MEMÓRIA, CIDADE E NARRATIVA MUSICAL:
as lembranças do “Meu Pequeno Cachoeiro”

MEMORY, CITY AND MUSICAL NARRATIVE:
the reminders of ‘’Meu Pequeno Cachoeiro’’

Valdir Jose Morigi 1

RESUMO

Estudo fundamentado nas teorias sobre memória social e as suas relações entre cidade e música. Objetivo do artigo é compreender, a partir da análise da narrativa de uma canção popular interpretada por Roberto Carlos, como o tempo e o espaço são representados na canção sobre a cidade. Pesquisa realizada no primeiro semestre de 2020, analisa os conteúdos informacionais presentes na narrativa musical “Meu pequeno Cachoeiro”. Através da narratologia realizou-se a caracterização do cenário, identificando os episódios, as sequências temporais que compõem o enredo, envolvendo os personagens e a cidade narrada. Conclui-se que as narrativas musicais sobre a cidade auxiliam na construção dos imaginários urbanos, dos acervos das memórias da cidade e na conformação da identidade dos cidadãos.

Palavras-Chaves: Narrativa musical. Memória e música. Cidade e memória.

ABSTRACT

This study is based on theories of social memory and its relations between city and music. The objective of the article is to understand, from the analysis of the narrative of a popular song interpreted by Roberto Carlos, how time and space are represented in the song about the city. A study carried out in the first half of 2020, analyzes the informational content present in the musical narrative ‘’Meu Pequeno Cachoeiro’’. The characterization of the scenario was made through the narratology, identifying the episodes, the temporal sequences that make up the plot, involving the characters and the narrated city. It was concluded that the musical narratives about the city help in the construction of the urban imaginary, the collections of the memories of the city, and the conformation of the citizens’ identity.

Keywords: Musical narrative. Memory and music. City and memory.

Artigo submetido em 22/10/2020 e aceito para publicação em 12/11/2020

1 INTRODUÇÃO

A cidade pode ser compreendida de diversos modos, pois nela são inventados e reinventados comportamentos, estilos de vida e valores sociais estruturados através de uma linguagem própria, baseada em espaços definidos pela ação dos atores sociais que vivem no cenário urbano. A cidade se caracteriza por ser um espaço polifônico, marcado pelo entrecruzamento da multiplicidade das vozes urbanas copresentes nas ruas, avenidas, praças, centros culturais entre outros espaços da comunicação urbana. A música é uma dessas vozes que, através da sua narrativa, expressa parte da polifonia urbana.

O objetivo do artigo é refletir sobre as relações entre memória, cidade e música a partir da análise da narrativa de uma canção popular interpretada por Roberto Carlos. A pesquisa foi realizada no primeiro semestre de 2020 e analisa os conteúdos informacionais presentes na narrativa musical “Meu pequeno Cachoeiro”. Através da narratologia realizou-se a caracterização do cenário, identificando os episódios, as sequências temporais que compõem o enredo, envolvendo os personagens e a cidade narrada.

As nossas experiências cotidianas não estão fora do tempo e do espaço, ao contrário, elas nos auxiliam na construção das nossas lembranças, recordações e esquecimentos. A partir de nossos encontros e interações sentimos como a nossa vida é atravessada pelo tempo e o espaço.

Conclui-se que as narrativas musicais sobre a cidade auxiliam na construção dos imaginários urbanos, dos acervos das memórias da cidade e na conformação da identidade dos cidadãos. A memória é responsável pela construção da identidade social, cultural e também da subjetividade individual e coletiva.

2 MEMÓRIA, CIDADE E MÚSICA

O conceito de memória é complexo. Ela pode ser entendida como a capacidade que os seres vivos têm de adquirir, armazenar e transmitir informações e conhecimentos. Entretanto, como afirma Gondar (2016, p. 20) “A memória nunca é: na variedade de seus processos de conservação e transformação, ela não se deixa aprisionar numa forma fixa ou estável. A memória é, simultaneamente, acúmulo e perda, arquivo e restos, lembrança e esquecimento.”

Segundo Halbwachs (1990) não há memórias propriamente armazenadas na mente ou cérebro, mas sim traços deixados pelas experiências ou esquemas que se modificam toda vez que são ativadas para produzir uma experiência concreta. Na perspectiva de Halbwachs (1990), os indivíduos constroem laços sociais permanentes mantidos com relativa firmeza a partir da coesão garantida pelos quadros sociais da memória, entendidos estes como um sistema de valores que unifica determinados grupos: familiares, religiosos, de classe, etc.

Na perspectiva do autor, o espaço se constitui um elemento fundamental na construção da memória coletiva. Ele afeta os grupos e os indivíduos e por eles também é afetado. A memória coletiva é construída a partir de um quadro espacial, porque o espaço possui solidez, ultrapassando as representações e a imaginação.

[...] o espaço, sobre o nosso espaço - aquele que ocupamos, por onde sempre passamos, ao qual sempre temos acesso, e que em todo o caso, nossa imaginação ou nosso pensamento é a cada momento capaz de reconstruir - que devemos voltar nossa atenção; é sobre ele que nosso pensamento deve se fixar, para que reapareça esta ou aquela categoria de lembranças. (HALBWACHS, 1990, p. 143).

Entretanto, conforme Gondar (2016, p. 40):

Conceber a memória como processo não significa excluir dele as representações coletivas, mas, de fato, nele incluir a invenção e a produção do novo. Não haveria memória sem criação: seu caráter repetidor seria indissociável de sua atividade criativa; ao reduzi-la a qualquer uma dessas dimensões, perderíamos a riqueza do conceito. (GONDAR, 2016, p. 40).

No mundo contemporâneo, abordar a memória significa considerar os aspectos levantados acima, pois a transmissão de experiências e a recepção das experiências coletivas, herdadas, recebidas e construídas, cultivadas em sua transformação pelas várias gerações, etc. envolvem múltiplas complexidades.

Para finalidade deste artigo abordaremos algumas dimensões que envolvem a memória social e as suas relações com a cidade, a música e como ela se expressa na vida cotidiana.

O espaço, o tempo e a interação são categorias imprescindíveis para compreendermos a construção da memória social. Nós fomos criados e educados em espaços territorializados, lugares físicos como as cidades, vilas, bairros, que possuem caminhos, ruas, praças, rios, lagoas, árvores entre outros lugares como edifícios, monumentos, casas, escolas, universidade, hospitais, empresas, bibliotecas, museus, etc. Esses locais possibilitam que nos acostumamos com as práticas sociais criadas pelas interações que fortalecem as nossas ações a partir da lógica sensorial ao experimentarmos o mundo através do toque nos objetos, nas coisas, pois elas possuem texturas, formas físicas, odores. Elas nos auxiliaram e auxiliam na construção das subjetividades, das nossas representações sobre nós mesmos, com o mundo, com os outros e também as nossas percepções em relação ao tempo que se transformam em lembranças ou esquecimentos. (BERARDI, 2017).

Conforme Berardi (2017), a lógica conjuntiva, que possibilitava e possibilita as nossas experiências sensoriais, não desapareceu. Em boa parte dos nossos encontros ela ainda existe e continua estruturando as nossas interações com os outros e com os objetos, auxiliando a construção da nossa identidade e da subjetividade.

O modo de vida urbano como experiência também é atravessado pelo espaço, pelo tempo e pelas as interações. A cidade neste estudo é concebida como um modo de estruturar as nossas experiências, tanto temporal como espacialmente. Uma forma de enquadramento compartilhado da nossa experiência no mundo. “Uma estrutura que converge práticas de temporalidades distintas; um caleidoscópio que projeta atos passados ao presente: em canais de movimento e lugares de atividades e memórias que conectam atos na atualidade do agora.” (NETTO, 2012, p. 195) O autor complementa, afirmando que a cidade é a “coexistência de diferentes ‘modos temporais e espaciais de ser’ e como possibilidade de encontro e reconhecimento do outro, um framing enquadramento da experiência e alteridade.” (NETTO, 2012, p. 195)

Nessa perspectiva, a cidade possui uma função estruturante que afeta nossa subjetividade e experiência com as coisas e com mundo. Se considerarmos os nossos gestos e atos no espaço urbano percebemos os movimentos não completamente livres, mas modelados a partir de uma estrutura material e também dos modos de subjetivação que nos antecedeu e nos cerca.

Na cidade a nossa experiência depende dos ritmos temporais da vida urbana, que afetam os ritmos das nossas ações nela. Os tempos que consumimos em deslocamentos da casa para o local de trabalho, na passagem por paradas, estações e lugares, engolem nossos tempos individuais. Entretanto, a pluralidade de ritmos temporais que afetam a nossa experiência na cidade depende também da posição que ocupamos socialmente, que compõe a diversidade social e humana construtora das diferentes identidades, práticas e capital social que diferentes grupos e atores dispõem ao seu favor no quadro social. (NETTO, 2012).

A nossa experiência é construída através dos sentidos e pela intersubjetividade que captam a informação sensorial do ambiente. Assim, a cidade se constitui em uma forma de mediação da nossa experiência tangível e intangível do mundo. As edificações, ruas, praças, quarteirões etc. auxiliam na “canalização espaço-temporal” imprescindível da nossa experiência no mundo. Conforme aponta Netto (2014, p. 197): “A espacialidade urbana tem relação intrínseca aos ritmos variados da prática – uma forma de presença na produção de temporalidades diversas das ações das pessoas e suas experiências do tempo.”

A cidade ampara diferentes experiências coletivas e individuais e as relaciona em modos de experiência em comum, sob forma de vida urbana. O seu presente é produto das ações passadas, de práticas anteriores acumuladas no decorrer do tempo. Deste modo, os encontros, as interações tornam-se impressos nos espaços da cidade através do tempo como condição de coexistência e convívio social. “Um passado urbano informa cada experiência e ação no agora.” (NETTO, 2014, p.198).

Conforme Netto (2014), as representações que temos sobre a cidade são conectadas por memórias impressas no espaço, através das configurações arquitetônico-urbanas das nossas cidades concretizadas por meio da narrativa das fachadas e disposições dos edifícios que conformam as práticas e as formas de vida. A cidade é a “sobrevivência do passado”. A memória projetada no espaço urbano temporaliza nossas representações por completar nossa experiência presente a cada momento, enriquecendo-a com as experiências já adquiridas.

A cidade, seus espaços e a nossa apropriação sobre eles ajudam a definir nossa experiência com ela. Nossas comunicações cotidianas estão relacionadas com a espacialidade que produzimos em formato de cidades. Entretanto, acabamos sentindo somente quando a cidade nos impõe alguma barreira ou dificuldade na nossa interação cotidiana e na fluidez das nossas práticas comuns. Desta forma, os espaços da arquitetura da cidade fazem parte das tramas da prática social. (NETTO, 2014).

Assim, a partir dos espaços da cidade é que ocorrem as apropriações, sejam eles edificações, conjuntos arquitetônicos ou outros lugares. Ao atribuirmos sentidos existenciais aos espaços eles se transformam em lugares. Conforme Nora (1993) os lugares são mensageiros de significados e de uma memória. Para o autor, a memória é viva, um fenômeno que ocorre na vida em sociedade. Por isso, está em permanente transformação no decorrer do tempo. Ela é, ao mesmo tempo, lembrança e esquecimento. Nas palavras do autor:

A memória é um fenômeno sempre atual, um elo vivido no eterno presente, a história, uma representação do passado. Porque é afetiva e mágica, a memória não se acomoda a detalhes que a confortam [...] se enraíza no concreto, no espaço, no gesto, na imagem, no objeto (NORA, 1993, p. 9).

Para Pesavento (2007), a cidade se constitui um local onde se evidenciam as manifestações sociais, culturais, artísticas, etc. Os espaços produzem variadas sensações e subjetividades. A partir dos espaços da cidade se derivam as memórias afetivas. O que pode produzir sentimentos como a saudade, o amor, o desamor etc. capazes de produzir múltiplas recordações. O que faz entendermos a cidade como um organismo subjetivo. (CANEVACCI, 2004).

Para compreender a cidade e sua complexidade Canevacci (2004) parte do fenômeno comunicacional que fundamenta no conceito de “polifonia”. A cidade é vista sob o prisma das polifonias comunicativas, de diversas técnicas interpretativas que levam analisar a complexidade dos ritmos que caracterizam o espaço urbano, os espaços de sociabilidade, comportamentais e psicológicos dos indivíduos que transitam por ele. A cidade polifônica é constituída por múltiplos atores no processo interativo, que configuram o caráter sócio espacial da cidade. Assim, a cidade é compreendida como um organismo subjetivo que inventa valores e modelos de comportamentos estruturados por uma linguagem própria, fundamentada em intervalos delimitados pela ação dos atores que habitam o cenário urbano.

A cidade reflete o nosso agir, pois somos atores urbanos e estamos constantemente dialogando com os seus “muros, com as calçadas de mosaicos ondulados, com uma seringueira que sobreviveu com majestade monumental no meio de uma rua, com uma perspectiva especial, um ângulo oblíquo, um romance que acabamos de ler.” (CANEVACCI, 2004, p. 22). Conforme lembra o autor, os espaços da cidade constituem um conjunto de lembranças que emergem a partir das nossas interações com ela. As nossas recordações fazem com que a cidade se movimente em nosso imaginário.

A memória é indispensável para que haja criatividade e imaginação, pois ela nos permite comparar, recodificar e acessar às informações, às experiências de diferentes formas: imagética, sonora, visual, escrita, auditiva, olfativa etc. Isto nos remete pensar uma narrativa musical como uma forma de criação da imaginação, capaz de gerar e recuperar memórias através de imagens ou representações. (DAMÁSIO, 2015) 

Por outro lado, a música se constitui como uma das formas de expressão da arte, pois envolve a criação e a imaginação. Conforme Damásio (2015), quando relacionamos memória, criatividade e arte, o que está em jogo é a nossa capacidade de representar memórias. Criatividade e imaginação são faculdades humanas que se entrelaçam, sem as quais não seria possível conceber novas ideias, invenções ou modelos quaisquer que sejam eles: filosóficos, artísticos, sociais, culturais etc.  Toda vez que ouvimos uma canção já conhecida, reativamos as nossas lembranças e assim atualizamos a nossa memória e imaginação.

A música, a literatura, a pintura entre outras artes são expressões de comunicação da cultura e, como tal, elas refletem o mundo. Para Goldmann (1979), as expressões artísticas refletem visões de mundo, maneiras de subjetivar, de sentir e ver as coisas e a realidade. O autor não retira a autonomia nem as lógicas próprias que possuem as criações artísticas, entretanto, elas não são criações arbitrárias.

Como lembra Cotta (1998) “[. . .] qualquer produto musical [. . .] tem um lugar histórico e culturalmente determinado e poderá ser melhor compreendido, então quando abordado sob pontos de vista histórico e cultural.” Do mesmo modo, podemos perceber, em sentido contrário, pois se as perspectivas histórico-sócio-culturais auxiliam para melhor entendimento de uma produção musical, a via oposta também é verdadeira, “[. . .] o próprio fato social poderá se beneficiar da produção musical, uma vez que a mesma, imersa em um ambiente sócio-histórico-cultural, também propiciará leituras de uma época e de uma ideologia.” (MORIGI; BONOTTO, ٢٠٠٤, p.١٤٧).

Assim, podemos compreender as produções musicais ligadas aos contextos históricos, sociais e culturais como pertencentes a uma determinada época e, ao mesmo tempo, perceber como elas são afetadas por tais contextos. A narrativa musical, a partir da sua letra, é repleta de conteúdos significativos relacionados aos valores e os sentimentos coletivos, oferecendo tais conteúdos para constituição da cultura, da memória e dos imaginários sociais. “A arte e a música atuais também refletem esta nova percepção. As tensões estéticas não se criam a partir de um desenvolvimento narrativo, mas de uma sobreposição e densificação dos acontecimentos.” (BYUNG-CHUL, 2016, p.55).

A arte é um modo de subjetivar é um produto do social, existindo relações imanentes e intrínsecas entre sua produção e o social. O campo musical não pode ser separado do contexto de sua produção. O tempo, o espaço e a interação se apresentam na narrativa musical como parte do registro cultural, memorial e social, se solidificando através da audição e da imaginação os modos de subjetivação.

3 AS MEMÓRIAS NA NARRATIVA MUSICAL DO “MEU PEQUENO CACHOEIRO”

Como apontamos anteriormente, as produções musicais vinculam-se aos contextos históricos, sociais e culturais como pertencentes a uma determinada época pois elas são afetadas por tais contextos. Assim, antes de analisar a narrativa musical “Meu pequeno Cachoeiro”, vamos nos referir ao contexto de sua produção. Para tal tarefa, nos apoiamos no estudo realizado por Amaral (2012).

Conforme Amaral (2012) na pesquisa realizada sobre Roberto Carlos em meio à cultura popular de massa, que aborda o momento de consolidação do espaço social da música popular brasileira, os processos de modernização e industrialização do simbólico internalizaram as memórias que fizeram surgir novas sínteses artísticas, criações e reciclagens. Esse momento foi marcado por uma transformação da criatividade musical a partir da rearticulação da identidade nacional em torno de uma racionalidade técnico-mercantil, incorporando um “novo folclore”, com características urbanas. (AMARAL, 2012, p. 5) [grifos do autor]

Na perspectiva do autor, a denominação de Roberto Carlos como “Rei” advém da “articulação, no âmbito de sua estrutura psíquico-afetiva, de memórias vinculadas ora à racionalidade técnico-mercantil da cultura industrializada, ora à dimensão das emoções extraídas de um ‘folclore aluvial’ urbano.” (AMARAL, 2012, p. 5). Assim, configurou-se o debate sobre a modernização brasileira, cuja marca essencial é de não-rompimento com o finalismo do espírito religioso, redesenhando a cultura popular de massa. A articulação entre ambos possibilitou um rearranjo de memórias que se conjugaram ao processo de modernização nacional.

A letra da música “Meu pequeno Cachoeiro” é uma composição do cantor Raul Sampaio, mas que ficou conhecida nacionalmente na voz do compositor e cantor Roberto Carlos. Conterrâneo de Raul Sampaio, Roberto Carlos Braga nasceu no dia 19 de abril de 1941 em Cachoeiro do Itapemirim (ES). A letra da música se refere a cidade com características interioranas: vida campestre, simples, ingênua e pura, atributos que remetem às representações sobre a vida no campo, ainda não contaminado pela ampliação do desenvolvimento urbano. (FRAZÃO, 2020).

Roberto e Raul, cada um a seu modo, viveram na cidade de Cachoeiro de Itapemirim de modo idiossincrático. A realidade no Brasil da década 1940 era a de um país fundamentalmente agrário. Durante esse período, 68,76% de uma população de aproximadamente 41 milhões viviam em zonas rurais. Em Cachoeiro do Itapemirim, o percentual da população rural chegava a 70,29%. Conforme o IBGE, as principais atividades que se destacavam eram a agricultura, a pecuária e a silvicultura, além das atividades domésticas e escolares2.

Neste período, a urbanização do país estava concentrada nas capitais, principalmente no sudeste brasileiro e no eixo Rio - São Paulo. Boa parte da população migrava para regiões urbanas, sobretudo para o sudeste em busca de melhores condições de vida, porém, não perdiam vínculos com suas cidades natais. A trajetória de Roberto Carlos não foi diferente, aos 12 anos, mudou-se com a família para Niterói no Rio de Janeiro. Em Cachoeiro, o pai de Roberto Carlos trabalhava como relojoeiro e sua mãe, era costureira. A família do cantor morava em uma casa localizada na parte urbanizada da cidade. (AMARAL, 2012)

A partir dessa descrição contextual, observamos que o cenário vivido pelos compositores e cantores, na infância e adolescência, foi a atmosfera de uma cidade pequena, pacata, com costumes interioranos, e que deixou marcas nas suas vidas, traduzidas em forma de recordações descritas na narrativa musical abaixo.

Meu pequeno Cachoeiro

Eu passo a vida recordando

De tudo quanto aí deixei

Cachoeiro, Cachoeiro

Vim pro Rio de Janeiro

P’ra voltar e não voltei!

Mas te confesso na saudade

As dores que arranjei pra mim

Pois todo o pranto destas mágoas

Ainda irei juntar nas águas

Do teu Itapemirim

Meu pequeno Cachoeiro

Vivo só pensando em ti

Ai que saudade dessas terras

Entre as serras

Doce terra onde eu nasci!

Recordo a casa onde eu morava

O muro alto, o laranjal

Meu flambuaiã na primavera

Que bonito que ele era

Dando sombra no quintal

A minha escola, a minha rua

Os meus primeiros madrigais

Ai como o pensamento voa

Ao lembrar a terra boa

Coisas que não voltam mais!

Meu pequeno Cachoeiro

Vivo só pensando em ti

Ai que saudade dessas terras

Entre as serras

Doce terra onde eu nasci

(Declamado):

- Sabe meu Cachoeiro,

Eu trouxe muita coisa de você

E todas essas coisas me fizeram saber crescer

E hoje eu me lembro de você,

Me lembro e me sinto criança outra vez!

(Cantado, novamente)

Meu pequeno Cachoeiro

Vivo só pensando em ti

Ai que saudade dessas terras

Entre as serras

Doce terra onde eu nasci!!!

O enredo da narrativa musical revela claramente a tensão do narrador, misturado ao seu sentimento de culpa ao confessar: “Eu passo a vida recordando”/De tudo quanto aí deixei/Cachoeiro, Cachoeiro/Vim pro Rio de Janeiro/P’ra voltar e não voltei!”. Na expressão “De tudo quanto aí deixei”, o personagem lamenta ter deixado “tudo”. O pronome indefinido “tudo” engloba todas as coisas: os afetos, os amigos, a paisagem do lugar, as ações etc, incluindo as lembranças e os esquecimentos. Entretanto, nas frases “Vim pro Rio de Janeiro/P’ra voltar e não voltei!”, o narrador reconhece a promessa não cumprida, ao mesmo tempo que evidencia a tensão. Situação esta, particular dele e de muitos migrantes brasileiros que saíram das suas cidades de origem e não regressaram. [grifos meus]

Na narrativa, as confissões do narrador se apresentam como reminiscência, através das suas lembranças sobre o passado vivido em uma cidade interiorana. Como aponta Benjamin (1993, p. 37) a rememoração, atendendo às suas contingências, é mais do que a busca da coisa ou do acontecimento em si. O fundamental, para quem rememora, “não é o que ele viveu, mas o tecido de sua rememoração, o trabalho de Penélope da reminiscência.” Deste modo, mais do que apontar o reaparecimento de determinados conteúdos, a memória é uma ação.

Observa-se que na narrativa musical as situações vividas no cotidiano pelo narrador são lembradas: os lugares, os cenários das primeiras emoções, períodos da infância, aprendizagem dos costumes, das formas de pensar, posturas corporais e da linguagem não verbal. A memória e o arraigamento com o território e a carga simbólica, retomam os sentidos do passado no presente. que na narrativa são expressos através da denominação dos lugares: O “Pequeno Cachoeiro”, o “Itapemirim, saudades dessas terras, entre as serras, terra onde eu nasci”, no qual a conotação do afetivo claramente se expressa através do adjetivo “pequeno”.

Nos versos da música os espaços da cidade se apresentam como lugares da memória: “Recordo a casa onde eu morava, O muro alto, o laranjal/Meu flambuaiã na primavera/Que bonito que ele era/Dando sombra no quintal/A minha escola, a minha rua/Os meus primeiros madrigais/Ai como o pensamento voa/Ao lembrar a terra boa/Coisas que não voltam mais! [grifos meus]. As coisas e os lugares expressos na narrativa são marcas da vida cotidiana, por isso, se constituem como os marcadores da memória. Os lugares do cotidiano e as suas lembranças nostálgicas, os aromas e sabores são elementos que auxiliam na estruturação da identidade dos indivíduos e dos grupos sociais e os modos de subjetivação do social.

Para Candau (2011), a memória e a identidade cultural estão intimamente entrelaçadas. Ao mesmo tempo em que ela nos modela, nós também a modelamos. Para o autor, a identidade é concebida como inseparável da memória. A identidade é um conjunto de memórias que regem a vida social, os hábitos, as interações e a imagem que o indivíduo tem de si e dos outros. Em síntese, a dialética da memória e da identidade ocorre através da conjunção e na forma como elas se nutrem mutuamente. Elas se amparam uma na outra para, podendo ter um caráter prático, produzir uma trajetória de vida, um mito, uma história, uma narrativa ou até mesmo quando se refere ao patrimônio. “O patrimônio é menos um conteúdo que uma prática de memória, obedecendo a um projeto de afirmação de si mesma.” (CANDAU, 2011, p. 163).

Na estrofe em que o cantor/narrador desabafa: “Sabe meu Cachoeiro/Eu trouxe muita coisa de você/E todas essas coisas me fizeram saber crescer/E hoje eu me lembro de você, Me lembro e me sinto criança outra vez!” [grifos meus], percebe-se o reconhecimento por parte do narrador a respeito do que aprendeu com as interações vividas no passado na cidade de Itapemirim. Ao mesmo tempo em que o trecho expressa a dialética entre a memória e a identidade (CANDAU, 2011), a narrativa expressa o quanto as suas recordações associadas à memória individual se entrelaçam com as recordações ligadas à memória coletiva: “E hoje eu me lembro de você”, que inclui a sua trajetória de vida pessoal e as interações estabelecidas com as pessoas (os outros) e as coisas daquele lugar que auxiliaram na estruturação de sua identidade.

“Meu Cachoeiro/Eu trouxe muita coisa de você/E todas essas coisas me fizeram saber crescer/E hoje eu me lembro de você e me sinto criança outra vez!”. A forma como o narrador acessou e se apropriou dos espaços da cidade, fez com que ele associasse as suas ações aos lugares da cidade e ao tempo vivido. Assim, a cidade como estrutura espaço-temporal, compartilhada pela nossa experiência do mundo é responsável pela mediação das ações com ela e com o mundo.

Os episódios na narrativa são compostos por sequências temporais marcados pela ordenação do tempo significativo, imaginário ou subjetivo, tempo da infância: “E hoje eu me lembro de você e me sinto criança”, das estações do ano “Meu flambuaiã na primavera”. Tempo aromático em que se misturam as sensações e sentimentos nostálgicos que relembram os tempos da sua infância e da adolescência. “De tudo quanto aí deixei/Cachoeiro, Cachoeiro/Vim pro Rio de Janeiro/Pra voltar e não voltei!” Mas te confesso na saudade/As dores que arranjei pra mim/ Pois todo pranto destas mágoas/ Ainda irei juntar as águas/ Do teu Itapemirim.” [grifos meus]. Nessas duas estrofes se observa a dimensão integrativa da tríade temporal: passado, presente e futuro, pois são elementos que garantem ao presente sua potência agregativa. Ela se expressa através das ações verbais “deixei”, “arranjei”, “vim” “voltar”, “voltei” “irei”.

As representações sobre o cenário ou a paisagem da pequena cidade onde nasceu, “Itapemirim”, “Meu pequeno Cachoeiro”, “Doce terra onde eu nasci!”, criam uma ressonância do passado com o presente. Mas te confesso na saudade /As dores que arranjei pra mim/Pois todo o pranto destas mágoas/Ainda irei juntar nas águas/Do teu Itapemirim. As memórias afetivas derivam sentimentos sobre o lugar, fazendo aparecer a saudade de um tempo. Assim, os lugares de memória tecem, através das lembranças sobre o passado, as representações sobre o presente.

4 CONSIDERAÇÕES FINAIS

A cidade como estrutura espaço-temporal, compartilhada pela nossa experiência do mundo é responsável pela mediação das nossas ações e das experiências de atores socialmente diferenciados, pois como atores acessamos e nos apropriamos de espaços da cidade, associando as nossas ações aos lugares e aos tempos. Além disso, a sociedade necessita de condições de presença de atores no tempo e no espaço para emergirem como sistemas de interação.

As nossas experiências cotidianas não ocorrem fora do espaço e do tempo, ao contrário eles nos auxiliam na construção das nossas lembranças, recordações e esquecimentos. Os atores incorporam no cotidiano as dimensões espaciais e temporais a partir das suas interações o qual através da comunicação produzem os significados e modos de significação do social. Além disso, os espaços da arquitetura da cidade fazem parte das tramas das práticas sociais.

A narrativa musical da canção “Meu pequeno Cachoeiro” articula a memória, imaginação e as experiências vividas na cidade, mostrando como o narrador incorpora, através das interações com o cotidiano, aspectos espaciais e temporais. Isso possibilita reviver sensações, sentimentos, emoções e construir significações sobre a existência e ao modo habitar o mundo.

As narrativas musicais como forma de comunicação se constituem em um documento que pode auxiliar na elaboração crítica do pensamento daquilo que era ou vem sendo consumido e compartilhado massivamente, tais como ideias, opiniões, sentimentos, comportamentos em uma determinada época ou momento histórico.

Conclui-se que as narrativas musicais sobre a cidade auxiliam na construção dos imaginários urbanos, dos acervos das memórias da cidade e na conformação da identidade dos cidadãos. Na narrativa do “Meu pequeno Cachoeiro”, percebemos que os espaços da cidade constituem um organismo subjetivo ancorado pelas lembranças que emergem a partir das nossas interações com ela. As nossas recordações fazem com que a cidade se movimente em nosso imaginário.

Agradecimentos

A pesquisa obteve o financiamento da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes) e do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq).

Referências

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1 Professor titular da Faculdade de Biblioteconomia e Comunicação. Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Brasil. Docente permanente nos Programas de Pós-graduação em Ciência da Informação e Museologia e Patrimônio da Universidade Federal do Rio Grade do Sul, Brasil. ORCID: https://orcid.org/0000-0002-2304-399X. E-mail: valdir.morigi@gmail.com

2 Dados do Censo Demográfico de 1949, conforme AMARAL, Marcos Henrique da Silva. A simplicidade de um rei: trânsitos de Roberto Carlos em meio à cultura popular de massa. Brasília: UNB, 2012 [Dissertação Programa de Pós-graduação em Sociologia]

relato de pesquisa