ISSN 1517-5901 (online) POLÍTICA & TRABALHO

Revista de Ciências Sociais, nº 59, Julho/Dezembro de 2023, p. 14- 19

APRESENTAÇÃO: COSMOVISÕES E TERRITÓRIOS: Abya Yala como Território Epistêmico

PRESENTATION: WORLDVIEWS AND TERRITORIES: Abya Yala as an Epistemic Territory

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Alicia Ferreira Gonçalves (UFPB)

María Elena Martínez-Torres (CIESAS - SURESTE)

A invasão da América espanhola no ano de 1492 inaugura, segundo Todorov (1993), nossa identidade moderna, podendo ser considerada o marco histórico para a crítica decolonial (Mignolo, 2007; Quijano, 2005; Dussel, 2015). Latouche (1992) afirma que o nascimento da ocidentalização do mundo tem início a partir das cruzadas, no século XII. Gonçalves (2002, p.136) afirma que “as cruzadas e a prática colonial foram de fato um amplo domínio nos âmbitos militar, político, científico, espiritual, cultural e comercial sobre os povos colonizados”. Nesse processo histórico, a colonização dos países do Hemisfério Sul, alinhada à empresa capitalista, sobretudo a partir do século XVI, à institucionalização do sistema de mercado (Polanyi, 1980) e da ciência cartesiana e positivista nos séculos XVIII/XIX instituem, no plano epistêmico, a dualidade homem e natureza (Mantovani, 2009) e natureza e cultura (Lévi-Strauss, 1983). Essa dualidade epistêmica não somente torna a natureza objeto de exploração econômica, como também o homem “primitivo” se torna objeto da exploração colonial e objeto de estudo científico, porque é confundido com a natureza segundo a antropologia evolucionista – essa última, vale ressaltar, à serviço da administração colonial europeia (Gonçalves, 2020). Tal polaridade epistêmica, aliada ao colonialismo, está na raiz das múltiplas formas de opressão sofridas pelos indígenas na América Latina, os escravizados oriundos do continente africano, as mulheres na perspectiva de gênero, ciganos e diversas outras alter idades.

Os eventos citados acima em seu conjunto configuram a matriz das crises da civilização contemporânea em suas múltiplas dimensões, notadamente, a crise socioambiental


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que afeta o planeta e com mais intensidade os territórios mais vulneráveis no Sul e Norte. Moore et al. (2016) participam dos debates em torno da categoria antropoceno (Haraway, 2016), era que se caracteriza pelos impactos socioambientais que a ação humana tem sobre o meio ambiente. Para além da ação humana, Moore et al. (2016) denunciam o modo de produção capitalista em consórcio com os processos coloniais, pós-coloniais e, atualmente, em aliança com os projetos de desenvolvimento dos Estados-nacionais como a matriz da crise socioambiental, propondo assim a denominação de nossa era atual como capitaloceno. Diante desse cenário catastrófico, as filosofias indígenas do bem viver e de Abya Yala ree mergem trazendo esperança e inspirando profundas reflexões. Abya Yala era o termo usado pelos kuna da Colômbia para denominar algumas regiões da América do Sul e significa “terra viva”, “terra em reflorescimento”. A expressão está sendo resgatada pelos movimentos dos povos originários como forma de contraponto e resistência ao pensamento colonial e, simultaneamente, como força política para mobilizar o fortalecimento de uma identidade e de um território (Hall, 1992).

Nessa perspectiva, consideramos que Abya Yala e suas cosmovisões podem ser consideradas como um território epistêmico. Os artigos que compõem este dossiê configuram um aporte às epistemologias de Abya Yala e são de autoria de intelectuais, ativistas e lideranças renomadas situadas no Norte e no Sul que, a partir de seus territórios, vínculos institucionais e comunitários refletem e atuam a partir da temática proposta – que é confluente com os debates que temos projetado no Grupo Interdisciplinar de Pesquisa em Cultura, Sociedade & Ambiente (GIPCSA), vinculado ao Programa de Pós-Graduação em Antropologia, da Universidade Federal da Paraíba (PPGA-UFPB). Ademais, o presente dossiê integra o Projeto Institucional de Internacionalização (Print-Capes) e se insere no âmbito do Convênio de Cooperação Técnico-Científica estabelecido entre a Universidade Federal da Paraíba (UFPB) e o Centro de Investigações e Estudos em Antropologia Social (CIESAS). Assim, os temas abordados nesse dossiê nos remetem a três tópicos interrelacionados:

(1) às diversas categorias de pensamentos e de epistemologias tais como “bem viver”, colonialismo, perspectivas decoloniais, epistemologias originárias, perspectiva etnográfica, etc.; (2) à luta pela defesa dos territórios a partir de suas respectivas cosmovisões e de suas identidades, bem como a partir das mediações de gênero; (3) os desafios contemporâneos do diálogo de saberes entre pesquisadores e lideranças indígenas e também as dificuldades da interculturalidade e dos processos decoloniais em instituições de ensino superior. Essas temáticas são significativas do ponto de vista dos movimentos socioambientais que


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respondem à imperativa necessidade de sobrevivência das comunidades, de seus territórios e cosmovisões para evitar a extinção do planeta. Por outro lado, do ponto de vista acadêmico, contribuem para o avanço da produção de conhecimentos nas instituições de ensino e pesquisa ao incorporar as epistemologias originárias, sobretudo, em sua dimensão política de resistência e fortalecimento das alteridades. Neste aspecto, a entrevista realizada com uma liderança indígena potiguara é expressiva e exemplifica as formas mediante as quais o antropoceno/capitaloceno se materializa historicamente em territórios originários a partir de processos de colonização e instauração do modo de produção capitalista.

Este dossiê se inicia com o instigante artigo de Laura Collin Harguindeguy, intitulado Pensando la vida desde los sujetos colectivos, la complementariedad y la reciprocidad. Reflexiones sobre las epistemologías otras, que nos leva a refletir sobre as categorias do bem viver, a perspectiva decolonial e outras epistemologias a partir da etnografia. Trata-se de categorias do pensamento contrárias ao modelo ocidental capitalista, porque pressupõem outra ontologia e outra epistemologia que formam uma alternativa civilizatória baseada nas relações de reciprocidade e complementaridade entre os sujeitos coletivos e as práticas decoloniais. Neste sentido, a autora convida a considerar as categorias yo e nosotros, mostrando que yo é uma abstração inventada pela epistemologia individualista propícia ao capitalismo e demonstrando etnograficamente que tal categoria está ausente das epistemologias dos mundos andinos e de mesoamericanos, sociedades em que se pensa a partir dos sujeitos coletivos – nosotros – como a família e a comunidade que estão ligadas por relações de reciprocidade e de compromisso mútuo que se estendem aos não humanos e aos entes sobrenaturais.

No artigo Beyond “Our America”: Abiayala, Amefrica Ladina, and Our Afroamerica as Critical Geo-Historical Categories, Agustin Laó-Montes problematiza o termo “nossa América”, formulado por Jose Martí para designar o continente latino-americano. Laó- Montes propõe duas categorias geo-históricas com o objetivo de descolonizar o imaginário espacial e temporal: Abya Yala, categoria originada do sentimento reflexivo de nativos-americanos, e Nossa Afroamérica, originada do sentimento reflexivo de afrodescendentes. Segundo o autor, trata-se de territórios translocais que atravessam e transcendem as fronteiras nacionais de todas as Américas, tornando-se parte inerente desses espaços e refletindo um universo histórico, cultural e político, que marca uma geografia que se estende de Sul a Norte. Assim, Laó-Montes argumenta que Nossa Abiayala e Nossa Afroamérica constituem categorias geo - históricas críticas para descolonizar nossos imaginários coletivos e gerar modos de


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reidentificação do eu, da história e dos horizontes futuros, que são chaves na nova onda de movimentos antissistêmicos.

No artigo intitulado Revisitando a cartografia Corpo-Território a partir da autoetnografia feminista, Delmy Tania Cruz Hernández resgata a cartografia Corpo- Território a partir da teoria feminista do Sul e em sintonia com a sua prática política e pedagógica, fazendo uso metodológico da autoetnografia que considera a experiência da autora como recurso fundamental no processo investigativo. O foco etnográfico se dá sobre coletivos de mulheres maias situados em territórios de Abya Yala (Chiapas, Guatemala, Honduras) em sua luta contra empreendimentos capitalistas neoextrativistas. A autora mostra que um dos aportes do pensamento feminista de Abya Yala tem sido demonstrar de que forma as mulheres indígenas estão vinculadas à terra em função de seus corpos, posicionamentos, práticas de fertilidade e andares diários em busca de água e comida, explicitando que o vínculo corpo - terra e corpo-território está sendo ressignificado por mulheres indígenas pertencentes ao movimento ambientalista e feminista guatemalteco, boliviano, equatoriano e mexicano. Considerando as mediações de gênero em sua interface com as experiências interculturais em instituição de ensino superior na Colômbia, o artigo de Yolanda Parra e Saray Gutiérrez Montero intitulado Espirales, tejidos y saberes de otro modo desde las mujeres kankuamas en Riohacha, Colombia convida os docentes das licenciaturas interculturais a assumir como objetivo a consolidação de uma prática pedagógica que reconheça as interrelações entre corpo e território, bem como território e memória. A partir da experiência docente das autoras e da autoetnografia como recurso metodológico, a proposta inclui o reconhecimento da espiritualidade como manifestação dos saberes ancestrais das mulheres kankuamas que, a partir de seu “ConoCSentir” (Parra, 2013), dão lugar às práticas que na vida cotidiana são situadas no território, configurando, assim, uma “Territorialidade Epistémica” a partir da qual as mulheres têm afrontado os silêncios históricos e os medos originados pela violência perpetuada historicamente em seus territórios ancestrais.

Seguindo com a reflexão das experiências interculturais em instituições de ensino superior, o artigo de Cintia Cinara, Maristela Oliveira de Andrade, Alicia Ferreira Gonçalves e María Elena Martínez-Torres analisa o significado da presença indígena na Universidade Federal da Paraíba (UFPB) com a Política do Bolsa Permanência. O argumento central do artigo parte da suposição de que a instituição universitária pode ser considerada um lócus da difusão dos saberes e práticas hegemônicas colonialistas que necessitam ser desconstruídos e


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descolonizados, configurando saberes hegemônicos que se contrapõem aos saberes mediados pela interculturalidade. As autoras se questionam sobre os significados da presença indígena nas instituições federais de ensino superior e sobre as formas como a universidade acolhe os povos indígenas a fim de proporcionar um compartilhamento real de seus saberes, valores comunitários, cosmologias e visões de mundo.

Esses debates em torno do conhecimento, das fronteiras culturais e das diferentes epistemologias presentes em Abya Yala nos levam a pensar esses exercícios reflexivos como um chamado para toda a comunidade acadêmica. Agradecemos imensamente à Revista de Ciências Sociais Política & Trabalho pelo acolhimento de nosso dossiê, dando-nos a oportunidade de trazer à luz temas tão importantes para reconstruir a memória de nosso passado, conscientizar nosso presente e imaginar um futuro mais plural e igualitário para nossos povos. Igualmente, agradecemos à editora-assistente Ana Carolina Costa Porto, quem nos atendeu sempre com gentileza e competência.

Apreciem a leitura! Referências

DUSSEL, Enrique. Filosofías del Sur. Descolonización y Transmodernidad. Buenos Aires: Akal/Interpares, 2015.

GONÇALVES, Alicia Ferreira. A institucionalização da disciplina: o “primitivo” como objeto de ciência. CAOS - Revista Eletrônica de Ciências Sociais, João Pessoa, v. 2, n. 25, p. 149-169, jul./dez. 2020.

GONÇALVES, Alicia Ferreira. A modernização do mundo na sua versão econômica: a mundialização do capital. Temáticas, Campinas, v. 10, n. 19, p. 133-170, 2002. Disponível em: https://econtents.bc.unicamp.br/inpec/index.php/tematicas/article/view/10964. Acesso em: 9 set. 2023.

HALL, Stuart. A identidade cultural na Pós-modernidade. Oxford: University Press, 1992.

HARAWAY, Donna. Antropoceno, Capitaloceno, Plantationoceno, Chthuluceno: fazendo parentes. ClimaCom Cultura Científica - pesquisa, jornalismo e arte Ι, Campinas, n. 5, n.p., abr. 2016.

LATOUCHE, Serge. L'Occidentalisation du monde. Essai sur la signafication la porde et les limites de l'unifomisation planétaire. Paris: La Découverte, 1992.

LÉVI-STRAUSS. Structuralism and Ecology. Le regard éloigné, Paris, p. 143-166, 1983.

MANTOVANI, Waldir. Relação Homem-Natureza: raízes do conflito. Gaia Scientia, João Pessoa, v. 3, n. 1, p. 3-10, 2009.

MIGNOLO, Walter. La Idea de América Latina: la herida colonial y la opción decolonial. Barcelona: Gedisa, 2007.

MOORE, Jason W. et al. Anthropocene or capitalocene? Nature, history, and the crisis of capitalism. New York: PM Press, 2016.

PARRA, Yolanda. Oltre oceano: altri orizzonti del possibile. Epistemologie di Abya Yala e progettualitá essitenziale. 2013. Tesis (Doctorado en Ciencias de la Educación) – Dipartimento di Scienze dell’educazione,

Universitá degli Studi di Bologna, Bologna, 2013. Disponível em:

https://scholar.google.com.co/citations?view_op=view_citation&hl=es&user=DGeXX2kAAAAJ&citation_for_ view=DGeXX2kAAAAJ:ULOm3_A8WrAC. Acesso em: 24 set. 2023.


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POLANYI, Karl. A grande Transformação: as origens de nossa época. Rio de Janeiro: Campus, 1980.

QUIJANO, Aníbal. Colonialidade do poder. In: LANDER, Edgardo (org.). A colonialidade do saber eurocentrismo e ciências sociais. Perspectivas latinoamericanas. Buenos Aires: CLACSO, 2005. p. 33- 49.

TODOROV, Tzvetan. A conquista da América: A questão do Outro. São Paulo: Martins Fontes, 1993.