer dizer, o trabalho doméstico responsável por renovar as forças de trabalho do seringueiro dia após dia. Nesse sentido, a força de trabalho das mulheres possuía uma importância central e era uma mercadoria cobiçada, frequentemente adquirida pela violência. As mulheres originárias representavam ainda mais uma vantagem para os seringueiros, pois elas detinham os conhecimentos tradicionais de manejo com a floresta amazônica, totalmente desconhecida dos nordestinos.

Quando as demandas por látex diminuíram, principalmente em razão do término das duas grandes guerras e da biopirataria que a Inglaterra fez da seringueira, instituindo um cultivo de tipo plantation na Ásia, os seringais perderam sua força econômica na Amazônia (SOUZA, 2017). No Acre, mas especialmente no Vale do Juruá — onde M.C.R.C viveu e morreu — a farinha acabou se tornando uma das principais formas de sobrevivência das famílias que extraíam seringa, tanto para sua própria alimentação quanto para o comércio, sendo produzida de modo artesanal e familiar em quase 90% dos casos (SIVIERO; BAYMA; KLEIN; PINTO, 2012).

M.C.R.C foi uma mulher parda e trabalhadora assassinada pelo réu por ter-lhe reclamado face a face o seu direito à alimentação e sustento de si e de sua família. Tal direito fora posto sob ameaça pela derrubada, promovida pelo réu, do pedaço de madeira que ligava a fiação de energia elétrica à casa de farinha da vítima. Como em outras dinâmicas de sobrevivência vividas pela classe trabalhadora, M.C.R.C morreu por defender condições indispensáveis para o trabalho que alimentava a casa. As estatísticas oficiais apontam esses marcadores como fatores de risco à vida de uma mulher no Brasil. Talvez o Sistema de Justiça Criminal do Acre tenha perdido uma chance de tentar compreender como essas relações sócio-históricas de poder se constituem, emaranhadas umas nas outras, tornando esse chão um dos mais perigosos para as mulheres brasileiras viverem.

 

 Considerações finais

 

O estado do Acre tem se mantido nas primeiras posições no ranking de maiores taxas de feminicídio no Brasil. No período de 2018 a 2022, foram contabilizadas sessenta mortes violentas de mulheres por razões de gênero, segundo informações do Ministério Público (MINISTÉRIO PÚBLICO DO ESTADO DO ACRE, 2023). Esse dado estatístico motivou a realização de nossa pesquisa para investigar a qualificação do feminicídio nos processos judiciais que tramitam no Estado acreano. A partir de levantamento realizado pelo Centro de Atendimento à Vítima (CAV), órgão vinculado ao MP/AC, e do acesso ao Sistema de Automação Judicial do Tribunal de Justiça do Estado do Acre (SAJ/TJ), analisamos laudos periciais, peças de denúncia, pronúncia e sentença de condenação referentes aos processos criminais de feminicídio. A fundamentação da pesquisa documental encontrou amparo em revisão bibliográfica relativa às discussões jurídicas e sociológicas sobre morte violentas de mulheres, sob o marco teórico-metodológico de feminismos interseccionais.

Logo de início, notamos que dos sessenta processos de feminicídio indicados pelo CAV, apenas quatro não foram enquadrados inicialmente na hipótese legal de violência doméstica e familiar. Um número indicativo da ausência de fundamentação e qualificação desse crime conforme a hipótese de menosprezo e discriminação à condição de mulher, constante no inciso II, §2º-A, do artigo 121 do Código Penal. Nesse sentido, o presente artigo buscou evidenciar em quais contextos as mortes violentas de mulheres são reconhecidas — ou não — como feminicídio na persecução penal, levando em consideração as relações de poder de gênero, raça, classe, território e criminalização que atuam de modo interseccional para produção material e simbólica das imagens de brutalidade desses crimes.

A análise das peças processuais que tramitam no Poder Judiciário do Estado do Acre revelou que seus agentes públicos (como delegados de polícia, promotores de justiça e juízes de direito) não têm apresentado uma densa justificativa para a aplicação ou para o afastamento da qualificadora de feminicídio nos casos concretos. Não tendo sido encontrado aprofundamento nas argumentações — sejam fáticas ou jurídicas — para explicar a presença ou ausência de razões de gênero que motivaram a violência letal. Nesse cenário, a qualificadora de feminicídio tem surgido como uma espécie de obviedade, correspondendo unicamente aos casos de violência doméstica e familiar que são opostos objetivamente aos crimes identificados com a violência urbana, relacionados aos assassinatos cometidos nas disputas do mercado de drogas ilícitas.

Percebemos, portanto, que representações sociais acerca da feminilidade, espaço doméstico e economia privada fazem com que a qualificadora do feminicídio seja identificada tão somente com as violências fatais decorrentes de relações conjugais e familiares. Como ocorreu no caso de A.L.L.M, as relações de parentesco com o réu, que era cunhado da vítima, e os limites domésticos da casa, como local do crime, foram determinantes para a inserção da qualificadora do feminicídio pelo representante do Ministério Público e, concomitantemente, para a desconsideração das narrativas criminalizadoras sobre a mulher formuladas na esfera administrativa policial. Assim, opera-se a lógica de que se a casa é o lócus social privilegiado da mulher em vida, também o será na morte. Em outros termos, a única razão de condição de sexo feminino que culmina na morte de mulheres, e recebe o selo de reconhecimento por parte dos agentes de Estado, consiste na vitimização por violência doméstica e familiar.

Por sua vez, delegados, promotores e juízes limitam-se a transcrever a redação legal do feminicídio nos processos judiciais, sem tecer maiores comentários e explicações sobre a discriminação e a misoginia ao gênero feminino. Em muitos casos, não há nem mesmo o cuidado de especificar em qual dos dois incisos se verificam as razões de condição de sexo feminino.  Por consequência, esses agentes de Estado perdem a oportunidade de perceber as relações de poder que oportunizam a feitura do crime em outros contextos de brutalidade, a exemplo do caso da vítima M.C.R.C., que fora assassinada por seu vizinho em meio às discussões sobre a derrubada de um pedaço de madeira que comprometeu condições de trabalho da família da vítima. De modo que é gritante a ausência de letramento do Sistema de Justiça Criminal acerca das demais relações sociais que as mulheres tecem enquanto sujeitas históricas, entremeadas entre as esferas públicas e privadas, as quais, na condição de trabalhadoras, figuram como um ponto intenso de conexão entre esses dois espaços virtualmente separados pela episteme liberal e suas dinâmicas institucionais.

          Essa omissão dos atores jurídicos no tocante à aplicação e à fundamentação da qualificadora de feminicídio nos processos judiciais, especialmente nos casos que não correspondem à violência doméstica e conjugal, consiste em mais uma expressão do feminicídio como “crime de Estado” (LAGARDE et al, 2006; SEGATO, 2006). Ao deixar de aplicar a qualificadora para nomear a morte de certas sujeitas, os atores do Sistema de Justiça Criminal recriam e atualizam os significados da qualificadora de feminicídio, afastando-se dos conceitos teóricos que fundamentam as mortes como crimes de ódio ao gênero feminino, decorrentes de processos de discriminação social.

Entendemos, com Huzioka (2017), que a busca por justiça em contexto de mortes violentas de mulheres excede a condenação criminal de alguém. A compreensão desses crimes em seus mais diversos aspectos possibilitadores se perfaz como condição para a tessitura de meios mais eficazes para a proteção e valorização das vidas das mulheres. Os resultados ainda incipientes desta recente pesquisa não nos possibilitam apontar meios concretos de superação dessa realidade, mas acreditamos que o principal papel da atividade acadêmica é problematizar o modo como aquela se produz e reproduz, o que tentamos fazer nestas breves linhas.

Consideramos uma necessidade urgente de que a lógica jurídica seja tensionada pela interseccionalidade das categorias analíticas, o que só pode ser realizado desde o esforço conjunto dos vários segmentos sociais que refletem e atuam na defesa das vidas das mulheres. Os agentes, ritos, instituições e institutos jurídicos foram e têm sido constrangidos à intelecção da violência doméstica e familiar com relativo sucesso. Aprofundar as compreensões e métodos de combate ao fenômeno do feminicídio se impõe como tarefa coletiva às instituições acadêmicas, estatais e à sociedade civil organizada, consistindo em verdadeiro dever de justiça a todas que tombaram e àquelas que seguem lutando, a cada minuto, pela continuidade de suas vidas.

Em Rio Branco, capital do estado, foi articulada pela expressão local da campanha nacional “Levante Feminista contra o Feminicídio” uma audiência pública na Assembleia Legislativa a fim de pautar o tema com as instituições públicas e a sociedade em 2022, ano em que a capital não registrou nenhuma morte por feminicídio. Embora não tenhamos condição de analisar agora se houve alguma morte violenta que poderia ter sido caracterizada como feminicídio nas circunstâncias do inciso II da Lei nº 13.104/2015 (BRASIL, 2015), fato é que as ações de enfrentamento a esse fenômeno necessitam ser interiorizadas de forma contínua e transversal, um desafio especialmente caro à Amazônia ocidental com toda a sua diversidade cultural, dificuldades de locomoção e acesso a territórios. Um desafio que se impõe a todo o país como política de defesa das mulheres que fazem a Amazônia viver e seguir vivendo.

  

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Recebido em: 13/08/2023.

Aceito em: 22/11/2023.

 

 



* Mestra em Ciências Jurídicas pela Universidade Federal da Paraíba, Brasil. E-mail: emyllitavares@hotmail.com.

** Mestra em Ciências Jurídicas pela Universidade Federal da Paraíba, Brasil. Professora do Curso de Bacharelado em Direito da Universidade Federal do Acre, campus Floresta, Brasil. E-mail: leonisia.mouraf@gmail.com.

*** Graduanda no Curso de Bacharelado em Direito da Universidade Federal do Acre, Brasil, campus Floresta. Técnica em Meio Ambiente pelo Instituto Federal do Acre, Brasil. E-mail: muanamoura2016@gmail.com.

[1] Para mais informações sobre as legislações latino-americanas que tratam sobre o fenômeno do femicídio/ feminicídio e suas particularidades e diferenças, procurar por “Legislações sobre Feminicídio na América Latina”. Disponível em: https://encurtador.com.br/aDEFI. Acesso em: 19 out. 2023.

[2] No tocante ao processo legislativo da lei de feminicídio e suas alterações, sugerimos a leitura da dissertação de mestrado de Clara Flores Seixas de Oliveira (2017): Do pensamento feminista ao código penal: o processo de criação da lei do feminicídio o Brasil.

[3]Ainda que os promotores de justiça não denunciem o crime como feminicídio, é possível que os magistrados atribuam definição jurídica diversa aos fatos narrados, adicionando a qualificadora penal em questão, por força do art. 383 do Código de Processo Penal Brasileiro (BRASIL, 1941).

[4] A criação do CAV é resultado de autoavaliação institucional e consequente reorientação da atuação estratégica do Ministério Público do Acre, que passou a desenvolver olhares e acompanhamentos especializados às vítimas, principalmente no que tange às violências de gênero e sexualidade. Agradecemos a colaboração do Órgão por nos fornecer a compilação de dados por ele realizada, apesar de não termos feito parte do processo de sua elaboração.

[5] As palavras grafadas entre aspas nesta seção dizem respeito a categorias êmicas, extraídas do campo de pesquisa, a exemplo de “traficante”, ou fazem menção a tipos penais ou expressões retiradas da legislação brasileira, como “ocultação de cadáver”.

[6] Para entender como funcionam os “tribunais do crime” organizados pelas facções criminais, ver as obras de Manso e Dias (2018) e Feltran (2018).

[7] Herdada da época em que o Acre foi integrado ao Brasil como o primeiro território federal do país, o estado conserva a divisão territorial em mesorregiões e regionais a partir de alguns de seus rios (Acre, Purus, Juruá e Tarauacá-Envira).

[8] Ambos os termos dispostos entre aspas nesta frase estão transcritos conforme o depoimento do réu.

[9] Tal documento foi elaborado pela Entidade das Nações Unidas para a Igualdade de Gênero e o Empoderamento das Mulheres (ONU Mulheres), Secretaria de Políticas para Mulheres — pouco antes de sua extinção — e Secretaria Nacional de Segurança Pública, correspondendo a uma adaptação brasileira do Modelo de protocolo latino-americano para investigar as mortes violentas de mulheres por razões de gênero (femicídio/feminicídio), elaborado em 2014 pela ONU Mulheres e Escritório Regional do Alto Comissariado de Direitos Humanos.

[10] Em analogia à categoria “colonialidade” nos estudos de Anibal Quijano, Souza (2017) propõe “seringalidade” a fim de especificar as relações coloniais na dinâmica das colocações dos seringais acreanos e das relações sociais entre seringalistas (patrões) e seringueiros (trabalhadores em situação de semiescravidão).

 

 

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Desenho de um círculo

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