POR QUE HUMANIDADES DIGITAIS NA
CIÊNCIA DA INFORMAÇÃO?

Perspectivas pregressas e
futuras de uma prática transdisciplinar comum

WHY DIGITAL HUMANITIES IN INFORMATION SCIENCE?
past and future perspectives of a common transdisciplinary practice

Ricardo Medeiros Pimenta1

RESUMO

Este artigo é fruto de pesquisa teórica sobre estudos críticos em informação e em Humanidades Digitais. Apresenta as Humanidades Digitais identificando seus principais autores, discorrendo de sua proximidade com a Ciência da Informação. Nesse sentido, apresenta conceitos e campos de desenvolvimento da Humanidades Digitais conexos e busca apresentar a Ciência da Informação como espaço interdisciplinar e de conectividade entre aqueles. Discorre sobre uma história comum, assim como uma retórica científica similar onde faz uso do conceito de “ideologia científica” de Georges Canguilhem. Ao final aponta, por meio do diálogo bibliográfico a proximidade entre estes dois campos, sinalizando à comunidade científica brasileira que as Humanidades Digitais são espaço de atuação de pesquisas e investigações para os cientistas da informação na contemporaneidade.

Palavras-chave: Ciência da Informação. Humanidades Digitais. Interdisciplinaridade. Teoria Crítica.

ABSTRACT

This article is the result of theoretical research on critical studies in information and in Digital Humanities. It presents the Digital Humanities identifying their main authors, discussing their proximity to Information Science. In this sense, it presents concepts and fields of development of related Digital Humanities and seeks to present Information Science as an interdisciplinary and connectivity space between those. It discusses a common history, as well as a similar scientific rhetoric where it makes use of Georges Canguilhem’s concept of “scientific ideology”. At the end, through the bibliographic dialogue, it points out the proximity between these two fields, signaling to the Brazilian scientific community that the Digital Humanities are a space for research and investigation activities for contemporary information scientists.

Keywords: Information Science. Digital Humanities. Interdisciplinarity. Critical Theory.

Artigo submetido em 27/03/2020 e aceito para publicação em 28/04/2020

1 INTRODUÇÃO

Embora já presente no cenário acadêmico brasileiro desde o início dos anos 2000, as Humanidades Digitais – um campo de pesquisa transdisciplinar onde questões e objetos ligados às diversas disciplinas das ciências humanas, sociais e sociais aplicadas se encontram com recursos oriundos da computação, ocasionando a possibilidade de novos desdobramentos da produção do conhecimento nas Humanidades no ambiente digital – têm chamado a atenção de um público crescente da Ciência da Informação nos últimos cinco anos. Este fenômeno foi parcialmente respondido em pesquisa anterior, como a já realizada de pós-doutorado no Programa Avançado de Cultura Contemporânea (PACC) da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), mas no tocante a este mesmo público de pesquisa resta ainda em aberto maiores análises que possam elucidar melhor tal interesse. Nossa intenção neste artigo é oferecer um panorama analítico capaz de explicar tal cenário e juntamente ratificar as hipóteses que colocamos a seguir.

A primeira é a de que as Humanidades Digitais (HD) e a Ciência da Informação (CI) são campos conexos no tocante à atuação metodológica e à familiaridade com que pesquisadores compartilham do discurso interdisciplinar, apesar de terem a priori produzido seus respectivos discursos para comunidades distintas.

A segunda supõe que com o desenvolvimento das Tecnologias de Informação e Comunicação (TIC), potencializadas pela conexão global e suas gramáticas algorítmicas, as fronteiras entre a CI e as HD têm se tornado mais e mais permeáveis.

Com efeito, temas de pesquisa e métodos empregados nesses dois campos já tem sido comumente partilhados respectivamente entre essas comunidades conforme já podemos averiguar em Lyn Robinson (2010), Hans-Christoph Hobohm (2014), Manuel Burghardt, Christian Wolff e Christa Wonser-Hacker (2015), Qing Wang (2018) e, no Brasil por Francisco Palleta (2018), Renan Marinho de Castro e Ricardo M. Pimenta (2016; 2019a), Ricardo Pimenta e Josir Gomes (2019) ou Ricardo Pimenta (2019b) e Maria Aparecida Moura (2019).

Nesse escopo, o crescente interesse da CI direcionado às HD aponta para um movimento de crescimento minimamente interessante. De que os respectivos discursos, antes mais direcionados a comunidades distintas — ao menos da perspectiva da CI — parecem convergir cada vez mais para um campo de interesses em comum onde o uso das tecnologias digitais nos diversos processos de mediação da informação ou de seu respectivo acesso e recuperação parecem indicar uma espécie de “encontro” entre as duas.

2 A CI ENQUANTO ESTRUTURA CONECTIVA INTERDISCIPLINAS: interseções entre a analítica cultural de lev manovich, a computação social e as humanidades digitais

Neste artigo buscamos identificar uma aproximação das aplicabilidades da CI para se pensar as experiências e iniciativas em HD — as quais acabam por se diferir das Humanidades antes tidas como tradicionais — justamente à luz dos estudos da informação. Com efeito, o vasto campo das humanidades acompanhado do uso/emprego da Tecnologia da Informação (TI), hoje majoritariamente digital e cada vez mais operada por processos algorítmicos, faz valer o contínuo investimento do olhar da CI sobre tais exemplos.

Gimena del Rio Riande (2018) aponta para essa dinâmica ao afirmar que:

A Ciência da Informação e as Humanidades Digitais compartilham objetos de fronteira como repositórios, bancos de dados etc. e, mais ainda, a Ciência da Informação e as Humanidades Digitais têm uma epistemologia compartilhada. (RIO RIANDE, 2018, p. ).2

Essa epistemologia fala da produção da informação, mas também de sua gestão, recuperação e formas de registro, indexação e classificações em suportes, conceitualmente no que conhecemos como documentos ou, pelo aspecto material/técnico/político, em sistemas e estruturas físicas e atualmente computacionais, cada vez mais presentes no nosso dia-a-dia. De toda sorte, lato sensu é nesse horizonte que a dimensão prática de seu controle acaba por ser de mútuo interesse pelos que se dedicam ambos à CI e às HD.

Essa aparente aproximação interdisciplinas é coerente uma vez que ela desempenha também papel de evidência. Evidência de que a computação complexa, a linguagem natural, o machine learning, recursos de inteligência artificial, assim como a web semântica têm inequivocamente produzido um impacto sem precedentes na sociedade da informação. Produzindo dados e metadados, assim como informação e metainformação; ressignificando nossa própria cultura informacional pela forma com a qual as novas TIC têm penetrado nosso cotidiano (GONZÁLEZ DE GÓMEZ, 2002) de maneira que nos convida a criar ou inventar novas dinâmicas que inter-relacionam indivíduos, máquinas, processos (sistemas) e dados. Estas dinâmicas acusam novos “modos de informação” (POSTER, 1990) pelos quais “atos e estruturas de comunicação” alteram, e são alterados pelas igualmente novas experiências da linguagem (IDEM, p. 11). Na internet posts, memes, tweets, entre tantas outras formas de comunicar e (in)formar, recriaram novas formas de identificarmos, compreendermos e indagarmos os fenômenos sociais.

Tais recursos têm sido empregados, entre outros mais simples, também em pesquisas voltadas às Ciências Humanas, Sociais e Sociais Aplicadas — aqui representaremos essas três áreas como Humanidades — onde vem se redescobrindo junto do diálogo com demais pesquisadores grosso modo familiares com a computação. Com efeito, Michael Piotrowski (2016) diagnostica ser esta redescoberta um momento de produção de meios e métodos de construção de modelos formais nas Humanidades. E isso certamente afeta em perspectiva epistemológica, teórica e metodológica o campo das Humanidades ditas Digitais; já que falamos de uma arquitetura de representações computacionais sustentadas pela matemática aplicada e pela modelagem de dados.

Afeta igualmente a produção de sua respectiva narrativa, acelerando-a. Na CI parece temos enfrentado uma maior necessidade de aceleração dos processos de desenvolvimento de competências para dar continuidade às práticas que buscam lidar com volume, variedade e velocidade sem iguais e que “animam” também o campo proposto pelo pesquisador Lev Manovich como “analítica cultural” (MANOVICH, 2015). Segundo ele a analítica cultural seria um campo de estudos que, por meio do Big Data, propiciaria novas abordagens para os estudos culturais, interferindo direta e indiretamente nas práticas científicas, de mercado, da administração pública, privada e do cotidiano. Tantas possibilidades, entretanto, precisam ser compreendidas em seu respectivo contexto para, então, entendermos as práticas e discursos científicos que dele emergem e a partir dele produziram o cenário científico e informacional contemporâneo. Afinal, parte do que é experimentado hoje em nível global tem seu germe nos primeiros anos da segunda metade do século XX.

A chamada virada computacional (BERRY, 2011) — ou computacional turn — é, talvez, a vaga histórica capaz de nos oferecer uma perspectiva ampla do “terreno” a partir do qual CI e HD igualmente germinaram, apesar de terem percorrido caminhos diferentes em seus respectivos processos de desenvolvimento disciplinar tanto de seus “troncos” como suas respectivas “ramificações”.

Esta virada computacional não é recente, pois historicamente se inicia no pós-segunda guerra. Contudo, pode ser compreendida como um movimento de características específicas de acordo com suas diferentes “ondas”, mas precisamente três delas (IBIDEM): a primeira de ordem quantitativa, textual digitalizante; a segunda já mais qualitativa, digitizante e marcada pela inserção de paradigmas e métodos inteiramente novos tanto de pesquisa como de publicação; e a terceira mais reflexiva e crítica sobre a dimensão cultural em formação devido ao que se produziu no rastro das duas primeiras. Ambas as ondas, trazidas aqui por David Berry, conhecido pelos pesquisadores em HD, parecem igualmente convergir para outro paradigma cunhado por Rafael Capurro, teórico do campo da CI. Nele Capurro (2003) destaca o que seriam três paradigmas: (1) físico, (2) cognitivo e (3) social.

Seja em qualquer momentum desta “virada” é fato que ambas as/os terceiras(os) ondas/paradigmas atentaram para questões que residiam no cerne dos problemas e reflexões de ordem humanística, fitando objetivos complementares. Um — relacionado às HD — apontava para a dimensão crítica que acompanha o cenário de transformações informacionais para geração do conhecimento, na qual destacamos Presner:

No início de uma mudança nas normas que regem os problemas, conceitos e explicações permitidos, e também em meio a uma transformação das condições institucionais e conceituais de possibilidade para a geração, transmissão, acessibilidade e preservação do conhecimento (2010, p.10).3

E o outro, oriundo da CI, trouxe o papel do indivíduo, com foco no aspecto social, então usuário da informação (HJØRLAND, 2002), enquanto sujeito social para o centro dos fenômenos informacionais. Nessa perspectiva construiu consigo uma demanda por compreensão de questões até então externas, mas que se descobriam naquele momento serem de fato transversais àquelas da informação e que abarcavam as dimensões cultural, político econômico e social.

Tais aspectos foram, principalmente a partir da década de 1990 em diante, “emoldurando” uma perspectiva de informação que nos 20 anos seguintes testemunhou a crescente insurgência dos conjuntos de dados sobre a vida cotidiana e sobre o nomos informacional até então estabelecido e reproduzido na sociedade da informação.

Os dados, enquanto produto da ação computacional, ressignificaram o contexto da informação mediada pela codificação e suas potencialidades algorítmicas. Mas como tal situação seria passível de manter-se como objeto de estudo das Humanidades? O problema pareceu residir no crescente “foco unilateral” dado ao código, entendendo-o “como uma forma do conhecimento necessário quando trabalhando com dados” (SHÄFER; VAN ES, 2017, p. 20). Tal perspectiva de ordem tecnicista deixava claro que as Humanidades precisavam ser capazes de inquerir novas formas de representação das práticas humanas em sociedade. O “procedimento expresso no código; e [o] conhecimento sobre esses procedimentos” (IBIDEM)4.
Quem detém o conhecimento sobre os procedimentos? Quem os produz, compreendendo o código como uma nova forma de escrita? Quem detém sua mais-valia? Como podemos usar tais procedimentos, reutilizando-os no processo de produção do conhecimento humanístico? Perguntas que dialeticamente a medida que são constantemente respondidas, parecem ser igualmente atualizadas.

Parece ser ponto pacífico se considerarmos que o aumento da produção de dados, seja quando produzido por pessoas, seja quando produzido por objetos — domínio dos estudos sobre internet das coisas (Internet of Things – IOT) —, sistemas e plataformas, produziu um desafio metodológico à continuidade das pesquisas cujas problemáticas sociais, culturais, políticas, entre outras obstaculizadas pelo conhecimento técnico/computacional até então outsider do campo das Humanidades.

Tendo o supracitado em foco, voltemos a ideia defendida por Lev Manovich, sobre o conceito de “analítica cultural”. Para o autor há uma compreensão possível sobre a articulação entre as Humanidades Digitais e o campo da Computação Social.

Para ele: “Ambos podem auxiliar em uma leitura menos enrijecida dos dados e com possibilidades interpretativas muito maiores” (MANOVICH, 2015, p. 14). E que, além disso, poder-se-ia compreender criticamente a sociedade atual. Interessante pensar que para Manovich a perspectiva crítica sobre a sociedade atual não poderia estar circunscrita no então campo das Humanidades Digitais. Para ele a “analítica cultural” desempenharia esse papel?

Manovich parece não ter priorizado um ponto de grande interesse para nós da CI em termos epistemológicos. A “ontogênese” da técnica nos processos informacionais e sua virada, no aspecto computacional, para os processos de produção do conhecimento nas Humanidades agora mediados mais e mais pelos recursos digitais. Algo que, na CI, Rafael Capurro sintetiza em seus três paradigmas.

Manovich constrói seu argumento a partir da já existente computação social. Compreende-a em relação às já instauradas Humanidades Digitais sem a perspectiva crítica de que fez menção e passa ao largo de considerar que tal articulação, como qualquer artefato ou ferramenta que se propõe a conectar de maneira móvel duas estruturas — ou campos disciplinares —, pode estar a fazer uso de uma terceira estrutura conectiva.

Esta estrutura conectiva talvez devesse ser considerada como um possível campo em potencial de atuação da CI. Afinal, uma vez sob a “lente” do esquema proposto por Manovich a ideia de aproximar a CI reside na compreensão de dois fatores importantes: primo, devido à sua natureza interdisciplinar centrífuga, onde:

Ela consiste num processo de fecundação recíproca das disciplinas envolvidas. Na medida em que cada disciplina é incapaz de esgotar o problema em análise, a interdisciplinaridade traduz-se na abertura intrínseca de cada disciplina a todas as outras, na disponibilidade de cada uma das disciplinas envolvidas se deixar cruzar e contaminar por todas as outras (POMBO, 2006, p. 232).

Secundo, a CI tem como seus objetos de pesquisa os recursos com os quais tanto Humanidades Digitais como Computação Social dependem para realizar seus objetivos. Sistemas de recuperação e preservação da informação, vocabulários controlados, formas de classificação e de organização da informação e de seu acesso, além de outros parâmetros importantes para quem trabalha com formas de acessar, visualizar e recuperar a informação mediada por suas respectivas tecnologias. Ou seja, é notória a aproximação da CI com as Humanidades Digitais em termos de métodos, uso de sistemas e objetivos finalísticos.

Fato é que Manovich parece pensar as HD como estética daquilo que se produz a partir da técnica aplicada da Computação Social. E que a circunscrição dos dois pela Analítica Cultural seria a possibilidade de pensar analiticamente os procedimentos em ambas, aplicando o resultado de tais análises à ciência, à política ou mesmo ao mercado. A proposta é reducionista tanto em relação à computação social como em relação às HD. Em perspectiva às duas, a CI pode ser importante ou mesmo essencial para pensar tanto a forma como atuar metodologicamente e objetivamente como a divulgação daquilo que se produz no âmbito das HD. Pois, novamente, sem os saberes relacionados à CI, representados por ações de gestão, à recuperação da informação, à preservação e acesso, entre outras tantas competências familiares, a Computação Social e as Humanidades Digitais não passariam de “frascos bonitos” de uma “perfumaria”.

Portanto, a CI além de deter em suas práticas tal natureza interdisciplinar, deve ser considerada enquanto campo conexo — e, portanto, transdisciplinar — aquele outrora proposto por Manovich, ainda que não tenha sido abordado pelo respectivo autor.

Figura 1: Possível contribuição da Ciência da Informação para campos como os da computação social e humanidades digitais.

Fonte: https://www.tinkercad.com/things/2qb3kvPE2im

Ou seja, se mantivermos em perspectiva a hipótese segunda deste artigo, e também que os sistemas e demais estruturas criadas ambas nas HD ou na computação social — essa discutida por Manovich — são mediadas pelas TIC, como não sugerir a você leitor que à CI lhe cabe um papel de alguma relevância em tal “receita”? Nesse ínterim é preciso frisar: o uso, a classificação, a recuperação e o acesso à informação se apresentam como condição sine qua non para quaisquer um desses campos. A CI é estrutura conectiva e de interseção entre a computação social, a qual Manovich tanto faz menção, e as Humanidade Digitais.

Tais atividades aparentemente não são reconhecidas ou tão valorizadas ao menos no campo da Computação Social, mas sem elas em perspectiva não há possibilidade conectiva e prática para quaisquer projetos, pesquisas e produtos nesse escopo interdisciplinar. Dessa maneira, resta-nos apontar que o crescimento das HD nos sugere um novo campo de pesquisa para a CI.

Reservado o direito de não se aprofundar mais nos debates sobre a computação social, continuamos a seguir um encadeamento de reflexões pelas quais intentamos compreender esse papel que é conectivo e cronológico entre a CI e as HD. Afinal, se por um lado é possível afirmar que a categoria de informação esteve e está presente nos debates de cunho metodológico, teórico ou mesmo epistemológico existentes entre os players das Humanidades Digitais, por outro, tais debates parecem estar cada vez mais em ressonância com questões que são centrais para o campo disciplinar da CI, como: acesso aberto, repositórios, uso e reuso de dados, usuários, divulgação, visualização de dados e informação. Estes são alguns exemplos de como aquilo que move algumas pesquisas no âmbito das Humanidades Digitais são igualmente “dínamos” de ações de pesquisa na CI.

Portanto, parece plausível afirmar que as “ondas” existentes na virada computacional que marcaram a trajetória histórica do desenvolvimento das HD nos levaram cada vez mais às margens do campo disciplinar da CI.

3 BREVE CONTEXTO HISTÓRICO DA CI E DAS HD: por uma reapropriação do conceito de ideologia científica em Georges Canguilhem

No campo da CI é comum narrativas que associem sua fundação ao cenário dos Trinta Gloriosos, curiosamente também marcado por outro nome menos promissor como Guerra-Fria.

Para Aldo Barreto (2008) e Tefko Saracevic (1996) a CI tem marcado seu nascimento disciplinar a partir do diagnóstico de Vannevar Bush (1945) sobre o cenário da informação em ciência e tecnologia (C&T) ainda em 1945 e seus grandes desafios no tocante à falta de recursos humanos capacitados para lidar com o volume de informação relacionada à C&T que àquela época começava a se produzir juntamente com sua respectiva exposição de capacidade deficitária de armazenamento e recuperação da informação e incipiência teórica para responder às demandas práticas daquele momento em relação à gestão da informação.

É importante frisar que a CI não nasce com clara definição sobre si mesma e as décadas seguintes são de solução de equívocos entre a mesma e sua identidade em face da biblioteconomia e a informática (PINHEIRO, ٢٠٠٢), além de melhor definição do campo da documentação, conforme aponta Cristina Dotta Ortega (٢٠٠٩). De maneira sintética e sistemática o artigo de Carlos Alberto Ávila Araújo, Elizabeth Almeida Rolim, Isabel Marci Gomes Marzano e Liara Gomes Bitencourt (٢٠٠٧) aponta esse panorama de constituição do campo disciplinar da CI de maneira muito mais detalhada e competente do que esta sintética a qual intentamos aqui realizar, destacando a mudança gradual de seu paradigma físico e matematizado para aquele social onde aspectos do universo conceitual político e cultural se mostram mais tangíveis.

Nascida a partir da explosão informacional pós Segunda Guerra, a CI é fortemente condicionada pelas determinações tecnológicas e por interesses estratégicos. Nesse primeiro contexto, ela se vê melhor atendida pelos referenciais das ciências exatas. [...] A aproximação da CI junto às ciências sociais se dá num processo gradual [...] na década de 1970 com a “descoberta” do usuário. Para Capurro, inicialmente ocorre, realmente, essa aproximação junto ao usuário, o que configura o paradigma “cognitivo” da CI, em vigor sobretudo na década de 1980, mas o paradigma propriamente “social” da CI, cujos primeiros traços surgem ainda nos anos 1960 com Shera e Egan, se verifica com vigor na década de 1990. [...] Assim, a CI não surge como uma ciência tipicamente social, mas identifica-se ao longo dos anos com o escopo das ciências sociais na medida em que se orienta para uma aplicação em que o sujeito é visto como o principal ator e objetivo dos chamados sistemas de informação. A informação, nessa ótica, não possui fim em si mesma, mas existe como objeto que realiza uma ação ou transformação no conhecimento de um sujeito que possui as influências de seu contexto histórico, social e econômico. (ARAÚJO et al, 2007, p. 97).

A virada da CI para um paradigma social e cognitivo grosso modo acoplou o seu campo disciplinar com as perspectivas teórico-conceituais germinadas nas ciências humanas e sociais. A perspectiva tecnológica e matemática, fundada pela reflexão produzida sobre a cibernética, nunca se perdeu. Tornou-se fundação; pilar constitutivo da área, mas assim como árvore frondosa, tornou-se forte raiz e ainda parte significativa do tronco. Os paradigmas posteriores, o constante desenvolvimento metodológico e crítico associado à progressiva interdisciplinaridade floresceu em diferentes vertentes tornando-se copa. E que se estendeu nos últimos trinta anos cada vez mais para fora do seu epicentro, de seu núcleo duro, buscando uma interdisciplinaridade fecunda. Os problemas de ordem política, social e cultural — antes restringidos ao âmbito das ciências humanas e sociais — passaram a ser compreendidos enquanto parte do processo pelo qual políticas de informação seguiam se (des)institucionalizando pari passu ao regime de informação vigente. A natureza histórica do campo disciplinar da CI passava a ser mais perceptível ao passo que nas últimas décadas a mesma amadurecia.

No tocante às Humanidades e suas diversas disciplinas, pensamos ser hercúleo e desnecessário construir uma narrativa histórica de suas diferentes formações. Suas origens em termos do pensamento filosófico sobre o mundo remontam à Grécia antiga e ainda mais além quando pensamos em sua genealogia. Entretanto, do ponto de vista de seu estatuto científico a tarefa é mais exequível e útil para a discussão aqui em curso. Pensar o homem enquanto objeto da ciência parece ter sido inviável até a passagem do século XVIII para o XIX segundo Jean-François Dortier (2005) e mesmo José Temes (2010), onde este último discorre sobre a perspectiva foucaultiana do nascimento das chamadas Ciências Humanas.

Será preciso esperar pelo fim do século XVIII para que a “ciência do Homem” se materialize. Será uma das grandes ambições dos filósofos das Luzes que convocarão todos à fundação daquilo se denominava então “ciência do Homem”, “ciência social”, “ciência moral” ou, muito simplesmente, “antropologia”. Porém, ainda se tratava apenas de sonhos de filósofos. No início do século XIX, finalmente, o projecto toma forma. É o tempo dos pioneiros, que têm por nome Boucher de Perthes, Alexander von Humboldt, Jules Michelet, Lewis Morgan e muitos outros. Alguns, como Auguste Comte, Karl Marx ou James Frazer, passaram a vida – em bibliotecas – a construir grandes edifícios teóricos: teoria da sociedade, do capitalismo, das mitologias da Humanidade inteira. Outros cruzam os oceanos, partindo ao encontro de povos cujos costumes e instituições querem compreender. Outros ainda [...] colecionam, reúnem, classificam e organizam verdadeiros museus pessoais. Cada um à sua maneira participa na construção de um novo saber. [...] Nessa época, meados do século XIX, as fronteiras disciplinares ainda não estão bem estabelecidas. O método também ainda não está bem definido. Por volta dos anos 1860, iniciar -se -á, aliás, um grande debate a este propósito. Alguns pensam que é preciso aplicar ao estudo dos humanos o método que tanto êxito obteve nas Ciências da Natureza: observação, medição, classificação, experimentação, investigação de leis. [...] Depois, vem o tempo das verdadeiras fundações. A passagem do século XIX para o século XX é um período -charneira, no qual se organiza a Sociologia em França sob a égide de Émile Durkheim, na Alemanha com Max Weber, vendo a luz do dia nos Estados Unidos na Universidade de Chicago. No mesmo momento, Sigmund Freud inventa a Psicanálise, Ferdinand de Saussure faz entrar a Linguística numa nova era, enquanto Franz Boas e Marcel Mauss formam as primeiras gerações de antropólogos profissionais. A cristalização das disciplinas é acompanhada da criação de revistas e associações profissionais. Cada disciplina estabelece os respectivos princípios e um método, traçando as suas fronteiras, não sem dissensões e querelas quanto a limites e legitimidade [...] aplicada ao conhecimento científico, a palavra disciplina diz bem aquilo que pretende dizer: normas, poder, proibições. (DORTIER, 2005, pp. 11-12).

Seria também após a segunda-guerra mundial que veríamos o grande florescimento das Humanidades lato sensu, enquanto campo múltiplo de conhecimentos disciplinares sobre o homem, a sociedade e suas ações.

Fato é: as Ciências Humanas nascem, com seu estatuto de ciência, com incentivo direto e indireto dos Estados ao longo do séc. XIX, amparadas por uma “ideologia científica” (CANGUILHEM, 1977, p. 39). Ou seja, uma ambição explícita, prévia/paralela do Estado pelo discurso científico que, ainda em formação, validaria formas de controle social. E que referendaria as ações constituintes daquele conjunto de práticas investigativas que mais tarde formar-se-iam em disciplinas universitárias e de investigação. Percebamos que nesse caso apontado é a condição histórica do fato já ocorrido que nos auxilia a perceber o contexto no qual Georges Canguilhem aponta a presença de uma “ideologia científica”.

Sempre há uma ideologia científica antes de uma ciência no campo onde essa irá se instituir [...] A ideologia científica não deve ser confundida com as falsas ciências, nem com a magia ou com a religião. Ela é bem movida, assim como as outras, por um desejo inconsciente de acesso direto à totalidade, uma crença que fecha seus olhos ao lado de uma ciência já estabelecida, cujo prestígio reconhece e cujo estilo procura imitar. (CANGUILHEM, 1977, p. 44).5

Décadas depois, duas guerras mundiais após, não é o mesmo Estado amparado pelas mesmas verves de uma “ideologia científica” que dão à CI seu status de ciência, reconhecendo seu papel essencial para o regime de informação vigente? Retomada a crença do paradigma Otletiano amparado pelas novas tecnologias em voga, a autoridade do discurso científico — com o investimento do Estado — legitimou um sistema de enunciados erigido para controlar as práticas informacionais ligadas à C&T.

A concepção trazida por Canguilhem é o conceito síntese que serve ao diagnóstico da historicidade presente nos estatutos disciplinares constituintes do campo científico. E que na CI encontramos um bom exemplo. E essa historicidade aqui apontada é reflexo e evidência de sua estrutura estruturante em constante processo individuante.

É também a elucidação de que há algo do ponto de vista da “ideologia científica” nos faz pensar sobre o “hype” em torno das práticas e inovações em pesquisa de Humanidades que fazem uso de recursos computacionais e algorítmicos em suas pesquisas, gerando formas inovadoras de visualização e de acesso a dados e informação. É cada vez menos incomum sua supervalorização como se validassem hoje uma atualizada condição de ciência — para as Humanidades —, mais cientifica que sua versão tradicional.

Sua transformação por meio dos recursos computacionais — digitais — alteram as formas de se fazer, de ver e de saber no campo vasto das Humanidades, as ressignificando. Potencializando o já apreendido, realizado e disseminado por meio de uma cultura de visibilidade informacional (PIMENTA, 2019) que se dissemina ao passo que também se desenvolvem as TIC.

Nesse “entroncamento” de incertezas, demandas e análises dos fatos e fenômenos humanos e sociais com as formas, espaços e técnicas digitais, a informação ganha destaque. Afinal, não seria a informação um objeto de pesquisa cuja cientificidade das abordagens e dos discursos a ela atribuída também representaria sua hipérbole já no século XX do pós-guerras? Período este cada vez mais mediado pelas tecnologias eletrônicas, computacionais e, anos mais tarde, digitais?

Parte da sustentação argumentativa sobre a cientificidade da CI é oriunda dos discursos, já legitimados, da matemática, da cibernética, ainda recentes daquela época. Mas foi a instituição de sua cientificidade que auxiliou a construção e a manutenção da práxis científica de campos disciplinares tanto da física, matemática, biologia, medicina, quanto da história, sociologia, psicologia, entre outros.

Não é de se estranhar que algumas práticas ou inovações, mais tarde compreendidas à luz do conceito de “interdisciplinaridade”, tiveram seu valor científico mais bem conhecido e considerado somente nos últimos vinte anos. E esse é o caso do que hoje entendemos ser as Humanidades Digitais.

4 HUMANIDADES DIGITAIS E(M) CIÊNCIA DA INFORMAÇÃO

Assim como as HD, a CI nasce interdisciplinar mesmo sem haver ainda tal terminologia. Sua necessidade advinha da corrida armamentista e da disputa científica. Os meios e as estruturas informacionais para garantir a aceleração da produção científica dos Estados na Guerra-Fria propiciou o diálogo interdisciplinas de bibliotecários, documentalistas, matemáticos, arquivistas, entre outros.

Já as diversas disciplinas que compuseram o campo das Humanidades no pós-guerra já se apresentavam bem estruturadas e com alta demanda devido à necessidade quase que psicanalítica de “dar conta” e explicar os horrores das guerras que assolaram o mundo na primeira metade do Séc. XX, seus traumas, além das mazelas posteriores que à reboque da reconstrução dos estados europeus descortinaram formas de violência, exclusão e desigualdades que a História e a Sociologia até então não haviam se debruçado.

É bem verdade que desde a experiencia de Roberto Busa, ainda em meados dos anos ١٩٤٠, ao transferir a obra de Tomás de Aquino para cartões perfurados, ao advento da web 2.0 temos mais de 50 anos de história e desenvolvimento da computação e de tecnologias da informação aplicados às pesquisas e projetos de Humanidades, principalmente os que se debruçavam sobre processos de digitalização, estudos literários e textuais. Pontos fortes de desenvolvimento tecnológico que acompanharam iniciativas de automação de análises linguísticas provenientes de textos (SVENSSON, 2009) dos quais se destacam as tecnologias de digitalização, seguidas de análises quantitativas sobre o corpus dos documentos textuais, de concordância, lexicologia, estilometrias e demais formas de quantitativamente medir grandes conjuntos de obras e autorias (HOCKEY, 2004).

Não nos enganemos. O desenvolvimento da infraestrutura capaz de produzir tais análises também significou a construção da primeira perspectiva computacional em rede de compreensão textual onde conteúdo, gênero literário e autoria produziram ao longo das primeiras décadas da segunda metade do século XX datasets que, com a chegada da fita magnética e dos grandes processadores, compunha uma espécie de “inverso do espelho” daquilo que propunha-se ser — mais aplicado às formas de organização e recuperação de dados e informação para as ciências STEM6 no seu início — o campo da CI àquela mesma época. Entre o final dos anos 1960 e os anos 1970 a linguagem UNICODE e, mais tarde, a SNOBOL ganharam espaço em projetos de análises linguísticas, de produção de tesauros e dicionários a despeito da linguagem FORTRAN, mais usada nas ciências STEM (IDEM, p. 9). Passados os anos 1970 e chegado os 1980 surge o recurso Text Encoding Iniative (TEI), marcando o campo até então conhecido como Humanidades Computacionais.

O tamanho, escopo e influência do TEI excederam em muito o que qualquer um [...] imaginou. Foi a primeira tentativa sistemática de categorizar e definir todas as características dos textos de ciências humanas que pudessem interessar pesquisadores. Ao todo, foram especificadas cerca de 400 tags de codificação em uma estrutura facilmente extensível para novas áreas de aplicação. [...], mas muitos desafios intelectuais mais profundos surgiram à medida que o trabalho avançava. O trabalho no TEI levou a um interesse na teoria de marcação e na representação do conhecimento em Humanidades como um tópico em si. A publicação das Diretrizes TEI coincidiu com o desenvolvimento de bibliotecas digitais [...] e era natural que projetos de bibliotecas digitais, que não haviam entrado em contato anteriormente com computação em humanidades, baseassem seu trabalho no TEI, em vez de inventarem um esquema de marcação do zero.

Grande parte do trabalho da TEI foi feita por e-mail, usando listas de discussão públicas e privadas, juntamente com um servidor de arquivos onde os rascunhos dos documentos eram publicados. Desde o início, qualquer pessoa que servisse em um grupo de TEI era obrigada a usar o e-mail regularmente e o projeto se tornou um exemplo interessante desse método de trabalho. (HOCKEY, 2004, pp. 12).7

O cenário desenvolveu-se exponencialmente desde o início dos anos 1990 com a chegada da internet e o desenvolvimento do mercado de computadores domésticos. O progressivo surgimento das redes sociais, do e-comércio, das diversas formas de representação institucional, pública e privada; individual ou coletiva; em suas configurações políticas, sociais e culturais por meio da web “digitalizou” a mundo social de forma que o termo outrora conhecido como Humanidades Computacionais já não faziam tanto sentido quanto Humanidades Digitais. Obviamente, a inserção de métodos e iniciativas de aplicação de recursos tecnológicos para produzir conhecimento nas Humanidades enfrentou desconfiança. Ainda assim, nos parece plausível apontar que o caminho percorrido em um mundo onde a vida se digitiza exponencialmente não é um caminho onde seja possível retornar os passos dados. A pesquisa em Humanidades requererá cada vez mais um conhecimento, um diálogo e um conjunto de ações que confira às então Humanidades Digitais uma característica transdisciplinar. Com efeito, em considerando essas diferentes perspectivas, é possível compreendermos o porquê dessa diagnosticada aproximação da CI.

No contexto dos grupos de pesquisa ligados às Ciências Sociais Aplicadas, e em específico à Ciência da Informação, há um crescente número de interessados em Humanidades Digitais como campo de atuação de suas pesquisas. Entendemos que seus respectivos temas de investigação, assim como sua produção científica, entre demais atividades, possuem um diálogo mais natural devido a aspectos práticos e metodológicos familiares a ambas HD e CI. Aspectos estes que mediam pelo recurso digital e computacional a publicização do conhecimento e a circulação da informação no âmbito científico rumo a uma política e cultura de acesso aberto (BORGMAN, 2009). Afinal,

Uma certa relação entre as duas disciplinas em termos de métodos e interesses de pesquisas já está na fundação e na tradição da Ciência da Informação. Uma Ciência da Informação que possui raízes [...] que se desenvolveram diferentemente com o tempo. Essas raízes são, por um lado do bibliotecário documentalista; por outro lado, fundada em uma tradição lógico-matemática orientada pelo computador. [...] A ciência da informação está, portanto, parcialmente enraizada nas ciências humanas e sociais, enquanto outra parte tem ligações claras com a matemática, a ciência da computação e as artes. [...] Humanidades Digitais e Ciência da Informação são então — pelo menos no que diz respeito à parte do bibliotecário documentalista — genuinamente interconectadas. [BURGHARDT, WOLFF, WONSER-HACKER, 2015, pp.288-289).8

Nessa mesma linha, Hans-Christoph Hobohm (2014) também afirma que a CI desempenha um papel central para as HD. Para Lyn Robinson (2010), estabelece-se aí um foco comum de estudo e de prática, tanto na CI como nas HD. Em sua pesquisa Robinson aponta que currículos em CI cada vez mais têm incluído material relacionado às Humanidades Digitais, ao passo que cursos e demais iniciativas de HD sempre se utilizaram de conteúdo relacionado à Library and Information Science (LIS). No mesmo caminho Qing Wang (2018) reconhece a LIS como um dos principais campos disciplinares nos quais correm as iniciativas em HD.

Fato é que a variedade temática em torno das HD é imensa, mas aparentemente no Brasil sua riqueza ainda é desconhecida para muitos interessados. A produção acadêmica em HD ainda dá sinais de não dialogar tanto com outras obras de humanistas digitais e tampouco discute suas produções, ideias, questionamentos ou conceitos (PIMENTA, 2019c). Acabam por comunicar para seus campos disciplinares específicos nos quais seus respectivos autores estão inseridos sem necessariamente criar uma dialogia mais consolidada entre esses e aqueles que deveriam ou poderiam ser suas referências.

Não é incomum que debates sobre HD ocorram mais por meio de palestras, comunicações e outras formas de divulgação por meio da mediação via redes sociais. A produção sobre HD brasileira parece ser ainda incipiente, mas igualmente se mostra promissora (OLIVEIRA, MARTINS, 2017). De toda forma, os recursos digitais tornaram-se ferramenta desejável — e caminho quase que compulsório para algumas pesquisas — na produção, na comunicação e na divulgação do conhecimento não somente para as ciências humanas, mas em todo cenário científico planetário. Ou seja, o processo informacional está mudando a estrutura do conhecimento (BALCK, 2016) e isso não seria diferente para as Humanidades.

5 CONSIDERAÇÕES FINAIS

Ao decorrer deste artigo buscou-se construir argumentos e reflexões que apontassem para o fato de que as ditas Humanidades Digitais têm em seus respectivos objetos de pesquisa, questões e objetivos uma razoável familiaridade com aqueles da Ciência da Informação. Não apenas essas similaridades são visíveis, mas é na história recente de ambas que se identifica também uma relativa sobreposição de interesses e de referências no tocante à temática da informação e suas respectivas tecnologias. Ambas se tornaram produtos de um regime informacional de escala global.

Ambas são identificadas enquanto frutos de um contexto onde a ideia de ideologia científica, cunhada por Georges Canguilhem, parece conseguir auxiliar bem não somente na tarefa de explicar passados e presentes comuns, como naquela de compreender o porquê do crescente interesse e valorização do termo enquanto aparente indicador qualitativo de uma nova era de pesquisas em Humanidades. Nesse ínterim, pensar as HD como possibilidade de campo de pesquisa, ou mesmo algumas de suas iniciativas como próprio objeto de investigação dos cientistas da informação parece ser imperativo para desenvolvimento e alargamento do campo de atuação da CI em uma sociedade cada vez mais mediada pelo digital e subordinada a novas — e preocupantes — lógicas algorítmicas da vida. Não é por acaso que nessa mesma vaga cresce o interesse pelos estudos culturais a partir da algoritmização da vida.

O pequeno détournement da narrativa deste texto para a “analítica cultural” de Lev Manovich detinha esse compromisso: apontar que mesmo os estudos culturais, hoje com seus objetos e métodos mais e mais mediados pelo digital, recaem no aspecto informacional sobre seus fenômenos e, portanto, há de tornar visível a importância dos estudos informacionais, e da própria CI, tanto para aquele campo proposto por Manovich, como para as Humanidades Digitais as quais seguimos no curso deste artigo.

Dito isso, cabe relembrar que as HD possuem problemas obviamente em correlação à crítica contra seu potencial tecnofílico que em grande medida se aquece no contexto da lógica corporativa que parece se infiltrar nos altos quadros das universidades. Indústrias de software, startups e toda a retórica da inovação e da transformação digital que tem adentrado nos espaços universitários, tornando em seu contrapasso as Humanidades então tradicionais mais desvalorizadas. Não é de se estranhar que nesse cenário as HD cresçam e provoquem olhares de aprovação e reprovação. Seus recursos e suas novas formas de produzir maneiras de ver e de acessar ou de processar informações e dados de pesquisas tão diversas, nos sugerem que estejamos a testemunhar um momento único de virada epistemológica e metodológica sobre o ofício do pesquisador das Humanidades; aproximando-o dos debates característicos daqueles da Ciência da Informação e dos paradigmas por eles já bem conhecidos.

A CI parece dar sinais de que suas pesquisas cada vez mais demandam um diálogo amplo e profundo sobre as implicações sociotécnicas, tecnopolíticas e culturais presentes em suas pesquisas; criando assim uma demanda crescente pela perspectiva humanística em seus ensaios e demais investigações. Ela, a CI, já domina certas expertises como aquelas da organização do conhecimento, taxonomias, da preservação e recuperação da informação. São tais atividades, entre tantas outras, que garantem a manutenção e o funcionamento de projetos vistos como “mirabolantes” oriundos das HD. Dessa forma, encerramos provisoriamente o/a debate/reflexão ao concluirmos que as HD apresentam características relevantes para pensarmos nelas enquanto uma espécie de “hipercampo” — transdisciplinar desde sua origem —, onde aspectos outrora singulares, de campos específicos das Ciências Humanas e das Exatas, se remodelam de forma tautócrona com fins comuns apesar de objetivos diversos. E que é nesse hipercampo que a CI se faz presente além de essencial para a conclusão de tais objetivos. Sendo assim, HD e CI não deveriam ser pensadas separadamente uma vez que a questão da informação, de seu tratamento, e de sua modelação, bem como da forma como ele será acessado, é central; é tronco; é fundamento para tudo que se for produzir em ambas.

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1 Pesquisador Adjunto do Instituto Brasileiro de Informação em Ciência e Tecnologia, Brasil. ORCID http://orcid.org/0000-0002-1612-4126. E-mail: ricardo.pimenta@gmail.com

2 Tradução livre do autor, de: “Las Ciencias de la Información y las Humanidades Digitales comparten objetos frontera como repositorios, bases de datos etc., y aún más, las Ciencias de la Información y las Humanidades Digitales tienen una epistemología compartida”.

3 Tradução livre do inglês: At the beginning of a shift in standards governing permissible problems, concepts, and explanations, and also in the midst of a transformation of the institutional and conceptual conditions of possibility for the generation, transmission, accessibility, and preservation of knowledge

4 Entre colchetes, grifo meu.

5 Tradução livre do autor, de: “Il y a toujours une idéologie scientifique avant une science dans le champ où la science viendra s’instituer (...) L’idéologie scientifique ne doit pas être confondue avec les fausses sciences, ni avec la magie, ni avec la religion. Elle est bien, comme elles, mue par un besoin inconscient d’accès direct à la totalité, mais elle est une croyance qui louche du côté d’une science déjà instituée, dont elle reconnaît le prestige et dont elle cherche à imiter le style”.

6 Abreviação de Science, Technology, Engineering and Mathematics.

7 Tradução livre do autor, de: The size, scope, and influence of the TEI far exceeded what anyone at the Vassar meeting envisaged. It was the first systematic attempt to categorize and define all the features within humanities texts that might interest scholars. In all, some 400 encoding tags were specified in a structure that was easily extensible for new application areas. The specification of the tags within the Guidelines illustrates some of the issues involved, but many deeper intellectual challenges emerged as the work progressed. Work in the TEI led to an interest in markup theory and the representation of humanities knowledge as a topic in itself. The publication of the TEI Guidelines coincided with full-text digital library developments and it was natural for digital library projects, which had not previously come into contact with humanities computing, to base their work on the TEI rather than inventing a markup scheme from scratch. Much of the TEI work was done by e-mail using private and public discussion lists, together with a fileserver where drafts of documents were posted. From the outset anyone who served on a TEI group was required to use e-mail regularly and the project became an interesting example of this method of working.

8 Tradução livre pelo autor, de: “Ebenso gut könnte man argumentieren, dass eine gewisse Verwandtschaft zwischen den beiden Disziplinen bezüglich der Methoden und Forschungsinteressen schon in der Struktur und Tradition des Fachs Informationswissenschaft begründet ist: Die Informationswissenschaft in ihrer nationalen und internationalen Geschichte besitzt verschiedene Wurzeln, die sich im Laufe der Zeit unterschiedlich weiterentwickelt haben. Diese Wurzeln liegen zum einen in einer dokumentarisch-bibliothekarischen, zum anderen in einer computerorientierten, logisch-mathematischen Tradition begründet. Während sichdie erste Richtung um Informationsobjekte bzw. Dokumentationseinheiten dreht, die in ihrem gesamten Lebenszyklus betrachtet werden, beschäftigt sich die zweite Richtung schwerpunktmäßig mit formalen Systemen, Algorithmen und Standards sowie deren Performanz. DieInformationswissenschaftistsomitteilweiseindenGeistes-undSozialwissenschaften verwurzelt, ein anderer Teil weist hingegen deutliche Bezüge zur Mathematik, Informatik sowie zur Informations- und Kommunikationstechnologie auf. Digital Humanities und Informationswissenschaft sind also – zumindest, was den dokumentarisch-bibliothekarischenTeil angeht–genuinmiteinanderverbunden.”

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