A MISSÃO DA CIÊNCIA DA INFORMAÇÃO
NA ERA DA PÓS-VERDADE
THE MISSION OF INFORMATION SCIENCE IN THE POST-TRUTH ERA
Carlos Alberto Ávila Araújo1
RESUMO
Neste texto são apresentados e discutidos alguns aspectos da realidade informacional contemporânea, marcada pelas questões da pós-verdade e da desinformação. Discute-se o potencial da ciência da informação para estudar e propor ações relacionadas com essa realidade, a partir dos três modelos de estudo existentes na área: o físico, o cognitivo e o social. Identifica-se a necessidade, a partir da noção de conhecimento e ignorância de Edgar Morin, de se promover um avanço na ciência da informação em direção a uma dimensão veritística, tal como formulado por Jonathan Furner. Conclui-se, a partir das ideias de Theodor Adorno, que a ciência da informação atual precisa ter como centro de sua missão a questão da verdade e do combate à circulação de informações falsas.
Palavras-chave: Pós-verdade. Desinformação. Ciência da informação. Epistemologia da ciência da informação.
ABSTRACT
In this text, some aspects of contemporary informational reality are presented and discussed, marked by the questions of post-truth and disinformation. The potential of information science to study and propose actions related to this reality is discussed, based on the three existing study models in the area: the physical, the cognitive and the social. The need is identified, based on Edgar Morin’s notion of knowledge and ignorance, to promote an advance in information science towards a veritistic dimension, as presented by Jonathan Furner. It is concluded, based on Theodor Adorno’s ideas, that the current information science needs to focus on the question of truth and combating the circulation of false information as the center of its mission.
Keywords: Post-truth. Disinformation. Information science. Epistemology of information science.
Artigo submetido em 22/10¹2020 e aceito para publicação em 21/11/2020
1 INTRODUÇÃO
Nos últimos anos, tem aumentando a quantidade de terraplanistas, isto é, pessoas que acreditam que a Terra é plana, havendo canais nas redes sociais com milhares de seguidores e até congressos ditos científicos defendendo essa teoria. O movimento anti-vacina tem crescido em vários países, impulsionado por teorias conspiratórias, e provocando o ressurgimento de doenças já extintas em vários países. Negação e distorção de fatos históricos, como a negação de que o holocausto tenha acontecido ou a ideia de que o nazismo era de esquerda, vem sendo defendidos em livros, postagens e programas com formato de documentários acompanhados por milhares de pessoas nas redes sociais. O aquecimento global, reiteradamente constatado por sérios estudos científicos, continua sendo negado por líderes políticos, empresas e cidadãos, pessoas que se recusam a pensar em modificações nas formas de vida, de produção e de consumo, de forma a se evitar catástrofes ambientais. Votações políticas têm sido decididas com base em informações falsas como, por exemplo, no caso do Brexit, a saída do Reino Unido da União Europeia, quando dados errados sobre os montantes gastos e sobre imigrantes foram alardeados e influenciaram na decisão de voto de milhões de pessoas. Em 2020, surgiu o termo “infodemia” justamente para nomear a imensa circulação de procedimentos de cura falsos sobre a Covid 19, bem como teorias mentirosas sobre sua fabricação em laboratório ou mesmo a negação de sua existência.
Termos como fake news (informações falsas travestidas de discurso jornalístico), fake science (informações falsas travestidas de discurso científico), discursos de ódio (que não são exatamente “falsos”, já que se referem a opiniões e não a fatos, mas são importantes para tornar as pessoas mais suscetíveis às informações falsas) e pós-verdade (uma nova condição em que a verdade dos fatos importa menos para as pessoas do que suas crenças e emoções) vêm sendo utilizados para descrever o momento contemporâneo em nível mundial, marcado por fenômenos como os listados no parágrafo anterior. Em comum, todos eles se relacionam com a produção sistemática, a circulação e disseminação massiva, e o uso e apropriação de informações falsas. Pessoas estão tomando decisões sobre sua própria saúde, sobre a condução de suas vidas, sobre os políticos em quem votarão, com base em informação falsa (EATWELL; GOODWIN, 2019).
Se a existência de circulação em massa de informações falsas, e seus efeitos nocivos, é um problema, a quem caberia estudar esse problema e propor soluções? Existe uma ciência chamada Ciência da Informação (CI). Ela surgiu na década de 1960, nos Estados Unidos, no Reino Unido e na extinta União Soviética. Sua missão, nessa época, era propiciar teorias, metodologias e serviços para o incremento dos processos de transferência de informação entre cientistas, de forma a aumentar a velocidade de desenvolvimento da produção científica – num contexto marcado pela guerra fria, a disputa entre as potências pela hegemonia do mundo em vários planos, entre os quais o científico. Ideias como a necessidade de automatizar os processos de recuperação da informação (BUSH, 1945; SARACEVIC, 1970) e de se estudar as propriedades e a estrutura da informação científica para otimizar os processos de sua transferência (Borko, 1968; Mikhailov, 1969) se tornaram o fundamento da nascente Ciência da Informação, sua razão de ser.
Na década de 1970, essa primeira missão foi ampliada. Num sentido amplo, autores como Wersig e Nevelling (1975) defendiam uma responsabilidade social da ciência da informação, isto é, uma ampliação de sua missão para além do ambiente científico, passando a atuar para toda a sociedade, garantindo o atendimento das necessidades informacionais de todas as pessoas. Shera e Cleveland (1977), nessa mesma linha, propuseram que proporcionar o acesso à informação para todas as pessoas era a missão da ciência da informação. Num nível mais específico e micro, autores ligados a uma perspectiva cognitiva (BELKIN, 1980; BROOKES, 1980) defendiam que a ciência da informação deveria conhecer os usuários dos sistemas de informação, identificar seus processos e necessidades cognitivas, para então adaptar o funcionamento destes sistemas às suas demandas.
Passadas algumas décadas, a transferência e o acesso à informação já não parecem ser desafios tão presentes. Existe uma parcela da humanidade apartada do acesso à informação (apartada, também, dos serviços de saúde, saneamento, moradia, etc) e promover sua inclusão segue sendo uma agenda fundamental. Mas, para outra parcela da humanidade, para os ambientes científico, profissional, empresarial, educacional e social, o que existe hoje é o oposto: volumes gigantescos de informação são transferidos e acessados em segundos, de forma ubíqua, instantânea e multimídia, por meio de uma infinidade de dispositivos: smartphones, notebooks, desktops, smart TVs, tablets, etc. Mas, então, qual seria a missão da Ciência da Informação num contexto de ampla transferência e acesso à informação?
Voltando ao primeiro parágrafo deste texto, cabe perguntar: a Ciência da Informação tem, teria ou deveria ter algo a ver com esse contexto em que pessoas tomam decisões com base em informações falsas? Não seria esse contexto de infodermia, terraplanismo e negacionismo provocador de uma nova missão para a Ciência da Informação na entrada do segundo quartel do século XXI?
O objetivo deste texto é defender que sim, que diante de novos fenômenos surgidos nos últimos anos relativos à produção, circulação e apropriação de informações falsas, em larga escala, pelas pessoas de todo o mundo, nas várias esferas da ação humana, se coloca de maneira urgente para a Ciência da Informação: entender esses fenômenos e desenvolver metodologias, produtos e serviços para combater os seus efeitos nocivos.
2 A EVOLUÇÃO DA CIÊNCIA DA INFORMAÇÃO
Antes de tudo, é preciso verificar em que medida os fenômenos mencionados no início deste texto podem ser compreendidos como fenômenos informacionais, e como estudá-los e compreendê-los pode ser uma tarefa pertinente para a Ciência da Informação. Teria a Ciência da Informação elementos, conceitos e ferramentas adequadas para estudar tais fenômenos?
A Ciência da Informação possui mais de seis décadas de existência. Nesse período, foram formuladas diferentes teorias, abordagens, perspectivas, subáreas. Mas existe certo consenso (RENDÓN ROJAS, 1996; SARACEVIC, 1999; OROM, 2000; FERNÁNDEZ MOLINA; MOYA ANEGÓN, 2002; CAPURRO, 2003; BAWDEN; ROBINSON, 2012; HJORLAND 2018a; 2018b) de que existiram três grandes maneiras de se estudar a informação, cada uma delas enfatizando determinados aspectos dos fenômenos informacionais.
A primeira dessas três maneiras está relacionada ao próprio nascimento da Ciência da Informação, na década de 1960, nos Estados Unidos, na Inglaterra e na União Soviética. Essa primeira forma de se estudar a informação estava vinculada com a importância que a informação possuía, neste contexto, para o desenvolvimento científico e tecnológico no período da guerra fria. Nesse sentido, “informação” era entendida em um sentido bastante específico, enquanto informação científica e tecnológica, e seu estudo se dava dentro de uma lógica essencialmente governamental e militar, isto é, os objetivos com o estudo da informação eram, antes mesmo de serem propriamente científicos, pragmáticos, relacionados a um contexto de competição entre países pela hegemonia no cenário internacional.. Estudar a informação era compreender e mapear a produção, circulação e uso da informação científica e tecnológica para se pensar em instrumentos de seu processamento para garantir maior rapidez, menor custo, maior exatidão em sua transferência dentro da comunidade científica e desta para os setores estratégicos dos ambientes governamental e militar (COLL-VINENT, 1984; DEBONS; HORNE; CRONENWETH, 1988; LINARES COLUMBIÉ, 2005). Tratava-se de uma maneira muito específica de conhecer (a partir de um conjunto de interesses) e da delimitação de algo muito específico a ser conhecido - aquilo que era considerado objeto de estudo da ciência da informação.
Desenvolveu-se aí uma ciência do controle da informação, do desenvolvimento de técnicas para seu processamento ótimo num contexto da competitividade entre países por meio do desenvolvimento de seus sistemas de informação científica (DAVIS; SHAW, 2001). O modelo teórico desta abordagem, conhecido como “paradigma dos sistemas” ou paradigma físico, que pressupõe o estudo dos sistemas de informação isolados da vida social e dos usuários, basicamente a partir de medidas quantitativas de desempenho de recuperação da informação (BAWDEN; ROBINSON, 2012). Tal modelo é resultado da complementação de duas perspectivas. A primeira é a da teoria matemática da comunicação de Shannon e Weaver, que entende a comunicação como um processo de envio de mensagens de um emissor a um receptor, cabendo à ciência da informação atuar na otimização do transporte dessas mensagens por meio do processamento e da recuperação da informação. O segundo é o modelo sistêmico derivado da tradição de estudos iniciados com os experimentos realizados Cranfield Institute of Technology nas décadas de 1950 e 1960, em que os sistemas de informação são avaliados em termos de seus atributos objetivos e suas performances em recuperação da informação (HJORLAND, 2018a).
Nas décadas seguintes, desenvolveu-se na ciência da informação uma segunda grande perspectiva de estudos, de natureza cognitivista, centrada nos usuários. Esse movimento representou um deslocamento da mesma lógica de pesquisa dos ambientes governamental e militar para o âmbito do setor industrial e empresarial, com demandas de eficácia de gestão, operação e controle (DEBONS; HORNE; CRONENWETH, 1988). A novidade, do ponto de vista conceitual, foi a introdução de uma perspectiva orientada não mais para os sistemas, mas sim para os usuários ou clientes (HJORLAND, 2018a). Com isso, deu-se o estudo dos processos cognitivos humanos e sua modelização, com o objetivo de desenvolver sistemas de informação que pudessem replicar tais processos, de modo que o foco dos estudos eram os indivíduos se relacionando com a informação e a manifestação de suas necessidades e os procedimentos para resolução destas necessidades (BAWDEN; ROBINSON, 2012; GILCHRIST, 2009).
Uma terceira maneira de se estudar a informação vem se desenvolvendo desde o final do século XX. Linares Columbié (2005) destaca a novidade deste movimento como sendo uma outra epistemologia da ciência da informação desde o estudo da sociedade e da cultura. Cronin (2008) fala de uma virada sociológica na ciência da informação, em seguimento à virada cognitiva da década de 1980. Hjorland (2018b) menciona as recentes visões orientadas desde uma perspectiva social e cultural. Bawden e Robinson (2012) indicam um paradigma sócio-cognitivo, inspirado na epistemologia social de Shera e na análise de domínio de Hjorland, que busca analisar um nível de análise mais amplo que o indivíduo (os grupos sociais, comunidades, países) bem como outras problemáticas além da cognição (nível apenas mentalista dos fenômenos informacionais), numa tendência a articular os níveis individual e coletivo da informação. Apontam ainda que a posição epistemológica da teoria crítica, oriunda das humanidades e das ciências sociais, deverá “ter mais impacto na ciência da informação no futuro” (BAWDEN; ROBINSON, 2012, p. 41, tradução nossa). Essa terceira abordagem tem expressões em teorias como a dos regimes de informação, análise de domínio, práticas informacionais, folksonomias, altmetria, entre outras, voltadas para o caráter socialmente construído da informação e suas imbricações com as dimensões políticas, econômicas, culturais, jurídicas, tecnológicas e outras das sociedades nas quais os fenômenos informacionais existem e se constituem (ARAÚJO, 2018).
3 O MOMENTO ATUAL: pós-verdade e desinformação
A designação mais utilizada para descrever o momento contemporâneo tem sido a expressão “pós-verdade”.Santaella (2019) identifica que o termo “pós-verdade” foi usado pela primeira vez por Steve Tesich em 1992, em seu estudo sobre a Guerra do Golfo, e figurou pela primeira vez no título de um livro na obra de Ralph Keyes publicada em 2004. Mas foi em 2016 que a expressão foi intensamente utilizada, a ponto de ser considerada como a palavra do ano pelo Dicionário Oxford, designando as “circunstâncias nas quais fatos objetivos são menos influentes na formação da opinião pública do que apelos à emoção e à crença pessoal” (SANTAELLA, 2019, p. 7). Em 2016 o termo foi associado diretamente a dois fatos extremamente importantes para a política mundial: a eleição de Donald Trump para a presidência dos Estados Unidos e a vitória do plano de retirada do Reino Unido da União Europeia, conhecido pela sigla brexit (abreviatura de Britain exit). O fenômeno da pós-verdade passou a ser visto como algo envolvendo uma série de aspectos e níveis de problemas, e vários pesquisadores, de diversas áreas e países, têm se dedicado a estudar e correlacionar esses vários aspectos e níveis. Do ponto de vista da Ciência da Informação, isto é, desenhando esse fenômeno enquanto um fenômeno informacional, e a partir das três grandes formas de se estudar a informação apresentadas no tópico anterior, é possível perceber os seguintes aspectos do fenômeno:
O primeiro diz respeito às dinâmicas físicas, técnicas e tecnológicas do fenômeno, diretamente ligadas à lógica de entrega de informação “personalizada” promovida pelos algoritmos que estruturam os motores de busca e as redes sociais – estas, que acabaram por se tornar o ambiente privilegiado a partir do qual as pessoas recebem notícias e informações do mundo. E elas são construídas a partir de algoritmos que selecionam o que provavelmente as pessoas querem ou o que concorda com o ponto de vista delas, num fenômeno conhecido como “efeito bolha” (MAGALLÓN ROSA, 2019). Em redes sociais como o WhatsApp, as mensagens são disparadas em massa diretamente para os aparelhos das pessoas, sem que se possa monitorar ou se contrapor a elas, numa lógica “subterrânea” de disseminação de informação. Com a formação das “bolhas” ou “câmaras de eco”, nas quais os usuários ficam isolados, fechados a novas ideias, assuntos e informações importantes, sobretudo na política, as pessoas acabam se expondo “quase exclusivamente a visões unilaterais dentro do espectro político mais amplo” (SANTAELLA, 2019, p. 15).
Junto a esse fenômeno há, também, a disseminação em massa de notícias falsas. Embora isso não seja um fenômeno exatamente novo, há sim uma dinâmica nova, que é a sua circulação de maneira apócrifa, por meio de repasses feitos por pessoas comuns, verificando-se a ausência de regulações como aquelas que incidem sobre as instituições jornalísticas ou educacionais, numa lógica em que toda informação teria o mesmo peso ou valor, independentemente de sua qualidade, de sua checagem e do compromisso institucional por detrás de sua produção. Tal fenômeno se fortalece, ainda, com a ação dos clickbaits, isto é, a divulgação de conteúdo falso ou inserção de títulos sensacionalistas para que os usuários acessem o conteúdo, com o objetivo de gerar tráfego e ter benefícios com publicidade (APARICI; GARCÍA-MARTÍN, 2019). Nessa dinâmica de gigantesco volume de disseminação de informações falsas, mentiras acabam atuando para moldar a tomada de decisão das pessoas em diferentes esferas (na política, na economia, na educação na saúde, na religião), em velocidade e quantidade nunca vistas.
Além disso, o fato de serem as redes sociais e os motores de busca os principais meios de acesso, hoje, pelas pessoas, às informações sobre o mundo, tem levado ao fenômeno identificado como “desintermediação da informação”: a ideia, por parte das pessoas, de que as informações vindas de meios de comunicação, universidades e outras instituições seriam potencialmente falsas ou enviesadas mas que, no caso das informações vindas pelos motores de busca e redes sociais, não haveria mediação, seria uma informação “direta” (BARBOSA, 2019). Tal fenômeno se intensifica com as ações de “recomendação” promovidas por plataformas de vídeos ou de notícias, que trazem maior conforto e customização, mas que são construídas justamente a partir de dados colhidos sobre a atuação das pessoas na internet, naquilo que vem sendo chamado de economia da atenção ou capitalismo de vigilância.
O segundo aspecto se relaciona com o nível humano ou, mais propriamente, com as dimensões cognitivas humanas: o chamado viés cognitivo, ou viés de confirmação, ou ainda dissonância cognitiva. Trata-se de uma tendência do ser humano a formar suas crenças e visões de mundo sem se basear na razão e nas evidências, isto é, nos fatos, num esforço para evitar descontentamento psíquico. McIntyre (2018) aponta três estudos clássicos em psicologia social conduzidos nos Estados Unidos, nas décadas de 1950 e 1960, que demonstraram essa questão. O primeiro deles é a teoria da dissonância cognitiva de Festinger, segundo a qual buscamos harmonia entre nossas crenças e ações. O segundo é a teoria da conformidade social de Asch, que postula que temos tendência a ceder à pressão social por nosso desejo de estar em harmonia com os outros. O terceiro é o estudo do viés de confirmação conduzido por Watson, que identificou nossa tendência a dar mais peso às informações que confirmam nossas crenças pré-existentes. O autor apresenta também estudos recentes sobre a questão, expressos em dois conceitos: efeito contraproducente (fenômeno em que a apresentação de uma informação verdadeira para uma pessoa, que entra em conflito com suas crenças em fatos falsos, faz com que a pessoa creia nesses fatos com mais força ainda) e o efeito Dunning-Kruger (fenômeno no qual nossa falta de capacidade para fazer algo faz com que superestimemos nossas habilidades reais). Tais elementos do viés cognitivo fazem com que as pessoas sejam propensas a formar suas crenças sem ter em conta a razão e as evidências. Esse fenômeno tem sua importância aumentada no contexto de formação do efeito bolha mencionado acima.
A identificação destes processos evidencia que a relação do ser humano com o conhecimento é bem mais complexa do que aquela imaginada no âmbito do paradigma cognitivo da Ciência da Informação, com sujeitos adquirindo dados da realidade e aumentando o seu conhecimento sobre ela. No processo de conhecer o real, atuam elementos contraditórios e emocionais, que potencializam o desejo, por parte das pessoas, de evitarem o contraditório e apenas acessarem informações que confirmem suas visões pré-concebidas. No nível psicossocial, tal processo se acentua na medida em que se formam maiorias pensando de determinada forma e pressionando as pessoas com pensamento contrário a não exporem suas opiniões. Tal efeito se chama “espiral do silêncio” e está diretamente relacionado com o uso de robôs, por parte de políticos, grupos empresariais e religiosos, para propagar determinadas informações falsas, fortalecer sua disseminação e enfraquecer as possibilidades de seu questionamento (NOBLE, 2018).
O terceiro aspecto informacional é o cultural. Alguns autores chegam a referir-se à existência de uma “cultura da pós-verdade” (WILBER, 2018) ou de um “regime de pós-verdade” (BRONCANO, 2019). Atualmente, as pessoas (exceto, claro, uma parcela da população mundial sem as condições econômicas para isso) têm acesso fácil e instantâneo a tecnologias e possibilidades de verificar a veracidade de uma informação. Diferente de outros períodos da história, em que seria difícil ou impossível checar se uma informação, por exemplo, sobre o modo de vida de um país distante era verdadeira ou falsa, atualmente, de casa e em poucos segundos, se pode checar. Mas as pessoas não fazem isso. Aceitam como real, repassam, compartilham e se apropriam de informações sem se preocuparem em verificar. É esse desdém, esse desinteresse pela verdade, num contexto com tanto acesso à informação, que é o fato novo que a ideia de “pós-verdade” como uma cultura busca abarcar.
Pós-verdade designa, nesse sentido, uma condição, um contexto, no qual atitudes de desinteresse e mesmo desprezo pela verdade se naturalizam, se disseminam, se tornam cotidianos, normais, e até mesmo estimulados. Existe um processo de aceitação e replicação de conceitos que normalizam o desdém pela verdade: a pós-verdade “é um ideia, um imaginário, um conjunto de representações sociais ou sentidos já incorporados pelas audiências e desde a qual é possível a existência das fake news que se referem a essa ideia a afirmando ou ampliando” (MUROLO, 2019, p. 68, tradução nossa). Essa dinâmica acaba por conferir força aos clickbaits e outros mecanismos de disseminação de informação falsa.
Wilber (2018) é um pesquisador que analisa o fenômeno em um livro com o sugestivo título de “Trump e a pós-verdade”. Ele parte da eleição de Donald Trump para presidente dos Estados Unidos e da saída da Grã-Bretanha da União Europeia, dois fenômenos diretamente associados com o triunfo das informações falsas produzidas, disseminadas e consumidas em massa, e que orientaram as decisões das pessoas num determinado momento de votação, e os associa a outros, como a diminuição da valorização da democracia, o aumento do ódio, do racismo, da xenofobia, entre outros. E com isso enquadra a pós-verdade dentro de um amplo processo de mudança de valores culturais no mundo – e principalmente nas sociedades ocidentais.
Wilber faz uma leitura abrangente dos valores e ideias em situação de liderança ou aceitação no mundo (o que denomina “vanguardas”). Ele identifica que, na primeira metade do século XX, o mundo era conduzido, nos diversos movimentos políticos, culturais, intelectuais, por valores associados ao racional, ao operacional, ao consciente, às ideias de mérito, lucro, progresso – isto é, diretamente relacionados com o ideal da modernidade. Em sua análise, ele considera que, após a década de 1960, estariam vigorando ideias associadas a valores pós-modernos tais como a defesa da pluralidade, do relativismo, da autorrealização, da inclusão, do multiculturalismo, dos direitos civis, da sustentabilidade, da defesa das minorias, entre outros. E, seguindo a análise, Wilber pontua que estaria ocorrendo, na segunda década do século XXI, uma crise desse projeto, um fracasso das vanguardas progressistas.
Wilber aponta vários fatores que teriam causado esse fracasso. Entre eles, a relativização da ideia de verdade, a ideia de que existiriam verdades locais, particulares, o que desembocou numa forma de narcisismo generalizado; a incapacidade de assumir a perspectiva do outro, a perda do sentimento de empatia, o ódio contra os pontos de vista minoritários, conduzindo a visões essencialistas, com tendências ao racismo, ao patriarcado, à misoginia; e uma crise de legitimidade das instituições modernas, os direitos humanos, a razão, a ciência, a democracia. Análises semelhantes são realizadas por Fukuyama (2019 e Kakutani (2019) tendo como centralidade a ideia de ressentimento e de personalidade autoritária.
Nessa mesma linha, mas num foco mais específico, Keen (2008) identifica o que chama de “culto do amadorismo”, uma certa celebração de conteúdos amadores que acaba por anular a distinção entre o profissional e o amador, o que leva ao enfraquecimento de jornais, revistas, indústria musical, cinematográfica e jornalística, com consequente desaparecimento de padrões profissionais e filtros editoriais e o enaltecimento do plágio e da pirataria. Outra análise na mesma linha é a de Frankfurt (2019) que identifica o predomínio do que chama de “conversa fiada”: uma forma de diálogo que representa um desrespeito à verdade - um desprezo, em formas de linguagem presunçosas, abusivas e enganadoras. Trata-se de discursos que buscam disfarçar a ignorância de quem os produz e enganar os que ouvem. O crescimento da “conversa fiada” na publicidade, na política e em diversos outros ambientes estaria promovendo um ceticismo em relação à verdade objetiva, na medida em que, diferente do mentiroso que ainda tem a verdade como referência (ainda que para negá-la ou escondê-la), na conversa fiada a verdade se torna irrelevante.
Uma análise do quadro apresentado acima poderia nos levar a concluir que a Ciência da Informação teria, sim, diversos elementos para compreender os fenômenos contemporâneos da desinformação e da pós-verdade. Mas, e para combater seus efeitos adversos? E para fornecer alternativas para a promoção de uma cultura de preocupação com a verdade, com a sensibilização para um uso racional da informação, para o desenvolvimento de serviços e sistemas capazes de denunciar as informações falsas e responsabilizar seus criadores e disseminadores? Seria preciso que a Ciência da Informação desenvolvesse algo novo, que ela ainda não possui?
Neste texto, defende-se a ideia de que sim, é preciso que a CI reconheça suas limitações e se proponha a um exercício de construção de novas perspectivas. Tem-se aqui, como referência, Edgar Morin que, em seu último livro, diz que é preciso sentir “vivamente o prazer das descobertas e elucidações” (2020, p. 09). Neste livro, ele argumenta em favor do conhecimento ignorante, isto é, ele identifica e apresenta ideias sobre as realidades das quais conhecemos muito e também desconhecemos muito: o universo, a vida, o ser humano, o cérebro e o pós-humano, isto é, os robôs, próteses e algoritmos. Para ele, não devemos nos intimidar ou desanimar frente ao que não conhecemos, mas nos encantar com a ignorância e os desafios que se colocam diante de novas realidades ainda não conhecidas. No final do livro, ele apresenta como metáfora o fato de que o fósforo que acendemos no escuro não se limita a iluminar um pequeno espaço, ele revela a enorme escuridão que nos cerca. E conclui: “viver é uma navegação num oceano de incertezas com algumas ilhas de certeza para se orientar e se abastecer” (2020, p. 110).
É com essa proposta em mente que se propõe, aqui, avançar em direção à compreensão dos fenômenos da desinformação e da pós-verdade, com a proposição de uma virada veritística no campo.
4 UMA VIRADA VERITÍSTICA NA CIÊNCIA DA INFORMAÇÃO
Nos últimos quatro anos, alguns autores têm defendido que a noção de “verdade” deveria se tornar o centro das questões no campo da Ciência da Informação. Um destes autores é Jonathan Furner, que vem há alguns anos questionando as bases epistemológicas da Ciência da Informação, desde uma aproximação com a epistemologia social de Shera (FURNER, 2002), passando por algumas questões filosóficas mais gerais (FURNER, 2010; 2015) e chegando à problematização do conceito de informação nas cinco subáreas que compõem o campo: comportamento informacional, recuperação da informação, estudos métricos da informação, organização da informação e ética da informação) da ciência da informação (FURNER, 2014).
Em julho de 2017, ele apresentou uma comunicação na XV Conferência Internacional da ISKO (Information Society for Knowledge Organization), que ocorreu em Portugal – que foi publicada pouco depois como capítulo de um livro com os anais do evento (FURNER, 2018). Neste trabalho, o autor busca um fundamento epistemológico para a organização do conhecimento (knowledge organization – KO) a partir de contribuições da epistemologia e da ética – e, mais especificamente, da epistemologia social e da justiça epistêmica. A partir da articulação entre três conceitos (verdade, relevância e justiça), ele propõe uma virada veritística para a área, de maneira que ela possa ser uma organização do conhecimento crítica (critical knowledge organization - CKO).
Furner (2018) parte da filosofia, mais especificamente de um ramo dela, a ontologia, que estuda a filosofia do ser, das coisas que existem, de quais tipos de coisas existem, como elas podem ser classificadas. Ele propõe pensar a KO como uma ontologia, substituindo “coisas” por “dados” – a KO seria, assim, uma “filosofia dos dados”. Ela seria composta por elementos de três ramos tradicionais da filosofia: a filosofia da mente, a filosofia da linguagem e a filosofia da crença. Essa última é tomada pelo autor como sinônimo de epistemologia ou de filosofia do conhecimento. Furner identifica, nela, a existência de dois tipos de teorias: as teorias orientadas para a verdade, que podem ser definidas como teorias de crença que distinguem entre crenças verdadeiras e falsas; e as teorias orientadas para a relevância, que podem ser definidas como teorias de crença que se distinguem entre crenças relevantes e não relevantes. Com base nisso, ele detecta a existência de uma desconexão histórica entre a epistemologia como subcampo da filosofia e a BCI: na primeira, a teorização sobre a crença é orientada para a verdade; na segunda, ela é orientada para a relevância – a relevância se tornou o principal critério para determinar a recuperação da informação.
Ainda no campo da epistemologia, Furner propõe que a epistemologia pode ser dividida em tipos, conforme três critérios. O primeiro critério é que distingue a epistemologia pura (composta por teorias descritivas da natureza dos conceitos e das práticas epistêmicas) e a epistemologia aplicada (composta por teorias normativas, que buscam orientar as práticas mais propícias para se obter proposições verdadeiras ou relevantes). O segundo critério tem a ver com a metodologia, podendo-se identificar uma epistemologia racionalista ou naturalista, dependendo da prontidão em se admitir diferentes tipos de evidência em apoio às conclusões, por parte do sujeito. Por fim, conforme o fator principal de formação das crenças, a epistemologia pode ser individualista (quando se considera os interesses do sujeito) ou social (quando se escolhe focar na interação social). Combinando esses critérios, Furner propõe a epistemologia social aplicada (o estudo de questões normativas sobre as práticas sociais que são mais propensas a gerar crenças verdadeiras ou relevantes) como marco teórico adequado para sua proposição de uma CKO.
Em continuidade, Furner trata da questão da justiça. Ele apresenta a justiça como um valor (tal como verdade, relevância, beleza, liberdade) relacionado a uma característica que é desejável dos resultados das decisões e ações das pessoas. A justiça se realiza quando as pessoas são tratadas de acordo com seus méritos ou necessidades, sem preconceitos ou discriminação, sem violação de seus direitos humanos, sem limitação de suas liberdades, e sem o exercício de qualquer forma de opressão decorrente de relações de poder assimétricas. Furner identifica diversos tipos de direitos (naturais, humanos, civis, de grupos ou individuais) relacionados com o acesso equitativo a determinados bens ou oportunidades. Em relação ao campo da informação, ele elenca seis tipos de direitos: direito de pensar (de conceituar, categorizar e classificar, acreditar e ter opiniões); direito de se expressar (dar voz aos seus pensamentos na fala, na escrita e em outras formas; direito de acesso (possibilidade de buscar, investigar, encontrar, ouvir e conhecer o pensamento e a expressão dos outros); direito a ser ouvido (publicar e transmitir, alcançar uma audiência sem ser censurado, silenciado, escondido ou ignorado); direito de ser “deixado em paz” (de manter a privacidade); direitos a ter credibilidade (ser tratado com alguém que possui credibilidade).
Ao tratar das teorias da justiça, Furner identifica, primeiramente, o que chama de teorias da justiça social ou distributiva, aquelas focadas nos resultados das ações tomadas para distribuir, segundo critérios justos, quantidades de recursos entre os membros de determinadas populações. Tais teorias têm por objetivo garantir: a redução de divisões, disparidades e desigualdades entre ricos e pobres, ou entre poderosos e impotentes; distribuições mais justas de oportunidades sociais, culturais, econômicas e políticas; a construção e manutenção de comunidades prósperas nas quais os direitos humanos e liberdades sejam respeitados. Paralelamente, o autor levanta a necessidade de se contemplar as teorias da injustiça ou da opressão, que buscam denunciar processos como os de exploração, marginalização, promoção da impotência, imperialismo cultural e violência. Furner conclui que trabalhar em busca da justiça social envolve a reforma básica de práticas e instituições sociais opressivas e discriminatórias, bem como a redistribuição de recursos. Entre tais práticas e instituições, ele localiza aquelas envolvidas com a produção e o consumo de conhecimento – entre as quais estão as bibliotecas, os serviços de informação, os sistemas de organização do conhecimento (knowledge organization systems - KOSs), assim como os sistemas de classificação bibliográfica, as listas de cabeçalhos de assunto e os tesauros.
Dando sequência à sua argumentação, Furner introduz a teoria da justiça epistêmica, desenvolvida por Miranda Fricker e que se foca na equidade como são tratadas as pessoas em sua capacidade de conhecerem e de terem crenças. Furner menciona a distinção feita por Fricker entre os tipos de injustiça epistêmica: a distributiva (que ocorre sempre que os recursos epistêmicos, como a educação ou a informação, são distribuídos injustamente); a discriminatória (que ocorre sempre que as falhas são atribuídas a um indivíduo ou grupo); a testemunhal (quando se atribui preconceito ou déficit de autoridade a um sujeito produtor de um discurso); a hermenêutica (quando sujeitos são hermeneuticamente marginalizados, isto é, pertencem a grupos sem acesso à participação igualitária na geração de significados sociais). Na avaliação de Furner, a justiça social se tornou um objetivo dos profissionais atuantes em bibliotecas e serviços de informação. Contudo, não houve por parte desses profissionais uma apropriação da teoria da justiça epistêmica – embora tenha havido da epistemologia social aplicada.
Com base nas categorias e conceitos apresentados ao longo de sua argumentação, Furner propõe então quatro fundamentos para a construção de uma organização do conhecimento crítica (CKO): ser informada pela epistemologia social aplicada (identificação das condições sob as quais os testemunhos devem ser avaliados como verdadeiros ou relevantes); ser inspirada em valores da justiça epistêmica (não só a justiça social como o fim primário das bibliotecas e serviços de informação, mas também a justiça na disseminação e aquisição de crenças verdadeiras); respeitar os direitos humanos (o direito à justiça testemunhal, a ter credibilidade); e, por fim, privilegiar a verdade em lugar da relevância. É neste último quesito que Furner proclama uma virada veritística para os profissionais da informação. Uma organização do conhecimento orientada para a relevância é aquela que busca avaliar as práticas, as instituições e os produtos de informação com base na satisfação dos desejos e necessidades dos usuários; uma organização do conhecimento orientada para a verdade é avaliada com base na verificação de que as crenças adquiridas pelos usuários são verdadeiras.
Um mês depois de apresentar oralmente esse trabalho, em agosto de 2017, Furner participou de um simpósio intitulado Social Epistemology as Theoretical Foundation for Information Science: Supporting a Cultural Turn, ocorrido na University of Copenhagen, na Dinamarca. Ali ele apresentou uma conferência intitulada “Society, Epistemology, and Justice: Prospects for a Critical LIS?”. Nesta conferência, ele mais uma vez partiu da interseção entre a epistemologia e a ética para propor uma biblioteconomia e ciência da informação (BCI) críticas (critical library and information science). Para isso, ele primeiro partiu do tema do simpósio, a epistemologia social, como possibilidade para a BCI aplicar os valores de verdade e relevância na construção de sistemas de acesso à informação. A seguir, o autor defendeu a ideia de que a missão da BCI vai além da justiça social, chegando à justiça epistêmica, isto é, o acesso igual para todas as pessoas ao conhecimento humano registrado de todo o mundo. Como terceiro ponto, ele defendeu a oportunidade de uma “virada veritística” na ciência da informação, a partir da qual a verdade iria suplantar a relevância como o principal requisito do fornecimento de informação para os usuários. Em sua proposição final, ele desafiou o apego da área ao conceito de relevância e problematizou a adoção pela área de códigos de ética com reivindicações de neutralidade. Como conclusão, ele defendeu a necessidade de uma virada veritística diante da “era Trump”, marcada pela circulação de notícias falsas e “fatos alternativos” (HARTEL, 2017). Esse “gancho” dando pelo autor às questões contemporâneas relacionadas com Donald Trump, presidente dos Estados Unidos eleito em 2016, e a intensa disseminação de informações falsas, é exatamente o que permite ligar sua proposta às discussões sobre pós-verdade no âmbito da Ciência da Informação. Acredita-se que é justamente incorporando de maneira central essa questão é que a área poderá pensar em estratégias para combater os efeitos nocivos da pós-verdade, por meio de promoção de competência crítica à informação, criação de sistemas de certificação e responsabilização, formulação de políticas e instrumentos jurídicos e tecnológicos para seu cumprimento, entre outras.
5 CONSIDERAÇÕES FINAIS
Nolin e Astrom (2010) argumentam que a Ciência da Informação é um campo muito fragmentado e que isso poderia significar uma crise ou fraqueza. Mas eles defendem que, em vez disso, essa percepção poderia se tornar fonte de força, de potência. Eles identificam a existência de seis “viradas” na história do campo (cognitiva, informacional, usuário, epistemológica, histórica, pragmática) e propõem uma nova, uma virada convergente, sempre pensando que a área deve estar em sintonia com os desafios ou problemas informacionais de cada época.
Uma outra discussão recente sobre as “viradas” (turns) na Ciência da Informação é desenvolvida por Hartel (2019). Ela identifica o ponto de partida da área no paradigma físico e analisa que, após 1986, a área teria vivido sete viradas: a cognitiva, a afetiva, a da neodocumentação, a sociocognitiva, a da vida cotidiana, a socioconstrucionista e a corpórea.
Tanto no mapeamento de Nolin e Astrom como no de Hartel não há qualquer menção à questão da verdade e/ou da pós-verdade. Naturalmente, isso se deve ao fato de que as sistematizações epistemológicas são sempre feitas a posteriori, isto é, após as publicações das pesquisas de uma área. Assim, não teria havido ainda tempo suficiente para essa incorporação no âmbito da epistemologia do campo.
Ao mesmo tempo, talvez não seja necessário se promover uma “virada”, como defende Turner, mas com certeza é preciso privilegiar a questão da verdade na área. No início deste texto foram apontados alguns fenômenos recentes que têm trazido grandes problemas para o mundo: reforço dos preconceitos contra grupos tidos como minoritários (imigrantes, comunidade LGBT, mulheres, negros), enfraquecimento da democracia (com eleição de líderes que desprezam a liberdade de imprensa, os direitos humanos, as instituições democráticas, o resultado das eleições), aumento da destruição do meio ambiente, entre outros. Tais fenômenos têm se estruturado e se fortalecido justamente a partir da informação, de uma dinâmica de produção, circulação e uso de informação falsa em escala massiva. Se existir algum tipo de reflexão sobre qual o propósito (ou o sentido) da Ciência da Informação, no mundo contemporâneo, então essa reflexão deve conduzir, necessariamente, a CI para combater essas práticas que, em última instância, têm ameaçado a própria existência da nossa civilização.
É por esse motivo que optou-se por concluir esse artigo com uma referência a um texto de Theodor Adorno intitulado “Educação após Auschwitz”. Neste texto, ele defende que “a exigência que Auschwitz não se repita é a primeira de todas para a educação” e que a experiência dos campos de concentração nazistas são “a barbárie contra a qual se dirige toda a educação” (١٩٩٥, p. ١١٩). É esse o espírito com o qual a Ciência da Informação deveria encarar os fenômenos da desinformação e da pós-verdade. A existência de informações falsas com presença tão significativa e efeitos tão desastrosos, e a necessidade de os combater, deveriam ser a primeira de todas as exigências para a Ciência da Informação. Precisam se constituir como a nova, e urgente, missão da Ciência da Informação no mundo contemporâneo.
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1 Docente permanente no Programa de Pós-Graduação em Ciência da Informação. Universidade Federal de Minas Gerais, Brasil
ORCID https://orcid.org/0000-0003-0993-1912. E-mail: casal@eci.ufmg.br
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