Revista de Ciências Sociais - Política & Trabalho
Programa de Pós-Graduação em Sociologia
Centro de Ciências Humanas, Letras e Artes
Universidade Federal da Paraíba
Publicação semestral do PPGS/UFPB
52 - Janeiro/Junho de 2020
ISSN 1517-5901 (online)
CONSELHO EDITORIAL
César Barreira (Brasil), Christian Azais (França), Cynthia Lins Hamlin (Brasil), Edgard Afonso Malagodi (Brasil), Emília Araújo (Portugal), Howard Caygill (Reino Unido), Frédéric Vandenberghe (Brasil), Jacob Carlos Lima (Brasil), Joanildo A. Burity (Brasil), José Arlindo Soares (Brasil), Julie Antoinette Cavignac (Brasil), Lee Jonathan Pegler (Holanda), Marie-France Garcia-Parpet (França), Paulo Henrique Martins (Brasil), Regina Novais (Brasil), Rubens Pinto Lyra (Brasil), Sandra J. Stoll (Brasil), Theophilos Rifiotis (Brasil), Vera da Silva Telles (Brasil), Zhou Zhiwei (China).
EDITORIA
Roberto Véras de Oliveira, UFPB, Brasil
Miqueli Michetti, UFPB, Brasil
COMITÊ EDITORIAL
Roberto Véras de Oliveira, UFPB, Brasil
Miqueli Michetti, UFPB, Brasil
Assessoria Editorial
Ana Carolina Costa Porto (Bolsista PNPD)
REVISORA
Ana Carolina Costa Porto (Bolsista PNPD)
DESIGN GRÁFICO
Fotografia de capa: Acervo Memov
Projeto gráfico de capa: Eduardo Donato e Helton Nóbrega
Diagramação: Brunos Gomes
A apresentação de colaborações e os pedidos de permuta e/ou compra devem ser encaminhados ao PPGS/UFPB:
Universidade Federal da Paraíba – Programa de Pós-Graduação em Sociologia
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João Pessoa – Paraíba – Brasil – Telefax (83) 3216 7204 - E-mail: politicaetrabalho@gmail.com
POLÍTICA & TRABALHO
Revista de Ciências Sociais
Publicação do Programa de Pós-Graduação em Sociologia
da Universidade Federal da Paraíba
(Campus I - João Pessoa)
Ano XXXVII
Número 52
Janeiro/Junho de 2020
ISSN 1517-5901 (online)
Programa de Pós-Graduação em Sociologia - UFPB
indexação
Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)
Biblioteca Central - Campus I - Universidade Federal da Paraíba
CENTRO DE CIÊNCIAS HUMANAS, LETRAS E ARTES
Diretora: Mônica Nóbrega
Vice-Diretor: Rodrigo Freire
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM SOCIOLOGIA
Coordenadora: Simone Magalhães Brito
Vice-Coordenador: Rogério de Souza Medeiros
Revista de Ciências Sociais - Política & Trabalho está licenciada
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Qualquer parte desta publicação pode ser reproduzida, desde que citada a fonte PPGS/UFPB.
R449 Revista Política e Trabalho / Programa de Pós-Graduação em
Sociologia – Vol. 1, Ano 37, n. 52 (jan./jun. 2020). João Pessoa, 2020.
253p.
1517-5901 (online)-1. Ciências Sociais. 2. Política. 3. Trabalho.
UFPB/BC CDU: 32
UNIVERSIDADE FEDERAL DA PARAÍBA
Reitora: Margareth Diniz
Vice-Reitor: Eduardo Rabenhorst
Pró-Reitor de Pós-Graduação e Pesquisa: Isaac Almeida de Medeiros
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SUMÁRIO
Editorial
DOSSIÊ
MOVIMENTOS GREVISTAS DE OPERÁRIOS E TRABALHADORES RURAIS: narrativas cindidas?
MEMÓRIAS CRUZADAS DE MOVIMENTOS ESPECÍFICOS:
a comparação entre práticas sindicais de trabalhadores da cana e metalúrgicos no período de acumulação de forças anterior ao ciclo de greves do final
dos anos 70 e dos anos 80 | José Sergio Leite Lopes, José Carlos Matos Pereira,
Antonio Carriço, Míriam Starosky
SINDICALISMO, AUTORITARISMO E REPRESSÃO ENTRE DOIS POLOS:
as greves metalúrgicas de Osasco em perspectiva histórica (1968-1980) | Mª Gabriela S. M. C. Marinho, Eliane Meza, Karen C. D. Fonseca
DAS GREVES DE 1978 À “BOLSONARIZAÇÃO” DO BRASIL:
afirmação e negação do sujeito democrático | Murilo Leal Pereira Neto
OS TRABALHADORES CANAVIEIROS DE PERNAMBUCO
E O “NOVO SINDICALISMO”: revisitando a questão | Mario Henrique Guedes Ladosky, Roberto Véras de Oliveira
INVISIBILIDADES, INSURGÊNCIAS E EMERGÊNCIAS:
“Mulheres Briguentas” no Movimento Sindical do ABC Paulista | Deise Recoaro,
Marilda Menezes, Sidney Jard da Silva, Jaime Santos Júnior
O CAMINHO DO VIEJO REALES | Silvia Beatriz Adoue
ARTIGOS
RESSONÂNCIAS BIOPOLÍTICAS:
Risco, coronavírus e as polícias no exercício da quarentena | Fábio Gomes de França
CATADORAS DE MATERIAIS RECICLÁVEIS E O CUIDADO EM SAÚDE:
subvertendo estruturas de desigualdade | Joaquim Pedro Ribeiro Vasconcelos, Bruna Carvalho Barros Rosa Nobre, Izabel Cristina Bruno Bacellar Zaneti, Sílvia Maria Ferreira Guimarães
TERCEIRIZAÇÃO E INTERMEDIAÇÃO DE TRABALHO TEMPORÁRIO
NAS PARADAS DE MANUTENÇÃO:
o caso da Companhia Siderúrgica Nacional em Volta Redonda (RJ) | Marcio Moises de Souza Barbosa, Raphael Jonathas da Costa Lima
A COMUNIDADE ARTESÃ DO ALTO DO MOURA NO SÉCULO 21:
tensões emergentes em um espaço social local em transformação | Marcio Sá,
Denise Clementino de Souza, Jessica Rani Ferreira de Sousa, Bárbara Tayná Leal
EMPREENDEDOR E PRECÁRIO:
a carreira “correria” dos trabalhadores da cultura entre sonhos,
precariedades e resistências | Livia De Tommasi, Gabriel Moreno da Silva
ACEPÇÕES DO CONTEMPORÂNEO:
o convite à leveza e ao cansaço | Francisco Jadson Silva Maia, Luzia Cristina Lopes Almeida, Lídia Raquel Herculano Maia, Alexsandro Galeno
ENTREVISTA
A POTÊNCIA DOS FEMINISMOS NA LUTA CONTRA
A RAZÃO NEOLIBERAL NA AMÉRICA LATINA:
uma entrevista com Verónica Gago | Mônica Vilaça, Bárbara Freitas
RESENHA
O NOVO ILUMINISMO E SUAS TENSÕES | Harlon Romariz Rabelo Santos
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CONTENTS
Editorial
DOSSIER
STRIKE MOVIMENTS OF FACTORY AND RURAL WORKERS:
split narratives?
CROSS MEMORIES OF SPECIFIC MOVEMENTS:
the comparison between union practices of sugarcane workers and metallurgists in the period of accumulation of forces prior to the cycle of strikes
in the late 1970s and 1980s | José Sergio Leite Lopes, José Carlos Matos Pereira,
Antonio Carriço, Míriam Starosky
UNIONISM, AUTHORITARIANISM AND REPRESSION BETWEEN TWO POLES:
The metallurgical strikes in Osasco in historical perspective (1968-1980) |
Mª Gabriela S. M. C. Marinho, Eliane Meza, Karen C. D. Fonseca
FROM THE STRIKES OF 1978 TO THE BOLSONARIZATION OF BRAZIL: affirmation and denial of the democratic subject | Murilo Leal Pereira Neto
THE SUGAR CANE WORKERS IN PERNAMBUCO
AND THE “NEW TRADE UNIONISM”:
revisiting this issue | Mario Henrique Guedes Ladosky, Roberto Véras de Oliveira
INVISIBILITIES, INSURGENCIES AND EMERGENCIES:
“Women of Fight” in ABC Paulista Union Moviment | Deise Recoaro,
Marilda Menezes, Sidney Jard, Jaime Santos Júnior
THE ROAD OF OLD REALES | Silvia Beatriz Adoue
ARTICLES
BIOPOLITICAL RESONANCES:
Risk, coronavirus, and the police working to the quarantine |
Fábio Gomes de França
WASTE PICKERS AND THE HEALTH CARE:
subverting inequality structures | Joaquim Pedro Ribeiro Vasconcelos, Bruna Carvalho Barros Rosa Nobre, Izabel Cristina Bruno Bacellar Zaneti, Sílvia Maria Ferreira Guimarães
OUTSOURCING AND INTERMEDIATION OF TEMPORARY WORK
AT MAINTENANCE STOPS:
the case of Companhia Siderúrgica Nacional in Volta Redonda (RJ) | Marcio Moises de Souza Barbosa, Raphael Jonathas da Costa Lima
THE ARTISAN COMMUNITY OF ALTO DO MOURA IN THE 21ST CENTURY: emerging tensions in a local social space in transformation | Marcio Sá,
Denise Clementino de Souza, Jessica Rani Ferreira de Sousa, Bárbara Tayná Leal
ENTREPRENEURIAL AND PRECARIOUS:
the career “correria” of culture workers between dreams, precariousness and resistance | Livia De Tommasi, Gabriel Moreno da Silva
CONTEMPORARY MEANINGS:
the call for lightness and tiredness| Francisco Jadson Silva Maia, Luzia Cristina Lopes Almeida, Lídia Raquel Herculano Maia, Alexsandro Galeno
INTERVIEW
THE POWER OF FEMINISMS IN THE FIGHT AGAINST
NEOLIBERAL REASON IN LATIN AMERICA:
an interview with Verónica Gago | Mônica Vilaça, Bárbara Freitas
REVIEW
ENLIGHTENMENT NOW AND IT IS TENSIONS | Harlon Romariz Rabelo Santos
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O número 52 da Revista Política & Trabalho está dedicado ao tema da memória das lutas sindicais de operários e de trabalhadores rurais, de São Paulo e do Nordeste, em suas manifestações no passado e suas implicações no presente. Cinco dentre os seis artigos que compõem o dossiê Movimentos grevistas de operários e trabalhadores rurais: narrativas cindidas? derivaram do projeto de pesquisa Movimentos cruzados e histórias específicas de operários e trabalhadores rurais: análise comparativa dos ciclos de greve iniciados pelos metalúrgicos de São Paulo e ABC paulista e pelos canavieiros de Pernambuco no final dos anos 70, que envolveu equipes de pesquisadores da UFRJ, UFABC, Unifesp, UFPB, USP e UFCG e foi coordenado por José Sergio Leite Lopes (CBAE/UFRJ). A proposta do dossiê é a de atualizar a reflexão sobre essas duas experiências de greves ocorridas na passagem dos anos 1970 aos 1980, que se tornaram referência para a reorganização do sindicalismo no contexto da redemocratização do país. Os seis artigos do dossiê serão apresentados com mais detalhes por seus organizadores.
Compõem este número, ainda, mais seis artigos das submissões por fluxo contínuo, acrescidos de uma entrevista e uma resenha. O primeiro artigo, de Fábio Gomes de França, intitulado Ressonâncias biopolíticas: Risco, coronavírus e as polícias no exercício da quarentena, versa sobre a relação entre risco e biopolítica estabelecida no atual contexto da pandemia do coronavírus, detendo-se sobre a atuação das forças policiais na quarentena, cujo exercício da função põe em risco suas próprias vidas.
O artigo seguinte, Catadoras de materiais recicláveis e o cuidado em saúde: subvertendo estruturas de desigualdade, de autoria de Joaquim Pedro Ribeiro Vasconcelos, Bruna Carvalho Barros Rosa Nobre, Izabel Cristina Bruno Bacellar Zaneti e Sílvia Maria Ferreira Guimarães, aborda a importância das trabalhadoras catadoras de materiais recicláveis na promoção de ações sustentáveis em termos da proteção do meio ambiente, as quais, em contrapartida, encontram-se submetidas, em suas vidas, a uma total informalidade e vulnerabilidade. O artigo tem como foco as experiências de trabalhadoras informais organizadas em uma associação com sede em Ceilândia (DF), buscando apreender suas condições de vida e o cuidado em saúde vivenciados por elas cotidianamente.
No terceiro artigo, sob o título Terceirização e intermediação de trabalho temporário nas paradas de manutenção: o caso da Companhia Siderúrgica Nacional em Volta Redonda (RJ), Marcio Moises de Souza Barbosa e Raphael Jonathas da Costa Lima analisam, na perspectiva da sociologia econômica, o mercado de trabalho temporário nas atividades de “paradas de manutenção” da Usina Presidente Vargas (UPV), integrada à Companhia Siderúrgica Nacional (CSN), Volta Redonda, Rio de Janeiro. O trabalho se detém sobre as instituições e atores mobilizados na mediação entre ofertantes e demandantes de trabalho temporário, constituindo um mercado de trabalho em caráter específico.
Dando sequência, em A comunidade artesã do Alto do Moura no século 21: tensões emergentes em um espaço social local em transformação, Marcio Sá, Denise Clementino de Souza, Jessica Rani Ferreira de Sousa e Bárbara Tayná Leal buscam, sob inspiração em Bourdieu, tratar das “tensões disposicionais” geradas entre membros-proprietários(as) de negócios na comunidade artesã do Alto do Moura, Pernambuco, em um contexto de transformações vividas neste início do século 21. Três conceitos são privilegiados na análise, território, urbanização e espaço social.
Na continuidade vem o artigo Empreendedor e precário: a carreira “correria” dos trabalhadores da cultura entre sonhos, precariedades e resistências, no qual Livia De Tommasi e Gabriel Moreno da Silva apresentam estudo sobre trabalhadores jovens dedicados à produção cultural nas periferias brasileiras. Centrando na trajetória de vida desses produtores culturais, busca compreender em que medida o trabalho precário nesse tipo de atividade é apreendido por esses trabalhadores, de um lado, como “possibilidade de superação das amarras do trabalho dependente” e, do outro, como “afirmação da vontade de trabalhar mobilizando desejos”, quando misturam “trabalho, militância e lazer”.
O último artigo, Acepções do contemporâneo: o convite à leveza e ao cansaço, de Francisco Jadson Silva Maia, Luzia Cristina Lopes Almeida, Lídia Raquel Herculano Maia e Alexsandro Galeno, sob a referência principalmente de Gilles Lipovetsky, discute os aspectos relacionados à leveza e ao cansaço, suas representações em espaços midiáticos hegemônicos, a exemplo da Veja SP, buscando articular questões relacionadas à produção, à cultura e ao trabalho. Assinala, com base em Lipovetsky, mas também em Byung-Chul Han, “o caráter esquivo e ambíguo das transformações técnicas atuais, apresentadas tanto nos objetos ultraleves quanto nas implicações de desempenho e de cansaço do trabalho na contemporaneidade”.
Este número conta, ainda, com a entrevista A potência dos feminismos na luta contra a razão neoliberal na América Latina: uma entrevista com Verónica Gago, realizada por Mônica Vilaça e Bárbara Freitas. Verónica Gago é professora da Universidade de Buenos Aires (UBA) e da Universidade Nacional de San Martin (UNSAM), intelectual e ativista feminista, com inúmeros estudos centrados nos direitos das mulheres, entre os quais se destacam a luta pelo direito ao aborto e o enfrentamento ao feminicídio.
Ao final, contamos com a resenha intitulada O novo iluminismo e suas tensões, escrita por Harlon Romariz Rabelo Santos a respeito do livro do psicólogo e neurocientista Steven Pinker, O novo iluminismo: em defesa da razão, da ciência e do humanismo, publicado pela editora Companhia das Letras como e-book, em 2018. Em um momento em que emerge uma crítica política global aos fundamentos do pensamento científico, o autor se lança com este livro a uma defesa pública da razão, da ciência e do humanismo, retomando os ideais iluministas para a contemporaneidade.
Boa leitura!
ISSN 1517-5901 (online)
POLÍTICA & TRABALHO
Revista de Ciências Sociais, nº 52, Janeiro/Junho de 2020, p. 9-10
Dossiê
Movimentos cruzados e histórias específicas de operários e trabalhadores rurais:
análise comparativa dos ciclos de greve iniciados pelos metalúrgicos de São Paulo e ABC paulista
e pelos canavieiros de Pernambuco no final
dos anos 70
MOVIMENTOS GREVISTAS DE OPERÁRIOS
E TRABALHADORES RURAIS:
narrativas cindidas?
STRIKE MOVIMENTS OF FACTORY
AND RURAL WORKERS:
split narratives?
__________________________________
José Sérgio Leite Lopes* (UFRJ)
Marilda Aparecida de Menezes** (UFABC)
Jaime Santos Junior*** (UFPR)
A pesquisa social e o registro das memórias
O legado de um conjunto de lutas e práticas de movimentos sindicais que ocorreram entre as décadas 1970 e 1980 estende-se até os dias atuais, com repercussões nos sindicatos e na literatura acadêmica mais especializada1. Nos últimos anos, têm-se observado uma crescente atenção à produção de iniciativas de registro de ações políticas do período da ditadura e da transição democrática, no Brasil, que coincidem, no tempo, com a efervescência dos movimentos de trabalhadores a que aludimos no título deste dossiê. Nele, o nosso objetivo é revisitar a história de movimentos de operários e de trabalhadores rurais através do registro da memória oral e documental a partir de uma perspectiva interdisciplinar. Essa abordagem inspira-se no suposto de que a memória propõe uma interpretação viva de experiências vividas em outro tempo, não como meros resquícios, mas como ação que ocorre sob a influência do tempo presente (ROSENTHAL, 2014; POLLACK, 1989). O recorte proposto privilegiará dois importantes movimentos de trabalhadores, a saber, o dos metalúrgicos do ABC Paulista e de São Paulo e, na outra ponta, o dos canavieiros em Pernambuco, que protagonizaram ciclos de greves na virada dos anos de 1970 e início de 1980 e cujos efeitos se estenderam para o movimento mais geral de democratização e de conquista de liberdades e direitos pelos trabalhadores. Sabemos que esses movimentos grevistas nunca foram vistos em perspectiva comparada, capaz de reunir narrativas sobre esses e fornecer pistas analíticas instigantes para outros investimentos. Não se quer com isso apenas inserir elementos novos nas histórias já produzidas em outros estudos, mas, sobretudo, colocar novas questões sob o prisma do registro da memória de indivíduos que estiveram envolvidos com aqueles acontecimentos. Onde está essa memória? De que forma ela é narrada e transmitida? Sondar os fragmentos que nos permitam reconstruir esse mosaico é também descortinar os silêncios, as omissões, as disputas entre diferentes narrativas. Por isso importa o “que” será dito e “quem” vai contar. Memória que é, nesta acepção, matéria viva que se insinua nas narrativas de vida. Eis o nosso desafio.
A maior parte dos artigos que compõe o dossiê – excetuando-se o da Silvia Adoue, O caminho do Viejo Reales – é resultado do projeto de pesquisa Movimentos cruzados e histórias específicas de operários e trabalhadores rurais. Análise comparativa dos ciclos de greves iniciados pelos metalúrgicos de São Paulo e do ABC Paulista e pelos canavieiros de Pernambuco no final dos anos 70, financiado pelo edital n° 12/2015, Memórias Brasileiras: Conflitos Sociais, coordenado pelo professor doutor José Sergio Leite Lopes (CBAE/UFRJ). A equipe contou com pesquisadores da UFRJ, UFABC, Unifesp, UFPB, USP e UFCG, que são especialistas em trabalho urbano e/ou rural. Na divisão operacional da pesquisa, as equipes da UFABC e USP ficaram com o caso do Sindicato dos Metalúrgicos do ABC, as equipes da UFRJ, UFPB e UFCG ficaram com o caso dos canavieiros de Pernambuco e, por fim, os Sindicatos dos Metalúrgicos de São Paulo, Osasco e Guarulhos estiveram a cargo da equipe da Unifesp. Diferente do que usualmente se tem em projetos desta magnitude, em que as equipes coletam grandes volumes de informação para, na sequência, dar tratamento analítico, também ousamos um experimento metodológico diverso. Sucede que assumimos o suposto de que não poderíamos nos privar dos diferentes suportes dessas memórias, seja através do que pudesse ser captado pelo registro etnográfico nos sindicatos como lugares de memória (NORA, 1984), seja por meio da participação ativa dos nossos personagens.
A bem da verdade, há uma consequência epistemológica contida nesse tipo de arranjo uma vez que altera o estatuto conferido ao saber leigo quando recusa o entendimento que assume o conhecimento científico como sendo superior às explicações dadas pelos atores. Ao contrário, resolvemos tirar partido das explicações dadas pelos sujeitos tomando-os como intérpretes da realidade2. Isso implica em evidenciar e compreender a maneira como o contexto impregna os discursos, ao invés de meramente tentar evitar/controlar essa contaminação.
Imbuídos dessa ideia, promovemos reuniões de pesquisa nos dois polos do projeto. Em Carpina, Pernambuco, na sede social da Federação dos Trabalhadores Rurais, Agricultores e Agricultoras Familiares do Estado de Pernambuco (Fetape), com a presença de antigos militantes de diferentes sindicatos de trabalhadores rurais e de alguns sindicalistas de São Paulo, levados especialmente para esse primeiro encontro. No momento seguinte, o segundo encontro teve lugar em São Paulo, com a presença de sindicalistas do ABC, Guarulhos, Osasco e São Paulo, além de alguns sindicalistas de Pernambuco. Ao promover esse diálogo entre os sujeitos da pesquisa, almejávamos também “produzir” em conjunto uma reflexão sobre as greves, as memórias e os desafios colocados para os trabalhadores hoje em dia. Tudo gravado em áudio e vídeo como recurso para também “produzir” memória.
O esforço para unir narrativas de ciclos grevistas, preservando as suas singularidades, é outro modo de arguir em favor da fertilidade analítica de combinações entre universos que, não raro, são tomados como apartados pela literatura especializada: o rural e o urbano. Não é temeroso dizer que esses cercamentos muitas vezes ocorrem à revelia de fenômenos que resistem ao enquadramento especializado do saber científico. Para o tema aqui em tela, trabalho e sindicalismo, no debate público, só há necessidade de especificar o que se estuda quando é o caso do trabalho rural, sindicalismo rural; não ocorre o mesmo para os que estudam trabalho/sindicalismo “urbano”. Isso faz com que, por exemplo, o trabalho “rural” não pareça devidamente albergado no guarda-chuva da sociologia do trabalho. Talvez, como estamos propondo, pensar esses dois grandes ciclos de greves enquanto movimentos sociais seja uma alternativa para unir narrativas sobre manifestações de trabalhadores que, mantendo as singularidades dos contextos em que estavam assentados, falam sobre a constituição do trabalho (verbo intransitivo) e do sindicalismo no Brasil.
No entanto recusar uma concepção estamental do “mundo rural”, que oscila entre premissas que ora vê as populações rurais como retardatárias do desenvolvimento econômico, ora como guardiãs de um modo de vida em vias de desaparecimento, não tem como corolário obnubilar possíveis distinções que marcam a dicotomia rural/urbano, mas deixar de assumi-la como questão sociológica3. Nessa acepção, importará compreender as práticas dos agentes e os sentidos a elas imputado para, só então, arguir em favor de “urbanidades” e/ou “ruralidades” que escapam da etiqueta (rural x urbano). Isso atinge diferentes aspectos da nossa pesquisa. A título de exemplo, a despeito do fato de que o trabalho no corte de cana seja uma atividade aparentemente “rural”, a sua tipificação jurídica é de trabalho industrial. Como mostrou Welch (2010), o Estatuto da Lavoura Canavieira, promulgado em 1941, teve o acréscimo de uma emenda em 1944 que representou a unificação do enquadramento jurídico dos trabalhadores, que estavam tanto na parte rural quanto na usina, sob um mesmo proprietário e cuja produção fosse direcionada à produção de açúcar. Nessa condição, e para o caso dos cortadores de cana, esses deveriam ser equiparados aos trabalhadores da indústria. Ainda segundo Welch (2010), isso ocorreu para garantir os benefícios da CLT, que, até então, excluía os trabalhadores rurais.
No livro que publicamos reunindo os principais achados do projeto4, Moacir Palmeira também chama a atenção para o mesmo fato ao dizer:
Com a Consolidação das Leis do Trabalho (CLT), promulgada em 1943, criaram-se os sindicatos de trabalhadores industriais em sua forma atual, e entre eles os sindicatos dos trabalhadores na indústria do açúcar. Esses sindicatos reuniam aqueles trabalhadores que, nos engenhos e usinas de açúcar, atuavam no processo de fabricação de açúcar e nas oficinas de manutenção. Apesar de formalmente representarem também os trabalhadores agrícolas das usinas, a eficácia desses sindicatos, se houve alguma para os operários de açúcar, parece ter sido nula para eles. Se alguns velhos moradores de engenho exibem suas carteiras de trabalho obtidas na época, seja por uma passagem rápida na indústria, seja por qualquer outro expediente, e falam do tempo de Getúlio Vargas como o de início do “fim do cativeiro”, não há notícia nem de documentação escrita, nem na própria história oral, de movimentos maiores que tenham contado com sua participação (PALMEIRA, 2019, p. 453-454).
No tocante às greves de fins da década de 1970 e início de 1980, observa-se como, para o caso dos metalúrgicos do ABC, o movimento atuava à revelia da Lei 4.330/64, a Lei de Greve, mantendo também alguma ressalva quanto à aproximação com as federações e confederações de trabalhadores. O oposto teria acontecido para o caso do sindicalismo rural, mas não é de somenos a importância das lutas que ocorreram em Pernambuco, e não somente lá, na superação das iniquidades que atingiam os trabalhadores rurais. De maneira insofismável, Leite Lopes (2019) lembra que,
Se a lei era limitada como possibilidade de conquista de direitos pelos trabalhadores e ambígua como garantia da liberdade de ação sindical, fora da lei o que sobrava era uma relação de força absurdamente desigual e desproporcional em favor dos senhores de engenho, um padrão de sociabilidade marcado por uma violência brutal. A atuação por dentro da lei, forçando as conquistas em meio às contradições entre a norma legal e a prática patronal, pavimentou e deu sentido à luta dos trabalhadores na Zona da Mata, antes, durante e ao final do Regime Militar (LEITE LOPES, 2019, p. 127).
É à luz de peculiaridades tais como essa que podemos calibrar o compasso de narrativas distintas, no que se refere aos movimentos grevistas de operários e canavieiros, para propor um enredo de lutas na história do sindicalismo brasileiro. Não se quer esmaecer o papel atribuído ao tipo de sindicalismo que surgiu no ABC Paulista, com os metalúrgicos, mas reivindicar a inserção, na mesma narrativa histórica, da luta dos trabalhadores rurais canavieiros. Para dar provas da desigual relação de forças no campo e na cidade, é suficiente citar o que captamos no registro etnográfico. Na visita a Fetape, em Carpina, os trabalhadores convidados fizeram questão de fixar nas paredes diversos posters com imagens dos colegas que tombaram na luta. Ali, poderíamos começar a pesquisa pelo cemitério, em memória dos sindicalistas que foram perseguidos e assassinados brutalmente a mando do patronato das usinas. Bem diverso era o cenário no Sindicato dos Metalúrgicos do ABC, que não contabiliza em número de mortes o saldo dos que participaram das lutas; a denotar formas diversas de opressão das lutas dos trabalhadores naquela conjuntura.
No artigo Memórias cruzadas de movimentos específicos: a comparação entre práticas sindicais de trabalhadores da cana e metalúrgicos no período de acumulação de forças anterior ao ciclo de greves do final dos anos 70 e dos anos 80, José Sérgio Leite Lopes, José Carlos Matos, Antônio Carriço e Míriam Starosky desenvolvem uma análise do processo de acumulação de forças, no período da ditadura militar no Brasil, que contribuíram para a emergência do ciclo de greves dos canavieiros do sistema Fetape-Contag, metalúrgicos de São Paulo e metalúrgicos de São Bernardo do Campo, e que eclodiram no final da década de 1970 e início de 1980. Ao colocar em diálogo as trajetórias e experiências dos trabalhadores rurais e industriais, os autores buscam compreender como era a situação dos sindicatos no contexto do golpe militar, como eles se reconstituem após as primeiras intervenções e perseguições aos seus militantes e quais as lutas dos anos anteriores têm importância na emergência das greves que se iniciaram em 1978.
Em Sindicalismo, autoritarismo e repressão entre dois polos: as greves metalúrgicas de Osasco em perspectiva histórica (1968-1980), Maria Gariela Marinho, Eliane Meza e Karen Fonseca analisam a participação do Exército e de empresários, sobretudo na conjuntura de 1968, um dos momentos mais agudos do fechamento político durante o regime militar. Tornar esses personagens como sujeitos de análise fundamenta-se no argumento da mudança de escala e natureza da repressão e seu deslocamento de forças policiais para as “atribuições” das Forças Armadas, em particular do Exército. Inspiradas pelo método indiciário de Carlo Ginzburg, as autoras afirmam que as fontes analisadas, mesmo que fragmentadas, permitem estabelecer conexões e elos causais entre forças econômicas, elites políticas, aparatos e ações repressivas que atuaram sobre sindicatos e operariado. Sindicatos e sindicalistas passaram a compor o espectro do “inimigo interno” definido na Doutrina de Segurança Nacional. Ao recolher vestígios da conjugação de interesses empresariais com os dispositivos militares na repressão aos movimentos sociais, em especial a organização sindical, o artigo defende a perspectiva de análise de que há associação entre a criação da Operação Bandeirantes (Oban) e os eventos de Osasco, sobretudo a greve protagonizada pelos metalúrgicos da cidade em julho de 1969, no contexto do endurecimento do regime.
Murilo Leal, no artigo Das greves de 1978 à “bolsonarização” do Brasil: afirmação e negação do sujeito democrático, persegue o desafio de refletir a questão da democracia a partir de três eventos históricos: o ciclo de greves dos finais da década de 1970 e início de 1980, a formação do Partido dos Trabalhadores e as eleições de 2016. Da coalizão ampla participaram outros setores sociais, desde empresários até uma ampla franja da classe média. Adota como eixo analítico o conceito de “sujeito democrático”, compreendido como uma articulação ampla entre a classe trabalhadora, organizada e mobilizada nas greves e outras campanhas, e os chamados setores populares. A derrota eleitoral do candidato Fernando Haddad para a Prefeitura de São Paulo em 2016, o processo do impeachment de Dilma e a eleição de Bolsonaro em 2018 são eventos que, segundo o autor, têm relação com o enfraquecimento do sujeito democrático e a emergência do processo de “bolsonarização” da sociedade, que significa o avanço político da extrema direita que, de certo modo, aproveita a onda conservadora de alcance internacional.
No artigo Os trabalhadores canavieiros de Pernambuco e o “novo sindicalismo”: revisitando a questão, Mário Ladosky e Roberto Véras elaboram um diálogo entre a memória das greves dos canavieiros de Pernambuco e as práticas sindicais que a elas estiveram associadas com o discurso sobre o “novo sindicalismo”. Esse foi forjado nas greves operárias e na organização sindical do ABC Paulista tornando-se a matriz para a criação do Partido dos Trabalhadores (PT) e da Central Única dos Trabalhadores (CUT). O artigo mostra que, embora as práticas sindicais dos canavieiros de Pernambuco, do fim da década de 1970 e início de 1980, não sejam identificadas como “novo sindicalismo”, apresentam muitos pontos de convergência, como a luta por renovação das direções sindicais, fortalecimento da representação sindical nos locais de trabalho e da participação e representação dos trabalhadores para o enfrentamento aos patrões e ao Estado. É um tipo de sindicalismo que se constrói enquanto instrumento de luta, mobilização e organização dos trabalhadores na busca de direitos de cidadania e dignidade contra os interesses patronais. Os autores defendem que os trabalhadores canavieiros teriam praticado, a seu modo, um sindicalismo tão combativo quanto aquele ao qual esteve associada a marca do “novo sindicalismo”, sem que para isso tenha feito parte desse agrupamento.
Em Invisibilidades, insurgências e emergências: “Mulheres Briguentas” no Movimento Sindical do ABC Paulista, Deise Recoaro, Marilda Menezes, Sidney Jard e Jaime Santos Jr. analisam as memórias registradas em entrevistas biográficas com três ex-lideranças do Sindicato dos Metalúrgicos do ABC (SMABC). Os(as) autores(as) compreendem que as memórias se revelam como “narrativas de si”, reconhecendo a competência de agência dos sujeitos ao reconstituir, editando, suas histórias. O caráter sexuado das memórias parece revelar não apenas nuances nas formas de narrar as histórias de vida e trabalho de mulheres e homens operários, mas produz, nelas, efeitos até o presente. A análise das trajetórias sugere que as mulheres assumiam, em diferentes contextos, posturas contestatórias diante do que consideravam injustiça, traduzidas na expressão “briguentas”. A compreensão das clivagens e resistências presentes nessas trajetórias é interpretada na chave que contempla a simbiose entre vida familiar e vida pública. As mulheres questionaram o ethos sindical masculinizado e tiveram as vidas marcadas pelas repercussões, no ambiente familiar, do preconceito vivido no trabalho e na militância. O recurso, nas narrativas, a atributos de caráter, quase que como aspectos de ordem psíquica, tal como “briguentas”, “rebeldes”, “loucas” era reivindicado como mecanismo explicativo para as estratégias de luta nos cotidianos de trabalho.
Por fim, valendo-se de outra fonte de análise, Silvia Adoue, em O Caminho do Viejo Reales analisa o filme “El camino hacia la muerte del Viejo Reales” (1974), do cineasta tucumano Gerardo Vallejo, membro do grupo Cine Liberación. Trata da situação dos trabalhadores rurais da cana-de-açúcar, da agroindústria e funcionários de escritório, além dos agricultores familiares no contexto da crise dos engenhos na década de 1960. O filme utiliza procedimentos da literatura de testemunho latino-americano e registra a história da família Reales, que são trabalhadores assalariados do corte da cana na província de Tucumán. As narrativas biográficas do pai – o velho Reales – e de três dos doze filhos são um registro das singularidades de suas trajetórias e experiências, bem como reflexões sobre a classe dos trabalhadores, dos patrões, suas lutas, organização sindical e política. O cineasta, Vallejo, atua como um mediador letrado que, em acordo com as testemunhas, transcreve e edita as falas autobiográficas, com a ressalva do relato de um dos filhos – El Pibe – que não é assumido explicitamente como autobiográfico, mas que apresenta aspectos de realidade e ficção. As intersecções entre verdade e ficção constituem a organização do texto e imagem que pretende ser um documento a serviço da organização dos trabalhadores. Nesse sentido, segundo a autora, há o encontro entre as lutas e o cinema como instância de reflexão e intervenção dos militantes sindicais e políticos dos canaviais, mas também dos trabalhadores pensando a própria ação naquele período histórico.
Que o leitor possa encontrar nos textos aqui reunidos o estopim para um debate em torno das questões que suscitamos e que, sabemos, não esgotam as possibilidades de leitura do grande Ciclo de Greves que motivou o nosso enredo. Boa leitura!
Referências
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LEITE LOPES, Jose Sergio; HEREDIA, Beatriz A. (org.). Movimentos cruzados, histórias específicas: estudo comparativo das práticas sindicais e de greves entre metalúrgicos e canavieiros. Rio de Janeiro: Editora UFRJ, 2019.
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WELCH, Clifford. A. A Semente foi Plantada: as raízes paulistas do movimento sindical camponês no Brasil, 1924-1964. São Paulo: Expressão Popular, 2010.
1* Professor titular do Departamento de Antropologia do Museu Nacional da Universidade Federal do Rio de Janeiro. E-mail: jsergiollopes@gmail.com
** Professora do Programa de Pós-Graduação em Ciências Humanas e Sociais da Universidade Federal do UFABC (PCHS/UFABC) e professora colaboradora do Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais da Universidade Estadual de Campinas (PPGCS/Unicamp). E-mail: menezesmarilda@gmail.com
*** Professor do Departamento e do Programa de Pós-Graduação em Sociologia da Universidade Federal do Paraná (PGSocio/UFPR). E-mail: jaimesjr@ufpr.br
Ver, por exemplo, a coletânea organizada por Rodrigues (2019) e o dossiê organizado por Marco Aurélio Santana (2015) e publicado na revista Caderno CRH.
2 Ver Poupart (1993).
3 Ecoando a crítica feita por Martins (1981), também presente em Carneiro (1998), para citar alguns exemplos.
4 Ver: Leite Lopes & Heredia (2019).
ISSN 1517-5901 (online)
POLÍTICA & TRABALHO
Revista de Ciências Sociais, nº 52, Janeiro/Junho de 2020, p. 12-19
MEMÓRIAS CRUZADAS DE MOVIMENTOS ESPECÍFICOS:
a comparação entre práticas sindicais de trabalhadores da cana
e metalúrgicos no período de acumulação de forças anterior
ao ciclo de greves do final dos anos 70 e dos anos 80
CROSS MEMORIES OF SPECIFIC MOVEMENTS:
the comparison between union practices of sugarcane workers
and metallurgists in the period of accumulation of forces prior
to the cycle of strikes in the late 1970s and 1980s
__________________________________
José Sergio Leite Lopes*1
José Carlos Matos Pereira**
Antonio Carriço***
Míriam Starosky****
Resumo
O artigo propõe uma comparação entre práticas de lutas por direitos exercidas por trabalhadores urbanos e trabalhadores rurais através do estudo dos ciclos de greves que ocorreram entre metalúrgicos da área metropolitana de São Paulo e canavieiros de Pernambuco, nos dois últimos anos da década de 70 e nos anos 80 do século passado. O texto centra mais especificamente sua análise no processo de acumulação de forças durante a ditadura, no período anterior aos ciclos de greves.
Palavras-chave: Práticas sindicais. Metalúrgicos. Canavieiros. Ciclos de greves.
Abstract
The article proposes a comparative study between the practices of struggle for rights exercised by urban workers and rural workers through the study of the cycles of strikes that have occured between metallurgists in the metropolitan area of São Paulo and sugarcane workers in Pernambuco that have occurred since the last two years of the 70s and the 80s of the last century. The text focuses more specifically its analysis on the process of accumulation of forces during the dictatorship, in the period previous to the cycles of strikes.
Keywords: Trade-union practices. Metal workers. Sugar cane workers. Cycles of strikes.
Introdução
As greves dos metalúrgicos de São Paulo, do ABC, e dos canavieiros de Pernambuco são algumas dentre as paralisações que se incluem no grande ciclo de greves que se espalharam pelo país no terço final do período da ditadura militar, entre 1978 e 1985, e tiveram continuidades posteriores.
1* Antropólogo, professor do Museu Nacional/UFRJ e coordenador do Programa de Memória dos Movimentos Sociais (Memov) do Colégio Brasileiro de Altos Estudos (CBAE/FCC/UFRJ). E-mail: jsergiollopes@gmail.com
** Sociólogo, bolsista de pós-doutorado do CBAE/UFRJ e pesquisador do Memov. E-mail: jcpmatos@gmail.com
*** Antropólogo, bolsista de pós-doutorado CAPES/CNPq (PPGAS/MN/UFRJ) e pesquisador do Memov. E-mail: ancarrico@yahoo.com.br
**** Socióloga, servidora da UFRJ, pesquisadora do Memov e atualmente assessora do gabinete do Fórum de Ciência e Cultura (FCC/UFRJ). E-mail: miriamstarosky@forum.ufrj.br
ISSN 1517-5901 (online)
POLÍTICA & TRABALHO
Revista de Ciências Sociais, nº 52, Janeiro/Junho de 2020, p. 20-39
Este dossiê, ao apresentar alguns dos primeiros resultados de um projeto coletivo1, abre uma linha de pesquisa que propõe a comparação entre práticas de lutas por direitos exercidas por trabalhadores urbanos e trabalhadores rurais. Dentre vários episódios exemplares de lutas do povo brasileiro selecionados para terem um lugar importante na memória transmitida entre gerações, figuram certamente os das greves dos metalúrgicos de São Paulo (e Osasco e Guarulhos) e do ABC Paulista, dentre os operários urbanos, por um lado; e, por outro, as greves dos canavieiros de Pernambuco (e Paraíba e Rio Grande do Norte) no final dos anos 70 para a década de 80. A escolha das categorias de grevistas visa a privilegiar a comparação entre o sindicalismo de trabalhadores numa situação urbano-industrial e numa situação agroindustrial para se ter uma ideia mais ampliada das lutas de dois setores importantes das classes trabalhadoras brasileiras, desde que o direito à sindicalização foi estendido ao campo em 1963, trinta e dois anos após sua vigência na cidade, quando da decretação da lei de sindicalização de 1931.
O tema dos fenômenos e processos grevistas está presente em textos clássicos das ciências sociais e da história. Duas obras que têm as greves como preocupação central para o estudo desta modalidade de conflito são as do antropólogo/sociólogo Lloyd Warner (1965) e o da historiadora social Michelle Perrot (1971). Nos utilizamos, ainda, das anotações sugestivas de Pierre Bourdieu (2019) sobre o assunto. Também as obras de Charles Tilly e Sidney Tarrow (2009) nos fornecem instrumentos importantes para a análise de processos de transformação social, tais como revoluções, guerras, greves. Quanto aos procedimentos de análise comparativa, elas têm por pressupostos as indicações e os debates contidos na literatura de ciências sociais, tais como as de Radcliff-Brown (1951), Levi-Strauss (1966) e Raymond Firth (1964).
O espaço a ser ocupado por uma análise comparativa sistemática dos movimentos de operários industriais e de trabalhadores rurais tem permanecido ainda praticamente vazio nas ciências sociais brasileiras, mas em processo de ocupação. A especialização profissional dos estudiosos do trabalho industrial, por um lado, e dos estudiosos do campesinato e dos trabalhadores rurais, por outro, tem sido um obstáculo de difícil superação, que abarca antropólogos, sociólogos e historiadores.
Neste artigo, vamos centrar a análise na acumulação de forças nos sindicatos aqui examinados nos 14 a 15 anos após o golpe de 1964 e a repressão desencadeada logo depois2. Como está a situação desses sindicatos e dessas categorias quando é dado o golpe militar? Como tais sindicatos se reconstituem após as primeiras intervenções e perseguições aos seus militantes? Como as lutas mais defensivas dos anos anteriores às greves, que se iniciam em 1978, têm importância no desencadeamento de ações mais coletivas subsequentes?3
Essas perguntas trazem respostas diferenciadas nos três casos principais analisados (metalúrgicos de São Paulo; metalúrgicos de São Bernardo do Campo; canavieiros do sistema Fetape-Contag4). Enquanto no primeiro caso, o grupo ligado à intervenção sindical pós-64 se consolida vencendo as eleições subsequentes e tem uma oposição sindical que vai se constituindo e se perenizando paralelamente à direção do sindicato. Nos dois outros casos, o período da intervenção permite que um trabalho mais combativo ressurja no interior das diretorias. No caso de São Bernardo, isso se constitui lentamente ao longo dos anos 60 e 70; no caso da Fetape, o período de intervenção é menos eficaz quanto ao impedimento da continuidade de uma diretoria sindical mais combativa na defesa dos direitos anteriormente conquistados. Essa história diversificada de como os sindicatos se reconstroem após o período de intervenção no pós-645 tem toda importância para explicar os conflitos coletivos e massivos que vêm à tona quando as greves de 1978 e de 1979 eclodem.
Neste período, entre 1964 e 1977, se forma o processo complexo, não intencional, de múltiplas determinações que irão criar as condições para o surgimento dos movimentos coletivos e de greves de massa que se desencadeiam a partir de 1978. Em grande parte, tais processos são opacos à observação dos pesquisadores ou ao conhecimento de um público maior. Exemplo dessa luta de classes cotidiana e invisibilizada quanto à região canavieira pernambucana é tratada de forma exemplar em Palmeira (2013); uma análise semelhante, quanto às condições de trabalho no início dos anos 70 nas fábricas metalúrgicas do ABC e de São Paulo, está contida em Abramo (1999), nos capítulos 1 e 26.
Vicissitudes enfrentadas pelos sindicatos no início da ditadura
Para se ter uma ideia numérica da repressão ao sindicalismo em escala nacional e nas áreas onde nossos casos estão situados, há estimativas de que logo após o golpe militar tiveram seus direitos políticos suspensos 44 dirigentes sindicais e 761 entidades sofreram intervenções do Ministério do Trabalho (15 % do total dos sindicatos existentes naquele momento). O maior número de intervenções ocorreu no Nordeste (322 sindicatos, 42,32% do total) seguido pelo Sudeste (301 sindicatos, 39,55% do total), sendo que os estados que apresentaram os maiores números foram Pernambuco (23,25% do total) e São Paulo (22,99%), o que daria 176 e 174 sindicatos respectivamente (SOUZA MARTINS, 1979)7.
O movimento dos canavieiros se beneficiou do fato de que o auge do movimento dos trabalhadores rurais coincidiu com a institucionalização do Estatuto do Trabalhador Rural (ETR) em março de 19638. Essa é uma diferença do que aconteceu com a promulgação da CLT, em 1943, num regime autoritário – código de leis promulgado em um período distante das mobilizações operárias do final dos anos 1910 ou mesmo das mobilizações ocorridas até 1935 –, fazendo com que a ideia da conquista de direitos pudesse ser ofuscada por uma pretensa dádiva do Estado. Este impulso dado pelas lutas camponesas no período anterior a 64, com as Ligas Camponesas sendo acompanhadas e sucedidas pelos sindicatos legalizados através do ETR, fez com que muito desse estímulo ainda continuasse após a repressão desencadeada pelo Golpe de 64.
A concorrência política na fundação de sindicatos e na luta pela extensão de direitos por parte de forças diversas como o Partido Comunista Brasileiro (PCB), as Ligas Camponesas e a Igreja Católica resultou que o setor menos reprimido dos católicos no pós-64 pudesse reconstituir o movimento sindical9. Com forte presença na Mata Norte do estado, os municípios de Nazaré da Mata, Vicência e Timbaúba tinham presidentes de sindicatos de trabalhadores rurais (STRs) que viriam a se destacar nas direções da Federação e da Confederação nacional entre 1963 e 1968 e nos anos seguintes O setor católico dos sindicalistas estava presente na direção da Fetape de 1963: o presidente Manoel Gonçalo do município de Panelas (pertencente então à organização Ação Popular, AP), provinha dessa formação de igreja, assim como o tesoureiro Severino Manoel Soares de Timbaúba. Eles ladeavam a diretoria com o secretário José Eduardo de Lima Filho, presidente do poderoso sindicato de Palmares, ligado ao PCB, assistido por Gregório Bezerra. Com a prisão e tortura do presidente da Fetape Manoel Gonçalo e a fuga do secretário José Eduardo, foi feito um acordo do campo católico com as novas autoridades para que houvesse a renúncia do anterior presidente a ser substituído pelo tesoureiro Severino Soares de Timbaúba.
Assim também, o sindicalista católico Euclides Nascimento, presidente do sindicato de Nazaré da Mata, que era membro do conselho fiscal da primeira diretoria da Fetape de 1963, foi escolhido para a vice-presidência da Contag de 1965, cujo presidente eleito, naquele ano, José Rotta, dos Círculos Operários de São Paulo, era muito identificado com a intervenção do Ministério do Trabalho logo após 196410.
Vê-se já delineado o futuro conflito entre setores católicos com diferentes historicidades e modos de atuação. Enquanto os Círculos Operários são formados pela Igreja Católica dos anos 30, contra a influência da esquerda no movimento operário, alguns setores da Ação Católica e de iniciativas pastorais dos anos 50 para 60 estão mais próximos das partes renovadoras da Igreja que irão constituir a base do Concílio Vaticano 2.
Originários dos Círculos Operários serão também outros interventores dos sindicatos dos metalúrgicos em São Paulo, como Joaquim dos Santos Andrade em Guarulhos e Orlando Malvezzi em São Paulo, que, depois da eleição do primeiro em 1965, em chapa única ao sindicato dos metalúrgicos de São Paulo, irão se agrupar nas diretorias eleitas desse sindicato desde a segunda metade dos anos 60 até os anos 80. Estes mesmos ex-interventores do imediato pós-64 haviam disputado e perdido as eleições no sindicato dos metalúrgicos em 1961 e 1963 representando um sindicalismo “livre” apoiado por entidades católicas e por federações sindicais norte-americanas, ligadas à política externa de seu país, e que se utilizaram de instrumentos de formação de dirigentes sindicais tais como o Iadesil (Instituto Americano de Desenvolvimento do Sindicalismo Livre) e o Instituto Cultural do Trabalho11.
Com seu prestígio no sindicalismo católico, Euclides pôde articular a sua candidatura à presidência da Fetape em 1966, quando são convocadas eleições após o período de intervenção, convidando para secretário José Francisco da Silva, então presidente do sindicato de Vicência, e para tesoureiro o sindicalista Sebastião Santiago, que havia sido eleito para a presidência do Sindicato de Palmares. Tal reconstrução da Fetape se deu com a passagem forçada do bastão dos sindicalistas do PCB e das Ligas, perseguidos pela repressão aos seus suplentes que continuaram a luta nas novas condições políticas.
Também da vice-presidência da Contag, Euclides promoveu a candidatura de José Francisco à presidência dessa confederação em 1968. Menos visado do que Euclides, para pretender ocupar tal cargo resultante de eleição no colégio eleitoral dos presidentes das 11 federações então existentes, José Francisco foi eleito por um voto de diferença. Nessa articulação oposicionista, muito ajudaram setores do sindicalismo urbano do Rio de Janeiro, onde a Contag ainda estava sediada, tais como a confederação e os sindicatos de bancários, além de militantes católicos metalúrgicos.
O golpe de 1964 encontra nos metalúrgicos de São Paulo um dos principais sindicatos a neutralizar e controlar, após seu crescimento durante os anos 50 e 60 tornando-se o maior sindicato em número de associados de São Paulo e do Brasil, e com sua participação nas greves dos 300 mil de 1953, na de 400 mil de 1957 e na de 700 mil em 1963. Nesse período, constituiu-se como um polo combativo de referência no sindicalismo12.
Como já dissemos, um de seus sindicalistas, Joaquim dos Santos Andrade (Joaquinzão) é eleito presidente em 1965, e ganhará as oito eleições sindicais seguintes. As novas circunstâncias propiciadas pelo golpe, com a perseguição aos dirigentes anteriores, abriram caminho para suas vitórias, que antes de 64 não foram possíveis, como foi o caso das eleições perdidas de 1961 e 1963 para diretorias de esquerda. Assim, tendo proclamado seu apoio ao “movimento revolucionário” contra o governo Goulart e participado das marchas da Tradição, Família e Propriedade13, foi designado como interventor do sindicato dos metalúrgicos de Guarulhos logo em 64, tornando-se parte da burocracia ligada ao Ministério do Trabalho, e depois habilitou-se à eleição de 1965 no sindicato de São Paulo.
Após uma ação repressora feita pelos interventores logo após o golpe, através da delação dos delegados sindicais do pré-64 ao patronato e à polícia e do fechamento de subsedes sindicais, Joaquinzão procurou se firmar numa ação assistencialista aos operários ativos e inativos para dar substância a alguma eficácia sindical, através da assistência jurídica, das atividades recreativas e de formação sindical. Joaquinzão foi eleito presidente do Dieese entre 1966 e 1968 e nos anos difíceis de retrocesso sustentou financeiramente essa entidade de assessoria técnica independente da classe trabalhadora, fundada em meados dos anos 50. Teve iniciativas políticas oscilantes entre a obediência à ditadura e formas moderadas de oposição, como seu apoio à Frente Ampla em 1967, ou ao Movimento Intersindical Anti-Arrôcho Salarial (o MIA) entre 67 e 68, mas foi desafiado por uma oposição sindical que foi crescendo desde as eleições de 1967. O Movimento da Oposição Sindical Metalúrgica de São Paulo (MOMSP) disputou as eleições de 1972, 1978, 1981, 1984 e 1987.
Reconstrução das práticas sindicais: estruturas, formação, assessorias e competição interna
O processo histórico no interior dos metalúrgicos de São Paulo entre 1967 e 1987 resultou numa estrutura dual entre o sindicato-diretoria-burocracia, que representava oficialmente o sindicato perante o patronato e a justiça, e o movimento de oposição sindical que desenvolvia um forte trabalho nas fábricas e nos bairros (LEAL, 2019). Esse equilíbrio entre forças ao mesmo tempo situadas no confronto mais ou menos intenso com o patronato, mas em disputa entre si, trouxe resultados intencionais e não intencionais a serem avaliados. Eder Sader (1988) chama atenção para o dilema da oposição sindical (a Oposição Sindical Metalúrgica-OSM-SP) entre a autonomia e a instituição, entre a organização nas fábricas e a intervenção unificadora no sindicato. Embora a marca da OSM fosse a crítica à estrutura sindical e à organização pela base, o sindicato era sua referência, seja naturalizado na vida cotidiana, seja nos momentos de eleições sindicais, seja nos momentos de conflito com o patronato. Isso aparecia na frequentação das assembleias na sede (e subsedes), na organização das campanhas salariais, na formação das comissões de salários (compostas por militantes ou delegados pró-diretoria ou pró-oposição). Sader cita o depoimento de um militante da OSM que menciona o local de encontro permanente da oposição às sextas-feiras no bar do sindicato. Também a frequência aos cursos de formação sindical organizados na sede era outra ocasião de terem contatos com os trabalhadores que se deslocavam para o sindicato por diversas razões à procura dos serviços ali oferecidos. Rosângela Batistoni (2001) também salienta a paradoxal naturalização da vida cotidiana no sindicato, apesar de ali ser também o lugar cinzento do perigo de possíveis delações às direções patronais ou à polícia política. Nas greves de 1978 e 1979, o dilema recrudesce. Como mostra Murilo Leal (2019, p. 112), a greve de 1978 pode ter como uma de suas características “o encaminhamento do processo de forma ao mesmo tempo disputada e compartilhada pela direção do Sindicato e a OSM-SP”. Em 1979, a disputa é maior, mas ainda há necessidade de um convívio na medida em que nem a institucionalidade do sindicato nem a mobilização das bases da OSM eram autossuficientes para conduzirem o processo.
De qualquer forma, a OSM se constituiu uma frente de trabalhadores para onde confluíram antigos sindicalistas que eram hegemônicos no período anterior ao golpe de 64 e foram destituídos: militantes católicos formados na Juventude Operária Católica (JOC) e na Ação Católica Operária (ACO) e que agora se beneficiavam da posição acolhedora às lutas populares por parte do cardeal de São Paulo, Dom Evaristo Arns e seus bispos auxiliares; e militantes egressos de organizações políticas de esquerda, muitas das quais, reprimidas ou dizimadas, faziam com que seus membros ou ex-membros voltassem sua atenção ao trabalho de base no interior das fábricas e nos bairros operários. Essa frente tinha suas tensões internas conforme as conjunturas sindicais, de prisões de muitos de seus membros (como em 1974), e ressurgia na rearticulação de um espaço de tolerância mútua voltado para o trabalho de base nas fábricas com tentativas de conquista do sindicato. Sua estreita relação com os trabalhos de base nos bairros eram parte de sua força. Quando as paralizações nas seções mais qualificadas das fábricas se produzem, a OSM se vê fortalecida em sua utopia da formação generalizada de comissões de fábrica. Quando o movimento contra o custo de vida e outros movimentos associativos nos bairros populares se fortalecem, a OSM também se beneficia. Sua retaguarda territorial nas comunidades de base da Igreja Católica, às quais se liga organicamente a Pastoral Operária, faz com que, diante dessa base comum, em certas ocasiões a OSM tenha que afirmar sua identidade própria em face da Pastoral (SADER, 1988). Seu auge acompanhará o momento das greves de fábricas, em 1978, que se espalham vindo do ABC para São Paulo, como mostra Murilo Leal (2019). Também contribui para esse auge a segunda intervenção no Sindicato dos Metalúrgicos de São Paulo (SMSP) que finaliza a disputa eleitoral ganha pela OSM em 1978 e em que o próprio ministro do trabalho decreta a vitória da chapa de Joaquinzão. Após este desfecho, ao lado do revigoramento da OSM14, se desenvolve, pelo lado do grupo de Joaquinzão, o acolhimento de novas organizações de esquerda procedentes do exílio (ou da clandestinidade) ou ainda dissidências de grupos que antes estavam na OSM. O crescimento e complexificação do mercado sindical (reivindicando-se de esquerda) com o processo de redemocratização vem salvar Joaquinzão da pecha de pelego, estigma que havia sido reforçado ao ser ele reconduzido pelo ministro em 1978, após eleições que teriam sido ganhas pela oposição.
O lado de construção burocrática e institucional dos sindicatos, que aparece fortemente no SMSP (com seu grande orçamento, seus prédios e numerosos funcionários), também aparece nos casos da Fetape e do sindicato dos metalúrgicos de São Bernardo. Na Fetape, que não tinha uma infraestrutura histórica pré-64, como os metalúrgicos de São Paulo (ou em menor grau como os de São Bernardo), a diretoria eleita em 1966 se serviu dos meios disponíveis à época para sua construção material. Com o suporte e mediação do Serviço de Orientação Rural de Pernambuco (Sorpe), fundado em 1961, e gerido pelo Padre Crespo no período de grande investimento da Igreja católica no sindicalismo rural nascente, a gestão de Euclides Nascimento obteve, em 1966, o financiamento do Iadesil para a construção de centros de formação de sindicalistas na Zona da Mata e no Agreste, que se acrescentariam como subsedes do interior à então modesta sede no Recife.
Em 1967, a Fetape firmou um convênio com o então Instituto Brasileiro de Reforma Agrária (Ibra) para dar assistência jurídica na Zona da Mata, com recursos para contratar cinco advogados com vencimentos de 5 salários mínimos para cada – a versão de Romeu da Fonte (2009) é de que eram 10 a 12 vagas. O convênio não resistiu ao fato de que os advogados da Fetape estavam ganhando na justiça as questões provenientes das demissões de 700 trabalhadores rurais efetuadas pelo próprio Ibra na gestão da Usina Caxangá desapropriada, mas a Federação continuou com o advogado Antonio Montenegro, que já era do quadro da Fetape – e reteve Romeu da Fonte que havia sido selecionado por ocasião do convênio – e estimulou os sindicatos a contratarem alguns dos restantes dispensados quando do fim do convênio, que após um ano não fora renovado15. Naquele momento os militares viam com preocupação a situação social na região e sabiam que o padrão das relações estabelecidas por usineiros e senhores de engenho estavam sempre abaixo do estabelecido por lei, mas ao mesmo tempo se compunham com as classes dominantes locais. Como as outras experiências sindicais examinadas neste artigo, os dirigentes tinham que se mover pragmaticamente diante dos recursos disponíveis, que variavam entre convênios com instituições de Estado (geridas pelos militares), com igrejas e com instituições norte-americanas.
A Fetape utilizou-se de todas as possibilidades ao seu alcance entre o final dos anos 60 e o início dos 70, nos mandatos de Euclides, para aumentar as atividades de educação para os trabalhadores rurais. Certamente convencidos da eficácia do trabalho educativo recebido na formação de militantes sindicais pela Igreja, através de organismos como o Sorpe, do qual eles próprios se beneficiaram no início dos anos 60, muitos dirigentes investiam nos trabalhos educativos. Nos centros de formação em Carpina, Ribeirão e Garanhuns, convênios foram feitos para fomentar cursos de alfabetização de adultos, medicina preventiva e corte e costura, utilizados pelos sindicatos. Apesar de serem consideradas atividades básicas, ao mesmo tempo utilitárias e de avanços civilizatórios – no sentido da internalização de códigos de comportamento analisados por Norbert Elias (1994) –, naquele período tais práticas eram objeto da vigilância por parte da ditadura militar. As brechas espertamente aproveitadas ainda causam um prazer retrospectivo nos relatos da memória dos sindicalistas veteranos16.
Nas caixas de documentos guardadas na Academia Sindical, coordenada por Biu da Luz no Centro de Formação de Carpina, pudemos manusear roteiros de programas radiofônicos levados ao ar pela Fetape e pelos sindicatos da Zona da Mata desde 1970. Para superar a impossibilidade de serem feitas reuniões nos engenhos, por suas características de vigilância autoritária, além da dificuldade de sua dispersão geográfica, o uso do rádio era uma forma de convidar os trabalhadores para os sindicatos, dar avisos, ser comentada a legislação do trabalho ou da terra. Os sindicatos se cotizavam para pagarem horário nas emissoras e o acordo para driblar a censura e a autocensura radiofônica era o de falarem sobre o que estava na lei e nos estatutos do sindicato. Através desse meio, a Fetape fazia um trabalho de esclarecimento sobre suas interpretações em relação ao uso do ETR e do Estatuto da Terra e incentivava a participação dos trabalhadores. Foi feito um convênio com o Incra (sucedâneo do Ibra) para treinar apresentadores e produtores de programas de radio. Os treinamentos de uma semana eram feitos no Centro de Comunicação Social do Nordeste (que depois deu origem ao curso de Comunicação Social da UFPE). Fazia parte do convênio também o pagamento de bolsas de estudo para filhos de trabalhadores sindicalizados através da administração dos próprios sindicatos. Os bolsistas foram aproveitados nas atividades de produção, locução e elaboração de scripts. Foram criados novelas e personagens como Zé Caboclo (no momento em que na Tribuna Metalúrgica do Sindicato de São Bernardo do Campo, sem nenhuma relação direta, estava sendo criado o conhecido personagem João Ferrador). O Programa Especial de Bolsas de Estudo (Pebe) propiciou aos bolsistas, além da atuação no rádio, a feitura de atas e a confecção de carteiras de sócios. Dando seguimento a este Programa, a Fetape coordenou um trabalho com jovens em atividades de cultura e lazer e mesmo após o fim do programa manteve tal trabalho em alguns de seus polos sindicais (ABREU E LIMA, 2012).
A Fetape utilizava os recursos eventuais e passageiros oferecidos por programas federais em compensação à perseguição permanente, desde os anos pós-golpe até 1979, do chefe local da Delegacia Regional do Trabalho (DRT), Romildo Leite, ex-delegado policial. Ao chegar à DRT, Romildo Leite tinha por tarefa coordenar o fim das intervenções sindicais que desgastavam o setor da ditadura responsável pelos assuntos trabalhistas diante da própria diplomacia e das agências sindicais norte-americanas aliadas que haviam investido num “sindicalismo livre e democrático” desde o início dos anos 60. Esse poderoso delegado regional do trabalho pressionava para condicionar a eleição nos sindicatos à existência de uma chapa única por ele indicada ou aprovada, além de ser contratado um contador de confiança da DRT. Com efeito, através de seus contadores, o delegado tinha o poder de disfarçar novas intervenções em sindicatos sem sua confiança política por pretextos de contabilidade e suspeitas de corrupção. A diretoria de Euclides passou a oferecer um quadro de contadores próprio da Federação aos sindicatos mediante o pagamento de uma pequena taxa, para se contrapor às frequentes intervenções sindicais (FONTE, 2009).
Ao lado do investimento em infraestrutura dos centros sociais, nos cursos de formação, nos programas radiofônicos, na contabilidade oferecida aos sindicatos, paralelamente, equipes de advogados e de dirigentes se mobilizavam para usar todos os recursos fornecidos pelo Estatuto do Trabalhador Rural, pelo Estatuto da Terra e pelo artigo 502 do Código Civil para transformar as ações judiciais individuais em ações coletivas de grupos de trabalhadores. Como os trabalhadores da cana tinham uma noção interiorizada dos direitos, devido à transmissão entre as gerações do que foi o impacto na curta melhoria nas condições de vida durante o governo de Miguel Arraes, em 1963 – que criou condições de garantir a aplicação do ETR no estado de Pernambuco e garantiu o advento do Acordo do Campo na área canavieira –, havia uma politização espontânea, vista como dignidade, na adesão dos trabalhadores às ações trabalhistas e por posse de terra propostas pela Fetape (SIGAUD, 1979a, 1980). A argúcia dos advogados e dirigentes na aplicação das leis existentes tirava sua eficácia não somente do fato de que elas não eram respeitadas pelos patrões – como forma tradicional e sistemática de exploração da força de trabalho usada na concorrência com outros estados –, mas também de sua aplicação diversificada tanto na questão do assalariamento como também no do uso da terra. Além das questões tradicionais trabalhistas envolvendo o assalariamento, muitas questões se referiam ao uso dos lotes de subsistência dos trabalhadores nos engenhos, previstos na lei dos 2 hectares, bem como nos conflitos de aumento do foro e despejo de foreiros nas franjas das áreas de produção da cana. A lei dos 2 hectares, nas suas reedições desde 1941, materializava um caso clássico de transformação de concessões patronais tradicionais em direitos reivindicados (THOMPSON, 1998). A equipe de advogados especializou-se na questão das ações plúrimas, envolvendo grupos maiores ou menores de trabalhadores. Os trabalhadores rurais também eram beneficiados no uso das questões trabalhistas pela prescrição bienal, cláusula legal pela qual tinham um prazo maior (que os trabalhadores urbanos) para recorrerem à justiça após serem demitidos17.
Como o sindicato dos metalúrgicos de São Paulo e a Fetape, o sindicato de São Bernardo, entre 1969 e 1972, também investiu numa infraestrutura material que pudesse proporcionar a atração dos trabalhadores pelos serviços oferecidos: nova sede com obras iniciadas em 1972, subsede em Diadema aberta em 1971, serviço odontológico apresentado como “o maior do sindicalismo paulista”, instalação de um laboratório de análises clínicas, farmácia, enfermaria, compra de uma ambulância, um posto de abastecimento de produtos alimentícios com preços abaixo dos do comércio, ampliação dos serviços jurídicos (SADER, 1988). Ao mesmo tempo, nesse mesmo período, fundou seu jornal Tribuna Metalúrgica, em julho de 1971 e, através desse meio, a diretoria ali procurava partilhar a responsabilidade da atividade sindical com os trabalhadores individuais de sua base, fustigando-os, pois sabia da atitude arredia com que esses viam a entidade, ciente da distância entre eles e o prédio onde se realizam as atividades assistenciais: “A você que vive dizendo que o sindicato não presta nós perguntamos: E você presta? No dia em que todos os trabalhadores prestarem o sindicato vai prestar também (...)”18.
Condições e oportunidades propícias às greves de massa
Laís Abramo (1999) narra de forma etnográfica as campanhas promovidas pelo sindicato desde 1970 que contribuíram para criar as condições das greves de massa que eclodiram em 1978. A pesquisadora mostra como uma entidade, que de início produz um discurso de adesão à estratégia desenvolvimentista do governo militar, passa progressivamente a manifestar a consciência de que a categoria da região do ABC está no centro desse esforço, mas que ele não é reconhecido nem muito menos recompensado, afetando a dignidade individual dos trabalhadores e a de sua entidade representativa. O sindicato passa então a afirmar-se como instrumento de luta através da atuação em algumas frentes como (a) nas campanhas de esclarecimento de direitos trabalhistas através do jornal Tribuna Metalúrgica, (b) na atuação de diretores de base dentro de algumas empresas, (c) na luta pelo cumprimento efetivo dos direitos existentes na CLT, encaminhando à DRT pedidos de fiscalização de irregularidades paralelamente a ações conjuntas na justiça do trabalho contra as empresas infratoras, (d) na dinamização das campanhas salariais anuais através da introdução de elementos efetivos de mobilização das bases e de negociação com os empresários (ABRAMO, 1999). As ações coletivas na justiça do trabalho através da assessoria jurídica do sindicato eram fundamentais para evitar as ações individuais que implicavam invariavelmente na demissão do reclamante. Assim também as ações plúrimas levadas a efeito pela Fetape tinham esse mesmo fim de não individualização com o fito de proteger os trabalhadores de retaliações, não somente no emprego, mas contra a própria vida19 deles. Da mesma forma, os abaixo-assinados no interior das empresas utilizadas pela OSM-SP em forma circular (ou em formato de pizza) tinham por finalidade não expor os primeiros da lista, ou os “cabeças”, compreendendo mais uma forma de luta para proteger os trabalhadores do despotismo intrínseco no interior das empresas, fábricas, engenhos e usinas.
Nas campanhas salariais levadas a efeito pelo sindicato de São Bernardo, havia a recorrência na tentativa de abrir um espaço de negociação com os empresários fora da política salarial compulsória quanto aos índices de reajuste decretados pelo governo todo ano, com o intuito de se libertar da “farsa dos dissídios coletivos” daqueles anos, e da defasagem entre os reajustes recebidos e o custo de vida e a lucratividade das empresas, ambos crescentes.
O sindicato passa a incluir, nas pautas dos dissídios coletivos nas datas bases anuais, cláusulas que diferem das dos outros sindicatos dos metalúrgicos da região, assim como da federação: aplicação do reajuste decretado pelo governo sobre o total da folha de pagamentos de cada empresa, dividindo-se o resultado pelo número de empregados igualmente, sendo proporcionalmente maior para os trabalhadores de menores salários; delegado sindical por empresa com estabilidade (desde o dissídio de 1970, adotado pela Federação dos Metalúrgicos de SP desde 1972); quadro de avisos do sindicato na empresa; linha especial de ônibus em dia de assembleia sindical; liberação de meio expediente do delegado sindical não afastado da produção; comissão paritária com representantes de empregados e empregadores nas empresas de mais de mil empregados, para deliberação de litígios individuais e normas disciplinares internas.
Em 1974, se iniciará a luta do Sindicato dos Metalúrgicos de São Bernardo do Campo e Diadema (SMSBCD) de negociar em separado sem ser representado pela Federação dos Metalúrgicos do Estado de São Paulo, por evidenciar uma capacidade maior de luta mesmo nos limites da legalidade, além das pressões de baixo que já vinham se expressando nas paralizações em seções de empresas de sua base territorial. Isso levou alguns analistas a verem ali a manifestação do surgimento de um sindicalismo que prezava a livre negociação em separado –devido ao caráter estratégico dos trabalhadores do setor automobilístico, ponta de lança da economia moderna no Brasil – como se fosse afinal a realização do sindicalismo livre de inspiração estadunidense estimulado desde as oposições sindicais às direções do sindicalismo de esquerda do pré-64. De qualquer forma, a negociação em separado era prevista na lei e era uma forma de abalar o imobilismo sindical daqueles anos. Mas as exigências legais para isso implicavam a realização de uma assembleia com pelo menos um oitavo dos sócios do sindicato, quórum que não foi alcançado, e a submissão à dinâmica da federação voltou a ser um fato.
As paralizações nas empresas se intensificaram no segundo semestre e a antecipação salarial reivindicada sempre nos dissídios, desde 1970, se viu realizada pela concessão dos patrões do município em razão de tal movimentação. Como salienta Abramo (1999), tais paralizações, ocorridas em 1973 e 1974, sobretudo nas seções de operários qualificados, também conseguiram mudanças na orientação política da diretoria do sindicato. Em reação à atitude desmobilizadora e receosa do presidente Paulo Vidal, sob a alegação de que tais ações pudessem provocar sanções governamentais ao sindicato, uma parte da diretoria produziu iniciativas na direção contrária, como a criação do Conselho de Coordenação do Trabalho de Base (CCTB), que visava apoiar os diretores de base, organizar contatos com os ativistas de outras empresas e idas mais sistemáticas às portas de fábrica para distribuição de boletins.
Em setembro de 1974, em momento por sinal próximo às referidas paralizações esparsas em algumas empresas, ocorreu o 1º Congresso dos Trabalhadores Metalúrgicos de São Bernardo do Campo e Diadema, que foi usado como instrumento no sentido de democratização da entidade, tendo sido acordada a realização de congressos de dois em dois anos. O Congresso serviu também para que as experiências no interior das fábricas fossem comunicadas e socializadas. Além disso, a iniciativa representava um esforço de autoconhecimento e de construção de identidade no momento mesmo em que procurava se distanciar da federação para aumentar de forma autônoma o tom de suas críticas aos empresários e ao governo20.
Embora salientando a especificidade da categoria concentrada em grandes empresas multinacionais que, apesar de pagarem salários maiores que a média, não deixavam de deteriorá-los com o uso da rotatividade de mão de obra, com jornadas de trabalho prolongadas, disciplina desproporcionada e repressão a qualquer vestígio de ação reivindicativa de base no interior das fábricas, nem por isso procurava se isolar das demais categorias de trabalhadores. A incompatibilidade entre o controle dos sindicatos pelo governo, ao usar as cláusulas restritivas previstas na CLT, e a livre negociação com os empresários que o SMSBCD se achava com força para fazer no setor mais moderno da economia, não impedia o sindicato de comparecer ao Congresso dos Metalúrgicos do Estado de São Paulo, apresentar suas teses referentes à democratização da vida sindical e vê-las ser aprovadas por unanimidade em novembro de 1974.
Em 1975, o diretor sindical da gestão anterior, Luís Inácio da Silva, é eleito para a presidência do sindicato em sintonia com a parte da diretoria que havia respondido às paralizações procurando aumentar a coordenação do trabalho de base, embora o presidente anterior permanecesse na secretaria-geral da entidade. Além de oficializar o CCTB, foi aprovada em assembleia a extinção do posto de abastecimento de alimentos e a construção de uma escola profissional no seu lugar, com cursos em horários compatíveis com o sistema de rodízio de turnos.
Na campanha salarial de 1975, antes mesmo do pronunciamento dos empresários, a DRT comunicou que as reivindicações econômicas não poderiam ser objeto de discussão fora da data-base. Com isso, os empresários desprezaram o comparecimento às audiências enviando somente seus advogados para solicitar o arquivamento dos processos sem qualquer esclarecimento ou argumentação. O sindicato considerou essa atitude uma falta de respeito aos trabalhadores e ao governo, na medida em que acordos mediante convênios poderiam evitar uma enxurrada de processos trabalhistas referentes às horas extras. As afrontas foram repercutidas entre os trabalhadores e, em 1976, o quórum legal exigido para a negociação em separado do dissídio foi finalmente atingido alguns meses antes da data-base, depois de várias tentativas nos últimos anos. Mas novamente a federação negociou um acordo (sem a sua presença do SMSBCD), estendido para São Bernardo, que se recusou a assiná-lo, pois não representava avanço algum em relação ao ano anterior. O sindicato resolveu recorrer ao TST com o argumento que era preferível entregar a decisão à justiça do trabalho toda vez que houvesse possibilidade de ter assim melhor resultado. O Tribunal Superior deu sentença favorável a vários itens da pauta de São Bernardo entre os quais o salário-substituto (que significava que o salário de um trabalhador incorporado no lugar de um demitido não poderia ser inferior ao daquele, tentando diminuir o rebaixamento salarial via rotatividade em massa praticada pelas empresas) e o relativo ao cômputo das horas extras, o que coroou centenas de confrontos, tentativas de negociação e processos na justiça do trabalho contra muitas empresas da base territorial.
Um fato inesperado no segundo semestre de 1977 irá colocar em pauta como nunca a reivindicação da reposição salarial. Um relatório do Banco Mundial publicado no primeiro semestre de 1977 reconhecia a denúncia do Dieese a respeito da manipulação do índice oficial de inflação do ano de 1973, relatório esse que é publicado nos principais jornais do país. Uma ação do movimento sindical e da oposição ao regime militar abre extensa discussão em torno do assunto, desdobrando-se em uma CPI instalada na Câmara Federal21. Os sindicatos se mobilizaram e solicitaram o cálculo pelo Dieese da perda salarial acumulada para as diferentes categorias. Mais de cem entidades sindicais aderem à campanha pela reposição de tal perda. A primeira assembleia do movimento de reposição salarial convocada em 1 de agosto de 1977, pelo Sindicato de São Bernardo, teve o comparecimento de 3 mil trabalhadores e foi constituída uma comissão de mobilização de 36 militantes para levar a discussão às bases e encaminhar um documento encabeçando um abaixo-assinado. Nesse documento, a proposta de greve legal, pelo decreto 4.330, era uma das alternativas de luta, desde que a categoria estivesse preparada para cumprir as exigências contidas no decreto (alternativa de luta que será escolhida e levada a efeito pela Fetape para a greve de 1979). Das 25 empresas convidadas para negociar com o SMSBCD, 15 se manifestaram favoravelmente enquanto outras 10 (entre estas VW, Ford, Chrysler, Toyota e Villares) haviam recusado ou nem tinham respondido à solicitação de reunião. Em novembro, o TRT julgou o pedido de reposição movido pelo Sindicato dos Metalúrgicos de Osasco, o primeiro a chegar aos tribunais, indeferindo a reivindicação por julgá-la “inoportuna e imprópria”. Após dois meses de conversas e negociações, o máximo que algumas empresas concederam foram antecipações salariais de 10% a 20% a serem descontados no reajuste seguinte (ABRAMO, 1999).
De qualquer forma, o movimento pela reposição salarial de 1977 alçou os sindicatos a um patamar maior de legitimidade, em razão da revelação, pela fonte insuspeita do Banco Mundial, de uma trapaça às regras do jogo do cálculo dos índices oficiais por parte da equipe econômica do governo, surpreendendo os empresários e sutilmente os dividindo quanto à habitual atitude naturalizada de arrogância em relação aos trabalhadores. Além disso, foi um movimento que ocorreu independente das datas-bases das categorias que puderam assim unir-se numa campanha conjunta intersindical horizontal, dando oportunidade ao surgimento de novas lideranças e reforçando também o interconhecimento entre os representantes, numa conjuntura de condições mais favoráveis para a luta por melhores condições de vida e ampliação de direitos políticos.
Logo em seguida, em fevereiro de 1978, Luiz Inácio da Silva é reeleito para sua segunda gestão à frente do SMSBCD, numa chapa com a substituição de 14 dos 23 diretores anteriores, estando o ex-presidente entre 1970 e 1974, Paulo Vidal, entre os que ficaram de fora. Os novos diretores são oriundos da recente mobilização de base da categoria, não tendo qualquer experiência anterior de direção sindical. Para que a ligação com a base tenha condições efetivas de continuidade, a nova diretoria estabelece que os diretores deveriam receber o mesmo salário que tinham na sua empresa de origem para que o cargo não fosse visto como associado a vantagens econômicas pessoais. Além disso, para evitar qualquer dependência em relação à empresa, o salário deveria ser pago pelo sindicato. Outra diretriz foi a de que houvesse uma política de revezamento entre os diretores: os diretores de base, os suplentes, deveriam sair da produção, em tempos estipulados, para trabalhar na direção executiva do sindicato e ali ter um aprendizado das tarefas administrativas e de direção geral, trazendo para esse âmbito a recente vivência na base. Inversamente, os diretores-executivos deveriam passar um tempo na base para não perder o contato com os colegas de empresa (ABRAMO, 1999), dando início a uma experiência de mecanismos de renovações de lideranças que iria perdurar ao longo dos anos, reproduzindo a vitalidade alcançada pelo sindicato (tal como detalhado na reunião que a equipe de pesquisadores do projeto teve com a diretoria do SMABC em julho de 2018).
Indicações comparativas sobre o desencadeamento das greves e considerações finais
Na campanha salarial de 1978, logo no início da nova gestão, o SMABC decidiu não apresentar nenhuma reivindicação de reajuste salarial, visto que as negociações eram consideradas uma farsa e o dissídio tinha como resultado sempre a aplicação do índice oficial do governo. Tal situação só seria mudada quando os trabalhadores resolvessem assumir formas mais ousadas de luta, tentando romper assim com a situação normalizada dos sindicatos, “onde a maior parte dos trabalhadores deixa a diretoria da entidade lutar sozinha pelo reajuste e depois critica porque nada conseguiram além do índice oficial do governo” – declaração do advogado do sindicato, Maurício Soares de Almeida, na imprensa (ABRAMO, 1999, p. 203). No dia 12 de março, foi aprovada por unanimidade, em assembleia geral, a denúncia da “farsa do dissídio”, a não apresentação de proposta de índice de reajuste salarial e a solicitação de abertura de negociações diretas com as empresas. Nos primeiros dias de abril, o dissídio foi julgado com a aplicação do índice oficial de reajuste. Entre o fim de março e os primeiros dias de maio, várias seções da Mercedes e da Ford paralisaram o trabalho exigindo aumentos superiores àquele índice; alguns trabalhadores foram demitidos.
Estavam formadas as condições para a eclosão da greve total na Scania, do dia 12 de maio, que causou a onda de greves por empresas que se seguiram por todo o ABC e depois por São Paulo, Osasco e Guarulhos, nos meses seguintes. E estavam formadas as condições para que o SMSBCD se tornasse “um espaço público operário”, após as greves de 1978 a 1980, conforme a expressão de Eder Sader (1988, p. 296). O desencadeamento da greve na Scania provocou um percurso de rastilho por diversas fábricas em São Paulo, o que ocasionou a fase de maior ascensão da Oposição Sindical Metalúrgica em 1978 e nos anos seguintes. Acarretou também um impulso que se seguiu em todo o período posterior, provocando um ciclo de greves que alcançou os trabalhadores assalariados da cana em Pernambuco, onde estavam mais estruturados e contavam com o suporte da Contag.
Como ocorreu na história dos metalúrgicos do ABC, também na dos canavieiros de Pernambuco, o respectivo ciclo de lutas mais intensas inicia-se nos anos de 1979 e 1980. A conexão entre a bagagem de reivindicações acumuladas pela diversidade de trabalhadores rurais articulados pela Contag e o desejo de avançar com formas de mobilização de massa mais intensas encontrava na greve dos metalúrgicos de São Bernardo – vivida por tantos egressos das áreas rurais que migraram para trabalhar – inspiração para propostas mais ousadas de luta. Assim, a greve dos canavieiros de Pernambuco contou com a participação intensa, na sua elaboração e execução, tanto da Fetape quanto da Contag.
O dissídio da categoria dos canavieiros tem por data-base o mês de setembro, coincidindo com o início da safra. Semelhante à greve dos metalúrgicos de 1978, somente uma parte dos trabalhadores se colocou em greve. Mas aquilo que foi resultado de um movimento relativamente espontâneo da base dos operários de fábricas, como a Scania e a Ford, se diferenciava do planejamento realizado no caso de Pernambuco, em que os sindicatos dos municípios de São Lourenço da Mata e Paudalho saíram na frente da greve, representando 20 mil trabalhadores, enquanto outros 100 mil aguardavam para possivelmente entrar em ação. Isso acabou não sendo necessário, pois após sete dias de greve, os patrões, pegos de surpresa, assinaram um acordo mediado pela Delegacia Regional do Trabalho, atendendo reivindicações importantes dos trabalhadores. Desse planejamento, constava a particularidade tática da realização da greve nos trâmites da lei de greve de então (Lei n. 4.330/64). Os sindicatos municipais de trabalhadores rurais, coordenados pela Fetape e pela Contag, achavam que se conseguissem atender aos difíceis requisitos da lei de greve da ditadura, organizando a votação individual em urnas de um terço da categoria de cada sindicato, alcançariam uma maior legitimidade perante o governo, o Tribunal Regional do Trabalho e os patrões. Queriam evitar a experiência de terem seus sindicatos sob intervenção, como aconteceu várias vezes depois de 1964, minorar os embates com vigias e milícias dos engenhos e fazendas, numa área de tradicional autoritarismo nos locais de trabalho e, sobretudo, evitar o embate com a Polícia Militar.
Nos anos seguintes, os conflitos coletivos na data-base do dissídio foram intensos, e uma greve, como a de 1984, ponto culminante desse ciclo de greves dos canavieiros, se estendeu à Paraíba e ao Rio Grande do Norte, além da mobilização dos 240 mil canavieiros de Pernambuco então em atividade. Após 1985, a utilização dos trâmites da lei de greve foi se tornando menos necessária e menos ainda após a promulgação da Constituição de 1988.
Se as greves dos metalúrgicos foram as mais relevantes no embate com a ditadura, ocupando de forma inesperada a cena política nacional, a dos canavieiros representou uma virada simbólica no enfrentamento das formas autoritárias de dominação no campo.
Assim, operários industriais urbanos e trabalhadores rurais, muitos dos quais haviam transitado de uma condição para outra, tiveram meios de aparecerem na cena principal do espaço público. Momento a ser lembrado e refletido pelas gerações futuras.
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Recebido em 31/03/2020
Aceito em 16/09/2020
1 Este projeto de pesquisa coletivo tem por título “Movimentos cruzados, histórias específicas. Análise comparativa dos ciclos de greves iniciados pelos metalúrgicos de São Paulo e do ABC Paulista e pelos canavieiros de Pernambuco no final dos anos 1970”, aprovado pelo Edital da Capes “Memórias Brasileiras: Conflitos Sociais”, de 2015. O projeto, executado entre o início de 2017 e o fim de 2019, envolvia uma rede de equipes de pesquisadores pertencentes às universidades UFRJ, UFPB, UFCG, UFABC, UNIFESP (campus Osasco) e USP (Educação). O livro que resultou dos trabalhos realizados tem o mesmo título do projeto – com uma pequena variação no subtítulo (LEITE LOPES; HEREDIA, 2019). Além dos autores deste artigo, a equipe da UFRJ ainda se compunha de Beatriz Heredia (co-coordenadora do projeto, falecida no final de 2018; Moacir Palmeira, pesquisador pioneiro e testemunha dos fenômenos analisados no projeto pelo lado dos trabalhadores rurais, junto aos quais foi, no período principal analisado, assessor da Contag; e as graduandas Anna Fernandes do IH/UFRJ e Anne Rosso, do IFCS/UFRJ. Paralelamente ao projeto, a equipe continuou a manter o trabalho de arquivamento digital do Programa de Memória dos Movimentos Sociais (Memov) do CBAE/UFRJ, para o qual o projeto contribuiu com um aumento substancial de materiais empíricos escritos e audiovisuais (ver a contribuição de J.S Leite Lopes, Míriam Starosky, Anna Fernandes e Anne Rosso no capítulo 12 do livro, sobre a construção do acervo de pesquisa do projeto). Agradecemos a revisão e as sugestões criteriosas, que procuramos incorporar no texto, dos dois pareceristas anônimos da revista.
2 O recorte temático feito neste artigo da equipe da UFRJ a compor este dossiê foi a escolha de uma parte da análise comparativa realizada no projeto dentro dos limites das regras editoriais da revista, sem poder incluir outras contribuições dos autores em diferentes capítulos do livro que resultou da pesquisa.
3 Este artigo se baseia numa parte apenas do que foi desenvolvido na introdução do livro, que ainda tratava do desenrolar das greves e dos ciclos de greves das duas categorias profissionais iniciadas nos dois últimos anos da década de 70 e durante os anos 80; e também da apresentação dos capítulos. Temas analisados nos capítulos têm alguns de seus aspectos trabalhados de forma comparativa na mesma introdução. Ver Leite Lopes (2019).
4 Federação dos Trabalhadores na Agricultura de Pernambuco (Fetape), Confederação Nacional dos Trabalhadores na Agricultura (Contag).
5 Tal reconstrução se arrasta pela segunda metade dos anos 60, enquanto a acumulação de forças se dá durante os sete primeiros anos da década de 70.
6 Além de Palmeira (1977, 2013), Sigaud (1979a, 1979b) contribuiu na mesma época para essa percepção de conflitos entrelaçados nas relações tradicionais de morada e nos processos de expulsão dos moradores das propriedades e sua transformação em trabalhadores clandestinos. Posteriormente, tal percepção está presente e é trabalhada no estudo exaustivo de Dabat (2012) sobre as relações de trabalho e condições de vida dos trabalhadores da cana nos diferentes domínios da “literatura, [d]a academia e [d]os próprios atores sociais”, como diz o subtítulo do livro.
7 Para a parte de graves violações de direitos humanos nesse período, concernente aos militantes de entidades de trabalhadores ver, quanto à parte rural, Carneiro e Cioccari (2010) e, para a parte urbana, IIEP-Comissão Nacional da Verdade (2014, 2015). Ver também o capítulo de José Carlos Matos Pereira sobre a vigilância dos órgãos repressivos sobre os canavieiros, representantes e assessores, segundo os arquivos do SNI, em Leite Lopes & Heredia (2019), no capítulo 8.
8 Esse momento no início dos anos 60 culmina em um processo mais longo, com interrupções causadas por ações repressivas, desde o proibido Congresso Camponês de Palmares (PE) em 1950 (DABAT, 2012), passando pelo permitido I Congresso Camponês de Pernambuco presidido por Josué de Castro e festejado em passeata de 3 mil camponeses (ZITO DA GALILÉIA, 2017; MEDEIROS, 1986). Entre 1955 e 1961, Medeiros (1986) repertoria 21 encontros de trabalhadores rurais (com suas diferentes denominações da época), a maioria de base estadual, sendo dois nacionais: o I Congresso da União dos Lavradores e Trabalhadores Agrícolas do Brasil (Ultab) em 1959, com predominância dos sindicatos assistidos pelo PCB e o Congresso Camponês de Belo Horizonte de 1961, onde além da Ultab participaram forças como as Ligas Camponesas, predominantes no Nordeste, e o Movimento dos Agricultores Sem Terra (Master), recém-constituído no Rio Grande do Sul.
9 Esse processo pôde ser detectado desde 1969 por Moacir Palmeira e Lygia Sigaud e em seguida por outros pesquisadores antropólogos do projeto sobre a zona canavieira de Pernambuco que se desenvolveu no Museu Nacional na primeira metade dos anos 70 (PALMEIRA et al., 1978).
10 A fundação da Contag se deu em 22 de dezembro de 1963 e foi rapidamente reconhecida pelo Ministério do Trabalho em 31 de janeiro de 1964. Nesse momento existiam 475 Sindicatos dos Trabalhadores e Trabalhadoras Rurais no Brasil (dos quais 220 eram reconhecidos pelo Ministério do Trabalho), em 18 estados, distribuídos em 29 federações (em alguns estados havia mais de uma federação). Esses números indicam uma verdadeira onda de criação de sindicatos nos dez meses entre a promulgação do ETR e a fundação e o reconhecimento da Contag. Esta Confederação se inicia assim já com o compromisso de aumentar a criação de sindicatos e a sindicalização do maior número de trabalhadores rurais (em toda sua diversidade). Logo em abril de 1964 a entidade sofre intervenção e é designada uma junta governativa. O crescimento da sindicalização volta a ocorrer após 1968, com a eleição de José Francisco da Silva. Entre o 2ª congresso em 1973 e o 3º em 1979 houve um crescimento de 19 para 21 Federações, de 1.500 sindicatos para 2.275, de dois milhões e meio de associados para mais de cinco milhões. (REVISTA CONTAG, 2003, p. 21).
11 Antonio Negro (2004) elucida esse período no sindicalismo dos metalúrgicos do ABC e de São Paulo tendo trabalhado com fontes do setor de acompanhamento trabalhista e sindical dos consulados dos EUA no Brasil. Ver também Larissa Corrêa (2017) sobre as relações sindicais Brasil-EUA na ditadura.
12 Como também o eram o sindicato dos metalúrgicos do Rio e o de operários navais em Niterói.
14 Inclusive como modelo de oposição para as disputas sindicais despertadas pelas greves em todo o país.
15 O papel estratégico dos assessores é tratado por Antonio Carriço (2019) através da análise de trajetórias de alguns assessores da Fetape.
16 As brechas representadas por efeitos inesperados que contribuíram para o crescimento e a força do movimento sindical rural ao nível nacional podem ter como exemplo o Programa de Assistência ao Trabalhador Rural (Prorural, também conhecido como Funrural) criado através da Lei Complementar nº 11 de 25/05/1971, em plena ditadura, no governo Médici. O Programa era financiado pelos empregadores e proprietários rurais e não pelos trabalhadores (diferentemente da previdência urbana, até serem as duas previdências unificadas por um só sistema na Constituição de 1988). Aos STRs foram atribuídas as funções de atendimento assistencial tanto sanitário quanto previdenciário, o que trouxe muitos contingentes de trabalhadores rurais à órbita sindical. Como as relações entre empregadores/proprietários rurais e seus subordinados se caracterizam pelo cumprimento reduzido do que é estipulado pela legislação trabalhista ou pelo Estatuto da Terra, a força sindical adquirida pelo contingente atraído pelo Funrural tem frequentemente sua eficácia aumentada no enfrentamento dos conflitos com o lado patronal. Essa força numérica veio a ser descoberta diretamente (com certa surpresa) pelos sindicatos urbanos quando do histórico encontro entre delegados da 1ª Conferência Nacional da Classe Trabalhadora (Conclat), em agosto de 1981, na região santista.
17 A atuação dos STRs, bem como as ações na justiça que promoviam, alcançava desde os assalariados, como eram os trabalhadores da cana, até os pequenos proprietários que utilizam trabalho familiar, passando por foreiros, posseiros e outras posições no universo dos produtores diretos e das classes populares na agricultura, todas representadas pelo sindicato único municipal. Todas essas posições formavam a categoria geral trabalhador rural. Esse enquadramento sindical se deu pela portaria 71 de 02/02/1965 do Ministério do Trabalho, uma provável extensão ao universo rural da tradição da unicidade sindical da burocracia técnica ministerial elaborada desde a década de 30 e mantida pela ditadura. A preponderância de um ou outro setor na direção do sindicato único poderia subdimensionar os interesses dos outros nas piores hipóteses, mas o movimento sindical dos trabalhadores rurais procurava se guiar pela melhor das hipóteses, tirando sua força da representação e mediação de múltiplos conflitos com os grupos proprietários, das leis trabalhistas ao Estatuto da Terra (o que teria sido um efeito inesperado da intenção de controle por parte da burocracia da ditadura). O trânsito entre as diferentes posições por membros diversos de uma mesma unidade familiar e o desejo comum pela posse da terra reforçariam tal efeito inesperado de uma unidade na diversidade combativa. Recentemente, esse enquadramento sindical foi modificado, separando a representação sindical da agricultura familiar daquela dos assalariados. (PIACOLOTTO; MEDEIROS, 2016).
18 Tribuna Metalúrgica, número 2, agosto de 1971, citado por Sader (1988).
19 Ver a esse respeito Antonio Montenegro (2014). Como ilustração da violência que ronda o uso da justiça do trabalho em defesa dos trabalhadores, o advogado Romeu da Fonte da Fetape sofreu várias situações de atentados contra sua vida (FONTE, 2009).
20 A Contag realizou seu 2º congresso em 1973, apesar de ameaças das autoridades trabalhistas à sua realização. Também foi uma oportunidade de autoconhecimento da enorme categoria diferenciada internamente e de forma nacional dos trabalhadores na agricultura. Nesse congresso, foi recomendado o trabalho educativo de formação de sindicalistas em toda a estrutura sindical, inclusive com o início dos cursos intensivos de dirigentes promovidos pela Contag. O grande congresso da entidade, no entanto, será o de julho de 1979, preparado desde 1978 (com as notícias animadoras das greves dos metalúrgicos da Grande São Paulo), com mais de mil participantes, decisivo para as greves e as lutas que viriam em seguida.
SINDICALISMO, AUTORITARISMO
E REPRESSÃO ENTRE DOIS POLOS:
As greves metalúrgicas de Osasco em perspectiva histórica
(1968-1980)
UNIONISM, AUTHORITARIANISM
AND REPRESSION BETWEEN TWO POLES:
The metallurgical strikes in Osasco in historical perspective
(1968-1980)
__________________________________
Mª Gabriela S. M. C. Marinho*1
Eliane Meza**
Karen C. D. Fonseca***
Resumo
O artigo analisa, em perspectiva histórica, aspectos da repressão desencadeada pelo acirramento político de 1968, com ênfase nas greves de Osasco e reverberações no ciclo posterior do ABC Paulista no final da década de 1970. Constrói a análise a partir da produção memorialística de personagens do período a partir de um ângulo menos frequente, no caso, a perspectiva dos agentes do status quo e da repressão política. Nesse sentido, localiza a participação do Exército e de empresários que se destacaram, sobretudo, na conjuntura de 1968, um dos momentos mais agudos do fechamento político durante o regime militar. O argumento desenvolvido pressupõe a mudança de escala e natureza da repressão e seu deslocamento de forças marcadamente policiais para a vinculação ao escopo das “atribuições” das Forças Armadas, em particular do Exército. Desse modo, sindicatos e sindicalistas passaram a compor o espectro do “inimigo interno” definido na Doutrina de Segurança Nacional. Um dos aspectos destacados é o caráter estratégico do setor metalúrgico sobre o qual a repressão incidiu pesadamente, segmento no qual muitas empresas estiveram associadas ao capital internacional. Por outro lado, além de assinalar a especificidade da atuação militar na repressão sindical, o artigo procura agregar como elemento de análise a presença do empresariado na escalada repressiva.
Palavras-Chave: Autoritarismo e repressão. Ditadura Civil-Militar e sindicalismo. Memória de greves e acirramento político. São Paulo e o estado de exceção.
Abstract
The article analyzes, in a historical perspective, aspects of the repression triggered by the political intensification of 1968, with emphasis on the strikes in Osasco and reverberations in the later cycle of ABC paulista in the late 1970s. It builds the analys is from the memorialistic production of characters from the period and it locates the participation of the Army and of entrepreneurs that stood out in the two conjunctures. The argument developed presupposes a change in the scale and nature of there pression, which would haves hifted from markedly police forces to articulate the scope of the Armed Forces’ “powers,” in particular the Army. In this way, union sandunionists came to make up the spectrum of the “internalenemy” defined in the National Security Doctrine. One of the high lighted aspects is the strategic character of the metallurgical sector, whose companies were partly associated with international capital. On the other hand, in addition to highlighting the specificity of military action in union repression, the article seeks to aggregate the presence of the business community in there pressive escalation as an element of analysis.
Keywords: Authoritarianism and repression. Civil-Military Dictatorship and trade unionism. Strikes memory and political accuracy. São Paulo and the state of exception.
1* Doutora em História Social (FFLCH-USP), professora associada 2 da Universidade Federal do ABC (UFABC), onde atua como docente e pesquisadora do Programa de Pós-Graduação em Ciências Humanas e Sociais. E-mail: gabriela.marinho@ufabc.edu.br
**Advogada, mestra em Políticas Públicas e doutoranda em Ciências Humanas e Sociais pela UFABC. E-mail: elianecarvalhomeza@yahoo.com
***Graduada em Ciências Sociais e Geografia, possui mestrado em Ensino, História e Filosofia das Ciências e da Matemática e doutorado em Ciências Humanas e Sociais, ambos pela Universidade Federal do ABC (UFABC). E-mail: karenchester@gmail.com
ISSN 1517-5901 (online)
POLÍTICA & TRABALHO
Revista de Ciências Sociais, nº 52, Janeiro/Junho de 2020, p. 40-52
Introdução: recrudescimento e fissuras na exceção e no arbítrio
O artigo analisa os argumentos que sustentaram o acirramento da repressão aos movimentos operários em São Paulo no período entre 1968 e 1978, sobretudo a partir das greves de Osasco. No período, verificou-se a mudança de escala e natureza das práticas e aparatos repressivos e o recrudescimento das ações militares e policiais com a formação dos Destacamentos de Operações de Informação (DOI) e Centro Operações de Defesa Interna (Codi), sob a responsabilidade do Exército. O artigo identifica nesse contexto o ápice da articulação do aparato repressivo com setores empresariais e civis sediados em São Paulo, assinalando, embora de maneira lateral, a participação de membros da elite acadêmica paulista provenientes da Faculdade de Direito. Em decorrência, argumenta que a junção de poder econômico, fortalecimento do aparato repressivo e formulação do ordenamento jurídico de exceção tornaram São Paulo eixo na sustentação do regime. Ao mesmo tempo, essa junção assegurou que capital e região metropolitana se tornassem também o território de onde partiram fissuras que contribuíram para abalar as estruturas do regime ao longo da década de 1970, sejam pelos episódios das mortes de Vladimir Herzog (1975) e Manuel Fiel Filho (1976), seja pela eclosão das greves no ABC no ciclo 1978-1980.
Para a sustentação dos argumentos, foram selecionados três aportes teórico-metodológicos: o paradigma indiciário proposto por Carlo Ginzburg (1989), as formulações desenvolvidas por Jacques Revel (1998), em torno da contraposição de escalas de observação do processo histórico, e a discussão de Michael Pollak (1989) acerca da “memória, esquecimento e silêncio”. Desse conjunto de abordagens, destaca-se a premissa de Ginzburg, cuja vertente de análise prioriza a seleção dos detalhes como fonte de elucidação e formulação de argumentos e interpretações. Por outro lado, a perspectiva de Revel permite o reposicionamento contínuo do objeto de modo a ampliar as angulações sob as quais determinado tema é analisado.
Nessa direção, contextos, conjunturas e eventos são continuamente entrelaçados e realçados de modo a expor a articulação entre dinâmicas sociais e trajetórias individuais, assinalando emulações recíprocas. Por fim, Pollak é mobilizado quando o artigo sugere o debate em torno de “assimetrias da memória”. Ou seja, pela análise de hierarquias no processo de construção da lembrança e do esquecimento, como se deu, por exemplo, em torno de Vladimir Herzog e Manuel Fiel filho, dois personagens centrais na derrocada do regime militar brasileiro. Obviamente, a destruição de um determinado sistema político, seja no sentido de sua destruição lenta ou pela superação abrupta, resulta da convergência de múltiplos fatores. É nessa direção, portanto, que o artigo propõe uma inversão do ângulo pelo qual usualmente se analisam as lutas políticas no mundo do trabalho e busca compreender também a lógica, o cálculo e a intencionalidade dos personagens amparados pelo monopólio da força, nem sempre legítimo ou legitimado.
Aos pressupostos apontados acima, soma-se a noção de vestígios, presente nos estudos da história e da memória social. Localizados em depoimentos, biografias, autobiografias, escritos memorialísticos, jornais, revistas, além da bibliografia pertinente, material que compõe a base empírica da presente análise, os vestígios fornecem pistas, indícios, ângulos e fragmentos referidos por Ginzburg, Revel e Pollak. O cotejamento, análise e sistematização desse material esparso permitem a junção de elos e nexos que compõem e revelam tramas e urdiduras do contexto analisado.
No interior desse enquadramento teórico-metodológico, o argumento considera, enfim, que a década analisada demarca um período de inflexão no qual se verificou o acirramento do confronto político e da repressão aos movimentos operários em razão da magnitude e vulto dos interesses em disputa. Nessa direção, o relevo e o peso dos capitais internacionais investidos no entorno da cidade de São Paulo a partir dos anos 1950 assumem significados políticos inerentes a um processo de crescimento urbano, acelerado, precário e desigual que tornou a Região Metropolitana de São Paulo, onde estão inseridos Osasco e o Grande ABC, em um dos grandes fenômenos metropolitanos do século XX em escala global1.
Desse modo, o artigo privilegia enfoques memorialísticos sobre a repressão às greves de Osasco em 1968, identificando conexões com o sindicalismo que emergiu uma década depois no ABC Paulista. Destaca, portanto, a posição de São Paulo no contexto analisado, agrupando as perspectivas dos militares, de políticos em condição de comando nas esferas federal e estadual, além de membros do empresariado e operários que atuaram no período, conforme analisado a seguir.
A década e seus extremos: o depoimento dos militares
Conforme mencionado anteriormente, a argumentação considera São Paulo como o território que desencadeou as políticas de acirramento da repressão aos operários a partir de 1967 por centralizar as principais disputas econômicas decorrentes da concentração de capitais internacionais em seu entorno. No primeiro momento, o interesse dos aparatos repressivos incidiu pesadamente sobre as organizações de esquerda mobilizadas em torno da luta armada. Com o objetivo de desarticular as ações de esquerda, tais aparatos promoveram o assassinato de suas principais lideranças. Ao mesmo tempo, a repressão sobre manifestações estudantis, de artistas e intelectuais tendeu, em certa medida, a secundarizar nas análises posteriores a incidência da barbárie sobre os sindicatos e o movimento operário. Mais recentemente, a colaboração entre grandes empresas com a polícia e o exército, em particular corporações transnacionais, passou a ser objeto de atenção, mas o tema ainda permanece insuficientemente analisado pela literatura dedicada ao período, inclusive pela dificuldade de acesso a fontes primárias.
A partir dessa perspectiva, pistas, indícios e vestígios foram coletados em um vasto e disperso material empírico fornecido pela história e memória social. Como apontado anteriormente, o cotejamento e sistematização desse conjunto fragmentado de fontes permite estabelecer conexões e elos causais entre forças econômicas, elites políticas, aparatos e ações repressivas que atuaram sobre sindicatos e operariado, como o artigo pretende assinalar. Um aspecto interessante que emerge dessa coleta é o relacionamento tenso entre militares e empresários, evidenciado pelos depoimentos de alguns militares. Outro aspecto relevante é a razoável convergência e coesão das versões apresentadas por membros das diferentes esferas do poder no período, envolvendo entes do governo federal, estadual e empresariado que vocalizaram depoimentos muito afinados em torno de suas interpretações sobre o passado.
Para acompanhar esse arco retórico e discursivo, do ponto de vista metodológico, agrupamos a coleta e análise dos dados em três modalidades de depoimentos (no caso): militares, empresários e operários. Desse material, emergem não só a convergência e articulação entre setores governamentais e empresariais, como mencionado acima, mas também as contradições e disputas entre os grupos e intragrupos. Embora o anticomunismo seja um elemento de ligação e uma justificativa recorrente para a repressão, nuances podem ser percebidas acerca do caráter e intensidade das práticas perpetradas e dos vínculos estabelecidos pelos segmentos paulistas e suas relações com o poder. Apesar dos matizes, a unidade de propósitos em torno da garantia dos interesses corporativos e da ordem estabelecida é ressaltada no material analisado.
Nessa direção, no primeiro grupo, depoimentos de militares2, as declarações do general Adyr Fiuza de Castro3 são bastante elucidativas ao destacar a relevância e o porte de São Paulo no contexto dos aparatos repressivos. Ao fazer a distinção entre os Destacamentos de Operações de Informações em diversas localidades do país, o general evidencia essa diferenciação, como transcrito a seguir:
(...) em São Paulo foi diferente, porque eles fizeram a Operação Bandeirantes, a OBAN, antes da criação dos DOIs. A OBAN já foi uma mistura de DOPS com o Exército. Isso não aconteceu no Rio ou em qualquer outra parte do Brasil. Só em São Paulo. A OBAN era paulista, e talvez tenha servido de modelo para a criação dos DOIs. Mas eles nunca foram propriamente um DOI. E o Fleury era muito eficiente, era o chefe do DOPS mais eficiente que havia no Brasil. Eficientíssimo. Estava instalado num grande prédio, e contava com mais de quarenta delegados. No Rio, o DOPS ficava num prediozinho, e tinha três delegados. Em Minas, quase que era um delegado só: um delegado e dois ou três escrivães. Mas em São Paulo havia uma poderosa organização (D’ARAUJO; SOARES; CASTRO, 1994, p. 75-76).
A posição destacada de São Paulo não é fortuita ou casual, assim como a criação da Operação Bandeirantes. Ao selar o compromisso entre empresariado e repressão, sua criação está inserida no contexto de acirramento das tensões e pode ser vista como resposta das elites econômicas às alianças políticas que os movimentos sociais tornaram mais evidentes a partir de 1968. A sequência de eventos que articula o movimento estudantil, as manifestações de rua, a decretação do Ato Institucional-5, a greve de Osasco e a criação da Oban, será analisada mais adiante. Ganha relevo a percepção de elites políticas e econômicas de São Paulo em torno da urgência de ação perante o que consideravam o caráter insurrecional das forças atuantes naquela conjuntura, no caso, a aliança entre movimento operário e o movimento estudantil, como será detalhado mais adiante.
As informações de Fiúza de Castro são corroboradas por outros militares de alta patente. Carlos de Meira Mattos, por exemplo, embora mais discreto, reafirmou a mesma percepção em um trecho de seu depoimento ao CPDOC nos seguintes termos: “Não sei se vocês notaram que o Nordeste foi muito calmo nesse problema de subversão. Não teve nada maior no Nordeste. O centro de tudo isso foi São Paulo” (D’ARAUJO; SOARES; CASTRO, 1994, p. 105).
Da mesma forma, o almirante João Paulo Penido Burnier indica percepção semelhante:
(...) A influência das Forças Armadas na segurança interna começou mais fortemente a partir de 1964, em especial, a partir de 1968, porque começava a haver repercussões das tentativas de combate ao regime militar (...). Em 1968, (...) com o primeiro atentado terrorista no aeroporto de Guararapes [foram criados] grupos, unidades específicas para combate e repressão à subversão. Criando o DOI-CODI, criando o Centro de Operações Bandeirantes em São Paulo, no combate ao pessoal subversivo, (...) terrorista, contra aqueles atentados contra embaixadores. Havia pessoal especializado. Porque realmente a Polícia Civil não tinha condições de fazer isso (D’ARAUJO; SOARES; CASTRO, 1994, p. 192).
Para Ciro Guedes Etchegoyen4, que chefiou a Divisão de Informações do II Exército, a inserção de São Paulo foi ainda mais profunda, anterior e decisiva:
(...) E por que o senhor acha que a revolução aconteceu?
C.E. - Porque São Paulo quis que acontecesse. (...) São Paulo quis acabar com o governo Jango, que era podre (...) tinha todos os defeitos que nós reconhecíamos. Mas quem botou todo mundo contra Jango foi São Paulo.
Mas muitos militares entendiam que havia um crescimento do movimento comunista, do sindicalismo, corrupção, enfim...
(...) A senhora perguntou quem fez. Foi São Paulo. (...) Evidentemente, nós tínhamos no Brasil uma república sindicalista: um presidente sindicalista, todo mundo estava na república sindicalista e um movimento comunista muito forte, vindo de fora e de dentro. Uma situação econômica muito difícil(...)presidente sem autoridade moral, comprometido com todos os lados: com a direita e com a esquerda. (...)um governo central que estava fazendo uma aproximação com os sindicatos de forma completamente irregular, trazendo ameaças à estabilidade nacional, ameaçando nossa indústria, nosso comércio (...) se não houvesse insatisfação, o comunismo não progredia. Mas se não há insatisfação, a direita também não progride. Os movimentos extremados só progridem quando há um cadinho de insatisfação. (D’ARAUJO; SOARES; CASTRO,2004, p. 175-176).
Do mesmo modo, outros militares graduados destacaram em seus depoimentos a mesma compreensão, como assinala o ex-chefe de Gabinete do Governo Geisel, Gustavo Moraes Rego Reis5:
O DOI começou em São Paulo, inspirado na OBAN – Operação Bandeirantes – que fora montada em meados de 1969, no DEOPS, sob a chefia do delegado Fleury, o governador Abreu Sodré obteve auxílio substancial do empresariado paulista para financiar suas atividades. A OBAN tinha vínculo com o II Exército (...). Um grupo de militares do Exército passou a participar efetivamente daquelas ações, juntamente com policiais civis e Polícia Militar do estado, ainda que informalmente (D’ARAUJO; SOARES; CASTRO,1994, p. 154).
A proximidade crescente entre militares e empresariado, setores que não poderiam estabelecer relações de favorecimento, resultou em tensões, contradições e ilegalidades flagrantes como indicam os depoimentos de Gustavo Moraes Rego abaixo e, na sequência, do Almirante Pereira Burnier:
CPDOC - O apoio do empresariado, do IPES6, quão importante teria sido?
G. R. - Foi uma faca de dois gumes. Porque o problema de São Paulo é delicado. Só posso me referir à época em que vivi. Um general tem que se resguardar muito porque o empresário proporciona facilidades – eu não posso nem considerar isso como falta de honestidade pessoal, são favores que se refletem na instituição. Asfaltam quartel, outro dá não sei o quê, outro proporciona não sei o quê. Isso aí foi feito muito durante a revolução. Depois isso se transformou, em muitos casos, numa espécie de venda de segurança. Houve companheiros nossos que “cobravam”, a título de segurança, favores do empresariado às suas unidades. (D’ARAUJO; SOARES; CASTRO,2004, p. 48-49).
Como apontado anteriormente, além dos militares, foram analisados dados coletados nas memórias, depoimentos, entrevistas, entre outros fragmentos, de mais dois grupos, no caso, políticos e empresários. A seguir, serão cotejados e analisados trechos das memórias de três personagens centrais do período, o governador de São Paulo, Roberto Costa de Abreu Sodré, o ministro do Trabalho, Jarbas Passarinho e o empresário Luis Eulálio Bueno Vidigal Filho.
O Espectro de Nanterre, a greve de Osasco e a Oban: pistas, nexos e convergências
A análise de eventos ocorridos entre 1968 e 1969 em São Paulo permite compreender a articulação das forças políticas em operação naquele contexto. No arco temporal delimitado pelo Primeiro de Maio na Praça da Sé, em 1968, e a criação da Oban, em julho de 1969, emergem três personagens cujos depoimentos, décadas depois e em circunstâncias distintas, revelam uma narrativa comum decorrente da posição que se forjou no período em torno da ameaça política representada pelas mobilizações operárias e estudantis.
A convergência das versões de Roberto Costa de Abreu Sodré, governador de São Paulo no período, de Jarbas Passarinho, então ministro do Trabalho, e de Luis Eulálio de Bueno Vidigal Filho, empresário, um dos herdeiros e na época diretor da Cobrasma, principal metalúrgica de Osasco, assinala a perspectiva que os setores dirigentes construíram em torno do movimento operário no auge das tensões políticas do regime militar. Mais tarde, no final da década de 1970, Luís Eulálio seria um dos negociadores patronais junto aos metalúrgicos do ABC. Ao longo dos anos de 1980, assumiu a presidência da Federação das Indústrias de São Paulo (Fiesp), liderando um movimento que denominou de “renovação” da entidade.
As memórias de Abreu Sodré foram publicadas em 1995 com o título No Espelho do Tempo: meio século de política. Ambivalente sobre o recrudescimento da repressão durante sua gestão como governador, o relato de Abreu Sodré oscila entre as declaradas “convicções liberais” e sua atuação no período. Filiado ao partido da União Democrática Nacional (UDN), bacharel egresso da Faculdade de Direito do Largo São Francisco, iniciou sua atuação política como estudante no Estado Novo, quando foi interrogado sobre suas atividades na Delegacia Especializada de Ordem Política e Social (Deops) em 1941. O depoimento prestado na época foi reproduzido em fac-símile no livro de memórias, com comentários de Sodré sobre suas convicções democráticas.
Em seu relato, o ex-governador se distancia do grupo que classificou como “radicais de direita”, entre os quais cintilava a figura de seu ex-professor na Faculdade de Direito, Luís Antonio da Gama e Silva7, artífice do arcabouço jurídico da legislação de exceção durante a ditadura. Contudo, embora busque distanciamento em relação ao endurecimento do regime, compartilha a mesma visão sobre a conjuntura insurrecional de 1968, concepção que sustentou o recrudescimento da repressão. Tal percepção é narrada como decorrência dos sucessivos sequestros ocorridos no país e das tensões de confrontos estudantis. Ainda assim, toma o comício do Primeiro de Maio, em 1968, como ponto de inflexão no acirramento político, associando igualmente as manifestações em São Paulo aos conflitos de Nanterre.
Situada nos arredores de Paris, numa área periférica e de concentração de pobreza, cercada pelo cinturão industrial, a localidade é considerada o epicentro da mobilização dos estudantes franceses deflagradas em maio daquele ano e uma das referências nas estratégias de aliança entre operários e estudantes.
O primeiro trecho transcrito recupera as memórias de Roberto Costa de Abreu Sodré, governador de São Paulo na fase aguda da repressão. Em sua versão, Abreu Sodré aponta como elemento decisivo para o acirramento da repressão a aliança entre estudantes e operários, verificada no interior do crescente enfrentamento. Cabe assinalar que o mesmo argumento foi utilizado por Jarbas Passarinho, então ministro do Trabalho, e pelo empresário Luis Eulálio de Bueno Vidigal, em seus relatos memorialísticos publicados respectivamente em 1997 e 2007 e que serão transcritos mais adiante.
As semelhanças entre Osasco e Nanterre são realçadas por Sodré, como aponta o trecho a seguir coletado nas memórias publicadas em ١٩٩٥:
No Dia do Trabalho – 1º de Maio de 1968 – realizou-se comício na Praça da Sé, (...) contrariando pareceres e recomendações, resolvi comparecer. A orientação de meu governo era de que a polícia não se deveria opor a quaisquer manifestações, desde que não feríssemos princípios da liberdade alheia. Semanalmente recebia em palácio os líderes estudantis da época e, mesmo se o confronto de opiniões era por vezes vigoroso, o resultado compensava na medida em que permitia um conhecimento melhor dos anseios da juventude e uma aproximação das gerações. De meu ponto de vista, a repressão a manifestações e movimentos legítimos seria contraproducente. Essa política liberal – causa de graves atritos com a “linha dura do regime” – irritava também os radicais de esquerda, cujo único desejo era ver o circo pegar fogo. Sabíamos que, aproveitando a oportunidade dessa manifestação de 1º de maio, um grupo de estudantes e agitadores tentaria provocar incidentes violentos. Isso forçaria a intervenção da polícia, criando na prática a aliança estudantil-operária preconizada por teóricos das universidades de Paris e de Nanterre. Os serviços de informação das polícias civil e militar haviam interceptado o rascunho do roteiro da ação provocadora, que chegava a estabelecer as rotas de fuga de cada grupo. (SODRÉ, 1995, p. 157).
Como indicado anteriormente, a convergência das versões é um elemento que se destaca no cotejamento dos depoimentos, sobretudo por se tratar a memória de um território fluido, onde as narrativas sobre um mesmo evento são muitas vezes contraditórias. Os depoimentos analisados, coletados em momentos distintos, cristalizam as versões de três personagens que atuaram diretamente naquela conjuntura. Tal convergência expressa possivelmente o resultado da conjugação de esforços entre órgãos e instituições do Estado com parte do empresariado paulista.
A seguir, o trecho extraído das memórias de Jarbas Passarinho permite ampliar tal constatação. Embora longa, a transcrição se justifica ao reforçar as versões convergentes, indicando uma fina articulação entre o governo de São Paulo, empresários e a esfera federal. O peso dessa articulação expressa tanto a assimetria como a desproporção das forças atuantes, como pode ser conferido a seguir:
Em 1968, o confronto é intensificado. Chega ao auge. Sucedem-se assaltos a bancos, com mortes de vigilantes, bomba contra o consulado americano, em São Paulo (fevereiro), vultosas manifestações estudantis nas ruas, culminando com a “Passeata dos 100 mil”, no Rio (junho), carro-bomba contra o Quartel-General do II Exército, São Paulo, matando o soldado Mário Kozell Filho e ferindo outros (junho); greves de metalúrgicos (outubro); assalto e roubo de fuzis do Hospital Militar de Cambuci, São Paulo (junho), com o estripamento da sentinela; agressão física ao governador de São Paulo (1 de maio); assassinato do capitão americano Charles Chandler na frente de sua esposa e de seu filho de 9 anos de idade (outubro) e do major alemão, aluno da Escola de Comando e Estado-Maior do Exército, Maximilian Westernhagen, confundido com o capitão boliviano Gary Prado, que prendera Guevara e era suspeito de o haver executado (julho). (...) a violência armada, inclusive com ações terroristas, acuara o Governo. Os quatro anos passados haviam sido proveitosos para os contestadores. Tiraram partido de erros crassos, como a natimorta guerrilha de Caparaó. Investiram sobretudo na juventude. A militância básica da ANL veio da dissidência universitária comunista paulista, que, segundo revelações atuais de líderes da esquerda leninista, incorporou 70% dos ativistas. Treinaram seus quadros não apenas em Cuba, mas em outros países a Cortina de Ferro e na China. Destacavam-se, já, as ações arrojadas de Marighella, (...) as passeatas avolumaram-se(...)A arregimentação dos estudantes levara-os a crescer em audácia (...) praticaram ação de massa, em nada ficando a dever ao que Cohn-Bendit, Daniel fizera em Paris. (PASSARINHO, 1996, p. 302-303).
A seguir, o trecho extraído do depoimento de Luis Eulálio de Bueno Vidigal, cujas memórias foram organizadas a partir de entrevistas concedidas a Rubens Paulo Gonçalves. Direto e objetivo, Luís Eulálio reafirma seus vínculos com o regime militar, conforme assinalado abaixo. Ainda que igualmente longa, a transcrição oferece um relato sobre o modo pelo qual as articulações se construíam no período e o acesso facilitado aos empresários pelos grupos militares instalados no poder central, além das relações franqueadas também nos círculos estaduais:
Com a Revolução de 1964 e mesmo antes dela, sempre fui um homem chamado de “direita”. Participei da “Marcha da Família pela Liberdade”. Tanto eu como papai fomos absolutamente favoráveis à queda de Jango. Quando a Revolução aconteceu e Castelo Branco assumiu, vimos a possibilidade de colocar o Brasil nos eixos. Ele era um homem correto e honesto, sem pretensões políticas e com metas muito definidas. Acho que cometeu um erro grave: não estabeleceu no Ato Institucional nº 1 que governaria somente por quatro anos. Tinha força para isso e redemocratizaria o Brasil nesse período. Não o fez. Caso contrário, teria evitado o golpe de 1967, no qual teve de ceder a Costa e Silva, deixando o Brasil a vários anos governado por militares e desvirtuando o original sentido da Revolução. (GONÇALVES, 2007, p. 68).
A narrativa de Luis Eulálio, em torno da greve na Cobrasma, realça os vínculos e as articulações bem como a perspectiva empresarial acerca do sindicato e de suas lideranças e o prosaico encontro com Lamarca:
(...) Tínhamos seis mil funcionários – dos quais, 3.500 na Cobrasma. Os sindicatos eram dirigidos por homens reconhecidamente de esquerda (...). Em 18 de junho de 1968, a Cobrasma foi tomada por um grupo de funcionários e sindicalistas. Às dez horas da manhã (...), fecharam os portões, com mais de 3.500 empregados dentro, isolaram os engenheiros em um prédio e ficaram lá. Disseram que não queriam nada, que não reivindicavam nada, portanto, não havia o que conversar (...), José Ibrahim era o presidente do sindicato. (...) Papai ligou para o governador Sodré (...). Nessa época, era chefe do Serviço de Informações (S2) do Quarto Regimento de Infantaria do Exército em Quitaúna, muito próximo à indústria, o Capitão Lamarca (...). Alguns meses antes, eu fora chamado por ele para conversarmos sobre a segurança da fábrica e tinha lhe dado todos os pontos de localização de guaritas, entrada e saída de pessoal. O interessante de nossa conversa é que ele me pareceu o mais reacionário dos reacionários. Enganou-me completamente. (GONÇALVES, 2007, p. 69).
Os vínculos com os grupos instalados no poder central expressam bem as relações de classe. O pai de Luis Eulálio, por exemplo, professor na Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo, mantinha uma relação estreita com o ministro da Justiça Luis Antonio Gama e Silva, a quem substituiu na direção da escola. Como detalha o relato, Gama e Silva foi prontamente acionado para intervir na greve em Osasco.
A greve durou das dez horas da manhã às onze horas da noite. (...) À tarde, (...) resolvemos entrar em contato com Brasília. Papai telefonou para o Luis Antonio Gama e Silva, Ministro da Justiça e seu colega como professor na Faculdade. Imediatamente, ele falou com o presidente e com Passarinho, então Ministro do Trabalho, que veio para São Paulo já ciente de que, em Minas, haviam invadido a Mannesman e que também era uma simples demonstração de força, sem qualquer reivindicação. Gama falou diretamente com o secretário de segurança, Coronel Marques, e pediu que ocupasse o município de Osasco. As tropas chegaram e uma intervenção branca foi feita no município, até que às oito horas da noite avisaram que iriam invadir a fábrica. (...)No dia seguinte, houve uma reunião na Delegacia Regional do Trabalho e fui representando a Cobrasma. No início, constatei que estavam presentes o Ministro Passarinho, um diretor do sindicato, já que José Ibrahim estava foragido (...). O propósito da reunião era evitar demissões. Indaguei ao ministro se eu demitiria, ou não, os que haviam sido presos. Ele não tinha uma resposta pronta e criou-se um impasse. (GONÇALVES, 2007, p.69).
Não por acaso, em determinado trecho do depoimento de Luis Eulálio, encontra-se a mesma interpretação sobre as articulações que teriam se construído no período sob inspiração dos movimentos internacionais, difundidos a partir do célebre “Maio de 68” francês, como assinalado a seguir:
(...) [A greve da Cobrasma foi] uma orquestração de movimentos de esquerda, nos quais se incluíam a revolta estudantil, (...), no Rio de Janeiro; a greve na Mannesman, em Belo Horizonte; da Belgo-Mineira, em Contagem. Foi a época do sequestro dos embaixadores e das manifestações terroristas. (...) O sentido desse movimento foi mostrar a força da esquerda, sem dúvida inspirado no movimento de Daniel Cohen-Bendit, em Paris. O José Ibrahim tinha apenas vinte anos e era maoísta. A revolta era chamada por eles de “A Nanterre brasileira”. (GONÇALVES, 2007, p. 69).
As convicções de Luis Eulálio seriam reafirmadas anos depois quando, no contexto da distensão política que antecedeu a abertura e a redemocratização, ainda assim, em debate promovido pelo jornal O Estado de São Paulo confirmou a vocação autoritária:
Devo ratificar o que já disse anteriormente, não sou um liberal na economia, como não sou um liberal na política (...) quero deixar bem claro que nunca escondi essa minha posição. (...) Eu acho que o AI-5 pode ser incorporado a Constituição porque aí deixa de ser exceção, deixa de ser bandeira. (O ESTADO DE SÃO PAULO, 1977, p. 49).
No mesmo período, entre o final da década de 1970 e ao longo dos anos 1980, Luis Eulálio Bueno Vidigal Filho ganhou notoriedade ainda maior, tornando-se um dos principais protagonistas da cena patronal em São Paulo e destacado negociador com as lideranças metalúrgicas do ABC Paulista, especialmente com Luis Inácio da Silva.
Considerações finais
Ao recolher vestígios da conjugação de interesses empresariais com os dispositivos militares na repressão aos movimentos sociais, em especial à organização sindical, o artigo apresenta duas perspectivas de análise. Por um lado, associa a criação da Operação Bandeirantes (Oban) aos eventos de Osasco, sobretudo à greve protagonizada pelos metalúrgicos da cidade em julho de 1969, no contexto do endurecimento do regime. De outro lado, além de assinalar a especificidade da atuação militar na repressão sindical, o artigo procura agregar como elemento de análise a unidade retórica que sustentou a presença do empresariado na escalada repressiva e sua articulação com as esferas do poder federal e estadual.
Desse modo, argumenta-se que a presença crescente de capitais internacionais contribuiu para tornar São Paulo o eixo do aparato repressivo, que deixou de ser atribuição exclusiva da polícia para se articular com o exército e a colaboração civil-empresarial. A conjugação aos interesses empresariais pode também ser analisada como decorrência da expansão dos setores financeiro e industrial, verificada ao longo das décadas de 1950 e 1960, em particular o metal, mecânico, metalúrgico e automobilístico, aspecto que merece aprofundamento em estudos subsequentes.
Deve ser destacada, ainda, a intensa circulação dos grupos dirigentes em esferas e papéis diferenciados, como estruturas de poder econômico, de representação patronal ou em instituições acadêmicas de elevado prestígio. A intrincada rede de sociabilidades assim tecida resulta em uma trama que promove vínculos de confiança, facilita o acesso a informações restritas e favorece tomada de decisões, fortalecendo e realimentando uma determinada estrutura de poder e comando, representada, no caso, pela aliança entre empresários, militares e governantes.
Por fim, conjunturas de crise aguda, como a vivenciada em 1968, oferecem oportunidades privilegiadas para a análise das relações de poder. Em tais circunstâncias, e no intuito de recompor a sustentação de sua estrutura, o corpo social produz a evisceração das articulações decorrentes de seus interesses e as posições e privilégios de classe se tornam ainda mais evidentes.
Contudo é interessante observar que embora a organização sindical e a luta dos metalúrgicos de Osasco tenham sido duramente atingidas em 1968, a experiência de mobilização e retomada do movimento de trabalhadores ressurgiria em novas bases em 1978, no ABC Paulista, caracterizando um novo polo de poder popular que reverberaria pelas décadas seguintes, contribuindo para redefinir a face política do país.
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Recebido em 06/04/2020
Aceito em 16/09/2020
1 Existe uma vasta literatura sobre a correlação entre concentração industrial em São Paulo e os processos decorrentes da urbanização, periferização e subsequente metropolização associados à expansão dos investimentos que incidiram sobre o entorno da capital paulista. O tema é abordado pela História Econômica, Geografia Humana, Urbanismo e Planejamento Territorial, Sociologia Urbana, entre outras áreas do saber. Parte dessa discussão pode ser encontrada, por exemplo, em Singer (2017), Szmrecsányi (2004), Lencioni (1994), Kowarick (1993). Embora a abordagem aqui proposta esteja ancorada na díade Memória-História, ficam registradas também algumas referências da Sociologia sobre participação política, movimentos sociais e movimento sindical, com destaque para a greve de Osasco e a análise do chamado “Novo Sindicalismo”: Ladosky e Oliveira (2014), Rovai (2012, 2014), Weffort (1972) e Brant (1979).
2 A posição dos militares foi extraída do conjunto de depoimentos coletados pelo Centro de Pesquisa e Documentação da Fundação Getúlio Vargas (CPDOC-FGV) em razão do projeto 1964 e o Regime Militar desenvolvido pelo CPDOC, com apoio da Financiadora de Estudos e Projetos (Finep), no período de 1992 e 1995. Uma parte das entrevistas foi disponibilizada na íntegra pelo Centro. Outra parte considerável só está disponível na trilogia organizada pelos pesquisadores Maria Celina D’Araújo, Gláucio Ari Dillon Soares e Celso Castro, composta pelos livros Visões do Golpe: a memória militar de 1964, Os Anos de Chumbo: a memória militar sobre a repressão e A Volta aos Quartéis: a memória militar sobre a abertura, e lançada entre 1994/1995. Sempre que disponível, optou-se pela consulta dos depoimentos em sua íntegra.
3 Chefiou a Divisão de Informações (D2) do gabinete do ministro da Guerra, general Aurélio de Lira Tavares, entre 1967 e 1969. Foi um dos criadores do Centro de Informação do Exército (CIE) e membro da Comissão de Investigação Sumária do Exército encarregada de executar o AI- 5. Foi também secretário do general Sílvio Frota e, entre 1972 e 1973, chefiou o Centro de Operações de Defesa Interna (Codi), principal centro de repressão política do regime.
4 Cyro Guedes Etchegoyen nasceu em Porto Alegre, em 1929. Cursou a Academia Militar das Agulhas Negras, em 1949, e a Escola de Comando e Estado-Maior do Exército (Eceme), em 1964. Serviu no gabinete do ministro do Exército, general Orlando Geisel, atuando na área de Informação e Contrainformação. Chefiou a Divisão de Informações do II Exército. Passou para a reserva em 1983 com a patente de coronel.
5 Chefe de Gabinete do Governo do general Ernesto Geisel (1974-1979).
6 O Instituto de Pesquisas e Estudos Sociais (Ipes) foi criado oficialmente em 1962, no Rio de Janeiro, por iniciativa de empresários organizados no Rio e em São Paulo e obteve a adesão de outras unidades da federação. Tornou-se uma das entidades que articulou conspiração para o golpe de 1964 (DREIFUSS, 1981).
7 A respeito da atuação de Gama e Silva e outros membros da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo, consultar a tese de doutorado de Sonale Diane Pastro de Oliveira (2019).
DAS GREVES DE 1978 À BOLSONARIZAÇÃO DO BRASIL:
afirmação e negação do sujeito democrático
FROM THE STRIKES OF 1978 TO THE BOLSONARIZATION OF BRAZIL: affirmation and denial of the democratic subject
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Murilo Leal Pereira Neto*
Resumo
A fim de compreender a “bolsonarização do Brasil”, o presente artigo analisa três momentos históricos: as greves metalúrgicas de 1978-1980, a formação do Partido dos Trabalhadores, ligada a essas lutas e a sua atuação nas eleições de 1982, e a derrota eleitoral de Fernando Haddad nas eleições municipais de 2016. O fio condutor é a formação e o enfraquecimento de uma coalizão operária e popular como sujeito democrático. Conclui-se que sua reconstrução é condição para revigoramento da democracia.1 Como método, o artigo adota a orientação progressiva/regressiva de Henri Lefebvre: partir do problema percebido no presente, estabelecer seu estatuto teórico, investigar sua gênese em um ponto determinado do passado, reconstruir sua historicidade e retornar ao presente compreendendo-o melhor.
Palavras-chave: Greves metalúrgicas. Democracia. Partido dos Trabalhadores. Eleições.
Abstract
In order to understand the “bolsonarization of Brazil”, this article analyzes three historical moments: the metallurgical strikes of 1978-1980, the formation of the Workers’ Party linked to these struggles and its performance in the 1982 elections and the electoral defeat of Fernando Haddad in the 2016 municipal elections. The guiding thread is the formation and weakening of a workers’ and popular coalition as a democratic subject. It is concluded that its reconstruction is a condition for reinvigorating democracy. As a method, the article adopts Henri Lefebvre’s progressive / regressive orientation: starting from the problem perceived in the present, establishing its theoretical status, investigating its genesis at a certain point in the past, reconstructing its historicity and returning to the present, understanding it better.
Keywords: Metal strikes. Democracy. Labor Party. Elections.
No amplo debate em que vão se definindo linhas de interpretação e posicionamentos sobre a “bolsonarização do Brasil” 2, como drama mais profundo e duradouro do que uma conjuntura política adversa, a hipótese de um enfraquecimento do “sujeito democrático” é das mais instigantes.
No artigo “Psicologia das massas digitais e análise do sujeito democrático”, Christian Dunker (2019, p. 116) defende que há situações nas quais “as condições para a sustentação do sujeito democrático se encontram ameaçadas”. As condições básicas para a existência desse sujeito seriam uma disposição psíquica e política dos cidadãos para o emprego livre da razão no espaço público, a liberdade no uso da palavra e o reconhecimento do outro como sujeito capaz de equidade perante a lei. A esses fundamentos, o autor acrescenta a abertura à inclusão de mais sujeitos ao exercício da participação democrática. Aparece implícita no argumento a ideia do “sujeito democrático” como um conjunto de cidadãos com disposições psíquicas e políticas para a experiência democrática. Para o autor, a ameaça antidemocrática no Brasil de hoje germinaria em duas origens: na emergência das massas digitais a partir de 2013 e na “desmontagem do pacto condominial” tradicional com o avanço dos direitos civis. A importância dessa proposição está, numa mão, em situar o problema em uma dimensão sociopolítica mais ampla do que o cenário sempre cambiante dos acontecimentos e da conjuntura curta e, na outra, em oferecer uma perspectiva teórica para o entendimento do fenômeno.
Partindo do mesmo diagnóstico – o enfraquecimento do sujeito democrático – apresentaremos, porém, abordagem distinta. Tentaremos propor uma linha de reflexão que identifica o ciclo de greves iniciado com os metalúrgicos em maio de 1978 como gerador da experiência de formação do sujeito democrático na história recente. Analisaremos seu perfil social e suas manifestações políticas, destacando o impacto nos ritmos e rumos da redemocratização e no processo político eleitoral já em 1982. Faremos, então, um recorte cronológico para examinar outra conjuntura: a das eleições de 2016, em que a representação político-partidária que se formara com a emergência daquele sujeito democrático sofre severa derrota, motivando a pesquisa Percepções e valores políticos nas periferias de São Paulo3, realizada pela Fundação Perseu Abramo em 2016 e 2017, na qual comportamentos e valores depois mobilizados pelo bolsonarismo se apresentam com nitidez.
Essa reconstrução e análise histórica será precedida por uma breve exposição teórica sobre o que se entende por sujeito democrático na perspectiva gramsciana.
O artigo está divido em cinco seções, apresentando teoricamente a categoria “sujeito democrático”, analisando o papel das greves metalúrgicas em sua formação, estudando o debate sobre os resultados das eleições de 1982 e de 2016 e convergindo para algumas conclusões.
Quem é o sujeito democrático?
O texto de Dunker, inspirado em Psicologia das massas e análise do eu, de Freud, opõe o sujeito democrático capaz do uso da razão no espaço público às massas digitais, grupos reunidos por uma “nova economia de identificação” ameaçadora das condições da experiência democrática. Tem merecido críticas, porém, tanto a associação do bolsonarismo a um fenômeno de emergência de massas fanatizadas, e não a uma coalizão de interesses bem definidos, quanto, na filosofia política, a atribuição da democracia às aptidões éticas dos indivíduos (COUTINHO, 2003, p. 45).
Analisando os resultados da mencionada pesquisa da Fundação Perseu Abramo, é possível notar mudanças nas percepções e nos valores em grupos sociais anteriormente eleitores do Partido dos Trabalhadores (PT), sugerindo a necessidade de um estudo sobre as transformações ocorridas na coalizão social que deu sustentação à experiência democrática dos últimos 35 anos. Além disso, cabe, a nosso ver, adotar uma perspectiva teórica que permita identificar as possibilidades de socialização e educação dos indivíduos dentro da ética democrática a que alude Dunker. Como sugere Carlos Nelson Coutinho em seu percurso teórico de Hegel a Gramsci, a formação da “vontade geral” universalista não é resultado da ação de vontades singulares virtuosas, mas “é uma realidade ontológico-social que antecede e determina as próprias vontades singulares” (COUTINHO, 2003, p. 275).
Talvez seja possível inferir que, para Gramsci, a polarização que põe a democracia em risco não opõe indivíduos racionais versus massas fanatizadas, mas interesse comum versus interesses privados. Segundo Coutinho, o filósofo atualiza a problemática do contratualismo concebendo a possibilidade de prevalência de um regime político democrático condicionado pela afirmação republicana do predomínio consensual do público sobre o privado na forma da hegemonia.
Este modelo teórico oferece-nos referências para compreender as vicissitudes da democracia brasileira desde a transição do final dos anos 1970 como um processo de consolidação de uma coalizão de interesses, organizações e valores (o “sujeito democrático”), possibilitando o estabelecimento de um “contrato democrático” materializado na Constituição de 1988, posteriormente golpeado e enfraquecido por fatores que tentaremos identificar.
Ciclo de greves e sujeito democrático
Como argumenta Eduardo Noronha, as paralisações metalúrgicas iniciadas em maio de 1978 na Saab-Scania de São Bernardo do Campo desencadearam um dos maiores ciclos de greves da história ocidental, durando, com fases diferentes de expansão, explosão, resistência e declínio, até 1997 (NORONHA, 2009). Pode-se dizer que tal mobilização, organizada em sindicatos de trabalhadores urbanos e rurais4, grupos de fábrica, oposições sindicais, comissões interfábricas, comitês de solidariedade, articulou-se a um ciclo maior de protestos contra a ditadura e constituiu o eixo da coalizão sociopolítica que deu sustentação ao processo de redemocratização e, em seguida, legitimidade e vitalidade ao regime democrático denominado por seus próceres como “Nova República”. As razões que explicam esse papel exercido pelo ciclo de greves serão examinadas a seguir.
As greves produziram intenso efeito no debate e nos conflitos entre os principais agentes que iam definindo os conteúdos, a natureza e os ritmos da transição política. Embora os metalúrgicos não apresentassem em sua pauta nenhuma reivindicação desse teor, três dias após o início da greve da Saab-Scania, o presidente da Anfavea (Associação Nacional dos Fabricantes de Veículos Automotores), Mário Garnero, que considerava a greve ilegal, veio a público declarar que as paralisações “não comprometem as ‘aberturas democráticas’” e que “dentro da ordem e da lei o diálogo fortalece as instituições” (FOLHA DE S. PAULO, 1978h, p. 23), provocando divisões entre o empresariado industrial, uma das bases de apoio da ditadura. No dia seguinte, o Sinfavea (Sindicato Nacional da Indústria de Tratores, Caminhões, Automóveis e Veículos Similares) divulgou nota oficial evocando a Lei de Greve, a 4.330, e reafirmando que as paralisações eram ilegais (FOLHA DE S. PAULO, 1978m, p. 18). No dia 17 de maio, o coronel Rubem Ludwig, porta-voz da Presidência da República, externou a posição que seria mantida naqueles primeiros confrontos: a greve era “sinal dos tempos” e o “movimento dos trabalhadores” estava previsto na legislação “onde todos esses direitos são reconhecidos” (FOLHA DE S. PAULO, 1978f, p. 22).
Sem divisões no interior da classe dominante e entre esta e as autoridades governamentais, é impensável uma mudança de regime político. As cisões, é verdade, vinham se dando independentemente das greves operárias. Em 1977, por exemplo, Geisel teve de exonerar seu ministro do Exército, Sylvio Frota, candidato de ultradireita à sucessão, que tramara um golpe, como também aceitar o pedido de exoneração do chefe do Gabinete Militar, general Hugo de Abreu, que discordara da indicação de João Batista Figueiredo, em janeiro de 1978. Mas os efeitos relativamente inofensivos desses tipos de dissidência para a aceleração e aprofundamento da redemocratização podem ser avaliados pela derrota do general Euler Bentes Monteiro, antigo apoiador da ditadura, como candidato do MDB e da Frente Nacional pela Redemocratização à sucessão de Geisel no Colégio Eleitoral em outubro. A inexpressividade política do perfil do general, adequada ao projeto que representava, é registrada na nota zombeteira dada por Elio Gaspari, muitos anos depois: “O general Euler morreu em sua casa do Rio, aos 85 anos. No dia seguinte, faleceu a porta-bandeira Mocinha, da Escola de Samba Estação Primeira de Mangueira. Ela teve um necrológio de 268 palavras. Ele, de 131. O Globo, 25 de julho de 2002” (GASPARI, 2016, p. 108). As greves metalúrgicas, por sua vez, mudaram o curso da história, como pode ser avaliado por sua importância para a renovação do sindicalismo, a formação da primeira central sindical do período democrático recente, a Central Única dos Trabalhadores (CUT), e a afirmação da liderança política de Lula que, ao contrário de Euler Bentes, permanece no noticiário 42 anos depois.
As greves operárias comprovaram aptidão para a arregimentação e mobilização de uma ampla aliança de forças, que já vinha se formando desde pelo menos 1977. A entrada em cena do movimento operário, porém, não apenas amplificava a articulação existente como, de certa forma, engendrava outra, que poderia ser denominada “democrática, operária e popular”. Sem uma coalizão política com base social forte contrária ao regime ditatorial, a transição pelo alto teria prevalecido inteiramente e produzido uma “democracia exclusiva”.
O movimento sindical internacional foi um dos sujeitos atuantes na costura dos apoios que protegeram e repercutiram as lutas metalúrgicas de maio/setembro de 1978. As greves do ABC receberam solidariedade, entre outros, do Sindicato dos Trabalhadores das Indústrias Automobilísticas UAW de Detroit, o maior de metalúrgicos dos Estados Unidos (FOLHA DE S. PAULO, 1978p); da Federação dos Metalúrgicos da Suécia; da Federação Internacional dos Metalúrgicos (FOLHA DE S. PAULO, 1978q); da IG Metall, da Alemanha (FOLHA DE S. PAULO, 1978a); da Confederação Francesa Democrática dos Trabalhadores, entre outras entidades (FOLHA DE S. PAULO, 1978j).
Um segmento da Igreja Católica, amplo e forte institucionalmente, teve também participação, atuando como uma espécie de “partido dos pobres”, com d. Paulo Evaristo Arns na liderança. O apoio moral da Igreja foi fundamental para a aceitação de que as greves eram ilegais, mas legítimas. O apoio organizacional da rede de entidades ligadas à Igreja foi, também, decisivo para a materialização da luta.
Um grupo de parlamentares do MDB integrou igualmente a coalizão democrática, operária e popular, em um primeiro momento empenhando solidariedade material e apoio moral e, mais tarde, vinculando-se organicamente (alguns deles) às articulações políticas que seriam geradas.
Mais importante foi a articulação, iniciada por um conjunto de entidades, de campanhas de solidariedade ao movimento operário, que se converteria, nos anos seguintes, em rede de apoio e elaboração de saídas para a transição democrática “com justiça social”. Diversos exemplos poderiam ser apresentados, como o apoio ao fundo de greve dos Metalúrgicos do ABC, em 1980, ou o Comitê de Apoio aos Metalúrgicos de São Paulo, na greve de outubro/novembro de 1979. A listagem sumária das entidades participantes desse último permite vislumbrar a abrangência e a qualidade das organizações e agentes mobilizados: Comitê Brasileiro de Anistia de São Paulo (CBA/SP), União Estadual dos Estudantes, União Nacional dos Estudantes, Frente Nacional do Trabalho, Apeoesp (Sindicato dos Professores do Ensino Oficial do Estado de São Paulo), Sindicato dos Jornalistas, Movimento Contra a Carestia, Plantão Jurídico da OAB/Seção de SP, Plantão Jurídico do Centro Acadêmico XI de Agosto, Núcleo dos Profissionais de Saúde do CBA/SP, Sindicato dos Médicos, Sindicato dos Padeiros, Movimento de Defesa da Amazônia, jornal Companheiro, Movimento de Oposição Aberta dos Professores, Instituto dos Arquitetos do Brasil, Sindicato dos Artistas, jornal Brasil Mulher, Associação dos Sociólogos de São Paulo, DCE da PUC, vários diretórios do MDB, representantes pastorais, profissionais liberais, advogados e parlamentares (A COMISSÃO DO COMITÊ DE APOIO AOS METALÚRGICOS, 1979).
Além da coalizão de entidades, as greves motivaram um tipo de aproximação entre movimento operário e de bairros mais intensa e organizada do que em experiências anteriores. Desde a formação dos comitês democráticos e populares, por iniciativa do PCB no pós-guerra, passando pelas campanhas de defesa do consumidor e convenções populares contra a carestia dos anos 1950, até o apoio da Federação das Sociedades Amigos de Bairros e Vilas de São Paulo (Fesab) à greve dos 400 mil, em 1957, as lutas fabris e de moradores sempre se cruzaram. A mudança, a partir de 1979, pode ser notada em uma tomada de posição, por parte de entidades e militantes, visando a articulação dos problemas do mundo do trabalho com os da moradia e da vida nos bairros, possibilitando, assim, intensas experiências comuns de lutas, como demonstrado por Francisco Barbosa de Macedo (2010) para o caso do ABC. O mesmo aconteceu na cidade de São Paulo, abertamente a partir da greve de ١٩٧٩. Ocorreu, portanto, um encontro entre o operariado fabril e os setores populares dos bairros, esses também pertencentes à classe trabalhadora, à baixa pequena burguesia e a franjas do que Paul e André Singer denominaram subproletariado (SINGER, 2012; SINGER, 1981).
Determinadas categorias de trabalhadores desempenham funções estratégicas no sistema econômico: o setor dos transportes, o fornecimento de energia, a metalurgia, entre outros. Como notou Womack Jr. (2007, p. 163-164), as greves nesses setores tendem a produzir intensa repercussão social e política. Em uma conjuntura de baixo crescimento econômico, percepção de acúmulo de perdas salariais, vigência de um regime de disciplina fabril militarizado, as paredes operárias representaram o anseio geral por liberdade de organização e manifestação, e também pela reconquista de direitos sociais, correção salarial, fim do arrocho, mudanças na política econômica.
Uma evidência de que a luta salarial dos metalúrgicos tocava no nervo de uma questão econômica geral foi a formação, ainda no segundo semestre de 1977, do Movimento pela Reposição Salarial, reunindo dezenas de sindicatos em todo o país.5
A recuperação do salário real dependia de mudanças na Lei 4.725, que disciplinava de maneira autoritária a fórmula e a periodicidade dos reajustes salariais, vigia desde 1965 e consistia em um dos pilares da política econômica (CORREA, 2013). O governo mostrou-se atento à situação e logo começaram a circular propostas de alteração. Em 25 de maio, o ministro do Trabalho anunciou a formação de uma comissão de técnicos de sua pasta e do Ministério da Fazenda, incumbida de ouvir os sindicatos e propor modificações tanto na lei de greve quanto na política salarial (FOLHA DE S. PAULO, 1978p).
Outra evidência da enorme expectativa despertada pelas greves quanto a mudanças na política salarial foram as diversas reuniões, debates e encontros logo realizados. Em 17 de maio de 1978, noite de amistoso preparatório para a Copa do Mundo, entre Brasil e Tchecoslováquia, no Maracanã, chamou a atenção dos organizadores a presença de cerca de 800 pessoas para ouvirem os deputados do MDB Alceu Collares e Rui Brito, além do professor Eduardo Suplicy, falarem sobre política salarial e controle da vida sindical pelo governo no Instituto Pedroso Horta, em Vitória, Espírito Santo (FOLHA DE S. PAULO, 1978n).
Ao invés de permanecerem no mundo dos interesses corporativos, as greves operárias foram imediatamente reconhecidas como portadoras de um valor universal. Já em 19 de maio, o cientista político, militante do PCB e professor da USP, Gildo Marçal Brandão, colocava-as em pé de igualdade de importância com outra ocorrência: “duas ordens de acontecimentos que estão se processando no país, pela sua importância para o futuro político da Nação, prendem imediatamente as expectativas”, referindo-se à candidatura da oposição à Presidência da República e às greves do ABC, por serem o primeiro movimento de grande magnitude na década e por transbordarem “os estreitos espaços institucionais vigentes”, negando que se tratasse, como imaginavam alguns, de “uma ampla orquestração destinada a favorecer o caos ou obstaculizar as reformas” (FOLHA DE S. PAULO, 1978e, p. 2).
Esta “universalidade” representada ou simbolizada pelas greves operárias não era atribuição dedutiva de um projeto filosófico, mas decorrência da posição estrutural estratégica das categorias e da imbricação de problemas econômicos, políticos e sociais decorrentes da crise do regime ditatorial, de sua legalidade e legitimidade. Um exemplo foi o manifesto de apoio assinado por mais de 800 jornalistas, divulgado em 25 de maio, demonstrando a ligação indissolúvel entre a demanda de liberdade de imprensa e a luta metalúrgica, já que estava censurada a cobertura da parede por rádio e televisão. A greve era reconhecida em sua “indiscutível legitimidade” e a censura condenada por “impedir que os verdadeiros interessados na democratização do país, os trabalhadores, tenham acesso aos veículos de comunicação para exprimir seus anseios” (FOLHA DE S. PAULO, 1978i).
Os metalúrgicos demonstravam ter consciência de que representavam, naquela conjuntura, interesses mais gerais, como se percebe no editorial de balanço da greve de outubro de 1978, publicado no jornal do Sindicato dos Metalúrgicos de São Paulo:
Jornalistas, repórteres, gravadores, luzes, câmeras, jornais, revistas, rádio, televisão, enfim tudo e todos e até mesmo o Governo, facções e partidos políticos tiveram suas atenções voltadas para um fato histórico que, esperado por todos, finalmente acontecia. Aproximadamente 250 mil trabalhadores metalúrgicos da Capital deflagraram a greve que há catorze anos vinha sendo prognosticada como necessária e inevitável, pois somente ela poria fim ao cativeiro a que foi submetido o movimento sindical brasileiro (O METALÚRGICO, 1978, p. 1).
Outros movimentos grevistas vigorosos repercutiram no campo político em períodos anteriores, como as greves gerais de 1953, 1957 e 1963 em São Paulo, conhecidas, respectivamente, como “dos 300 mil”, “dos 400 mil” e “dos 700 mil”. Seu saldo foi auferido por políticos conhecidos como populistas, trabalhistas ou comunistas, esses últimos proscritos do sistema político legal e, portanto, com recursos limitados para uma atuação mais ampla. A grande novidade gerada pelas lutas de 1978 e 1979 foi o lançamento da discussão sobre a formação de um partido de trabalhadores.
Todos os principais agentes envolvidos nos movimentos grevistas sabiam que aqueles eventos tinham consequências políticas importantes e trataram de aproveitá-las. Joaquim dos Santos Andrade, presidente do Sindicato dos Metalúrgicos de São Paulo, ainda em 1978, em entrevista a Sergio Sister, jornalista da revista Veja, declarou ser “da meia-esquerda” e, indagado se “um partido dos trabalhadores estaria, então, em seus planos no quadro da abertura política”, respondeu: “...está em meus planos a formação de um partido político, pois sou contra o bipartidarismo” (SISTER, 1978).
O debate ganhou corpo e rumo em 1979 e, de forma sintomática, a primeira edição de O Metalúrgico no ano trouxe na capa a matéria “Metalúrgicos de São Paulo se reúnem em Lins e decidem sobre a criação do partido operário, contrato coletivo e direito de greve”. Referia-se ao IX Congresso dos Metalúrgicos do Estado de São Paulo, promovido pela federação, reunido no município de Lins em janeiro, com a presença de 37 sindicatos. Entre as 107 teses aprovadas, uma referia-se ao lançamento da “semente para a instituição de um partido político dos trabalhadores, uma vez que nós temos elevada importância na vida social brasileira e temos sido marginalizados de uma efetiva participação política diante da atual conjuntura política e econômica do país”.
Pouco depois a ideia de formação de um partido da classe trabalhadora começou a aparecer nas assembleias metalúrgicas de São Paulo e, em abril de 1979, Fernando Abreu Godoi já propugnou pela criação de “um partido operário sem patrão”.6 Em maio, outro associado, Antonio Carlos de Campo, opinou: “temos necessidade de um PT – Partido dos Trabalhadores, porém livre do governo e dos patrões, pois sabemos que não é a ARENA e nem o MDB que vão resolver os nossos problemas”.7
É legítimo dizer que a formação do Partido dos Trabalhadores foi a maior criação política de uma “época de forte invenção política” (OLIVEIRA, 2007, p. 16). Esse projeto retomava, em melhores condições e com possibilidades mais amplas, tanto a bandeira dos trabalhadores de terem uma representação própria (galvanizada no período anterior a 1964 pelo PTB, pelo PSB ou pelo lançamento de candidaturas operárias e populares avulsas) quanto a vontade das esquerdas de mobilizarem a ampla massa trabalhadora para o socialismo. Por esse motivo, analisaremos brevemente a seguir os resultados eleitorais e algumas avaliações da primeira participação do PT em disputas eleitorais, buscando um melhor entendimento da relação entre a forma política e o sujeito democrático, operário e popular, em formação no final dos anos 1970.
Sujeito democrático e eleições de 1982
Em nossa hipótese, o ciclo de greves e protestos iniciado no final dos anos 1970 constituiu um sujeito com potencial para representar a vontade coletiva nacional e popular, dinamizando a coalizão mais ampla pela redemocratização. As manifestações políticas dessa articulação aparecem mais vigorosamente na campanha das Diretas Já entre 1983 e 1984 e nas mobilizações no decorrer da Assembleia Nacional Constituinte em 1987 e 1988, mas já se podem notar nas eleições de 1982. Como vimos na seção anterior, as greves quase imediatamente transitaram da dimensão econômico-corporativa para a política e apresentaram-se intérpretes políticos da vontade coletiva que se engendrava, propondo a formação de uma organização de trabalhadores, cuja forma político-institucional veio a ser o PT. As eleições de 1982 foram a primeira grande experiência em que a nova forma política se apresentou como intérprete do sujeito coletivo.
As eleições de 15 de novembro de 1982 abriram disputa para todas as vagas de vereadores, deputados estaduais e federais, para 1/3 do Senado, para governos dos estados e prefeituras, com exceção das capitais e municípios considerados áreas de segurança nacional e estâncias hidrominerais. O PT, recém-fundado em fevereiro de 1980, logrou a façanha de lançar candidatos em todos os estados, com exceção de Alagoas e do território de Roraima (COMISSÃO EXECUTIVA NACIONAL, 2008, p. 105), e conquistou, nacionalmente, duas prefeituras, em Diadema (São Paulo) e Santa Quitéria (Maranhão), 8 cadeiras na Câmara dos Deputados, 13 em assembleias legislativas, além de “algumas dezenas de vereadores”. O voto era vinculado, ou seja, o eleitor era obrigado a sufragar chapa completa do mesmo partido, sob risco de anulação. Os resultados foram considerados “uma derrota”,8 “menos do que esperávamos” (COMISSÃO EXECUTIVA NACIONAL, 2008, p. 111), com consequências perigosas para o partido, uma vez que o mínimo exigido pela legislação eleitoral (5% do eleitorado do país e 3% em nove estados) não fora atingido, com o atenuante da exigência ter sido postergada para 1986. Não interessa aqui analisar as causas de tamanha decepção, mas não deixa de ser importante notar o otimismo e a confiança gerados pelo ciclo de lutas e manifestações que se iniciara poucos anos antes, embora superdimensionados.
O que importa assinalar, sucintamente, é a forte conexão entre a campanha eleitoral do PT em 1982 e a formação do sujeito social que vinha se dando desde meados dos anos 1970. Vamos sustentar nossa tese em quatro argumentos: uma análise dos objetivos da campanha; dos métodos de organização dela; o exame do perfil sociopolítico das bancadas federal e estadual eleitas por São Paulo e, finalmente, o estudo de algumas das avaliações realizadas por dirigentes do partido.
Os objetivos da participação nas eleições são afirmados na Carta Eleitoral do PT, lançada no Jornal dos Trabalhadores na segunda quinzena de abril de 1982:
1. Levar o programa do PT aos trabalhadores, usando a campanha eleitoral para dar continuidade às lutas sociais e para aumentar a organização e a consciência política do povo, tarefas estas que servirão para ampliar a consolidação do PT.
2. Constituir-se na expressão partidária que aglutine os trabalhadores numa proposta que represente, na luta contra a ditadura, os interesses e as reivindicações do movimento operário e popular. Além disso, visa a fortalecer uma alternativa política diferenciada da oposição liberal burguesa, colocando a questão do poder político do ponto de vista dos trabalhadores (CARTA ELEITORAL DO PT, 2008, p. 85, grifo nosso).
Os métodos adotados para a escolha dos candidatos, a elaboração das plataformas e a destinação de recursos não deixam dúvidas sobre a condição do PT, em suas origens, como forma político-partidária de um conjunto de sujeitos em luta.
As plataformas eleitorais deveriam, ao mesmo tempo, expressar as ideias do programa partidário de transformação da sociedade e ser extraídas “de consultas a partir dos núcleos e dos movimentos populares e sindicais combativos, tendo princípio no levantamento dos problemas que a população considera prioritários para serem solucionados em sua área a curto, médio e longo prazos” (CARTA ELEITORAL DO PT, 2008, p. 86).
Quanto à escolha dos concorrentes, a orientação oficial era que “antes das convenções que indicarão oficialmente os candidatos, o partido deve apoiar todo o processo de seleção em encontros democráticos municipais, distritais e estaduais, garantindo participação ampla dos núcleos nas indicações”. O perfil delineado para as candidaturas reitera o valor esperado dos pretendentes: “nosso partido não cairá no erro de escolher como candidatos aqueles que têm o melhor discurso, mas sim aqueles que têm a melhor prática popular” (CARTA ELEITORAL DO PT, 2008, p. 87, grifo nosso). As finanças da campanha, por sua vez, deveriam ser unificadas em um fundo e estabelecido um conjunto de compromissos com os candidatos.
Um rápido exame dos nomes dos deputados estaduais e federais eleitos por São Paulo reforça a tese de que o PT representava, então, o sujeito coletivo que vinha se formando. Tanto o deputado federal (Djalma Bom) quanto o estadual (José Cicote) mais votados eram diretores dos sindicatos metalúrgicos que haviam liderado as greves no ABC (São Bernardo e Santo André, respectivamente). Outros três parlamentares federais haviam tido participação direta na mobilização da rede de solidariedade ao movimento (Suplicy, Bete Mendes e Irma Passoni). Dos nove estaduais, além de Cicote, mais três elegeram-se no rastro da mobilização fabril e de bairro que constituíram o ciclo grevista: Expedito Soares, Anízio Batista e Eduardo Jorge.
Finalmente, do amplo debate que se seguiu às eleições, vamos selecionar falas de alguns dirigentes, ricas por evidenciarem a ideia que se tinha do papel daquela organização no processo político brasileiro e por apontarem um horizonte que desaparecerá na crise a partir de 2013.
Quanto à vida interna do partido, na mesa-redonda realizada na redação do Jornal dos Trabalhadores, ainda em 1982, Eduardo Jorge defendeu a tarefa do fortalecimento dos núcleos de base (grafado na transcrição do debate com “n” maiúsculo, “Núcleos”), portanto, de um sistema de organização que aproximasse mais o sujeito social da forma política: “quanto à questão das novas tarefas, a democratização é importantíssima para revitalizar o Partido, tanto na direção quanto na base. Os Núcleos, que estão meio desacreditados, têm de ser revalorizados de verdade. Para isso, o Núcleo tem de ter poder...” (DIRCEU, 2008, p. 133).
O debate prosseguiria pelos anos seguintes e, dos diversos discursos reunidos no livro E agora PT?, de 1986, selecionamos dois: de José Dirceu e de Francisco de Oliveira, por se posicionarem diretamente sobre o problema da natureza do PT e do seu papel político na transição para a democracia. Dirceu expressa plena consciência de que “o PT aparece no bojo do movimento sindical do ABC e no interior das lutas populares” e que “a independência política da classe trabalhadora na luta contra a ditadura, na luta por melhores condições de vida e de trabalho, e na luta pelo poder é a base da construção do PT” (DIRCEU, 1986, p. 36).
Oliveira, em um texto que merece ser lido e relido, caracteriza o PT como “partido de base operária, vocacionado para elevar a classe operária à condição de classe dirigente e dominante...” (OLIVEIRA, 1986, p. 16).9 Se o juízo partisse de um velho comunista, se desconfiaria tratar-se de um clichê. Não é, obviamente, o caso, como fica claro no texto em que o autor afirma:
O caminho “reformista” da experiência socialdemocrata sueca, por exemplo, mostrou ser capaz de ir mais longe que o caminho “revolucionário” das experiências do Leste, tanto no que se refere às condições concretas do cotidiano operário, quanto no que concerne às possibilidades de que o operariado e as outras classes dominadas venham a constituir o novo poder (OLIVEIRA, 1986, p. 29).
No contexto brasileiro dos anos 1980, por razões que já devem ter ficado claras, conceber um papel “dirigente e dominante” para a classe operária era renovar uma velha aposta, o que exigia atualizações. Cabia ao PT, como sua “primeira e mais importante função” no cenário brasileiro, “forjar uma nova identidade da classe trabalhadora, função primordialmente exercida pelo PC brasileiro, cujo vácuo foi preenchido pelo populismo e que, mais recentemente, é negada pela anticultura política da sociedade de massas”. Chico de Oliveira deixa clara a imbricação, no projeto que ele defendia, entre esse processo e a construção da democracia: “A tarefa, pois, de recuperar ou de construir uma nova identidade para a ampla classe trabalhadora brasileira não é nenhum signo de arcaísmo, senão, pelo contrário, uma das necessidades fundamentais para a constituição de um campo democrático”. Tratava-se, a nosso ver, de uma tarefa política que partia da “universalidade” potencial de uma classe fundamental para projetar e construir, para a sociedade e com a sociedade, uma alternativa realmente “universal”, no sentido de contemplar a maioria. Nas palavras de Oliveira: “Partindo de bases classistas, da comunitas, a proposta socialista é de societas, isto é, para a sociedade como um todo”.
O grande problema, já diagnosticava Chico, “o ponto nevrálgico” da crise da esquerda, era a perda de centralidade da classe operária e a “ascensão das classes médias a um verdadeiro estatuto de classe social”. Um resultado desse e de outros processos combinados era a “vitória ideológica do capitalismo”. Segundo o autor, “esse aceitar que ser capitalista é que ‘é bom’ é a verdadeira vitória do regime imposto pelas armas em 1964” (OLIVEIRA, 1986, p. 22.)
Não deixa de surpreender a antevisão, em 1986, de uma crise das esquerdas condicionada pelo declínio da classe operária, pela ascensão das classes médias, configurando uma nova aceitação dos valores burgueses, processo que aparecerá acabado na pesquisa Percepções e valores políticos nas periferias, como veremos. Esse diagnóstico será aprofundado pelo sociólogo nos anos seguintes, à luz de novos desdobramentos, e compartilhado por diversos pesquisadores.
As eleições de 2016 e o enfraquecimento do sujeito democrático
A derrota eleitoral do candidato Fernando Haddad para a Prefeitura de São Paulo em 2016, o processo do impeachment de Dilma Roussef – iniciado em dezembro do ano anterior – e a eleição de Bolsonaro em 2018 são eventos de um mesmo conjunto que, em nossa perspectiva, têm relação com o enfraquecimento do sujeito democrático em anos anteriores. Estamos denominando aqui, como já mencionado, esse processo de “bolzonarização” da sociedade, significando o avanço político da extrema direita na crista de uma onda conservadora de alcance internacional, com uma “proposta incivilizada” de consequências ainda em disputa10.
Em 2003, Oliveira avaliava que “a sociabilidade plasmada à época do trabalho como categoria central, do trabalho fixo, previsível e, a longo prazo, base para a produção fordista e do consenso welfarista, dançou (...)” (OLIVEIRA, 2003, apud TELLES, 2006, p. 186). O percurso histórico desta crise é sintetizado por Ana Amélia Silva (2006): a fração ativa da classe trabalhadora tornou-se minoritária, perdendo influência e radicalidade. Seus representantes transformam-se em gestores dos fundos públicos (FGTS, PIS-Pasep, FAT) ao invés de visarem ao objetivo político de sua apropriação e controle pelo público. Ao mesmo tempo, os conflitos sociais foram deslegitimados, despolitizados e desqualificados (SILVA, 2006, p. 166).
Roberto Véras, citando Maria Célia Paoli, assinala que a sociedade civil, que nos anos 1980 se associava aos movimentos sociais autônomos e politizados, a partir da década seguinte passou a vincular-se a organizações não governamentais profissionalizadas (VÉRAS, 2006).
O “lance decisivo” da mudança foi a derrota da greve dos petroleiros em 1995, talvez o outro extremo do ciclo iniciado na Scania em 1978. Entre os dois momentos, aprofundou-se o processo de internacionalização produtiva e financeira capitalista e o projeto da industrialização brasileira como pressuposto de uma maior autonomia econômica nacional e da possibilidade de fortalecimento da esfera pública desintegrou-se. Vera da Silva Telles (2006) lembra que não apenas o trabalho informal cresceu, mas penetrou todas as ocupações e redefiniu e deslocou por inteiro as relações de classe. Sem uma referência a esse processo, não é possível compreender o que ocorreu em 2016.
Em outubro de 2016, o então prefeito de São Paulo, Fernando Haddad, sofreu derrota acachapante em sua tentativa de reeleger-se: perdeu no primeiro turno com 16,7% dos votos válidos, contra 53,29% dados ao tucano João Doria. O petista havia perdido quase metade dos 1.776.317 votos que recebera no primeiro turno em 2012, o PT não foi majoritário em nenhuma região do município e a bancada de vereadores encolheu de onze para nove cadeiras. Alguns fatores da conjuntura política, como o desgaste do governo Dilma e a apresentação das candidaturas de Marta Suplicy pelo PMDB e Luiza Erundina pelo PSOL, não eram suficientes para explicar o resultado e pouco mais de um mês depois, a Fundação Perseu Abramo empreendeu uma pesquisa nas periferias de São Paulo para entender o que estava acontecendo.
Intitulada Percepções e valores políticos nas periferias de São Paulo, a enquete foi realizada entre 22 de novembro de 2016 e 10 de janeiro de 2017, com cidadãos e cidadãs que haviam votado no PT de 2000 a 2012 e mudaram de posição nas eleições gerais de 2014 e municipais de 2016. Foram realizadas 63 entrevistas com um público de 18 anos para cima, residente em bairros periféricos e favelas, composto por brancos e negros de religiões neopentescostais e outras, classificado em duas faixas salariais: até dois e de dois a cinco salários mínimos, incluindo pelo menos 30% de beneficiários de algum programa social do governo. A metodologia adotada foi de entrevistas em profundidade e com grupos focais.
A investigação chega à conclusão geral de que surgiu nas periferias um “liberalismo particular das classes populares”, a ser mais bem compreendido, caracterizado pela crença no valor do mérito, desde que sejam dadas iguais oportunidades no ponto de partida, na prevalência do mercado sobre o Estado (tido como ineficiente, burocrático e cobrador de impostos), do privado sobre o público, do individualismo sobre a solidariedade. A ideologia do empreendedorismo substitui visões de classe e os trabalhadores por conta própria sentem-se solidários com os empresários contra o Estado ao invés de identificarem-se com os demais trabalhadores contra a burguesia. Todos se veem como “de classe média”, já que não vivem na miséria da falta de moradia e alimentos e nem na abundância.
Os pesquisadores encontraram, ainda, uma visão superficial da política, pautada pela mídia hegemônica, girando em torno de temas como “Operação Lava-Jato”, “corrupção”, “eleições” e julgamentos sem coerência, flutuando entre posições conservadoras e progressistas conforme o assunto.
A sociabilidade se dá em espaços privados, como shoppings centers e igrejas, a família é tida como o grande alicerce e solução para os problemas individuais e coletivos e a política, vista com descrédito. Aceita-se a ideia da corrupção como o principal problema do Brasil.
Os artigos dos especialistas divulgados no site da Fundação, analisando e comentando os resultados, tratam de aspectos diversos: Jordana Pereira reconhece que, embora o acesso a bens de consumo seja uma “conquista importante da classe trabalhadora”, a “inclusão pelo consumo”, nos governos Lula e Dilma, motivou a percepção de que, mesmo serviços essenciais, como saúde e educação, são mercadorias e não direitos (PEREIRA, 2017). Paulo Ramos discorda da prevalência de um “liberalismo popular” na periferia, indagando sobre o protocolo completo da pesquisa, não informado, e criticando a ideia de uma periferia homogênea, a que se poderia atribuir o tal liberalismo (RAMOS, 2017). William Nozaki e Jessé Souza, por sua vez, concluem que os “batalhadores da periferia de São Paulo”, na ausência de uma narrativa mais à esquerda sobre o sentido de sua inserção nos mercados de trabalho e de consumo, acabam incorporando, para sua própria vida, os valores tomados de empréstimos dos mais ricos e privilegiados (NOZAKI; SOUZA, 2017).
Na comparação entre os debates gerados no PT, em seu momento fundacional, pelas eleições de 1982, e em uma fase de declínio, pelas de 2016, chama a atenção o sumiço do sujeito democrático, operário e popular e a mudança dos termos da discussão.
Nem na pesquisa, nem nas análises, encontra-se qualquer noção definida de classe. Ao invés disto, nessas últimas, surgem expressões como “camadas de menor renda”, “povo”, “classes periféricas”, “populações periféricas”, “batalhadores”. Na pesquisa, como observou Paulo Ramos, o universo da “periferia” pode incluir realidades muito contrastantes e as faixas de renda não definem perfil socioeconômico. Aparentemente, desapareceu o sujeito democrático, operário e popular, não sabemos se do horizonte do PT ou da realidade social. Os prognósticos de Chico de Oliveira, de 1986, parecem ter todos se confirmado, mas pelo lado negativo.
Conclusão
O presente artigo se propôs a pensar os riscos da democracia brasileira no presente situando o problema na trama da história recente. O tecido da história se faz em uma inter-relação entre estruturas, indivíduos e agentes coletivos. A célebre proposição de Marx no 18 Brumário captura essa relação dialética (embora “os homens” não sejam aqui problematizados como “sujeitos coletivos”): “os homens fazem a sua própria história, mas não a fazem segundo a sua livre vontade; não a fazem sob circunstâncias de sua escolha e sim sob aquelas com que se defrontam diretamente, legadas e transmitidas pelo passado” (MARX, 1974, p. 17). “Os homens” fazem a história, portanto, mas condicionados pelo passado (estruturas) e não a fazem como indivíduos, mas como agentes de forças coletivas. Como lembra Holien Gonçalves Bezerra (2005, p. 45):
O sujeito histórico, que se configura na inter-relação complexa, duradoura e contraditória entre as identidades sociais e as pessoais, é o verdadeiro construtor da História. Assim, é necessário acentuar que a trama da História não é o resultado apenas da ação de figuras de destaque, consagradas pelos interesses explicativos de grupos, mas sim a construção consciente/inconsciente, paulatina e imperceptível de todos os agentes sociais, individuais ou coletivos.
A pergunta que nos orientou até aqui foi: que sujeito histórico deu sustentação à democracia de 1985 a estes dias? Classificamos a democracia como procedimento, mas também como conteúdo, na linhagem gramsciana, segundo a sugestão de Coutinho (2003), que atualizou a ideia do contrato ancorado em uma vontade geral entendida como hegemonia de uma coalizão de classes com potencial universalizante. A hipótese que apresentamos entendeu o sujeito democrático como uma articulação ampla que teve na classe trabalhadora organizada e mobilizada nas greves e outras campanhas, associada aos chamados setores populares (na verdade trabalhadores e trabalhadoras com vínculos precários com o mercado e o mundo do trabalho) o seu polo estratégico e dirigente. Da coalizão ampla participaram outros setores sociais, desde empresários até uma ampla franja da classe média.
As novidades abertas pela emergência desse sujeito coletivo incendiaram uma vontade participativa e mudancista e também a imaginação política: Eder Sader (1991) referiu-se aos “novos personagens” entrando em cena e Francisco de Oliveira (2007), posteriormente, a uma “era das invenções”. A grande novidade histórica parece ter sido o encontro da classe trabalhadora (cujos antecessores estrearam na política no pós-Segunda Guerra em apoio a um projeto nacionalista autoritário com o queremismo), interessada na defesa dos direitos trabalhistas e sociais, com a agenda da reconstrução da democracia na sua forma liberal (Diretas Já, Assembleia Constituinte) e tendendo a ir além (conselhos, orçamento participativo). Em resumo: a velha dicotomia entre PTB e UDN era superada e encontrava sua síntese em um movimento de base operária e popular e com participação amplamente majoritária de uma esquerda que já depusera armas de variados calibres, substituindo-as pela crítica e pela ação política.
Quando pensamos em enfraquecimento do sujeito democrático nesta perspectiva, sobressaem dois fenômenos aparentemente desvinculados da questão da democracia como conjunto de regras e instituições a serem respeitadas: o declínio da sociabilidade baseada no trabalho fixo que embasou o “consenso welfarista” (no dizer de Chico de Oliveira) e a captura de uma ampla faixa da esquerda pelo Estado e especialmente pelos padrões de gestão do Estado brasileiro, caracterizados como “patrimonialismo”.
Assim, a “bolsonarização” do Brasil apresenta-se como ofensiva de direita ao mesmo tempo contra reformas limitadas sem base social mobilizada e organizada e contra os vícios de uma gestão pública adaptada a padrões patrimonalistas e não universalistas. Angaria apoio eleitoral em setores das classes populares não alcançados pela expansão dos direitos conquistados pela Constituição de 1988 e carentes de laços de pertencimento e organização. O caminho para seu enfrentamento, portanto, pressupõe reunir novamente, nas condições de hoje, uma maioria interessada, que acredite e se mobilize na defesa, recuperação, ampliação de direitos sociais nos marcos do regime democrático.
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Recebido em 27/03/2020
Aceito em 16/09/2020
1* Professor Associado da Universidade Federal de São Paulo - Escola Paulista de Política, Economia e Negócios, Campus Osasco.
Agradeço a José Francisco de Oliveira Mattos pela colaboração técnica e intelectual na revisão deste artigo.
2 Adoto a expressão cunhada por Esther Solano, significando um “processo descivilizatório” (SOLANO, 2019, p. 320).
3 Disponível em: <https://fpabramo.org.br/wp-content/uploads/2017/03/Pesquisa-Periferia-FPA-040420172.pdf>
4 A primeira greve rural do ciclo eclodira em setembro de 1979, organizada pela Fetape (Federação dos Trabalhadores na Agricultura do Estado de Pernambuco), e pelos sindicatos dos trabalhadores rurais de Paudalho e São Lourenço da Mata, envolvendo os canavieiros (LOPES, 2019).
5 Em 1977, o Bird (Banco Internacional para Reconstrução e Desenvolvimento) divulgou os dados inflacionários de 1973 no Brasil, denunciando a falsificação dos mesmos pelo governo. O jornal Folha de S. Paulo (1977) noticiou o fato, que desencadeou uma mobilização nacional pela reposição dos 34,1% perdidos com a manipulação. Segundo o pesquisador Alessandro de Moura, “a luta rompe com a especificidade de categorias, pois atinge todos os assalariados. Funcionou como um ponto de articulação de dezenas de entidades sindicais de todo o país, das mais variadas categorias. Mobilizou pelegos e combativos em assembleias e em disputas jurídicas” (MOURA, 2015, p. 67).
6 Ata da Assembleia Geral do Sindicato dos Trabalhadores nas Indústrias Metalúrgicas, Mecânicas e de Material Elétrico de São Paulo, realizada em 27 de abril de 1979 – Livro de Atas n o 10, p. 124.
7 Ata da Assembleia Geral do Sindicato dos Trabalhadores nas Indústrias Metalúrgicas, Mecânicas e de Material Elétrico de São Paulo, realizada em 18 de maio de 1979 – Livro de Atas n o 10, p. 138-verso.
8 Cf.: a fala de José Dirceu na mesa-redonda: Erros devem ser corrigidos (DIRCEU, 2008, p 132).
9 Todas as citações de Chico de Oliveira até o final desta seção são desta mesma fonte.
10 Cf. SOLANO, Esther, op. cit., p. 320-21.
ISSN 1517-5901 (online)
POLÍTICA & TRABALHO
Revista de Ciências Sociais, nº 52, Janeiro/Junho de 2020, p. 53-70
OS TRABALHADORES CANAVIEIROS DE PERNAMBUCO
E O “NOVO SINDICALISMO”:
revisitando a questão
THE SUGAR CANE WORKERS IN PERNAMBUCO
AND THE “NEW TRADE UNIONISM”:
revisiting this issue
__________________________________
Mario Henrique Guedes Ladosky*1
Roberto Véras de Oliveira**
Resumo
As greves ocorridas entre 1978 e os primeiros anos da década de 1980 projetaram o Sindicato dos Metalúrgicos de São Bernardo do Campo e Diadema (SP) e a figura de Luís Inácio Lula da Silva como expressões de um novo campo de referência no sindicalismo brasileiro, conhecido como “novo sindicalismo”, tendo sido essa a matriz para a criação do Partido dos Trabalhadores (PT) e da Central Única dos Trabalhadores (CUT). No mesmo período, no Nordeste do país, na tradicional plantation de cana-de-açúcar, os trabalhadores vinham rearticulando uma história de lutas que havia tido importante expressão no período pré-64 e que não tinha sido completamente interrompida durante o regime militar. A greve dos canavieiros de Pernambuco, em 1979, foi um marco na retomada da luta sindical no campo. Entretanto o ciclo de greves de canavieiros no Nordeste, que se estendeu até meados dos 1980, não alcançou a mesma repercussão política e relevância acadêmica que as greves do ABC e o “novo sindicalismo”, sobre os quais os estudos de John Humphrey, Amnéris Maroni, Ricardo Antunes, Laís Abramo, Iram Jácome Rodrigues, entre outros, debateram acerca de seus desdobramentos políticos. Este artigo retoma a memória das greves dos canavieiros de Pernambuco e as práticas sindicais que a elas estiveram associadas, procurando discutir seus significados para a trajetória do sindicalismo brasileiro desde então. Busca-se revisitar as interpretações produzidas sobre aqueles acontecimentos, de modo a levantar algumas problematizações, sobretudo em relação ao tema do “novo sindicalismo”.
Palavras-chave: Greves. Canavieiros. Pernambuco. Sindicalismo.
Abstract
The strikes that took place between 1978 and the first years of the 1980s projected the Metalworkers Union of São Bernardo do Campo and Diadema and the figure of Lula as expressions of a new field of reference in the Brazilian syndicalism, known as “new trade unionism”, and this was the matrix for the creation of the Workers’ Party - PT and the Central Única dos Trabalhadores - CUT. In the same period, in the Northeast of the country, in the traditional sugar cane plantation, the workers were rearticulating a history of struggles that had had an important expression in the pre-64 period and that had not been completely interrupted during the Military Regime. The 1979 Pernambuco sugarcane workers’ strike was a milestone in the resumption of the union struggle in the countryside. However, the cycle of sugarcane strikes in the Northeast, which lasted until the mid-1980s, did not achieve the same political repercussion and academic relevance as the ABC strikes and the “new unionism,” in which the studies of
1* Professor Adjunto da Unidade Acadêmica de Ciências Sociais da Universidade Federal de Campina Grande (UACS-UFCG) e do Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais (PPGCS-UFCG). Doutor em Sociologia pela USP. E-mail: mhladosky@gmail.com
** Professor do Departamento de Ciências Sociais da Universidade Federal da Paraíba (DCS-UFPB) e do Programa de Pós-Graduação em Sociologia (PPGS-UFPB). Doutor em Sociologia pela USP e com estágio pós-doutoral no UCLA Institute for Research on Labor and Employment (EUA). E-mail: roberto.veras.2002@gmail.com
ISSN 1517-5901 (online)
POLÍTICA & TRABALHO
Revista de Ciências Sociais, nº 52, Janeiro/Junho de 2020, p. 71-86
John Humphrey, Amnéris Maroni, Ricardo Antunes, Laís Abramo, Iram Jácome Rodrigues, among others, debated their political developments. This paper takes up the memory of the sugarcane workers’ strikes in Pernambuco and the union practices associated with them, seeking to discuss their significance for the trajectory of Brazilian unionism since then. It seeks to revisit the interpretations produced on those events in order to raise some issues, mainly in relation to the theme of “new unionism”.
Keywords: Strikes. Sugar Cane Workers. Pernambuco. Unionism.
Introdução
Completados 40 anos da histórica greve dos canavieiros de Pernambuco, ocorrida em 1979, a partir da atuação, na Zona da Mata1 do estado, da Federação dos Trabalhadores Rurais de Pernambuco (Fetape) e dos Sindicatos de Trabalhadores Rurais de Paudalho e de São Lourenço da Mata, o movimento sindical dos trabalhadores rurais na região, assim como em todo o país, percorreu um longo caminho, desde a sua emergência, nos anos 1950 e 1960, passando pela resistência às ações repressivas e persecutórias da ditadura militar2.
Entre o final dos anos 1970 e ao longo dos anos 1980, houve uma explosão de greves em quase todas as categorias e por todo o país (NORONHA, 1991). Inaugurou-se ali um contexto de retomada da luta sindical com a demanda dos trabalhadores por dignidade (ABRAMO, 1999) e cidadania (RODRIGUES, 2011), que contribuiu para a redemocratização do país, coroada com a promulgação de uma nova Constituição. Seguiu-se, em contraste, uma década marcada pelo ideário neoliberal, que levou o sindicalismo brasileiro, pressionado pelo desemprego e por uma correlação de forças politicamente desfavorável, a recuar e a assumir uma postura eminentemente defensiva, com a luta pela preservação dos empregos e dos direitos até então conquistados assumindo o centro de sua ação. Mas, apesar disso, o sindicalismo (especialmente seus segmentos mais atuantes) não deixaram de se colocar como um fator de resistência ao aprofundamento das políticas neoliberais. Novos contextos se sucederam, com idas e vindas, no poder de influência da atuação sindical no cenário político do país, sobretudo manteve-se o sentido histórico da luta por direitos sociais, justiça social e democracia.
Este artigo retoma a memória das greves dos canavieiros de Pernambuco e as práticas sindicais que a elas estiveram associadas, procurando, com o benefício do tempo decorrido, revisitar seus significados para a trajetória do sindicalismo brasileiro desde então. Procura, a partir disso, discutir como tal segmento se posicionou diante da emergência do denominado “novo sindicalismo” e da conformação de forças que daí derivou3.
O discurso do “novo sindicalismo”, que teve nas greves operárias e na organização sindical do ABC Paulista seu principal centro irradiador, apoiou-se em um balanço crítico sobre as práticas e concepções sindicais que marcaram o período anterior ao Golpe de 1964. Visto como deslocado das bases e de perfil corporativista, a esse foi contraposta a bandeira da liberdade e autonomia sindical, que deveria ser capaz de resguardar sua independência do Estado e da estrutura sindical oficial, a ele atrelada. Com isso, estabeleceu-se uma polarização. De um lado, agruparam-se os autodenomidados “combativos” ou “autênticos”, constituídos principalmente por sindicatos e grupos de oposições sindicais mais diretamente associados às greves e mobilizações de operários e dos trabalhadores em geral – que então se disseminavam por todo o país –, os quais em comum adotavam um discurso fortemente contrário à estrutura sindical corporativista e em defesa da organização dos trabalhadores pela base e da independência sindical em relação ao Estado. Foi essa a principal expressão do que passou a ser denominado de “novo sindicalismo”, em muito associado com o Sindicato dos Metalúrgicos de São Bernardo do Campo e Diadema e a liderança de Lula, que naquele momento ganhava projeção política em todo o país. Do outro lado, agrupados sob a denominação de “Unidade Sindical”, estava a maior parte das direções das entidades sindicais oficiais – várias delas formadas por interventores nomeados pelos governos militares –, reforçadas por militantes identificados com agrupamentos políticos de esquerda que haviam feito a opção de atuarem por dentro do Movimento Democrático Brasileiro (MDB), com destaque para o Partido Comunista Brasileiro (PCB), o Partido Comunista do Brasil (PCdoB) e o Movimento Revolucionário Oito de Outubro (MR-8).
Sobre os integrantes desse último agrupamento, a militância do “novo sindicalismo” os acusava, indistintamente, de estarem “acomodados” à estrutura sindical corporativista e exercerem uma ação burocrática e deslocada das bases, sendo incapazes de prepararem os trabalhadores para a luta por direitos. De seu ponto vista, em contrapartida, a militância do bloco da “Unidade Sindical” argumentava que a centralidade da agenda política deveria ser derrotar o regime militar, o que colocava a necessidade de formação de uma frente ampla que deveria se estender das entidades sindicais a políticos democratas do então MDB e setores empresariais (CORREA, 1980), de modo que a realização de greves e mobilizações deveria ser vista no mínimo com cautela.
Os dois grupos se encontraram e puderam confrontar seus projetos para o sindicalismo brasileiro na Conferência Nacional da Classe Trabalhadora (Conclat), realizada em 1981, tendo sido essa a primeira grande reunião de caráter intersindical ocorrida desde o Golpe de 1964. Nessa ocasião, foi particularmente tensa a discussão sobre a formação da Comissão Nacional Pró-CUT, destinada aos preparativos para a criação da Central Única dos Trabalhadores. Havia acordo quanto à criação da CUT, mas as divergências se mostraram agudas quando o debate avançou sobre a concepção de Central Sindical que deveria prevalecer, assim como sobre as estratégias a serem adotadas para sua implementação. Enquanto o Bloco dos Combativos desejava que a Central se apoiasse mais nos grupos de oposição sindical e nas organizações de base, assim como apostavam em uma agenda mais acelerada para sua fundação, o Bloco da Unidade Sindical preferia que a CUT fosse formada prioritariamente a partir das diretorias dos sindicatos, federações e confederações e que a agenda de sua implementação pudesse seguir em um ritmo mais lento e controlado.
A tensão crescente entre os dois blocos nos diversos encontros intersindicais e no cotidiano das entidades – quando muitas direções de sindicatos vinham sendo derrotadas eleitoralmente por grupos de Oposição Sindical – levou a que o Bloco dos Combativos convocasse, em agosto de 1983, unilateralmente, o Congresso Nacional da Classe Trabalhadora, com o propósito de criar a Central Única dos Trabalhadores.
Três meses depois, em novembro do mesmo ano, o Bloco da Unidade Sindical realizou também um Congresso próprio, no qual fundou a Coordenação Nacional da Classe Trabalhadora (Conclat), transformada, em 1986, na Central Geral dos Trabalhadores (CGT). Desse lado da divisão dos campos político-ideológicos, ficou a Confederação Nacional dos Trabalhadores da Agricultura (Contag), à qual se encontrava filiada a Fetape, que por sua vez tinha na sua base os Sindicatos de Trabalhadores Rurais no Estado de Pernambuco.
A afirmação do Bloco dos Combativos e do seu projeto de construção da CUT, em meio a uma intensa disputa política que se estabeleceu no movimento sindical brasileiro, projetou a narrativa do “novo sindicalismo”, para o qual concorreu a realização de inúmeros estudos acadêmicos sobre sindicalismo simpáticos àquele. Sob tal perspectiva, atribuiu-se relevo a certas experiências exitosas, mas deixando à margem outras que, embora seguindo diferentes estratégias sindicais, também foram relevantes na defesa dos trabalhadores.
Santana (1999), entre outros, uma vez percorridos vários anos da trajetória de construção da CUT como herdeira do discurso do “novo sindicalismo”, focou, sobretudo, nas dificuldades dos seus adeptos e simpatizantes em verem em outras experiências qualidades por eles valorizadas, ao tomarem a si próprios com uma total novidade. Segundo o autor, “o que ocorreu na conjuntura de surgimento do ‘novo sindicalismo’ foi uma luta pela hegemonia político-sindical, que trouxe em seu bojo, como uma de suas perspectivas, a disputa pela história” (SANTANA, 1999, p. 149). Seguindo esse raciocínio, completou:
Distanciados do epicentro da disputa, podemos olhar não só para o passado mais afastado como para aquele mais próximo, e rever algumas leituras (...) o “novo sindicalismo” teve de enfrentar, e ainda enfrenta, as dificuldades que já historicamente colocam desafios para a experiência política e organizativa da classe trabalhadora brasileira. Talvez a ênfase extremada em sua novidade tenha lhe impedido de colocar tais dificuldades em seu lugar devido (SANTANA, 1999, p.149).
O argumento que aqui apresentamos é o de que experiências distintas das do “novo sindicalismo” nos anos 1980, como a dos canavieiros de Pernambuco, também tiveram o sentido de organizar e mobilizar trabalhadores na base em busca de direitos de cidadania e dignidade contra os interesses patronais, problematizando assim a noção elaborada na época de que as ações levadas à cabo fora do escopo do “novo sindicalismo” eram de modo geral “acomodadas”, “reformistas” e “pelegas”. Trazemos a questão sobre se em Pernambuco os trabalhadores canavieiros não teriam praticado, a seu modo, um sindicalismo tão combativo (sobretudo se levamos em conta as peculiaridades de sua trajetória e o contexto no qual estavam inseridos) quanto aquele ao qual esteve associada a marca do “novo sindicalismo”, sem que para isso tenha feito parte desse agrupamento.
Este artigo se apoia em pesquisa bibliográfica e documental e em entrevistas com lideranças históricas do movimento sindical da zona canavieira de Pernambuco. Além desta introdução, inclui mais duas partes e as considerações finais. Na primeira parte, nos detemos sobre os fatores que concorreram para a afirmação, entre o final dos anos 1970 e os anos 1980, de um posicionamento divergente entre o sindicalismo da Zona da Mata pernambucana e o “novo sindicalismo”, particularmente sobre o tema da estrutura sindical. Na segunda, discutimos as diferenças de estratégias entre esses dois segmentos no que se refere a como lidar com a lei, em especial a lei de greve vigente naquele momento histórico. Ao final, tecemos considerações que problematizam a narrativa do “novo sindicalismo”, particularmente quando confrontada a experiência sindical dos trabalhadores canavieiros de Pernambuco.
O movimento sindical dos trabalhadores rurais, o “novo sindicalismo”
e a estrutura sindical
Uma das marcas do “novo sindicalismo” foi a demarcação de uma ruptura com as práticas sindicais do pré-1964, que teve sua última e mais destacada expressão no Comando Geral dos Trabalhadores (CGT), com a atuação do PCB como uma de suas forças políticas de maior destaque. A interpretação de Weffort (1978) acerca daquele período se tornou clássica e reverberou no meio político das disputas sindicais que confrontava os Combativos e a Unidade Sindical. Aos olhos dos militantes alinhados ao “novo sindicalismo”, o passado, encarnado na estratégia política e imagem da Unidade Sindical, era um aspecto a ser criticado e superado, tido como expressão do “velho”.
Tal ruptura seria viabilizada por uma prática de enfrentamento da estrutura sindical oficial herdada de Getúlio Vargas. Sinteticamente, criticava-se: a tutela do Ministério do Trabalho quanto ao reconhecimento da personalidade jurídica dos sindicatos por meio da chamada “carta sindical”, o que era seguido da imposição de um estatuto padrão; o imposto sindical como forma de dependência sindical em relação ao Estado; a prática assistencialista, que foi amplamente incentivada pelo regime militar, como estratégia de cooptação de lideranças e de anulação da ação reivindicatória; a fragmentação provocada pela organização estruturada por categorias profissionais em bases territoriais municipais, associada ao dispositivo do monopólio da representação, garantidora da unicidade sindical; e o verticalismo imposto pela estrutura de federações e confederações4.
No caso do sindicalismo rural, em geral, e na tradição sindical rural pernambucana, em particular, firmou-se, na retomada das greves do final dos anos 1970 e início dos 1980, uma leitura muito distinta sobre sua atuação no pré-1964. As lutas das Ligas Camponesas5, a partir da segunda metade dos anos 1950 até os primeiros anos da década seguinte, tiveram um lugar de destaque, ao lado dos sindicatos, na Zona da Mata canavieira daquele estado, com o patronato e as forças policiais respondendo com a truculência habitual desde tempos coloniais. Os primeiros acessos dos trabalhadores rurais aos direitos trabalhistas básicos só se tornaram possíveis a partir de 1963 com a promulgação do Estatuto do Trabalhador Rural. Conforme Dabat (2008), pioneiros nessas conquistas, os trabalhadores canavieiros de Pernambuco empreenderam uma “caminhada penosa”, tendo sido condições para isso a realização pelos trabalhadores e suas organizações de representação de “amplas mobilizações sociais”, assim como a instalação, por parte das autoridades públicas, de Juntas de Conciliação e Julgamento em várias regiões do estado. O momento de maior destaque, nesse período, já sob o Governo de Miguel Arraes (1963 – 1964)6, foi a realização do Acordo do Campo em 1963, o qual resultou em um ganho histórico sem precedentes para os trabalhadores canavieiros de Pernambuco, com os donos de engenhos e usineiros sendo obrigados a fazer concessões econômicas (a exemplo do aumento salarial de 80% e a formalização dos contratos de trabalho) e no plano sindical (com o reconhecimento do delegado sindical nos engenhos) (SIGAUD, 1986; ABREU E LIMA, 2003; COSTA E SILVA, 2019). Tamanha conquista foi possível pelo ambiente político favorável, com os governos de João Goulart, no plano nacional, e de Miguel Arraes, em Pernambuco, acompanhadas pela primeira greve geral dos canavieiros no estado, conduzida pelas ligas e os sindicatos, mobilizando aproximadamente 200 mil trabalhadores (MEDEIROS, 1989). A criação da Contag, também em 1963, foi expressão do avanço das lutas dos trabalhadores rurais no país, com ênfase no Nordeste, com os canavieiros à frente.
Com o Golpe de 1964, inúmeras entidades sindicais foram alvo de intervenção governamental7. O primeiro presidente da Contag, Lyndolpho Silva, eleito em uma aliança entre o PCB e a Ação Popular, teve na sequência seu mandato cassado. A ação do novo governo no campo buscou combinar uma brutal repressão aos trabalhadores com cassações de dirigentes sindicais e prisões, intervenção em sindicatos, federações e na confederação, além de incentivo a uma prática sindical assistencialista e desprovida de caráter reivindicatório. Em decorrência desse quadro de acirramento da repressão, as mobilizações dos trabalhadores rurais canavieiros perderam ímpeto, mas não cessaram, como atestam os estudos de Palmeira (2013), Medeiros (1989), Abreu e Lima (2003), Melo (2017), entre outros.
Para Koury (2012), as ações de resistência haviam deixado de ter no movimento sindical sua principal forma de expressão. Nesse contexto, a Fetape teria mantido uma postura sindical acomodada, assistencialista e legalista, em contraste com as ações de resistência conduzidas por outros grupos, ligados às bases da Igreja, a exemplo da Ação Católica Rural (ACR)8, e a correntes políticas de esquerda (com destaque para grupos trotskistas). Quanto ao sindicalismo, não teria logrado avanços no trabalho de organização devido ao alto grau de repressão que sofria.
Já segundo Abreu e Lima (2003), a Fetape apenas no final dos anos 1960 teria passado a adotar uma postura mais progressista, com abertura à participação de forças de esquerda no seu interior. Palmeira (2013)9 foi um dos que mais chamou a atenção para a continuidade das lutas sindicais dos canavieiros pernambucanos entre o pré e o pós-64. Segundo ele, foram vários os registros de greves e de outras formas de mobilização levadas a cabo pelas bases dos sindicatos. Segundo Abreu e Lima (2003), uma primeira greve de maior repercussão ocorreu em 1966 no município de Cabo de Santo Agostinho, situado na Mata Sul pernambucana, abrangendo cerca de 20 engenhos. Entre interrupções e retomadas, tais mobilizações, nos anos de 1967 e 1968, chegaram a envolver mais de 3 mil trabalhadores.
No plano nacional, em 1968, um fato contribuiu para mudar o rumo da Contag: a eleição de José Francisco, sindicalista, canavieiro, oriundo da Zona da Mata pernambucana. Para isso, foi preciso derrotar o interventor José Rotta, de origem católica conservadora. Uma discreta, mas persistente e nacionalmente articulada política de resistência passou a ser desenvolvida a partir de então. Contudo, os resultados mais expressivos só apareceram com o III Congresso da Contag realizado em 1979, quando já se evidenciava um clima de mudança na sociedade brasileira com a eclosão de greves por todo o país, com o ABC Paulista assumindo o primeiro plano.
O III Congresso da Contag foi um marco na trajetória de retomada das lutas dos trabalhadores rurais no país, logrando integrar tais segmentos de trabalhadores ao processo pela reconstrução do sindicalismo brasileiro. De outra parte, o referido congresso firmou as bases de uma ação sindical nacionalmente articulada e mais ousada no campo, envolvendo as frentes da luta pela reforma agrária e das lutas dos assalariados. Um importante desdobramento do Plano de Lutas foi, naquele ano, a deflagração da greve dos canavieiros de Pernambuco, em Paudalho e São Lourenço da Mata, com a Contag e a Fetape desempenhando importante papel na articulação, negociação e no apoio à mobilização do movimento, contrariando a prática usual de outras entidades sindicais de segundo e terceiro graus.
A greve de 1979 abriu um ciclo de lutas que se estendeu por toda a década seguinte nas zonas canavieiras de Pernambuco e, embora com menor intensidade, dos estados de Alagoas, Paraíba e Rio Grande do Norte. Tais greves tiveram importante repercussão nacional no contexto de retomada da luta sindical e popular que marcou o fim do regime militar e o processo de “transição democrática” que se seguiu. No plano local, além de ganhos imediatos10, tais lutas tiveram forte impacto na vida, em sentido mais amplo, dos que trabalhavam nos engenhos e usinas e dos que atuavam nos sindicatos, federações e confederação, em uma contundente demonstração de afirmação coletiva e politização do que, sob um olhar superficial e preconceituoso, poderia ser identificado como expressão do “atraso”.
Assim, pela especificidade da trajetória do sindicalismo rural da Contag, em geral, e da Fetape, em particular – na qual esteve mais presente um elemento de continuidade do que de ruptura com um passado de lutas –, a oposição à estrutura corporativa, em contraste com o que demarcou a identidade do “novo sindicalismo”, não se constituiu como uma bandeira de seu projeto político. Afinal, foi por dentro da estrutura oficial (compreendendo não só os sindicatos, mas também as federações e a confederação)11 que se conduziu majoritariamente a ação de reorganização dos trabalhadores e a exitosa greve dos canavieiros em 1979 e nos anos seguintes.
Enquanto os segmentos agrupados em torno do “novo sindicalismo” tiveram necessidade de demarcar claramente um corte frente ao “velho sindicalismo” – representado pelas práticas sindicais do pré-64, tidas como “populistas” e “cupulistas”, assim como frente ao sindicalismo praticado sob a ditadura, caracterizado principalmente como de tipo “colaboracionista” e “assistencialista”, tudo sintetizado na expressão “pelego” –, o movimento sindical de trabalhadores rurais em âmbito nacional, com especial destaque para o sindicalismo dos canavieiros de Pernambuco, logrou se refazer a partir do comando nacional da Contag e, no plano local, da liderança da Fetape e dos sindicatos de trabalhadores rurais, principalmente da Zona da Mata. Foi assim que, no contexto nacional de rearticulação intersindical, apesar da determinação de retomar as greves e a luta pela terra, o movimento sindical de trabalhadores rurais, por meio da Contag e da maioria de suas federações e sindicatos, optou por se alinhar ao Bloco da Unidade Sindical, mesmo que do ponto de vista da prática destoasse das demais confederações e da esmagadora maioria das federações e sindicatos identificados com tal bloco.
Controvérsias sobre como articular a luta frente à lei
A organização de base (entendida como estratégias diversas visando a conectar os trabalhadores nos locais de trabalho e de moradia com a ação sindical) foi uma das pedras de toque do “novo sindicalismo”, visto que esse seria o exato contraponto ao “sindicalismo de cúpula” exercido pelos sindicalistas acusados de “burocratas”, “acomodados” e “pelegos”. A mobilização dos trabalhadores e as greves na luta por direitos seriam construídas prioritariamente pela atuação organizada nos locais de trabalho.
Como na perspectiva do Bloco dos Combativos o Estado sob a ditadura militar se colocava claramente em sintonia com os interesses patronais – patrocinando uma política econômica baseada no arrocho salarial e na repressão aos movimentos de trabalhadores de contestação ao regime –, primava-se, nesse meio, pelo repúdio a qualquer sinal de dependência sindical em relação Estado. A organização e mobilização da base, incluindo as greves, deveriam ser conduzidas à revelia do aparato estatal, referenciando-se na bandeira da liberdade e autonomia sindical.
Tomada por esse aspecto, a greve dos canavieiros em 1979 seguiu um roteiro diferente das greves conduzidas naquele momento pelo emergente grupo dos “sindicalistas combativos”, que desafiavam a estrutura sindical oficial e a Lei 4330, conhecida como “lei antigreve”12. Segundo essa lei, as greves deviam ser aprovadas por voto secreto, em dois pleitos, com intervalo mínimo de dois dias entre as votações, por maioria de 2/3 da categoria no primeiro e de 1/3 no segundo turno, com quórum de votação de no mínimo 1/8 dos associados. Ao patronato eram, ainda, concedidos cinco dias antes da deflagração da greve para apresentação de contraproposta, obrigando-se a notificação, com cinco dias de antecedência da deflagração da greve, ao Departamento Nacional do Trabalho ou Delegacia Regional para a adoção de medidas cabíveis de manutenção da ordem. Finalmente, a referida lei também proibia a paralisação por motivos políticos, partidários, sociais ou solidários e exigia garantia de acesso ao local de trabalho aos trabalhadores que quisessem prosseguir em suas atividades laborais.
A Contag e a Fetape optaram por conduzir uma agenda de mobilização e greves por direitos na zona canavieira de Pernambuco, em um contexto marcado ainda por muita repressão e pela sempre presente ameaça de intervenção do governo nas entidades sindicais, procurando, apesar dos estreitos limites, atuar nas “brechas da lei”. Isso exigiu um grande esforço de preparação e sintonia entre as lideranças e assessorias envolvidas. O depoimento de Biu da Luz (Severino Francisco da Luz Filho), assessor da Fetape, explicitou a estratégia no uso da Lei de Greve:
Essa lei de greve foi usada como uma estratégia, porque a lei foi feita pra ninguém fazer greve. Mas a gente queria dar uma conotação de que a greve era legal... Naquele período era muito difícil... Aí a lei de greve tinha alguns artigos, por exemplo, um dos artigos que a gente usou muito nas greves foi o artigo 31. Todo sindicato fazia uma faixa e botava na frente da sede o artigo 31, que dizia “quem tentar impedir o direito legítimo da greve será responsabilizado na forma da lei”. Isso aí a gente colocava nos panfletos. Isso foi uma coisa muito interessante que aconteceu. Era um sacrifício danado pra fazer uma assembleia que dizia que tinha que ser voto secreto, sim ou não...
A forte repressão obrigava uma atuação dentro dos parâmetros legais, porém sempre buscando “brechas” que tornassem a luta mais efetiva, conforme Zefinha (Josefa Martins), ex-assessora da Fetape-Contag, nos indica, em entrevista concedida em novembro de 2017:
Era em sintonia com toda uma estratégia geral do movimento sindical na ditadura de se apegar ao que a gente chamava de “brechas da lei”. A gente tinha que ter algum escudo. Claro que a base era a organização dos trabalhadores, mas não podia enfrentar assim, porque tinha que ter um escudozinho, né. E esse escudo, por exemplo na luta pela terra, você tinha um código civil, o desforço pessoal. Se alguém te bate, você tem o direito de reagir do mesmo jeito, né. [...] Então o movimento sindical foi todo, na época da ditadura, forjando uma discussão, uma atitude de enfrentamento, se valendo das brechas da lei, que não eram cumpridas.
De acordo com Medeiros (1989, p. 91), “tratava-se, pois, de tornar a lei, em suas diversas formas, em campo de disputa e, assim, ampliar os espaços de organização”. Para a autora, essa estratégia já vinha sendo colocada em prática pela Contag ao longo dos anos 1970, sob o argumento de que “os direitos existiam, mas não eram respeitados”. De acordo com Abreu e Lima (2003), o recurso jurídico foi um mecanismo de luta estrategicamente acionado pelas Ligas, respaldado pelo advogado Francisco Julião13 (1915-1999), que culminou, por exemplo, na vitória dos trabalhadores com a desapropriação do Engenho Galileia no ano de 1959. Foi assim que o Estatuto do Trabalhador Rural14 se converteu em um instrumento de luta para os trabalhadores rurais, historicamente condicionados à exploração e à violência patronal, mantidos invisíveis em relação ao meio urbano.
No caso específico da greve dos canavieiros de 1979, a Lei 4330 “era percebida como lei impessoal, ‘vinda de fora’, que podia se contrapor às leis privadas, base da ação dos patrões e da repressão, tradicionalmente utilizada no interior dos engenhos e terras de usina no Nordeste” (MEDEIROS, 1989, p. 123). O cumprimento da Lei 4330 não eximiu os sindicatos de trabalhadores rurais de realizar um intenso trabalho de mobilização através de panfletos, divulgação na rádio e, sobretudo, com a propagação das notícias “boca a boca”. Foram realizadas assembleias por sindicato, com mobilização das bases e atuação dos delegados sindicais. A greve de 1979 foi construída respeitando todas as exigências da referida lei. Sigaud (1980) observa que o trabalho de organização exigiu, por parte dos sindicatos, a atuação em duas frentes: foi preciso dar conta das formalidades burocráticas, assegurando a viabilidade legal do movimento, além de lograr um grande esforço de mobilização política capaz de assegurar uma expressiva participação dos trabalhadores. Nas palavras de Zé Rodrigues (ex-presidente da Fetape, originado da zona canavieira, em entrevista concedida em junho de 2018): “bom, pra gente fazer o ritual de greve, de movimento forte como greve, a gente só fazia esse ritual se fosse forte. [...] Você sabe que o regime militar deixou todo mundo apavorado, que não dispensava qualquer motivação que eles considerassem irregular, mas partimos pra greve”.
Para Sigaud (1980, p. 11), a greve dos canavieiros na Zona da Mata de Pernambuco, ocorrida entre 2 e 9 de outubro de 1979, envolvendo diretamente cerca de 20 mil trabalhadores nos municípios de São Lourenço da Mata e Paudalho, foi a “primeira grande mobilização dos trabalhadores da região no período posterior a 1964”. Para ela, só a persistência da luta por direitos, acumulada historicamente, explicava a eclosão da referida greve. Essa teria sido favorecida, ainda, pela conjuntura nacional de abertura política pelo clima de greve em todo o país, pela vitória, em 1978, do candidato do MDB ao senado em Pernambuco, Jarbas Vasconcelos, e pelo retorno de Miguel Arraes do exílio, assim como pelos debates preparatórios para o III Congresso Nacional de Trabalhadores Rurais.
A massiva adesão ao movimento permitiu a organização de comandos e piquetes nas imediações das propriedades e entradas dos engenhos para evitar que os patrões admitissem trabalhadores de outras regiões ou fura-greves, como preconizava o artigo 31. Por razões estratégicas, os dois municípios mais bem organizados, São Lourenço e Paudalho, saíram na frente e deflagraram a paralisação de suas atividades oito dias antes dos demais municípios, como explica Zé Rodrigues, presidente da Fetape na época:
Foi tudo combinado. Eles viam qual era os sindicatos que tinha muito mais poder de paralisação. As empresas que trabalhava, que tinha, era da família Ermínio de Morais e essa família não era violenta, tão violenta. Eles sabiam que podiam fazer um paradeiro e os trabalhadores não ia ter tanta violência como as outras empresas podiam fazer. Aí eles toparam, botaram é... porque tinha um prazo. No prazo a gente botava o edital. Se até o vencimento do edital, oito dias, o patronato não desse a resposta, a gente podia deflagrar a greve. Justamente foi o que foi feito. Publicou o edital, começamos a negociar. Patrão não chegou no acordo e deflagraram a greve.
Enquanto os trabalhadores dos dois municípios se encontravam parados, as lideranças sindicais ameaçavam estender a greve para o resto da região canavieira.
De acordo com Sigaud (1980, p. 27):
Calcula-se que existiam cerca de 240 mil trabalhadores vinculados à produção da cana de açúcar em toda a Zona da Mata. Nos 24 sindicatos onde foram realizadas assembleias estavam representados 28 municípios de um total de 39. Somando o comparecimento em todas as assembleias, poder-se-ia calcular que cerca de 70 mil trabalhadores tenham participado diretamente da decisão de decretar a greve.
Pressionados, os patrões cederam às reivindicações dos trabalhadores, não sendo necessária a adesão dos demais sindicatos que já haviam aprovado a greve nas assembleias sindicais em outros 24 municípios da Zona da Mata.
Sigaud (1980) avalia a greve de 1979 como uma grande vitória da classe trabalhadora. Ademais, a autora destaca que o texto da Convenção Coletiva incorporava determinações que já estavam dispostas e respaldadas em outros instrumentos legais, tal como a CLT e o Decreto-Lei 57.020, mas que eram, no entanto, sistematicamente burlados.
O recurso do sindicalismo rural contagueano às leis, em geral, e à Lei 4330, em particular, não foi motivado por uma postura supostamente “legalista” ou “pelega”, ao se depreender da estratégia e prática das entidades sindicais na condução daquele movimento. Ao contrário, foi um modo sutil e engenhoso do comando sindical canavieiro enfrentar a truculência a que estavam expostos os trabalhadores e suas lideranças. Se a lei era limitada como possibilidade de conquista de direitos pelos trabalhadores e ambígua como garantia da liberdade de ação sindical, fora da lei o que sobrava era uma relação de força absurdamente desigual e desproporcional em favor dos senhores de engenho e usineiros, um padrão de sociabilidade marcado por uma violência histórica. A atuação por dentro da lei, forçando as conquistas em meio às contradições entre a norma e a prática patronal, pavimentou e deu sentido à luta dos trabalhadores na Zona da Mata, antes, durante e ao final do regime militar.
Nesse sentido, a organização e mobilização na base só poderia ter alguma eficácia se a violência patronal pudesse ser freada mediante o “fator exógeno e impessoal” da lei, que se impusesse também sobre os proprietários dos engenhos e usinas (SIGAUD, 1979). Medeiros (1989) se refere à emergência de um “modelo de Pernambuco” nas greves canavieiras de 1979 e dos anos 1980. A partir daí, em um contexto de acirrada disputa sindical, colocou-se em evidência a pertinência do uso da Lei 4330/1964 para driblar a repressão patronal e policial, historicamente presente na região canavieira de Pernambuco.
Por estarem imersos na realidade social da Zona da Mata pernambucana, as lideranças sindicais – muitas das quais atuantes na militância desde a década de 1960 – traçaram estratégias de organização e mobilização que, já na preparação da greve de 1979 e posteriormente nas que ocorreram na década de 1980, indicavam que o sindicalismo ali teria que percorrer caminhos distintos do de outros segmentos de trabalhadores onde a dominação se dá por meio de códigos mínimos de civilidade. O que pareceu uma atitude “legalista”, muitas vezes significou uma aguerrida posição de luta por direitos, buscando preservar os trabalhadores e as lideranças diante da violência patronal e da conivência governamental. Por essa razão, as experiências e repertórios dos canavieiros muitas vezes foram classificadas “em oposição” ao “novo sindicalismo” oriundo do ABC metalúrgico e disseminado país afora como parte da disputa de hegemonia no movimento sindical.
Considerações finais
Passadas quatro décadas desde a eclosão de um ciclo de greves e mobilizações de trabalhadores que envolveram setores diversos da atividade econômica e todas as regiões do país, no campo e na cidade, o projeto “Movimentos cruzados e histórias específicas de operários e trabalhadores rurais: análise comparativa dos ciclos de greves iniciados pelos metalúrgicos de São Paulo e do ABC Paulista e pelos canavieiros de Pernambuco no final dos anos 70”, no qual se insere esta pesquisa, propiciou um ambiente bastante fecundo e oportuno para se buscar os fios que permearam a trajetória de luta sindical no país, a partir de segmentos que se tornaram emblemáticos, seja pela projeção pública adquirida, seja pelo contraste que entre si produziram: os metalúrgicos do ABC Paulista, os metalúrgicos de São Paulo e os canavieiros de Pernambuco.
Este artigo se deteve sobre a experiência dos trabalhadores canavieiros da Zona da Mata pernambucana, com foco especialmente sobre a greve de 1979, mas visou a situar tal experiência em relação ao ambiente sindical vivido no país naquele momento, no qual a atuação do então Sindicato dos Metalúrgicos de São Bernardo do Campo e as greves ali promovidas haviam ganhado grande projeção, convertendo-se em centro irradiador do que depois veio a ser conhecido como “novo sindicalismo”.
Apesar do efeito demonstração que em especial as greves do ABC exerceram também em relação aos trabalhadores canavieiros de Pernambuco e suas lideranças sindicais, os caminhos seguidos por um e outro na retomada dos esforços nacionais de articulação intersindical que, em um primeiro momento, levaram à realização unitária da 1ª Conferência Nacional das Classes Trabalhadoras, resultaram em uma bifurcação. Em uma direção, reuniram-se os que se denominaram Bloco dos Combativos, onde se encontrava o Sindicato dos Metalúrgicos de São Bernardo do Campo, do qual se originou a CUT. Do outro, agruparam-se os que se intitularam Bloco da Unidade Sindical, para onde convergiu a Contag, a Fetape e os sindicatos da Zona da Mata de Pernambuco, o qual resultou na criação da Conclat e, depois, CGT15.
Neste artigo, quisemos mostrar que a experiência sindical dos canavieiros de Pernambuco, não obstante tenha se posicionado (especialmente entre o final dos anos 1970 e começo dos 1980) em um campo de articulação intersindical divergente do que se identificou como expoente do “novo sindicalismo”, teve com esse muitos pontos de convergência, principalmente se consideramos o caráter adverso do contexto vivido historicamente na Zona da Mata pernambucana: a busca de vitória eleitoral em entidades sindicais para substituir direções pouco atuantes por outras com maior disposição de luta em defesa dos trabalhadores; a preocupação em fortalecer uma participação maior das bases e enraizar o sindicalismo no local de trabalho, procurando torná-lo mais representativo; uma clara disposição de enfrentamento do patronato e do Estado; em síntese, um tipo de sindicalismo baseado na vontade política de atuar como um instrumento de luta dos trabalhadores.
Mesmo os aspectos que tanto destoaram dos discursos e práticas dos que se associaram para a criação da CUT em 1983, o fato das lutas dos canavieiros de Pernambuco – do final dos anos 1970 e início dos 1980 – terem sido conduzidas nos marcos do sistema confederativo e primando pela observação dos estreitos limites legais, com destaque para a condução das greves em conformidade com a Lei 4330, encontram na trajetória da Contag, Fetape e sindicatos da Zona da Mata, ao que pudemos notar, justificativas mais do que suficientes para desautorizar sua estigmatização como “legalismo”, “corporativismo”, “peleguismo”.
O episódio da greve de 1979, em Pernambuco, mas também os fios que a conectam às lutas dos canavieiros do período que precedeu o Golpe de 1964 e às que se resistiram mesmo no contexto da ditadura militar, assim como, às que se desdobraram como um ciclo de greves que percorreu toda a década de 1980, com seus ecos chegando aos dias atuais, representam uma trajetória de persistente luta por direitos, travadas sob um padrão socioprodutivo marcado historicamente pela mais bruta violência.
Diante de condições que colocavam permanentemente em risco de vida todos aqueles que se insubordinavam contra os senhores de engenho e usineiros, estavam lá homens e mulheres persistindo tenazmente na luta pelos direitos mais elementares da cidadania, explorando e testando as possibilidades da lei e as garantias mínimas da institucionalidade vigente, incluindo aí a estrutura sindical oficial.
O entusiasmo (justificável) de muitos analistas com a emergência do que ficou conhecido como “novo sindicalismo” (cuja expressão mais destacada, embora não a única, foram as novas práticas e bandeiras projetadas pelo Sindicato dos Metalúrgicos de São Bernardo do Campo, em especial com as greves de 1978, 1979 e 1980, que a ele estiveram associadas), em geral não favoreceu um olhar mais apurado sobre as condições das práticas sindicais e das lutas desenvolvidas por diversas outros segmentos de trabalhadores, sobretudo dos lugares mais afastados dos grandes centros industriais do país – as greves dos canavieiros do Nordeste, entre essas. As experiências dos metalúrgicos do ABC e de outros segmentos que se beneficiaram de uma maior projeção midiática, política e acadêmica, se de um lado serviram como parâmetro para desafiar mais amplamente os trabalhadores brasileiros a entrarem em cena – para usar uma pertinente expressão de Sader (1988) –, por outro podem ter dificultado a apreensão e divulgação de experiências que, a seu modo e sob as condições próprias em que se viam inseridas, produziram ganhos consistentes.
As experiências do “novo sindicalismo” e das lutas sindicais dos canavieiros do Nordeste evidenciam que o movimento sindical no Brasil trilhou diversos caminhos para se manter em cena como sujeito na luta por direitos. Sinal de que tem capacidade política para enfrentar também as dificuldades do presente. Para isso, pode contar com as práticas que estiveram na origem daqueles movimentos como uma inspiração para um ressurgimento futuro.
Referências
ABRAMO, Laís Wendel. O resgate da dignidade: greve metalúrgica e subjetividade operária. Campinas: Editora da Unicamp; São Paulo: Imprensa Oficial, 1999.
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Recebido em 07/04/2020
Aceito em 16/09/2020
1 A Zona da Mata compreende uma faixa de terra do litoral leste do Nordeste, que abrange os estados da Bahia ao Rio Grande do Norte, originalmente tendo sido coberta pela Mata Atlântica. Foi nessa área onde, a partir da colonização, se desenvolveu a produção de cana-de-açúcar e onde veio a se instalar os principais núcleos econômicos e urbanos desses estados. No estado de Pernambuco, a Zona da Mata envolve duas microrregiões administrativas, a Mata Norte e a Mata Sul. A primeira compreende 19 municípios: Aliança, Buenos Aires, Camutanga, Carpina, Chã de Alegria, Condado, Ferreiros, Glória do Goitá, Goiana, Itambé, Itaquitinga, Lagoa de Itaenga, Lagoa do Carro, Macaparana, Nazaré da Mata, Paudalho, Timbaúba, Tracunhaém, Vicência. A segunda é formada por mais 24 municípios: Água Preta, Amaraji, Barreiros, Belém de Maria, Catende, Chã Grande, Cortes, Escada, Gameleira, Jaqueira, Joaquim Nabuco, Maraial, Palmares, Pombos, Primavera, Quipapá, Ribeirão, Rio Formoso, São Benedito do Sul, Sirinhaém, São José da Coroa Grande, Tamandaré, Vitória de Santo Antão e Xexéu.
2 Ver a respeito, por exemplo, Véras de Oliveira e Ladosky (2018) e Véras de Oliveira, Ladosky, Donato, Dantas, Costa e Silva e Nascimento (2019).
3 Uma ampla reconstituição bibliográfica sobre a emergência, trajetória e desdobramentos do “novo sindicalismo” foi realizada em Ladosky e Véras de Oliveira (2014).
4 Embora não seja tema deste artigo, se faz necessário chamar a atenção para o fato de que o projeto do “novo sindicalismo” de superação do corporativismo nunca conseguiu, em seus propósitos mais plenos e em termos práticos, ser viabilizado. Nos 40 anos que sucederam ao seu surgimento, a CUT logrou alguns êxitos parciais em uma ou outra experiência, mas, grosso modo, a herança de Vargas sobreviveu, mesmo com mudanças, até os dias atuais. Note-se, por exemplo, que a Constituição de 1988 preservou três importantes pilares dessa estrutura: o imposto sindical, o monopólio da representação e o poder normativo da Justiça do Trabalho. O imposto sindical foi extinto apenas em 2017, com a reforma trabalhista, sendo que do modo mais negativo para o sindicalismo. Quanto ao poder normativo da Justiça do Trabalho, também vem sendo minado especialmente com a reforma trabalhista, igualmente pelo ângulo menos favorável aos trabalhadores, ou seja, pela via da prevalência do negociado pelo legislado e pelo esvaziamento da Justiça do Trabalho, naquilo que ela representa como instrumento de garantia de direitos aos trabalhadores. O contexto atual, em que a reforma trabalhista é apenas uma das ações que vêm sendo empreendidas em desfavor dos direitos dos trabalhadores, um dos alvos tem sido o sindicalismo, na sua capacidade de financiamento, no seu poder de mobilização e de representação dos trabalhadores e quanto aos espaços de atuação institucionalmente reconhecidos.
5 As Ligas Camponesas surgiram em Pernambuco nos anos 1950 e tiveram grande relevância na organização dos trabalhadores rurais no pré-1964. Serviu como referência política importante ao sindicalismo rural, o qual se estabeleceu principalmente a partir do início dos anos 1960. Há inúmeros trabalhos que analisam a experiência das ligas sob diversos enfoques. Como isso foge ao escopo deste artigo, indicamos uma visita a alguns dos textos incluídos nas referências bibliográficas citadas ao final do artigo, em especial Medeiros (1989), Abreu e Lima, (2003) e Palmeira (2013).
6 Miguel Arraes de Alencar foi por três vezes governador do estado de Pernambuco. Na primeira vez, seu mandato foi de 31/01/1963 a 02/04/1964. Depois do exílio, foi eleito novamente governador e cumpriu o mandato de 15/03/1987 a 1º/04/1990; e na terceira vez o mandato foi de 1º/01/1995 a 1º/01/1999.
7 Na zona canavieira de Pernambuco, dos 40 sindicatos em funcionamento, 38 sofreram intervenção (CARNEIRO; CIOCCARI, 2011).
8 A Ação Católica Rural foi uma das muitas formas de ação pastoral da Igreja Católica junto a grupos e comunidades populares. Especificamente a ACR, que foi fundada no ano de 1965, começou a ter uma expressão no meio rural e a expandir-se a partir do ano de 1968.
9 Texto escrito em 1974.
10 A greve de 1979, por exemplo, resultou em 52% de aumento salarial, na concessão de 2 hectares de terra para cultivo de lavouras de subsistência e na adoção de uma Tabela de Tarefa designando a remuneração para diferentes serviços da produção da cana (SIGAUD, 1980).
11 Vale destacar que, não obstante o discurso crítico em relação à estrutura sindical e a diversas tentativas de constituição de estruturas orgânicas à CUT, o seu processo de construção em muito se sustentou na conquista de diretorias de sindicatos e, embora em menor medida, de federações e confederações. Ver, quanto a isso, Rodrigues (1999).
12 Ver, por exemplo, análise das greves metalúrgicas do ABC Paulista e de São Paulo, em Leite Lopes e Heredia (2019).
13 Francisco Julião foi advogado e teve vários mandatos parlamentares, seja de deputado estadual, seja de deputado federal. Ganhou maior projeção quando assumiu a defesa jurídica dos membros da Sociedade Agrícola e Pecuária de Pernambuco (SAPP), primeira associação camponesa do estado organizada pelos moradores do engenho Galileia, situado no município de Vitória de Santo Antão. Nos anos seguintes, o tipo de associação adotada no engenho da Galileia se multiplicou no estado de Pernambuco. As associações camponesas formadas depois da SAPP ficaram conhecidas como Ligas Camponesas. Para mais detalhes, buscar https://cpdoc.fgv.br/producao/dossies/Jango/biografias/francisco_juliao
14 Lei 4.214/1963, promulgada no Governo João Goulart, que estende a legislação trabalhista para os trabalhadores rurais.
15 Para uma discussão sobre as questões que envolveram a relação da CUT com os trabalhadores rurais e com suas representações sindicais próprias, ver por exemplo: Favareto (2006), Rodrigues e Ladosky (2015).
INVISIBILIDADES, INSURGÊNCIAS E EMERGÊNCIAS:
“Mulheres Briguentas” no Movimento Sindical do ABC Paulista
INVISIBILITIES, INSURGENCIES AND EMERGENCIES:
“Women of Fight” in ABC Paulista Union Moviment
__________________________________
Deise Recoaro*1
Marilda Menezes**
Sidney Jard da Silva***
Jaime Santos Júnior****
Resumo
Neste artigo, apresentamos os resultados parciais de uma pesquisa sobre as trajetórias de vida de mulheres que participaram do ciclo de greves históricas do ABC Paulista. Desse recorte mais amplo, fizemos uma incisão neste texto para trazer, na composição dos casos, as memórias de mulheres que assumiram cargos na estrutura sindical. Na hipótese de que os efeitos das formas de opressão que marcavam as trajetórias ocupacionais das mulheres na indústria metal-mecânica e nas montadoras do parque automotivo dessa região ecoavam nas estruturas sindicais, reproduzindo clivagens de gênero, importa-nos compreender as estratégias de resistência, as formas de engajamento na militância e os efeitos na ação sindical. As memórias deixam entrever o lento processo de reconhecimento das demandas de gênero, a perenidade das tensões relativas a essa clivagem nas estratégias de luta e as disputas discursivas por legitimidade das histórias das mulheres na narrativa sobre as greves do ABC Paulista.
Palavras-chave: Sindicalismo. Greves. Gênero. ABC Paulista.
Abstract
In this paper we discuss some partial results of a research on life trajectories of women who participated in the historical strikes cycle of ABC Paulista. From this broader sample, we made an incision here to elected only memories of women who have assumed bureaucratic position in the union structure. We assume as a hypothesis that the effects of oppression that marked most of the occupational trajectories of women in the metal-mechanic industry and in the auto manufacturers sector echoed over the unions, reproducing gender cleavages. Hence, it is important for us to understand resistance strategies, ways of engaging in activism and the effects on union action nowadays. The analyses of these memories reveal the slow process of gender recognition issues, the continuity of tensions related to this cleavage upon the strategies of struggle and discursive disputes over legitimacy of the women’s stories in the narrative about the strikes of ABC Paulista.
Keywords: Unionism. Strikes. Gender. ABC Paulista.
1* Doutoranda do Centro de Estudos Sociais, Faculdade de Economia, da Universidade de Coimbra. E-mail: deise.recoaro@gmail.com
** Professora Colaboradora do Programa de Pós-Graduação em Ciências Humanas e Sociais da Universidade Federal do ABC (PCHS/UFABC) e Professora Colaboradora do Doutorado em Ciências Sociais da Universidade Estadual de Campinas (PPGCS/Unicamp). Pesquisadora do CNPq, nível 1C. E-mail: menezesmarilda@gmail.com
*** Professor do Centro de Engenharia, Modelagem e Ciências Sociais Aplicadas da Universidade Federal do ABC (CECS/UFABC). Coordenador do grupo de pesquisa Política, Políticas Públicas e Ação Coletiva (3 PAC/CNPq) e da Escola Preparatória para a Pós-Graduação em Humanidades (Pós-Graduar). E-mail: sidney.jard@ufabc.edu.br
**** Professor do Departamento de Sociologia e do Programa de Pós-Graduação em Sociologia da Universidade Federal do Paraná (PGSocio/UFPR). Doutor em Sociologia pela Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo (FFLCH/USP). E-mail: jaimesjr@ufpr.br
ISSN 1517-5901 (online)
POLÍTICA & TRABALHO
Revista de Ciências Sociais, nº 52, Janeiro/Junho de 2020, p. 87-105
O ABC das operárias1
Nos anos de 1970 e 1980, além do seu histórico papel de defender os interesses dos trabalhadores por melhores salários e melhores condições de trabalho, foi central para o chamado “Novo Sindicalismo” brasileiro a luta pela redemocratização do país e pelo reconhecimento político-institucional das próprias entidades sindicais.
Não obstante, nesse mesmo período, os sindicatos reforçaram símbolos que restringiram a participação político-sindical das mulheres, revelando dificuldades em reconhecer a “mulher trabalhadora” como sujeito histórico com demandas específicas (CAPPELIN, 1994; SOUZA-LOBO, 2011). A simbologia usualmente associada às expressões nativas de “força”, “virilidade” e “agressividade”, ao ser reproduzida nas organizações sindicais, tornava o ambiente hostil para aqueles e, principalmente, para aquelas que não compartilhavam os códigos e regras criadas por homens, na medida em que ser aceito(a) ou não pelos sindicatos também dependia da anuência dessas regras.
A hipótese que trabalhamos neste texto é a de que essa herança ainda exibe suas consequências hoje, sendo também percebida em estudos mais recentes sobre a participação das mulheres no movimento sindical. Para tanto, lançamos mão de entrevistas biográficas feitas com três ex-lideranças sindicais que têm em comum a passagem pelo Sindicato dos Metalúrgicos do ABC (SMABC) na condição de membro da direção ou de representante sindical no local de trabalho.
Há ainda um elemento que aparece nas “narrativas de si” e merece ser enunciado nesta introdução, uma vez que o tomamos como chave interpretativa para compreender os significados atribuídos às trajetórias como militantes nos casos que analisamos, trata-se do termo nativo “briguentas”. Colhido nos relatos, o sintagma, veremos, adquire diferentes acepções a depender do contexto em que é mobilizado. Assim, por exemplo, “briguenta” pode ser fraseada como postura que não aceita mandonismos ou como dedicação a uma causa, o que vai encadeando, nas narrativas, explicações sobre os motivos da não aceitação delas pelas diretorias, dos insucessos que colheram na militância e na participação nas greves.
A análise das trajetórias sugere que elas assumiam, em diferentes contextos, posturas contestatórias diante do que consideravam injustiça, traduzidas pela expressão “briguentas”. No entanto, é sugestivo que enquanto a postura contestatória masculina, em outro compasso, é sempre associada ao termo “combativo”, o que nos remete aos espaços públicos de contestação e assume um significado moralmente positivo, como conduta esperada, o termo “briguenta”, por sua vez, é frequentemente associado às brigas domésticas, às questões menores que nos remetem à incompreensão dos “interesses de classe”, como um estado psíquico. A nossa hipótese é de que para avançarmos na compreensão das clivagens e resistências presentes nas trajetórias analisadas, sem assumi-las como casos paradigmáticos, é preciso compreender a simbiose entre vida familiar e vida pública. É com essa chave analítica que será possível entender como elas, ao passo em que questionaram o ethos sindical masculinizado, tiveram as suas vidas marcadas pelo modo como ecoava, no ambiente familiar, o preconceito vivido no trabalho e na militância. Isso faz com que, a despeito do caráter épico que assume na narrativa, os questionamentos e enfrentamentos muito delineados que surgem contra as opressões de gênero sejam igualmente de conformação ou de aceitação negociada dos mandonismos.
Os casos que apresentamos neste texto foram selecionados a partir de um universo com outras mulheres metalúrgicas que estamos igualmente entrevistando. Constituem-se como critérios desta amostra: i) em sua trajetória ocupacional, ter trabalhado em alguma indústria automotiva e/ou metal-mecânica da região do ABC Paulista entre os anos de 1978 a 1985; ii) eventualmente ter participado do I Congresso da Mulher Metalúrgica em 1978; iii) ter atuação como militante no SMABC. A opção pelo recorte, como já expusemos mais detidamente em outra ocasião (SANTOS JUNIOR; MENEZES, 2019), deve-se a um achado de campo quando estávamos a coletar informações sobre as memórias do ciclo de greves que irrompeu nessa região entre fins da década de 1970 e início de 1980. Sucede que as narrativas sobre aqueles acontecimentos, inicialmente coletas pelo registro etnográfico, sugeriam a ocorrência de um silenciamento sobre a participação das mulheres nas greves, ou melhor dizendo, de disputas simbólicas sobre quem seriam os protagonistas. 2
Além das incursões em campo, no SMABC, em diferentes ocasiões e no período que se estende de 2017 a meados de 2019, realizamos entrevistas biográficas, notadamente com mulheres, mas não somente, tentando cobrir, em suas narrativas, as origens da família e eventuais trajetórias migratórias; a inserção no mercado de trabalho e roteiros ocupacionais; a experiência do chão de fábrica e da militância no SMABC; solidariedades e clivagens presentes nesse processo; eventuais participações em greves e outras ações de resistência; a família e o espaço extratrabalho – apenas para citar os temas mais candentes. O propósito era obter diferentes configurações discursivas, na ambição de transformá-las em “outros significativos” (MEAD, 1972), a partir das singularidades dos casos analisados na relação com o trabalho e o sindicato. Portanto os exemplos que elegemos para este texto não constituem modelos paradigmáticos. Na análise dessas memórias, assumimos um entendimento que a toma enquanto “narrativas de si” (RICOUER, 1991) e, por essa via, reconhece a competência agêntica dos sujeitos ao reconstituir, editando, suas histórias. Estamos longe, pois, da pretensão de buscar no passado elementos sem contaminação do efeito que exerce o tempo presente sobre as narrativas. Vejamos como isso se apresenta a seguir.
Invisibilidades
Migrante nordestina, Judith3, 60 anos, teve a infância marcada pela pobreza, pelo distanciamento da figura paterna e pelas interrupções nos estudos. Com apenas doze anos, por determinação e vontade própria de querer sair de uma condição social precária – com a autorização do pai e do juizado de menores – começou a trabalhar. Já mais velha, e morando em São Paulo, ela nos conta que ficava pouco tempo empregada por “não aceitar coisa errada” ou por “arrumar muita confusão” contra a exploração e os abusos das empresas, em especial no que se refere às condições de trabalho das mulheres. Em função desse seu perfil de “briguenta” – sintagma que voltará a ser mobilizado por ela como atributo de caráter e que justifica a sua trajetória militante – também passou a representar os trabalhadores na Comissão Interna de Prevenção de Acidentes (Cipas) e em comissões sindicais de empresas.
Numa dessas ocasiões, em 1979, ainda com 21 anos de idade, quando trabalhava na Polimatic, participou de uma greve que durou 41 dias4. É nesse ano também que ela começa a participar das assembleias do sindicato e a se engajar nas atividades de militância. Em função da participação nesse movimento, sofreu perseguição e “tortura psicológica” por parte da empresa.
Eu não podia ir ao banheiro, eu não podia conversar com ninguém o supervisor ficava em cima, encostava e perguntava o que eu estava falando, mas foi uma tortura psicológica muito grande, assim, que nem eu estava preparada para tanta perseguição como eu sofria na Polimatic. Não podia conversar, não podia ir ao banheiro, nada podia fazer [nada] porque eles achavam que eu estava agitando, que eu estava tentando organizar o pessoal para qualquer movimento lá dentro. Voltei com dois meses mais ou menos [depois da greve], não sei nem se chegou a dois meses aí eles me mandaram embora. Aí eu fiquei, assim, sofri muito, muito, minha família sempre foi uma família muito carente, né? E a gente não podia ficar desempregado.
Não tardou para que entrasse na “lista negra” do Departamento Estadual de Ordem Política e Social de São Paulo (Deops-SP). Para fugir da perseguição, a estratégia usada era tirar nova carteira de trabalho para esconder os antigos registros. Chegou a trabalhar na Bombril e em outras empresas pequenas, mas só até o tempo de ser “descoberta” e mandada embora. Para conseguir alguma renda, recorreu a “bicos” e trabalhou no Fundo de Greve organizado pelo sindicato.
Durante esse período, foi casada por vinte anos com um operário e militante do SMABC, juntos tiveram três filhos. Depois de ter recusado o primeiro convite para compor a direção do sindicato, em 1984, “por vontade própria”, aceitou o segundo por ter sido desafiada pelos colegas a deixar de reclamar para fazer algo de concreto para a categoria. Acrescentou que só iria se o marido não fosse, porque não achava bom os dois compartilharem o mesmo espaço de trabalho. Ela foi a única mulher na gestão de 1987 e permaneceu até 1993. Ficou com a tarefa de organizar as mulheres, de criar uma comissão e aumentar a participação feminina na direção do SMABC. É enfática ao falar do quanto era difícil ser mulher e atuar no sindicato porque se exige muito mais de uma mulher do que de um homem.
O tempo todo você tem que estar provando para eles e era assim mesmo. Por mais que hoje eles... – “ah, Democracia, a igualdade” – mas não era bem assim, a gente tinha uma certa dificuldade tanto que sempre se questionava a participação da mulher, aí quem é que teve que puxar esse trabalho? Eu, como mulher!
A passagem pela executiva permitiu que ela se engajasse na criação da “Comissão de Mulheres Metalúrgicas”. As ações eram voltadas para orientar outras mulheres sobre a importância de elas irem para as comissões internas de prevenção de acidentes (Cipa), para as comissões de fábrica até chegar, talvez, às diretorias do sindicato. Ela lembra que não era raro ver mulheres participando das greves, das mobilizações e que depois “sumiam”, não frequentavam o sindicato.
Após uma longa passagem pela militância sindical, em 1995, ela decide se afastar. Tendo encerrado o cargo que assumira na diretoria e retornado ao trabalho, não tardou para que a empresa fechasse a sede em São Bernardo, mudando-se para o Paraná e demitindo todo mundo. Segundo ela, o sindicato não atuou como deveria para evitar esse fechamento e as demissões, deixando-a sozinha na luta.
Na sequência, Judith ficou desempregada e com dificuldade de se recolocar no mercado de trabalho, pois já era conhecida na região como alguém do sindicato e que, portanto, não era bem vista pelos patrões. Isso acarretou momentos de sofrimento e de muita tristeza. A precariedade das condições de vida ficou plasmada na memória quando ela recorda que não podia atender aos desejos de consumo dos filhos, não tendo recebido solidariedade por parte da direção do sindicato.
Os companheiros nunca foram me procurar para perguntar se eu precisava de alguma coisa. Aquilo me machucou muito. Fez com que eu parasse tudo. E eu que sempre foi minha vida, o sindicato, eu perdi a vontade de tudo. Porque enquanto é a gente, você vai levando.
Os laços de comunalidade tecidos durante a militância mostraram-se frágeis no momento do desemprego. Sabemos que esse atingia desigualmente homens e mulheres, sendo elas as que mais facilmente eram demitidas por ocuparem posições precárias. Nesse compasso, o engajamento na militância exigia muito das mulheres. Judith faz questão de ressaltar a importância da expressão “companheiro” usada por muitos, porém sem entender exatamente o seu significado. Para ela, ser “companheiro” era acolher no momento de dor, de sofrimento.
Companheiro é em todos os momentos, não é só na hora de uma reunião, de uma assembléia, não. Companheiro de fato, no dia a dia, pessoa companheira de verdade é você, eu ser sua amiga o tempo todo. Na hora que você tiver passando dificuldade, eu tô junto. Na hora que você tá bem, eu tô junto. Na hora que tiver que falar uma coisa que eu discorde de você, eu vou falar. Eu vou discutir com você, eu vou debater, mas eu nunca vou soltar da sua mão. Isso é ser companheiro.
A narrativa é ainda povoada por elementos da vida privada, seja pelo orgulho de ter educado os filhos, seja para dizer que organizou time de futebol feminino e ajudou na organização de eventos para a assistência às crianças e aos idosos. Não é difícil notar como a trajetória é marcada por esses embates entre conciliar as exigências da militância com as demandas oriundas do espaço da casa, da família, entre ser chamada de “companheira” e viver as clivagens de gênero, entre ser operária e ser mulher. É assim que a ideia de uma consciência da sua condição de mulher, e dos significados imputados a isso, emerge de maneira difusa, ora como atribuição que lhe era requerida pelos diretores para recrutar mais mulheres para compor a direção do sindicado, ora como sendo ela a responsável por abrir caminhos para outras mulheres, mesmo com as restrições de poder interno, pois o sindicato nunca teve uma mulher na presidência.
Aí fala: – Ah mas ela não participa, não tem capacidade. Não é verdade, não é verdade! É que a maioria da categoria são homens, maioria da diretoria são homens então para chegar ao ponto de ter uma mulher presidente deste sindicato vai ser difícil, não impossível. Vai ser muito difícil ainda. Então a gente o tempo todo tem que ficar mostrando que você é capaz, que você tem capacidade igual ou até mais do que alguns homens, que isso ocorre não por questão de disputa não é nada disso, é uma questão de cada um.
O relato aponta um elemento que também se mostrava decisivo em outros espaços e que pode ser resumido na forma de ter que “comprovar a competência”. Não sendo apenas de natureza discursiva, mas performática, era preciso ter um domínio sobre o corpo e sobre as formas de apresentação. Não é à toa a adjetivação atribuída às mulheres que frequentavam os sindicatos vistas como “vadias”. As piadas libidinosas, as fofocas, atualizavam discriminações mais sutis, veladas, já presentes no espaço da família e do trabalho5.
Pesava sobre a aparente ausência delas no cotidiano sindical a clivagm de gênero. Isso é perceptível quando, por exemplo, nos relatos dos homens, não se falava do cuidado com os filhos, da casa, supreendendo-se quando se viam perguntados sobre esses assuntos.
A baixa adesão à militância sindical por parte das mulheres, como ela afirma, ocorria também pelo enquadramento desses espaços como sendo para homem ou para mulher “vadia”. Temos assim uma relação biunívoca entre clivagens que ecoam no mundo do trabalho, mas que reverberam as desigualdades de gênero presentes na estrutura da sociedade naquele momento. É o que se depreende quando ela nos diz:
Mas a mobilização teve um grande número de mulheres que participou, só que naquela época era muito difícil, a perseguição era muito grande, e não só da empresa, do governo, mas também, da família. A família não aceitava. Eu lembro meu pai, quantas meu pai, eu chegava em casa e ele falava: você tava naquele sindicato? Você vai arrumar suas trouxas e você vai embora! Eu não criei mulher pra tá no meio de sindicato não, que isso não é coisa pra mulher.
Se, para os homens, a família aparece como arrimo emocional, sobretudo nos momentos de desemprego e das agruras do trabalho, para elas a situação assume um caráter contraditório; sim, porque se a militância as levava a questionar as opressões vividas na fábrica, ainda que nem sempre reconhecidas como demandas específicas das mulheres, a casa e as obrigações com a família as devolvia para um ambiente pouco afeito à ideia de uma mulher que lutava por seus direitos num sindicato. Voltaremos a essa questão mais à frente, antes, porém, vejamos como isso aparece em outras narrativas.
Insurgências
Nas conversas que tivemos com Rita, 58 anos, nossa segunda personagem, não faltaram referências à infância e às dificuldades enfrentadas pela sua mãe. Vítima de violência doméstica do primeiro marido, ela fugiu de casa, no Paraná, com quatro filhos, “só com a roupa do corpo”, para São Paulo. Na cidade grande, acabou encontrando residência na favela do Vergueiro “em um barraco cedido por uma vizinha”. Foi aí que ela conheceu o segundo marido, pai de Rita, com quem teve mais três filhos. Do pai, ela lembra que também era migrante, vindo do interior da Bahia para tentar a vida em São Paulo. Veio a falecer ainda novo, com 54 anos, vitimado pela doença de Chagas.
A ênfase da estrutura narrativa de Rita é dada para a figura da mãe, tida como uma “flor de lótus”, porque conseguiu sobreviver às piores situações da vida. Do pai, embora atribua qualidades, como sendo um “homem bom”, que não tinha “vícios”, que acolheu a esposa com seus quatro filhos, era visto como bastante enérgico no comportamento. Não demorou para que essa suposta característica gerasse um primeiro conflito entre a filha e o pai. Sucede que Rita engravidou quando tinha 16 anos, ainda estudante. A alegada ausência de conhecimentos sobre educação sexual, tema banido dos assuntos da casa, favoreceu, segundo ela, a gravidez precoce. O rapaz, mais velho, não assumiu a paternidade, degradando ainda mais a relação com o pai. Esse se dizia envergonhado pela situação, chegou a processar o pai da criança por sedução de menor e, o mais grave, expulsou a filha de casa.
A avó quem acolheu a neta com o filho recém-nascido, deixando evidências de um “sistema familiar” (FONSECA, 1987) ampliado, que opera sempre com o apoio dos parentes mais próximos e daqueles “aparentados” e para os quais se recorre em momentos de necessidade, como havia acontecido com a mãe de Rita ao chegar em São Paulo. Quando o filho completou dois meses, ela nos conta que foi trabalhar em uma metalúrgica perto de casa, no turno das 14 às 22 horas. Foram os irmãos de Rita que assumiram a tarefa de cuidar do bebê e levá-lo para amamentar na fábrica.
Os estudos, interrompidos pela gravidez, e o ingresso no mercado de trabalho foram retomados quando o filho completou cinco anos6. Como ela nos disse, “a gente tem que se reinventar”. Do filho, não nos diz muito, apenas que ele também é metalúrgico e tem uma filha.
A trajetória ocupacional da nossa personagem inicia-se nas empresas fornecedoras de peças para as grandes montadoras, é onde ela argumenta que começou a militância. Por um lado, o assunto “sindicato” chegou pelas conversas que ela ouvia do pai. Trabalhando na construção civil, ele sempre esteve próximo do sindicato do setor. Mas é, sobretudo, o cotidiano do trabalho na fábrica que suscita as discussões que a levaram a se engajar na militância sindical.
(...) e ali eu via coisas erradas, sabe? Várias pessoas se acidentando porque não tinha equipamento de proteção, trabalhar na metalúrgica é pesado, uma coisa assim, né? Você tem produção, você tem que dar, você não lida com homem, mas é a máquina, né? E eu comecei a me [indignar]... Ah não, isso está errado, isso está errado!
Em outro momento, prossegue,
Eu trabalhava na solda e era solda ponto, voava. Eu sempre ficava com cabelo queimado, braço, eram vários hematomas porque voava, você não tinha proteção, nós só queríamos isso e as mulheres, quando iam no banheiro, tinha a danada da chapinha, era aquele monte de mulher, chapinha, até absorvente a gente tinha que pegar lá com [o encarregado] Olha que humilhante! Para eles controlarem se você estava grávida ou não, se você estava menstruada ou não. Então absorvente você não podia levar porque não tinha como é hoje, que tem todos aqueles armários e cada uma tem... não! Então você tinha que pegar o absorvente com o seu encarregado ou encarregada lá e ele cedia. Se tivessem duas pessoas no banheiro, a terceira não podia ir porque não pode perder produção. E aí isso ficou me, sabe? Me mexendo.
O adjetivo mobilizado para designar essa atitude de indignação é – ser – “briguenta”. Embora ela reconheça a influência do pai na sua militância sindical, será ele também o primeiro a opor resistência à participação dela nas reuniões do sindicato por entender que “essa era uma tarefa dos homens”, sempre com uma visão muito negativa a respeito das mulheres que frequentavam o sindicato.
Nesse momento, ainda nos primeiros anos de fábrica, houve uma greve. Pararam a fábrica para exigir melhores condições de trabalho. Ela nos conta que não se “conformava” com aquelas condições e foi nessa ocasião que procurou o sindicato. “Através dessa greve, o sindicato foi me vendo lá”. Em seguida, foi eleita para a comissão de fábrica: “os trabalhadores me escolheram e eu era a única mulher, o resto era tudo homem”. Mas o refluxo não tardou a aparecer, foi demitida com toda comissão em 1983, por represália patronal. O desafio agora seria, além de enfrentar as dificuldades da falta de um rendimento fixo, encarar o pai: “como que eu ia chegar em casa demitida?”. Como ele disse: “Agora eu quero ver se você vai sustentar seu filho”.
Nesse período, ela nos relata que trabalhou em casa de família, no sindicato, no Fundo de Greve, e só foi reintegrada cinco anos depois, após decisão judicial, em 1988. Com o nome “sujo”, como se dizia na linguagem patronal para trabalhadores que causavam problemas, Rita recorreu à estratégia de usar diversas carteiras de trabalho para conseguir emprego em outras fábricas, que costumavam durar até o momento em que se descobria quem era ela.
Eu ia lá com carteira branca e eles falavam: nunca trabalhou? Eu falava que nunca tinha trabalhado, só que quando eles descobriam, me mandavam embora. Por conta disso, tive vários serviços, nunca tive uma coisa fixa.
Esse retorno à fábrica, como nos conta, não foi suficiente para superar as constantes perseguições, tendo ficado apenas um ano. Nesse interstício, percorreu diversas empresas até chegar, em 1989, ao comitê da campanha do candidato Lula e, um ano depois, ingressar na Federação dos Sindicatos de Metalúrgicos da Central Única dos Trabalhadores do Estado de São Paulo (FEM-CUT/SP).
A narrativa deixa evidente os impasses da participação das mulheres na vida sindical, em consonância com os achados de outros pesquisadores (SOUZA-LOBO, 2011; HUMPHREY, 1983). Mas o que gostaríamos de dar relevo é a atuação delas no chão de fábrica, opondo resistência às formas de opressão que lhe atingiam de modo particular e, por via de consequência, estruturando uma forma de conflito que operava em compasso distinto dos homens. Não por acaso, Rita é enfática ao afirmar, sobre o sindicato, o que lhe parecia ser um ambiente predominantemente masculino.
Eles são machistas porque o discurso é um e a prática a gente sabe que é outra. Pô, a gente tem que matar um leão a cada dia e depois tem que mostrar o leão, e tem que dar uma louca aqui mesmo.
É nesse contexto que a invisibilidade das mulheres emerge como questão no movimento sindical. Mas não só isso, ela nos aponta para a diferença de tratamento que o movimento sindical tinha para com as pequenas empresas, onde concentrava o maior número de mulheres.
E eles, vocês podem ver, eles não contam a história. Contam a história aqui, falam sempre das montadoras, das empresas pequenas não contam. Vai ser difícil você ter um relato de uma empresa pequena de uma mulher de destaque, não? Tanto é que teve o primeiro congresso das mulheres, depois de quantos anos teve o segundo? Trinta anos depois que teve o segundo congresso7.
Conclui-se que, para poder sobreviver em ambientes tão hostis, as mulheres tinham que ter suas próprias estratégias e não restringir a luta a um único espaço. Sim, lembremos que é por meio do relato delas que percebemos como ecoava, no interior das fábricas, formas de opressão que já estavam presentes nas famílias e, portanto, na sociedade de maneira geral. Naquele momento, como já havia destacado Souza-Lobo (2011), essa luta “para além da fábrica” ensejava desconfiança dos sindicatos em razão da possibilidade de “contaminação das práticas reivindicatórias pelas práticas ideológicas” (SOUZA-LOBO, 2011, p. 42).
Rita nos conta da existência, naquela ocasião, de um forte vínculo com a base para obter sustentação política para suas demandas, o que implicava ter que “se juntar a eles” para não cair no isolamento político. Em conversa com as colegas, ela alertava: “vocês não podem ficar só dentro das fábricas! Tem que ocupar os espaços, participando, dando as caras. Por que a gente só presta para fazer volumes?” Essa constatação parece persistir, atualmente, sob a forma da baixa presença de mulheres nas diretorias dos sindicatos, como ela nos conta. A propósito, esse foi um ponto comum nas outras entrevistas.
Emergências
Ao ser indagada sobre a sua trajetória no movimento sindical até a organização das mulheres na CUT, Lara, 60 anos, nossa terceira personagem, percorre um longo caminho desde a infância. Não lhe faltam exemplos do que ela considerava “exploração”, sofridos enquanto trabalhadora doméstica, tendo iniciado essa atividade aos 9 anos de idade.
Da infância, em convergência com as demais narrativas que colhemos, nota-se o início prematuro em atividades de trabalho, a precariedade das condições de vida, o desafio de conciliar estudo e trabalho. Em suas palavras: “a história pra mim era ganhar dinheiro para ajudar a sustentar a família; eu, minha mãe e minhas irmãs”.
Aos 15 anos, em 1977, começa a trabalhar em uma metalúrgica no Brás, em São Paulo, mas foi em Ribeirão Pires, já no ABC Paulista, posteriormente, que ela se aproximou do sindicato. Até esse momento, o relato enaltece o que ela vê como sendo um atributo do caráter pessoal, a “rebeldia”. Diz que não se intimidava com a figura masculina. É nesse processo que ela alega ter percebido várias contradições entre as ocupações de homens e mulheres, sobretudo no que se refere às diferenças salariais. Interessada em operar máquinas, a empresa propõe uma qualificação via o Serviço Nacional de Aprendizagem Industrial (Senai). Eis como surge,
Eles [a empresa] conseguem uma vaga no Senai. Que nessa época as mulheres não podiam fazer Senai, a não ser na área de desenho técnico e leitura e interpretação de desenho. Ou então na área de costura. No Senai do Brás, desse período, não tinha nem sequer banheiro para as mulheres! No de Sto. André tinha, porque já tinha funcionárias. Mas, enfim, não aceitavam mulheres nessas áreas. A empresa, como era uma empresa grande, consegue a minha entrada no Senai e eu sou uma das primeiras mulheres a ter [isso]. E aí foi outro choque, dentro do Senai, com os homens. Eu passei em segundo lugar na prova, e eles tinham muita raiva de mim. Era uma rixa boba, mas que era perceptível. Minha visão era de procurar os meus direitos, que pra mim era ir na delegacia regional do trabalho... Eu não tinha uma visão sindical. Eu sequer sabia que tinha sindicato.
No chão de fábrica, ela acabava sendo uma espécie de “porta voz” das mulheres para levar as reinvindicações até a gerência. A suposta fama acabou chamando a atenção dos trabalhadores, homens, que já faziam parte do sindicato.
Então eu não me envolvia [com o sindicato], só os via lá e lia os boletins, mas aquilo não me chamava atenção. Mas a minha atuação dentro da fábrica chamava a atenção deles, isso eu fui saber depois. Porque todo mundo me procurava. Tem um pagamento, vai lá e fala com a Lara. Eu era meio que porta voz da mulherada, tinha muita mulher lá, a fábrica era em torno de 70% de mulheres.
Prossegue:
E eu não sei por quê. Se eu tinha sido a pioneira nessa história de assumir como mecânica e trabalhar no meio dos homens, conversar com eles de igual para igual... Era a minha rotina diária. Eu transitava no meio deles, contava piada. E isso talvez chamasse a atenção das mulheres e fizesse de mim um espelho para elas. Era uma mulher que representava e tinha voz. Mesmo com a chefia, eu tinha muita liberdade. Dizia aquilo que eu pensava, de reagir, mas de uma maneira muito mais profissional. Eles me puseram pra fazer um trabalho que, no fim, eu fazia todos. Essa coisa de mulher querer fazer tudo ao mesmo tempo. Eu preparava a máquina, mas eu não me conformava só de preparar a máquina. A ferramenta vinha da ferramentaria, que não mandava ferramenta o dia todo. Então às vezes a máquina ficava lá parada horas esperando aquela ferramenta. Então eu vou consertar essa ferramenta, e aprendia a consertar a ferramenta manualmente. Então eu me tornei uma profissional qualitativamente muito forte perante todos eles, porque eu fazia quase todos os trabalhos.
Se, por um lado, o cargo de “mecânica” era qualitativamente superior quando comparado com aqueles usualmente ocupados por mulheres, e talvez por isso tenha exercido um certo fascínio entre as demais trabalhadoras, por outro, não tardou para que ela percebesse o tratamento diferenciado da empresa no que tange ao reconhecimento das suas competências profissionais. Na hierarquia dos cargos, embora ela se habilitasse a ser uma “profissional”, era enquadrada pela empresa como sendo “meio oficial”, o que se expressava pela diferença salarial com relação aos homens. Ela nos conta que deixou de trabalhar por um dia quando estava na empresa, ocasião em que diz ter feito uma “greve sozinha”. A reivindicação logrou sucesso e ela obteve o aumento salarial desejado.
Estamos propondo que evidências tais como essa nos permitem compreender a forma como os conflitos, no chão de fábrica, canalizam as ações das trabalhadoras. Mesmo o relato da aproximação com o sindicato dos metalúrgicos põe em relevo aspectos da vida privada e as dificuldades enfrentadas pelas mulheres para se engajar na militância; algo que não colhemos nos relatos dos homens. Desse modo, ela resiste aos primeiros convites que recebe para participar do sindicato e lança mão, para explicar essa reticência, da sua condição de trabalhadora mulher, vejamos,
E aí o sindicato começa a me namorar por conta dessa história. – “Você é uma pessoa muito representativa”. Mas eu não aceitava. Na verdade, tinha toda uma relação que é muito feminina nossa. Minhas irmãs casaram e ficou eu, minha mãe e minha irmã que era especial. Minha mãe cuidava dela. E eu tinha um noivo, fiquei noiva com 10 anos, na verdade eu comecei a namorar com 10 anos e com 14 eu fiquei noiva. Um rapaz que era 12 anos mais velho do que eu. Ele era muito ciumento. Então a minha participação no movimento sindical era muito difícil. E era uma coisa que eu não queria romper. Tem umas coisas que você tem vontade de romper e outras não, você vai fazendo... Mas eu não queria chocar minha mãe e nem chocar ele, então eu tinha umas participações de ir em umas assembleias... Mas participar mesmo, eu sabia que era muito árduo, era dia e noite. E aí eu não me envolvia muito, eu ficava entre a cruz e a espada [risos]. Eu tinha a participação grande na fábrica, mas no movimento sindical, não.
O convite para participar da direção do SMABC ocorreu em 1988, veio sob o argumento de que era preciso aumentar o número de mulheres no movimento sindical. Questionada, ela nos conta que ficou chocada com a baixíssima participação das mulheres nas assembleias e como o ambiente era altamente hostil para elas. Destaca ainda que a organização das mulheres na Comissão Nacional sobre a Questão da Mulher Trabalhadora (CNMT), da CUT, havia iniciado os debates com os sindicalistas no ABC sobre questões relacionadas às mulheres. Essa ação se espalha por outras categorias e ela recorda das bancárias, da construção civil, das costureiras, entre outras. Foi a partir desse momento que Lara se aproximou da CUT, primeiro em nível estadual, depois nacional. Mas as ambivalências e conflitos que atingiam as lutas das mulheres mostraram-se mais uma vez presentes. No relato, volta a aparecer o atributo de caráter “briguenta”. O sintagma serve para designar o comportamento supostamente questionador das injustiças, quando ombreava, desafiando, os homens.
Eu sempre fui muito briguenta. Queria estar em tudo, disputava com homens, não tinha esse problema. Mas assumir o feminismo? Eu nunca tive isso muito claro. Eu não assumia. Os homens tentavam transformar a questão do feminismo numa história de: “são mulheres que não gostam de homens”. Eles trabalhavam o feminismo como uma antítese de ser mulher.
Nos relatos que colhemos dos trabalhadores homens, os termos tais como “briguento”, “rebeldes”, nunca emergiram, em vez disso, a expressão mais vocalizada era “consciência”. Tratava-se da atitude de ter “consciência” das injustiças e, portanto, aproximar-se da militância sindical. A imagem pejorativa associada às feministas deve ter exercido alguma influência, como ela diz. Havia ainda uma distância entre as “sindicalistas” e as “feministas” marcada pela condição de classe. Sucede que as mulheres trabalhadoras tinham questões muito objetivas para tratar, a começar pelo cuidado com os filhos, a luta por creche, entre as demandas mais recorrentes. Em resumo, primeiro era preciso ter condições para trabalhar, depois para poder militar. Aliás, e como já dissemos em outro momento (SANTOS JUNIOR; MENEZES, 2019), incide sobre essa tensão parte expressiva da participação das mulheres no ciclo de greves históricas entre fins da década de 1970 e início de 1980. Lara ilustra muito bem esse cenário quando lembra da participação em um encontro feminista ocorrido fora de São Paulo, no litoral sul.
Eu tinha acabado de ter uma filha, você vai e tem que estar no encontro. Então lá vou eu com a minha filha e elas não aceitavam, queriam mandar de volta com a filha. Aí depois de muita briga, conseguiram colocar eu e a menina para dentro. Mas foi tanta reclamação, tanto protesto, que nós tivemos que ir embora no dia seguinte. Ou seja, não tinha creche, nenhuma estrutura para nenhuma mulher que estivesse nessas condições. Você não podia levar criança e não tinha nenhum preparo para receber. E qual era a justificativa delas? Que aquele era um movimento das mulheres, não era para elas ficarem cuidando de filhos.
Isso para dizer que, a seu juízo, não havia somente uma tensão entre os metalúrgicos homens e mulheres na militância sindical, mas uma clivagem entre as “sindicalistas” e as “feministas”, a denotar formas de engajamentos distintos e, por conseguinte, estratégias de ação nem sempre convergentes. Conquanto ela reconheça o papel que desempenhou algumas intelectuais da academia no estreitamento desse fosso, entre elas recorda de Helena Hirata, Beth Lobo e Vera Soares.
A CUT contava, nesse momento, com uma assessoria ligada ao movimento feminista, como é o caso da organização não governamental SOF – Sempreviva Organização Feminista, além da participação de militantes feministas, como Nalu Faria, Tatau Godinho e Matilde Ribeiro, entre outras, para contribuir para a organização de encontros e a formação política.
Ao longo da entrevista, Lara relata como era difícil convencer as mulheres a se mobilizarem pela luta por creche, porque muitas trabalhadoras preferiam deixar a crianças com as avós, pois não queriam “sacrificá-las”.
Teve uma coisa que eu fiz muito dentro da fábrica que era brigar com as mulheres para botar a questão da creche como prioridade. Porque as mulheres não aceitavam na época. Então você tinha que convencê-las, na verdade, que nem sempre ele [filho] está com a mãe. Então você deixa de ser explorado para explorar sua mãe, porque sua mãe não pode sair, não pode fazer um monte de coisa. Então era trabalhar com as mulheres a importância da socialização, da criança e, ao mesmo tempo, trabalhar com a empresa a importância de ter a creche.
Para Lara, a organização das mulheres da CUT contribuiu não só para a formação das sindicalistas do campo cutista, como também ajudou na organização das mulheres da Força Sindical (FS) e da Central Geral dos Trabalhadores (CGT), por demanda das próprias mulheres dessas centrais. Em outra passagem, reconhece que não foram só as mulheres que mudaram de comportamento e compreensão sobre os temas relacionados à questão de gênero, os homens também mudaram, ou ao menos se sentiram pressionados para tal. Eles passaram a dar mais atenção à família, a interromperem reuniões para pegar filhos na escola e a dar um tratamento mais respeitoso para as mulheres do movimento, principalmente se comparado com a experiência que ela nos conta que vivenciou quando entrou no sindicato. Mesmo assim, Lara pondera que a estrutura de poder sindical ainda se mostra pouco porosa quando o assunto é a participação das mulheres em cargos de direção.
Mesmo os departamentos de mulheres nos sindicatos – e aí eu estou falando mais a partir do sindicato que eu fiz parte, porque eu não fiquei muito fora – mas eu não vejo um trabalho direcionado dentro do sindicato para o atendimento das mulheres, para essa sensibilidade que a gente sempre buscou. Você não tem um trabalho desse. E mesmo assim, onde você tem mulheres na direção, o tratamento é muito parecido com o masculino que ela [mulher vítima de violência] recebe quando chega.
Estávamos percebendo que a narrativa da nossa personagem nos convidava a pensar outra questão. Não se tratava apenas de saber o quanto demandas do movimento feminista haviam influenciado a militância sindical, mas o quanto essa havia influenciado pautas feministas. Essa forma de arguir recoloca o argumento proposto por Souza-Lobo (2011) quando se vê desafiada a compreender como os movimentos sociais de mulheres existentes naquele momento haviam pressionado a participação feminina nos sindicatos, no mesmo compasso, como as práticas reivindicatórias das operárias da metalurgia redefiniram as estratégias do movimento sindical. Chamamos a atenção do leitor porque esse foi um ponto comum nas trajetórias que colhemos.
Na seção final, retomaremos alguns pontos importantes que surgiram a partir da análise das trajetórias de vida das nossas entrevistadas no esforço por fazê-los dialogar com os achados de outros pesquisadores e com a fortuna crítica disponível.
Considerações Finais
Os achados aqui reunidos, embora prematuros, nos servem como pontos de partida para uma reflexão que estamos propondo e que pode ser resumida da seguinte forma: Como se deu a atuação das mulheres na militância sindical no ciclo de greves históricas do ABC Paulista? Como as demandas de gênero ensejaram alterações nas formas de ação sindical naquele contexto? Optamos como estratégia metodológica a análise das trajetórias de vida de uma amostra de mulheres que assumiram cargos na estrutura executiva dos sindicatos com o propósito de produzir informações. No projeto de pesquisa, que tem outras frentes e alguns resultados já começam a ser publicados (LEITE LOPES; HEREDIA, 2019), avançamos na hipótese de que a clivagem de gênero – que cinge os relatos das mulheres em sua militância sindical – produzia efeitos na memória que se estendem no tempo presente.
Vivido como um drama, o caráter sexuado das memórias (PISCITELLI, 1993) parece revelar não apenas nuances nas formas de narrar as histórias de vida e trabalho de mulheres e homens operários, mas, sobretudo, produz nelas um efeito ainda presente após anos de silenciamento: a recusa em falar. Não foram poucos os desacordos que colhemos na composição dos casos para as entrevistas, o mais das vezes sob o argumento de que as “histórias delas” não eram importantes. O fato desnudava os limites metodológicos do registro biográfico pela suposição de que poderíamos colocar em risco a segurança de relatos colhidos no anonimato. Sim, porque em outro momento (SANTOS JUNIOR; MENEZES, 2019), aventamos a hipótese de que as disputas de narrativas sobre as greves (que incide sobre quem irá contar e o que será contado) legitima e deslegitima versões e personagens, sendo as mulheres preteridas. Contar uma versão era, nesse contexto, entrar numa peleja; algumas achavam que isso não valia a pena. No entanto, julgamos que poderíamos, como sugere Weber (2009), levar a termo a análise do íntimo sem necessariamente publicar os relatos confidenciais. Esse é um limite onde sentimos o fio da navalha.
Neste artigo, promovemos uma incisão ligeiramente distinta em nossa amostra de casos para reunirmos aquelas que tiveram passagens por cargos em diretorias. O objetivo é compreender os recursos que foram mobilizados por essas mulheres em suas trajetórias e como as clivagens alteram a ação sindical e, no caminho inverso, como as experiências de militância sindical intereferem na questão de gênero. Isso posto, é preciso ainda recordar que estamos perseguindo pistas levantadas por outros pesquisadores, seja sobre o modo como as relações sociais de gênero estruturam discriminações no mercado de trabalho (CASACA; SALLY, 2012; HIRATA; KERGOAT, 1994; SCOTT, 1995; GUIMARÃES et al., 2016), na militância sindical (CAPPELLIN, 1994; SOUZA-LOBO, 2011; HUMPHREY, 1983), ou ainda como os movimentos sociais mostram-se mais ou menos porosos a uma nova morfologia que define a sua dinâmica de lutas e a sua composição interna.
Eis, portanto, a órbita de questões que estão em mente na análise que propomos neste artigo.
Salta à vista o modo através do qual a dimensão privada, da família, pesa nos relatos ecoando os seus efeitos sobre o domínio público, do trabalho. Isso atinge uma miríade de aspectos da vida cotidiana e das representações simbólicas associadas às práticas que têm lugar no espaço da casa. Para todos os casos que colhemos relatos, foram as mulheres que pontuaram a trajetória ocupacional com elementos da vida familiar, é assim que ter filhos, casar, cuidar da casa, para citar os mais recorrentes, não apenas marcavam as formas de inserção na militância e as estratégias de luta no chão de fábrica, mas eram constantemente mobilizadas como elementos discursivos para firmar uma sorte de “conteúdo disposicional” . Dito de outro modo, o cotejamento, nas narrativas, de atributos de caráter, quase que como aspectos de ordem psíquica, tal como “briguentas”, “rebeldes”, “loucas” era reivindicado como mecanismo explicativo para as estratégias de luta nos cotidianos de trabalho; disposições essas “herdadas” no espaço da casa ou no “mundo da vida” (HABERMAS, 2012). Nesse sentido, parece-nos evidente quando Rita questiona o confinamento das mulheres à vida doméstica e ao cuidado dos filhos, remetendo aos desafios enfrentados em razão da gravidez precoce, da figura de um pai ausente, as dificuldades em conciliar trabalho e estudo, como se isso a tivesse “habilitado” a questionar mandonismos.
O mesmo faz Lara que nos remete às dificuldades enfrentadas em casa – no cuidado com a mãe e uma irmã com problemas de saúde, ou mesmo com o noivo, por não verem com bons olhos a participação dela nas reuniões do sindicato – como antessala da “rebeldia” que logo assumiria para enfrentar os mandonismos das chefias nas fábricas, no curso de formação feito no Senai. É, insistimos, o trânsito de elementos desses dois universos – a casa e o trabalho – que nos fornecem evidências para a compreensão das trajetórias de militância das nossas personagens.
A forma nativa para designar os comportamentos associados às resistências das mulheres parece não encontrar legitimidade mesmo quando elas ingressam na estrutura do sindicato, com já havia notado outros estudos, a exemplo de Hirata e Kergoat (1994) e Ledwith (2012). O que nos parece inédito é a permanência, na memória, das disputas simbólicas para dar legitimidade à história das mulheres operárias. Elas percebem o caráter, por vezes ardiloso, dos convites feitos pelas direções dos sindicatos para contar com mais mulheres na chapa.
Temos, pois, uma invisibilidade que se transveste de forma variada e que impõe questionamentos à militância sindical, bem como à militância feminista. Essa, por sinal, quando provocamos nas conversas, era sempre para dizer que mantinham certa distância do que consideravam uma adesão aos outros movimentos sociais, todavia, preservando que as pautas lhes eram próximas, o que recoloca a proposta lançada por Melucci (1980) e Tilly (2008) de tomarmos os novos movimentos sociais menos como estruturas e mais como formas de ação coletiva, enquanto sistemas de ação. Portanto, se a crítica/denúncia lançada anteriormente por Souza-Lobo (2011) e Humphrey (1983) para explicar a tensão gerada no interior da estrutura sindical frente às demandas das mulheres – pelo medo que a categoria tinha de que elas poderiam “fragmentar” as reivindicações que deveriam estar agrupadas e subsumidas à “classe” –, a pauta que está na mesa é sobre como aninhar novas formas de solidariedade em face das diferentes estratégias de mobilização8.
É com essa chave analítica que podemos compreender o que se depreende dos relatos quando os casos em tela falam da rigidez das estruturas sindicais em acolher a participação das mulheres e, ao mesmo tempo, da reticência delas quanto aos movimentos feministas naquele contexto. Não se quer com isso meramente nomear culpados, mas compreender o fenômeno em seu caráter processual, visto que ali se refletem, como estruturas estruturantes (BOURDIEU, 2005), aspectos simbólicos mais difusos que certamente permeiam o tecido social mais amplo no tocante aos papéis atribuídos às mulheres.
A evidência empírica mostra-se ambígua quando a observamos somente pela razão entre contestação e aquiescência. Os relatos dão prova de que elas também “cediam” como estratégia para viabilizar algum outro recurso. Ficar com os filhos, cuidar da casa e, portanto, reduzir o tempo disponível para a militância, não as impediam de confrontar as violências que lhes atingiam nos ambientes de trabalho e no sindicato. Como nos conta uma entrevistada, não bastava chegar lá, assumir um cargo, a performance requerida para elas exigia uma comprovação diária. Com o sarrafo mais alto, era preciso “dar uma de louca”. Mais uma vez, um atributo psíquico para caracterizar, preconceituosamente, as formas de contestação delas.
O gradiente que melhor expressa as estratégias de luta que elas desenvolveram talvez seja o da “negociação”, que não se reduz ao confronto e a anuência, mas permite que as estruturas de poder sejam constantemente desafiadas9. Será preciso aqui mapear os “bens” que estão sendo “negociados” nessa luta e que não encontram um denominador comum pela orientação econômica – ainda que as reivindicações o mais das vezes assumam esse caráter –, há outros “bens” não mensuráveis, tais como solidariedade, identidade, que as permitem se afirmar para além das desigualdades associadas à divisão sexual do trabalho.
Se para os homens a luta se restringia ao universo do trabalho, para elas era preciso ir além e confrontar as outras clivagens e formas de opressão do quadro social mais amplo em que estavam inseridas10.
Referências
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BOURDIEU, Pierre. O poder simbólico. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2005.
CAPPELLIN, Paola. Viver o Sindicalismo no Feminino. Revista Estudos Feministas, Florianópolis, n. especial, p. 271-290, 2º semestre 1994. Disponível em: <https://periodicos.ufsc.br/index.php/ref/article/view/16110>. Acesso em: 24 mar. 2020.
CASACA, Sara Falcão; SALLY, Bould. Género, idade e mercado de trabalho. In: CASACA, Sara Falcão (org.) Mudanças Laborais e Relações de Género. Coimbra: Almedina, 2012. p. 87-132.
FONSECA, Claudia. Aliados e rivais na família: o conflito entre consangüíneos e afins em uma vila porto-alegrense. Revista Brasileira de Ciências Sociais, São Paulo, v. 2, n. 4, p. 88-104, 1987. Disponível em: <http://anpocs.com/index.php/publicacoes-sp-2056165036/rbcs/233-rbcs-04>. Acesso em: 24 de mar. de 2020.
FONSECA, Karen et al. Entre sujeitos e sentidos: uma análise do Ciclo de Greves do ABC Paulista a partir dos discursos da Folha e do Estadão. In: LEITE LOPES, Jose Sergio; HEREDIA, Beatriz A. (org.). Movimentos cruzados, histórias específicas. Rio de Janeiro: Editora UFRJ, 2019. p.191-226.
GUIMARAES, Nadya Araujo et al. Mercantilização no Feminino: a visibilidade do trabalho das mulheres no Brasil. Revista Brasileira de Ciências Sociais, São Paulo, v. 31, n. 90, p. 17-38, 2016. Disponível em: <http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0102-69092016000100017&lng=en&nrm=iso>. Acesso em: 24 mar. 2020. https://doi.org/10.17666/319017-38/2016.
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Recebido em 30/03/2020
Aceito em 16/09/2020
1 Este artigo apresenta resultados parciais da pesquisa iniciada no projeto “Movimentos cruzados e histórias específicas de operários e trabalhadores rurais: análise comparativa dos ciclos de greves iniciados pelos metalúrgicos de São Paulo e do ABC Paulista e pelos canavieiros de Pernambuco no final dos anos 70”, com continuidade no projeto “Direitos Humanos: dos fundamentos teóricos às tendências contemporâneas no nível local (cidades)”. Somos gratos à Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes) pelo apoio institucional recebido em ambos os projetos.
2 Sobre as narrativas em disputa no ciclo de greves dos anos 1970 e 1980, ver também, na mesma obra, Fonseca et al. (2019), bem como Oliveira e Ladosky (2019).
3 Atribuímos nomes fictícios para preservar o anonimato das informantes.
4 Há um registro fílmico dessa greve no documentário, produzido por Leon Hirszman, “ABC da Greve”.
5 Mas, não nos apressemos: são fartos os relatos colhidos que mostravam como a aparente falta de interesse político, para não dizer de “consciência”, colide com a constante presença delas nas greves, opondo resistência aos mandonismos no chão de fábrica. Sobre isso, ver, por exemplo, Negro (2009).
6 Concluiu um curso de Pedagogia e ingressou, mais recentemente, no curso de Direito, ambos em faculdades privadas.
7 O I Congresso da Mulher Metalúrgica de São Bernardo, que ocorreu de 21 a 28 de janeiro de 1978. Em 25 de março de 2010, ocorreu o II Congresso da Mulher Metalúrgica, cujo tema foi “construindo a igualdade entre homens e mulheres”.
8 Para um resumo desse tema, ver Hyman (2002) quando argumenta que a ação coletiva em que se baseava os movimentos de trabalhadores estava ancorada em uma forma de solidariedade pouco afeita às diferenças, sejam elas de gênero, raça, religião, nacionalidade, para citar as mais palpitantes. O desafio proposto pelas ações sindicais será o de suplantar as diferenças que marcam os coletivos de trabalhadores.
9 Ver Scott (1990).
10 Para tanto, podemos beber na fortuna crítica das discussões sobre consubstancialidade e interseccionalidade das relações sociais presentes na teoria social. Há um bom resumo em Hirata (2014).
O CAMINHO DO VIEJO REALES
THE ROAD OF OLD REALES
__________________________________
Silvia Beatriz Adoue*1
Resumo
Este artigo trata da representação cinematográfica da vida e lutas dos trabalhadores da cana-de-açúcar em Tucumán, Argentina, durante as décadas de 1960 e 1970. O objeto deste trabalho é o filme El camino hacia la muerte del Viejo Reales (1974), do cineasta tucumano Gerardo Vallejo, membro do grupo Cine Liberación. O encontro entre as lutas e o cinema como instância de reflexão e intervenção dos militantes sindicais e políticos dos canaviais naquele período histórico nos remete às possibilidades do cinema, mas também dos trabalhadores pensando a própria ação. O filme em questão é, na sua primeira parte, um trabalho de testemunho da família Reales sobre sua vida, com participação da família na encenação de situações que a simples entrevista não permitiria. A família aceita, inclusive, incluir elementos de ficção, cuja condição não é escamoteada do receptor. Isso facilita a passagem da história singular à história dos trabalhadores canavieiros tucumanos. Na segunda parte, traça um panorama histórico de Tucumán e a indústria açucareira, assim como da construção da Federación Obrera Tucumana de la Industria del Azúcar (FOTIA) através das suas lutas, pela voz dos seus próprios militantes. Ao organizar desta maneira o material fílmico, a montagem constrói um sentido e o coloca a serviço da organização dos trabalhadores, seja para a autorreflexão, seja como material da formação dos seus.
Palavras-Chave: Trabalhadores canavieiros. Tucumán-Argentina. Cinema político. Documentário.
Abstract
This article is about the cinematographic representation of the life and struggles of sugar cane workers in Tucumán, Argentina, during the 1960s and 1970s. The object of this work is the film El camino hacia la muerte del Viejo Reales (1974), by the tucuman filmmaker Gerardo Vallejo, member of the Cine Liberación group. The meeting of struggles and cinema as an instance of reflection and intervention by the union and politic activists of the sugar cane fields in that historical period reminds us of the possibilities of cinema, but also of the workers themselves thinking about their own action. The film in question is, in its first part, a testimony of the Reales family about his life, with the participation of the family in the staging of situation that the simple interview would not allow. The family even accepts to participate, including elements of fiction, whose condition is not hidden from the viewers. This facilitates the passage from the singular history to the history of the sugar cane workers in Tucumán. In the second part, it traces a historical panorama of Tucumán and the sugar industry, as well as the construction of the Federación Obrera de la Industria del Azúcar (FOTIA) through its struggles, through the voice of its own militants. By organizing film material in this way, the montage builds a meaning and puts it at the service of the workers’ organization, either for self-reflection or as material for the own education.
Keywords: Sugar cane workers. Tucumán-Argentine Republic. Political cinema. Documentary.
Introdução
Gerardo Vallejo (1942-2005), cineasta da província de Tucumán, na Argentina, formou parte do Grupo Cine Liberación que fazia cinema militante. Dentro desse projeto, rodou o filme El camino hacia la muerte de Viejo Reales (1974), no contexto da luta contra o fechamento dos engenhos açucareiros na sua província. O setor estava em franco desmonte, e a própria dinâmica
1* Professora da Escola Nacional Florestan Fernandes (ENFF), da Universidade Estadual Paulista (Unesp) e do Programa de Desenvolvimento Territorial para América Latina e Caribe (TerritoriAL).
ISSN 1517-5901 (online)
POLÍTICA & TRABALHO
Revista de Ciências Sociais, nº 52, Janeiro/Junho de 2020, p. 106-121
da ação sindical revelava a necessidade de passar da luta sindical à luta política. O problema era como tornar isso um consenso entre os trabalhadores. Gerardo Vallejo e o Grupo Cine Liberación entendiam o cinema que faziam como um instrumento de formação política para a grande maioria. O filme lançado em 1974 passa do singular, de uma família de trabalhadores do açúcar e sua luta pela vida, à necessidade de uma ação de toda a classe trabalhadora do país. Para isso, o realizador lança mão de procedimentos próprios da literatura de testemunho latino-americano (RANDALL, 1992).
O objetivo deste estudo é o de analisar este expoente do cinema político da Argentina daquele período. Em particular, interessa reconhecer nele um recurso para a atividade de formação de base dos trabalhadores canavieiros e de autorreflexão sobre suas lutas, seus alcances e desafios. Minha hipótese é que a forma do filme não apenas carrega a cronologia do combate contra o fechamento dos engenhos, mas apresenta os tipos humanos envolvidos diretamente no processo, na sua dinâmica de formação e também nas suas potencialidades. Se o filme aponta caminhos para a continuidade da luta após o fechamento dos engenhos, não o faz apontando um salto no vazio, senão que apresenta as possibilidades que a própria experiência das lutas propiciou.
Nos próximos tópicos, contextualizarei a produção do filme a partir de uma breve cronologia das lutas dos trabalhadores da Argentina, e de Tucumán em particular, e também das correntes do cinema político da época. Depois, então, analisarei o El caminho hacia la muerte del Viejo Reales, pelas suas características formais e pelas questões extracinematográficas envolvidas no enredo.
Argentina da década de 1955 a 1970 e o setor canavieiro
Na segunda metade da década de 1960, as lutas dos trabalhadores argentinos deram um salto (GILLY, 1986). Elas vinham sendo alimentadas pela onda anticolonial e socialista na periferia do capital, como os avanços na África (do norte e subsaariana), no sudeste asiático, e na América Latina, mas também no centro mesmo do capital – a luta antirracista nos EUA, as greves e lutas estudantis na Europa ocidental e as sublevações de trabalhadores no leste europeu – assim como o impulso da Revolução Cultural na China. O radinho de pilha trouxe notícias do mundo, mesmo no meio do canavial. E cada pequena batalha ganhada num canto do mundo era festejada como um trunfo próprio.
No país, desde o Golpe Militar de 1955, o presidente (general) Juan Domingo Perón estava no exílio. Distante, sem o controle exercido a partir do Estado por seu líder e bombardeado por todas essas notícias do mundo, o movimento peronista havia desenvolvido uma corrente de esquerda, no contexto do período que ficou conhecido como a Resistência Peronista (CARRI, 1967; JAMES, 1990; SHNEIDER, 2009). O movimento sindical chegou a formular programas de transição ao socialismo como o de Huerta Grande, de 1962, e o de La Falda, de 1957 (LOS PROGRAMAS DE HUERTA GRANDE Y LA FALDA, 2008). Em 1959, um grupo de militantes peronistas criou um foco de guerrilha na província de Tucumán: os Uturuncos (ANGUITA; CAPARRÓS, 2006). Em 1963, a Confederación General del Trabajo (CGT) lançou um plano de luta em várias etapas, e a de 1964 incluiu ocupações de fábricas no país inteiro (GRAU; MARTÍ; IANNI, 2005; AGUIRRE; WERNER, 2007).
O setor açucareiro estava marcado, desde 1880, quando foi impulsionado por políticas de Estado, por relações de trabalho forçado, semi-assalariado, regime de barracão. A produção da província de Tucumán vai se diferenciar das outras da região – Jujuy e Salta, onde predominava o latifúndio – pelo estímulo, a partir de políticas de 1927, ao pequeno proprietário de canavial. Em 1944, foi fundada a Federación Obrera Tucumana de la Industria del Azúcar (FOTIA). Em 1945, fundou-se a Unión de Cañeros Independientes de Tucumán (UCIT). O país havia experimentado uma grande industrialização e urbanização, a partir da entreguerra e do pós-guerra, por um processo de substituição de importações. A partir de 1946, foi estatizado o comércio exterior de produtos agrícolas (os principais produtos de exportação) e uma política de governo (de Juan Domingo Perón) subsidiava a compra de bens de capital. Ao mesmo tempo, houve um salto no crescimento da sindicalização, mesmo em certos ramos da atividade rural, como o do setor açucareiro, aliado à criação da legislação trabalhista. Em 1949, acontece uma grande greve dirigida pela FOTIA, e o sindicato sofre uma intervenção estatal que coloca em tensão sua autonomia (PAVETTI, 1999; RUBINSTEIN, 2005). Em 1958, já derrocado o governo peronista (em 1955), e um ano após o lançamento do Programa de La Falda pela CGT, a FOTIA, mesmo num contexto de repressão, lança-se nas lutas, como a ocupação do engenho Santa Lucía, que ameaçava com fechamento. Os trabalhadores colocam o engenho em funcionamento sob controle dos trabalhadores.
Corria o ano de 1966 e a produção açucareira da província de Tucumán fechava seu ciclo. Em junho daquele ano, um golpe militar derrubava um governo frágil, eleito com 26% dos votos, depois da proscrição do peronismo. A “solução” para a crise do açúcar foi a reestructuración económica de la província de Tucumán. Na prática, fecharam-se 11 dos 27 engenhos da província, com o conseguinte desemprego que afetou diretamente 50 mil trabalhadores e suas famílias. Isso teve como consequência a redução da atividade econômica que girava em torno ao setor. É preciso mencionar que uma parte da cana moída nesses engenhos provinha de canaviais de pequenos produtores. Havia na época em torno de 23 mil canaviais de agricultores familiares. Houve também, em Tucumán, uma concentração monopólica na produção de açúcar de 1965, quando houve uma superprodução, até 1973, quando se produziu ainda mais açúcar, mesmo com a diminuição da quantidade de engenhos e de trabalhadores (NASSIF, 2016).
A composição desse contingente afetado, portanto, incluía tanto trabajadores del surco, como os da agroindústria e funcionários de escritório, além dos agricultores familiares que trabalhavam em seu próprio lote. Entre os trabajadores del surco, que eram maioria, havia diferentes formas de contratação: alguns eram fixos e registrados, outros eram eventuais e ainda tinha os jornaleiros.
Os trabalhadores responderam à fome com carneo de vacas (ingresso em fazendas para expropriar alimento – o couro era deixado sobre a cerca), ollas populares (cozinhas coletivas no espaço público) e as organizações sindicais, em particular a FOTIA, com ocupações dos engenhos e bloqueios de estradas. Nada disso impediu o fechamento das empresas. Entre 200 mil e 250 trabalhadores tucumanos foram obrigados a migrar para outras regiões, alguns se transformando em trabajadores golondrinas1 (NASSIF, 2016).
Em maio de 1969, no contexto de uma paralisação nacional convocada pelas centrais sindicais (CGT e CGT de los Argentinos, mais combativa), aconteceu um levante na Cidade de Córdoba, polo industrial do interior da Argentina: o Cordobazo (ADOUE, 2009; CENA, 2000; ANGUITA; CAPARRÓS, 2006; CÓRDOBA, s.d; FLORES, 1994; GORDILLO, 1997). E surgiu um novo foco guerrilheiro na localidade de Taco Ralo, na província de Tucumán, as Fuerzas Armadas Peronistas (FAP), vinculada à CGT de los Argentinos. Um ano mais tarde, houve o Tucumanazo, levante que uniu trabalhadores e estudantes de Tucumán (ANGUITA; CAPARRÓS, 2006; NASSIF, 2016).
Gerardo Vallejo e o cinema argentino dos anos 1960
O filme El camino hacia la muerte del Viejo Reales, de Gerardo Vallejo, começou a ser rodado em 1968 e foi finalizado em 1971. Vallejo já tinha realizado os documentários Azúcar (1963), Manzanas (1966), Las cosas ciertas (1967), Ollas populares (1968) e Testimonios de Tucumán (1972-1974), sobre a vida dos trabalhadores rurais tucumanos, em especial, da cana- de-açúcar e trabajadores golondrinas, que alternavam entre o trabalho nos canaviais e a colheita de maçã ou de milho em outras províncias. Ameaçado, o cineasta exilou-se primeiro no Panamá e depois na Espanha, por uma década, a partir de 1974. No retorno, revisitou o tema com a ficção El rigor del destino (1985). O enredo dessa última segue o encontro de um menino que volta a Tucumán para conhecer o avô e vai descobrindo a história do seu pai, advogado do sindicato dos canavieiros, desaparecido durante a ditadura. Essa produção, encenada por atores profissionais conhecidos, foi projetada nas salas de cinema com êxito de público.
Gerardo Vallejo, ainda com 19 anos, começou a estudar cinema na província de Santa Fe. Graduou-se, em 1965, no Instituto de Cinematografía da Universidad del Litoral, dirigido por Fernando Birri, que foi depois um dos fundadores da Escuela Internacional de Cine y Televisión de San Antonio de Los Baños, em Cuba, e tem no seu repertório de documentários Tire dié (1960) e Los inundados (1961). Menciono essas duas obras porque, de alguma maneira, marcaram o trabalho de Vallejo. Inclusive pela recorrência ao trem como forma de deslocamento dos cenários e como espaço de reflexão. Podemos inferir, também, que as viagens frequentes de trem, realizadas pelo Gerardo estudante de cinema, entre Tucumán e Santa Fe, devem ter sido também espaço de reflexão.
Una noche llegué con el tiempo justo a la estación de trenes de la ciudad de Rafaela (Santa Fe) donde pasaba el Estrella del Norte, que iba de Buenos Aires a Tucumán. Hacía un frío terrible y el tren llevaba gente hasta en el estribo, en la segunda clase obviamente, entonces tuve que comenzar a correr pero no podía subir porque cargaba un bolso en una mano, hasta que un hombre me gritó desde el tren ‘dame el bolso’, se lo di y pude treparme. El hombre iba con sus hijos dormidos sobre unos diarios, y nosotros nos pasamos toda la noche tomando vino. Yo tenía una vieja cámara fotográfica, le saque fotos a él y a los chicos y me comprometí a llevárselas. Un par de semanas después me tomé un coche motor, que hoy ya no existe, me bajé en Acheral, al sur de la provincia de Tucumán, y caminé cuatro kilómetros hasta Colonia San José, donde vivía su familia, los Reales. Esa familia puso su alma en la película, no sólo su historia, el alma del viejo Reales está en el film, quien es la síntesis del campesino latinoamericano, lo expresa de una manera maravillosa desde su sabiduría, siendo un analfabeto (VALLEJO apud GAMAOTTA, 2018).
Vallejo conheceu Octavio Getino e Fernando “Pino” Solanas e participou como assistente de direção e produção da película de ambos La hora de los hornos (1968). Foi nesse esforço comum que os três formaram o grupo Cine Liberación, um tipo de cinema que impulsionaria o movimento conhecido como Tercer Cine Latinoamericano. “Terceiro”, para se diferenciar do cinema comercial e o cinema de autor, então em voga. A esse movimento pertencem também o Grupo Cine de la Base e o Grupo Realizadores de Mayo, de Argentina; o Grupo Ukamau, de Bolívia; o Cine Imperfecto, de Cuba; o Cinema Novo, no Brasil; e a Compañía Chile Films, de Chile. Cine Liberación se diferenciava dos outros grupos argentinos por pertencer à esquerda peronista, Cine de la Base e Realizadores de Mayo, da esquerda marxista.
O cinema de autor, na Argentina, tomava a forma do que se conheceu como Generación del 60 ou Nuevo Cine Argentino, dirigido a um público cinéfilo, às vezes animado por cineclubes e escolas de cinema. Suas temáticas expunham as questões sociais, assim como a Nouvelle Vague francesa, mas não se pretendia cinema político. O Instituto de Cinematografía da Universidad del Litoral, em troca, influenciado pelo neorrealismo italiano, colocava o foco em sujeitos sociais marginalizados, com um olhar mais documental. Tire dié (1960), por exemplo, é chamado de “pesquisa social filmada”.
Tire dié tiene dos partes bien diferenciadas. La primera es la “encuesta” propiamente dicha, austera, despojada, que intenta cumplir con la tarea de contrainformación con un estilo entre periodístico y etnográfico. Esta parte comprende el registro de la vida cotidiana del barrio y las entrevistas donde la voz del narrador parece desaparecer y en cambio afloran las voces de los y las habitantes, entre ellos los mismos pibes del tire dié. La segunda parte, la práctica del tire dié, es una auténtica puesta en escena de ficción neorrealista, y sus protagonistas son los mismos niños del puente. Las operaciones de montaje, de campo/contracampo y de creación de suspense, mediante la aceleración del ritmo narrativo y la utilización de distintos puntos de vista, construye notablemente la oposición entre los sorprendidos que van arriba del tren y aquellos que van corriendo debajo, los niños que piden las monedas. El filme difumina las fronteras entre documental y ficción, algo que va a ser característico de gran parte de la producción del NCL, y muy importante en la construcción de Historia de un hombre de 561 años y El camino hacia la muerte del Viejo Reales. La Escuela de Santa Fe, cuya otra obra importante es Los inundados (1961) también dirigida por Fernando Birri, formó a varios de los/las cineastas más activos del cine militante posterior, entre ellos el tucumano Gerardo Vallejo (ALVIRA, 2014, p. 192-193).
O Grupo Cine Liberación avançou na proposta de um cinema em que o autor individual tendia a se diluir e levava a assinatura do grupo. É o caso do filme de Vallejo, que é objeto deste estudo, mesmo quando o realizador coloca uma voz em over que se apresenta, em primeira pessoa do singular, como responsável direto do processo.
El camino hacia la muerte del Viejo Reales
O filme El camino hacia la muerte del Viejo Reales, em branco e preto, tem duração de uma hora e meia. Nos primeiros 69 minutos, a montagem narra a história da família Reales, do município de Acheral, na província de Tucumán. Ramón Gerardo Reales, viúvo, tem 12 filhos, dos quais apenas três, Angel, Mariano e El Pibe (o rapaz – em português), permanecem em Acheral.
Começa com um letreiro com um trecho do El gaúcho Martín Fierro (HERNÁNDEZ, 2001, p. 52) à maneira de epígrafe:
Si uno aguanta es gaucho bruto
si no aguanta es gaucho malo
¡Desde azote, dele palo!
¡Porque es lo que él necesita!
De todo el que nació gaucho
Ésta es la suerte maldita.
Vamos suerte — vamos juntos
Dende que juntos nacimos
Y ya que juntos vivimos
Sin podernos dividir...
Yo abriré con mi cuchillo
El camino pa’ seguir.
A referência ao Martín Fierro é chave de leitura da intenção. Como o protagonista Martín Fierro do poema épico de José Hernández, escrito na segunda metade do século XIX e erigido à “epopeia da nação” na primeira metade do século XX, El camino hacia la muerte del Viejo Reales se pretende autodiegético. O protagonista que conta sua própria história de trabalhador rural resulta familiar ao espectador argentino. O letreiro convoca a memória de um relato comum, de quem conta as desditas do oprimido, como no monólogo do próprio Ramón (ver figura 1), depois de preparar lentamente um cigarro, resumindo sua vida e refletindo:
Me llamo Ramón Gerardo Reales, del pago de San José. A mí me dicen el Negro. Y yo tengo muchas cosas que contar. Porque no puedo ocultar. Entonces tengo que contar, porque lo que me pasa a mí me pasa. Porque soy hombre. […] A mí me dicen el Negro nomás, Negro, Gerardo, Gerardo Reales. Yo, como les cuento soy Negro, negro que no sirvo pa’nada, ¿sabe? No sirvo pa’nada. […] Ahora yo me veo solo. Una porquería soy ahora, porque me veo solo. Me veo solo. Yo no paro en mi casa. Ahora que me ven, porque están ustede aquí. Ustedes no me ven: yo me ando por todos lados. Me ando por Lules. Me ando por Concepción. Me ando por todos lados, me ando. Porque me hallo solo. Y, claro, me ando por todos lados y por eso digo yo: yo soy un… repetidamente, yo soy un basura. Yo no paro en mi casa. Me he jubilado, muerto […] tiene que comer. Ya no hay nada. En mi casa tenía gallinas. Tenía chanchos. Tenía gallos, de riña, buenos. Y ahora no tengo nada. Ni una pata de nada. Porque lo que se acabó, se acabó. Hasta la dueña se ha acaba’o, no se va a acabar lo demás. Todo, todo se terminó con esto. Todo, todo. No tengo nada, nada, nada. Ni una gallina, ni nada tengo. Se acabó todo. Todo, todo se acabó (0:01:00 a 0:04:10).
Segue um travelling pelo quintal do rancho, e a voz, agora em off, de Ramón:
Aquí vivo ende que tengo ocho años. Yo hice esta casa en el año ’45 y aquí se han criado todos mi hijo, de mi señora Encarnación. El año ’65 se fue. Se fue para siempre. Todos mi hijo, uno por uno, se han ido porque aquí no hay trabajo pa’nadie. Yo, ante, cuando tenía ocho años, yo trabajaba por unas chapa, ¿sabe? Y yo trabajaba para ayudarle a mi papá y ganaba dos peso, por día, con ficha [se refere a vale, trabalhava em regime de barracão]. Ficha, había entonces. Ficha, así eran, papelito, así. De cobre, eran. Había de 5, había de 20, había de 30, ¿eh? Yo ganaba 50 centavo el día entero. Las cosa no han cambiado: ante era latigazos, aura no hay látigo, pero lo mesmo es. Ante había trabajo, pero lo mesmo se moría de hambre. Aura, aura, por lo consiguiente, no hay trabajo y toda la gente se muere de hambre. Al final, ante era igual que aura. Porque todos los patrones tienen plata. Todos los patrones. Todos los patrones tienen plata… Vea, dende que yo tengo conocimiento, el obrero tá liquida’o. […] Y, al último, soy lo mesmo yo. Al último soy lo mesmo nomás yo. He trabajado inútilmente, ¿ah? Inútilmente he trabajado pa’ darle ser al patrón (0:04:10 a 0:06:37).
Esse trecho de testemunho acompanha imagens da família do filho Ángel. E as imagens seguintes levam como trilha sonora coplas2 do repertório popular:
Voy a cantar una copla
por si acaso muera yo
por que nosotros los hombres
hoy somos, mañana no…
Tucumano soy señores,
alimentado con penas.
Mi tierra es caña de azúcar,
pero tan sólo por fuera.
…
Pido permiso, señores,
aquí les dejo mi copla,
para que ande viento arriba
y no se muera en mi boca.
A última copla coincide com a imagem de Ramón se afastando da câmara, seguindo um sulco recém-preparado para o plantio.
Figura 1
Fonte: fotograma da primeira cena do filme
Detalho o começo com minúcia, porque ele revela a intenção que mobiliza a produção, não apenas do diretor, mas também do entrevistado, ambos em sintonia, com o intuito de deixar o testemunho de um trabalhador rural tucumano, ao mesmo tempo típico e singular. O entrevistado fala em seu nome, mas aqui e ali aparece uma reflexão sobre a classe dos trabalhadores e a dos patrões.
As imagens seguintes são de uma festa de confraternização da família Reales com o realizador, ao começarem os trabalhos. Todos dançam ao som de um violín hechizo (rabeca), uma zamba conhecida (El jardín de la República, mote com que é conhecida a província de Tucumán). Uma voz em over avisa que o filme contará a história de uma família tucumana e que essa foi a primeira tomada. Explicita que a intenção é se aproximar da realidade por meio do “principal protagonista, que es nuestro pueblo” (0:10:07).
A partir daí, o enredo vai focalizar a história de cada um dos três filhos que permaneceram em Acheral, começando por Ángel. É um cortador zafrero. Trabalha como cortador de cana no período da colheita e o resto do ano se divide entre a colheita da maçã, na província patagônica de Río Negro, e a do milho, na província de Santa Fe. É um trabajador golondrina. Para o deslocamento, usa o trem. E sua esposa, com quatro filhos, fala da sua condição de mãe. Ambos, Ángel e sua esposa, censuram os que evitam filhos ou não se responsabilizam por eles. Para os dois, os filhos são a razão da vida. Ángel trabalha por eles, que são a única alegria da sua companheira. Mas as imagens mostram a dor dos filhos, na despedida do pai, na estação de trem.
Há uma série de imagens que dialogam com essa fala dos entrevistados: as crianças aprendendo as lidas, a reza do Credo e os remédios caseiros para sarar uma das filhas, imagens do casal durante o sono, com trechos do Lamento del peón curtido, de José Augusto Moreno, como trilha sonora3.
El dueño de mi esperanza
se llama Administrador.
Tiene por casa el ingenio,
trapiche es su corazón.
El dueño de mi esperanza
nunca me tiene perdón.
Matraca del malacate,
vara que rueda cantora,
gime la piedra y el jugo
se derrama por la noria.
En la casa más bonita
vive el señor industrial.
El no toma agua del pozo
ni come por ahí* nomás.
En la casa más bonita
nunca me dejan pasar.
La sangre de mis abuelos
hizo parir esta tierra
y también caña de azúcar
seré yo cuando me muera.
Yo del dolor hago azúcar,
de la noche claridad.
El vino me presta vida
y me la vuelve a quitar.
Yo del dolor hago azúcar,
total lo mismo me da.
Para que haya blanca azúcar,
Dios hizo manos morenas
y para todas las zafras
también hizo tierra ajena.
A imagem em travelling de closes sucessivos sobre a família de Ángel é acompanhada pela copla popular: “La sangre de mis abuelos/hizo parir esta tierra/y también caña de azúcar/seré yo cuando me muera”. A copla opera como enlace com a cena de Ramón com um amigo que compartilha o pouco tabaco que tem com ele, para enrolar um palheiro, o amigo tentando beber fiado e Ramón lhe emprestando 10 pesos, inserida antes da história de Mariano, o segundo filho.
Percebemos que Mariano aceitou interpretar como ator sua própria história de policial da área rural (0:27:00). Batendo com um chicote, persegue dois bêbados que apareciam na cena anterior, um gritando: “La vida por Perón”. A trilha já havia começado instrumental na cena anterior, mas com as chicotadas do policial, a trilha recomeça e arranca a letra. A música também é de José Augusto Moreno, composta especialmente para o filme:
Este es Mariano Reales,
pedazo de autoridad,
comisario en Caspinchango,
policía en Acheral.
¡Qué vida la de Mariano!:
castigar y castigar,
con el látigo en la mano,
pa’lo que guste mandar.
No quiero ser policía,
milico de ocupación,
andar apaleando gente,
ser sirviente y ser patrón.
Vemos imagens de Mariano na delegacia de Acheral com uma vassoura, varrendo o chão. O delegado explica que ele chega tarde, às vezes bêbado, mas não quer mandá-lo embora por pena, porque o subordinado tem filhos. Depois vemos uma cena em que Mariano está estuprando uma mulher num matagal. Na seguinte cena, ele explica os motivos pelos quais foi designado delegado em Caspinchango: não tem pessoal. Imediatamente, ele aparece bêbado, a cabeça sobre a mesa de um bar, produzindo efeito cômico num freguês banguela, aparentemente incapaz de falar, que o observa.
Entre a história de Mariano e a de El Pibe estão intercaladas duas cenas de Ramón. Na primeira, ele caminha no cemitério (0:37:55). Frente ao túmulo da sua esposa, dirige-se a ela, dando notícias dele e dos seus filhos. Na segunda, bebe com seu amigo e uma prostituta, com quem combina preço.
Então começa a história de El Pibe (0:42:20), mas não é bem a história dele, “obrero del surco permanente” do engenho Santa Lucía desde sempre, como explica a voz em over. A voz avisa que com a sua anuência, recriaram
[…] la vida de un activista sindical. Aquello que El Pibe no fue en la realidad, pero que quizás le hubiera gustado ser, o que tal vez lo sea. Quisimos sintetizar en él algunas experiencias de uno de los tantos miles de activistas que han tenido los trabajadores tucumanos (0:42:23 a 0:43:20).
A ambiguidade com que isso é formulado nos faz suspeitar se El Pibe (ver figura 2), cujo nome real não é mencionado, era realmente um ativista, e combinaram de preservá-lo, fingindo que a história contada era ficção. Não consegui confirmar essa suspeita. Em todo caso, ele atua, mas quem fala é o narrador já conhecido, com voz em over, que apresenta o texto em primeira pessoa como se fosse a voz em off que simula o pensamento do personagem. O relato está em tempo passado, como uma reflexão sobre sua transformação de trabalhador del surco em ativista sindical, se comparando com os irmãos, pela vantagem de ser empregado permanente, que garantia uma relação maior com os companheiros. A reflexão acompanha imagens do personagem olhando pela janela do trem em movimento, o vento no seu rosto. Começou a se interessar pelas lutas quando soube do assassinato de Hilda Guerrero, esposa de um trabalhador da cana que participava de uma olla popular4, quando o engenho Santa Lucía fechou. (De fato, a morte de Hilda Guerrero desencadeou uma série de grandes manifestações que transcenderam a categoria dos canavieiros e a própria província.) Depois aparecem imagens dele trabalhando, de sua companheira Zenobia e dele comendo sua marmita. Zenobia havia sido empregada doméstica na cidade e tinha aspirações de uma outra vida: “no queria seguir viviendo como animales, decía, como si ser pobre fuera ser menos” (0:45:38), mas ele não queria ir embora de Acheral.
Figura 2
Fonte: fotograma do filme com o personagem El Pibe.
Aparece sua reflexão intercalada com cenas de pessoas que se aproximavam do sindicato para fazer seus pedidos. Eis a reflexão de El Pibe: “La gente pedía las cosas como si tuviera miedo. Era como si nada les perteneciera. Y las cosas que se pedían eran tan naturales como el aire o el agua. Y el aire y el agua no se piden. Se toman y se acabó” (0:47:39 a 0:47:56).
A cena seguinte mostra El Pibe numa cena de violência contra a Zenobia, que quer ir embora. E imediatamente ele no trem, esfregando as mãos no rosto, como se quisesse afastar essa lembrança de dor e vergonha. Sabemos que a esposa terminou deixando-o, porque ele diz que um mês depois da partida de Zenobia foi citado na delegacia de Acheral, e o delegado, superior do seu irmão Mariano, lhe adverte que deixe a atividade sindical. E Mariano pede para El Pibe aceitar o “conselho”.
Na cena seguinte aparece um companheiro do sindicato que se distinguia dos outros ativistas, também chamado Ramón. El Pibe lembra de seus conselhos: “Él hablaba de que la lucha debía ser otra. De que teníamos que unirnos a los compañeros de los otros ingenios. Eran como ocho los ingenios que habían cerrado. Pero no me sabía explicar, o yo no lo entendía, cuál era la forma en que íbamos a lograr esa unión” (0:54:20 a 0:54:36).
Nas cenas seguintes, vemos a perseguição de capatazes e policiais a ativistas no meio do canavial. Os rostos de muitas pessoas, homens e mulheres, caladas num travelling e o Velho Reales explicando como todos se comportaram frente à polícia: “Nadie vio”.
O sindicato estava em “assembleia permanente” e tinham sido feitas várias reuniões, mas não se resolvia o problema do fechamento do engenho e do desemprego dos trabalhadores. El Pibe reflete que os companheiros da comissão de negociação não eram os únicos responsáveis: “Los responsables también somos nosotros. Es uno el responsable. Porque, a veces, uno elige a tal o a cual dirigente sólo porque sabe hablar bien o porque quiere descargar en él la responsabilidad de todos” (0:59:00). Essa reflexão o faz passar do “eu” para um “nós” da classe trabalhadora num sentido mais amplo. Pensa que ele tem muito de Ángel e de Mariano, e que os irmãos também podiam ser como ele.
Imediatamente, já fora de Tucumán, explica seus motivos por ter deixado a província. Há uma cena do Velho Reales resistindo à polícia quando procuram El Pibe na sua casa. E um comentário do último sobre o fechamento do engenho: “El gobierno prometia enviar plata o policía. Pero lo único que mandó fue policía. Porque plata, muy pocos la vieron” (1:06:33). El Pibe relata que só se despediu de seu companheiro Ramón, então clandestino, porque ele estava sendo procurado pela polícia. Então, lembra da longa conversa:
Y muchas de las cosas que dijo, yo creo que fueron así después. Si yo había aceptado ser delegado no era para que me tomasen de tonto. Y la bronca no era tanto contra la empresa o contra el gobierno, sino contra los propios compañeros que se dejaban engañar, cuando estaba bien claro que nos estaban engañando (1:07:09 a 1:07:32).
Seguindo com suas reflexões, El Pibe, sempre em off, diz que quando lutavam pela reabertura do engenho se sentiam sozinhos, que parecia que no resto do país nada acontecia. Ninguém tinha manifestado solidariedade. No momento em que faz essa reflexão, foram “los compañeros de Córdoba” que ficaram isolados. Refere-se ao Cordobazo, levante generalizado, em 29 de maio de 1969, na cidade de Córdoba. Percebe que não se pode apenas pensar localmente, que é necessário pensar nacionalmente: “Aunque uno no la vea, siempre están passando cosas. Si no hay una solución para el país, ¿cómo podrá haberla para una provincia, o para un gremio, o para cualquiera de nosotros?” (1:08:42 a 1:08:56). E, mais na frente, sobre os métodos de luta:
Yo creo que todo sirve, o que todo puede servir. Ramón se inclinaba por el fusil, pero no por eso negaba al sindicato, ni a los votos, por más trampas que pudiera haber. En mi opinión, una cosa no se opone a la otra. Según lo que uno vaya viviendo, lo que valga más irá destacándose solo. Pero para eso hay que vivirlo, hay que estar. Porque si uno no está, uno realmente no vive (1:09:14 a 1:09:40).
Essa fala engata com a cena seguinte, em que o Viejo Reales encena sua própria morte, no meio do canavial, tal como a imagina: machadito (bêbado), para não a sentir. Durante a montagem do filme, o narrador relata em over, no dia 6 de junho de 1971, que Ramón Reales foi morto a golpes, em Acheral, por um rapaz desempregado que pretendia roubá-lo. O Velho não tinha nada no bolso.
Até essa parte, o enredo do filme é a história da família. Entre as descobertas de Vallejo, está a informação de que Mariano, na vida pregressa, longe de ser um capataz, como o diretor imaginava, havia sido ativista sindical. Esse detalhe se soma a outros para indicar os personagens não como tipos, mas como trabalhadores singulares. Vallejo fez, no cinema, algo parecido àquilo que Oscar Lewis fez com a família Sánchez em Los hijos de Sánchez: autobiografía de una familia mexicana (1965), obra considerada um antecedente da literatura de testemunho latino-americana, levada ao cinema por Hall Bartlett, em 1978. Miguel Barnet já havia produzido Biografia de um cimarrón (1977), em Cuba, publicada pela primeira vez em 1966 e considerada obra inaugural de testemunho latino-americano. Essas duas obras estabeleceram um padrão procedimental para o repertório testemunhal: um mediador letrado que transcreve e edita as falas autobiográficas dos entrevistados. Vallejo fez isso em El caminho hacia la muerte del Viejo Reales, mas não se limitou aos procedimentos traçados pelas duas obras. Primeiro, houve um acordo com as testemunhas para encenar suas próprias biografias, com a ressalva do relato não assumido explicitamente como autobiográfico de El Pibe. Depois, porque o filme não termina aí. Há uma demorada cena estática do rosto de Ramón Reales no seu velório, seguida de um letreiro: “A la memoria de Ramón Gerardo Reales y de todos los trabajadores anónimos que nos ayudan a ser lo que somos” (1:09:23). A partir daí, começa um documentário com imagens e informações em over sobre a província de Tucumán e sua história: o seu papel na declaração da Independência, a chegada da ferrovia que favoreceu a consolidação de uma oligarquía azucarera, a crise do ciclo regional do açúcar e o anúncio da reestructuración de la economia tucumana pelo governo ditatorial de 1966, que na prática resultou no fechamento dos engenhos.
Imediatamente, há uma cronologia da formação da FOTIA durante o primeiro governo de Juan Domingo Perón. Essa cronologia é construída pelas entrevistas aos militantes sindicais Benito Romano e Raúl Zelarrallán. Eles relatam a ocupação e funcionamento com controle operário da produção do engenho Santa Lucía, em 1958, com recorde de produção. As sucessivas ocupações, greves e bloqueios de estradas não evitaram o fechamento das empresas. Os militantes sindicais admitem que o fechamento não se impede por recursos puramente sindicais. A voz em over afirma: “En la disputa de los medios de producción, los trabajadores profundizan su descolonización. Al tomar posesión de su trabajo, están tomando posesión de su humanidad” (1:17:09 a 1:17:19).
Vários operários, participantes das lutas, as descrevem e denunciam a repressão. São listados os mortos. Aparecem os números da redução da indústria açucareira que diminui a quantidade de filiados da FOTIA a partir do desmonte do setor: de 65 mil a 10 mil filiados.
Nos últimos minutos, há um panorama dos diferentes setores que vinham se mobilizando em Tucumán: trabalhadores de outras categorias, estudantes, como no Tucumanazo, levante generalizado na capital da província, em novembro de 1970 (ver figura 3). E faz referência às “formas de luta de novo tipo”: a primeira tentativa de foco guerrilheiro do país, em 1959, os Uturuncos e, em 1969, em Taco Ralo, as FAP.
Figura 3
Tucumanazo. Fonte: Agencia de Noticias de la Central de Trabajadores de Argentina Autónoma.
Considerações finais
A obra El camino hacia la muerte del Viejo Reales, de Gerardo Vallejo, cineasta argentino do Grupo Cine Liberación, por meio de procedimentos do testemunho latino-americano, registra a história de uma família de trabalhadores assalariados do corte da cana. O caso singular de um viúvo e três dos seus filhos permite observar um leque de possibilidades para os trabalhadores de Tucumán durante os anos de 1960. O registro oferece uma focalização interna dos personagens. Não apenas o que eles são, senão também o que pensam sobre si mesmos e sua vida. No caso do filho mais novo, El Pibe, a reflexão vai para além da sua própria vida. Ao se engajar na luta sindical, no contexto do fechamento do engenho no qual é operário permanente, seu pensamento pode se deslocar para além da sua própria experiência singular e se enxergar a si mesmo e aos seus familiares como parte da sua classe naquele período histórico. Assim, suas dúvidas e dilemas são os dilemas da classe à qual pertence. E já não apenas se vê como um trabalhador do açúcar, mas como parte da classe trabalhadora argentina.
Nos últimos quinze minutos, o filme deixa a história singular da família Reales e passa à história de Tucumán e de sua classe trabalhadora. Essa passagem da micro-história para a história do país é o movimento necessário para a formação da política da classe, que é a finalidade desse filme em particular e da filmografia, tanto do Grupo Cine Liberación como do Cine de la Base, que estavam vinculados à chamada Tendencia Revolucionaria del Peronismo (Montoneros, as já citadas FAP, e as Fuerzas Armadas Revolucionarias, entre outras organizações) e ao Partido Revolucionario dos Trabalhadores e seu braço armado Ejército Revolucionario del Pueblo, respectivamente.
No caso dos trabalhadores da cana, a passagem para a luta política se tornava um imperativo urgente, já que havia uma estratégia de desmonte do setor, pela chamada “reestruturação econômica” propiciada pelo Estado. Lembremos que ante uma crise semelhante, no mesmo período, nos engenhos paulistas, a ditadura brasileira impulsionou o Projeto Pró-Álcool a partir de 1975. A mudança na destinação das colheitas dos canaviais do estado de São Paulo e a reconversão das usinas foram feitas por meio de subsídios estatais, com recursos públicos. No caso de Argentina, onde o engenho Ledesma, da província de Jujuy, saturou o mercado interno com sua produção, na província de Tucumán, fecharam 11 dos 27 engenhos e se deixou de moer cana na mesma proporção. Tratava-se de políticas de Estado que não podiam ser enfrentadas apenas com reivindicações de uma categoria. O debate sobre a passagem da luta sindical à luta política é apresentado em primeiro lugar como um esforço dos trabalhadores da cana de Tucumán para superar o isolamento, sua fragmentação, sua visão local.
Menos conhecido que outros filmes do repertório do Grupo Cine Liberación, El camino hacia la muerte del Viejo Reales talvez seja a obra mais bem-acabada, pela unidade entre finalidade e forma. E também a mais bem sucedida na intenção de representar a classe trabalhadora pensando a si mesma.
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Filmografia mencionada
AZÚCAR. Direção: Gerardo Vallejo. Argentina: 1963. (15 min).
EL camino hacia la muerte del Viejo Reales. Direção: Gerardo Vallejo. Argentina: 1974. (90 min).
EL rigor del destino. Direção: Gerardo Vallejo. Argentina: 1985. (100 min).
LAS cosas ciertas. Direção: Gerardo Vallejo. Argentina: 1967, 25 min.
LA hora de los hornos. Direção: Octavio Getino e Fernando Solanas. Argentina: 1968. (260 min).
LOS inundados. Direção: Fernando Birri. Argentina: 1961. (87 min).
MANZANAS. Direção: Gerardo Vallejo. Argentina: 1966. (10 min).
OLLAS populares. Direção: Gerardo Vallejo. Argentina: 1968. (5 min).
TESTIMONIOS de Tucumán. Direção: Gerardo Vallejo. Argentina: Canal 10 de TV, 1972-1974.
TIRE dié. Direção: Fernando Birri. Argentina: 1960. (33 min).
Recebido em 20/06/2020
Aceito em 16/09/2020
1 Literalmente, “andorinhas”, que se deslocam por temporada para a safra, como trabalhadores temporários.
2 A copla é uma composição lírica de quatro versos de arte menor.
3 Essa e as outras músicas da trilha de som foram arranjadas e interpretadas por Dante “Tito” Segura.
4 Comida coletiva para trabalhadores com fome.
Artigos
RESSONÂNCIAS BIOPOLÍTICAS:
Risco, coronavírus e as polícias no exercício da quarentena
BIOPOLITICAL RESONANCES:
Risk, coronavirus, and the police working to the quarantine
__________________________________
Fábio Gomes de França*
Resumo
O artigo discute, por meio de uma análise qualitativa de documentos e notícias veiculadas em sítios eletrônicos, a relação que se estabelece entre risco e biopolítica em tempos da pandemia do coronavírus, em específico quanto à atuação das forças policiais no exercício da quarentena. O que destacamos da análise é que, a máxima foucaultiana de “fazer viver e deixar morrer”, como componente da biopolítica moderna, encontra em situações-limite o “paradigma da autoimunização”, como proposto por Roberto Esposito, pois na obrigação do exercício da função, são os próprios agentes da ordem que têm suas vidas colocadas em risco em nome da defesa de uma sociedade sadia e protegida.
Palavras-chave: Biopolítica. Agentes policiais. Risco. Quarentena.
Abstract
The article discusses the relationship between risk and biopolitics during the coronavirus pandemic. We make up a qualitative analysis on legal papers and eletronic sites news involving the police working to the quarantine against the spreading of the virus. I concluded that Foucaldian maxim ‘To make live and the let die’ concerning to biopower finds the Roberto Esposito’s auto-immunity paradigm when the police workers have theirs lives put at risk in defense of society.
Keywords: Biopolitics. Police workers. Risk. Quarentine.
Introdução
Cidades turísticas vazias. Pessoas assustadas. Economia abalada. Pânico moral generalizado alimentado pela mídia. Equipes médicas usando roupas que nos lembram os filmes de ficção científica, mas é a realidade que se instalou no mundo desde o final do ano de 2019 e, por enquanto, permanece no momento no qual escrevemos este texto. O problema trata-se da descoberta do novo coronavírus (Covid-19)1 , cujos efeitos de sua ação tornaram-se uma
1* Pós-Doutor em Direitos Humanos, doutor e mestre em Sociologia pela Universidade Federal da Paraíba. Professor de Sociologia e Criminologia do Centro de Educação da Polícia Militar da Paraíba (PMPB). Programa de Pós-Graduação e Pesquisa do Centro de Educação da PMPB. E-mail: ffsociologia@gmail.com
O coronavírus trata-se de um agente viral que causa uma espécie de gripe, mais assemelhada a uma pneumonia, por conta das consequências que desencadeia, especialmente de cunho respiratório. Seu contágio se dá de forma fácil, já que o vírus pode ser transmitido pelas gotículas de espirro e saliva permanecendo por algum tempo no ar e chegando a ficar até três dias em materiais como o plástico, o que indica que ele pode estar em qualquer lugar, bastando que as superfícies, objetos e os próprios corpos humanos entrem em contato uns com os outros para haver a transmissão. O vírus tem acesso ao corpo pelo nariz, boca e olhos. Para mais esclarecimentos ver: <https://coronavirus.saude.gov.br/sobre-a-doenca#transmissao>.
ISSN 1517-5901 (online)
POLÍTICA & TRABALHO
Revista de Ciências Sociais, nº 52, Janeiro/Junho de 2020, p. 123-140
pandemia mundial em pouco tempo, atingindo países de todos os continentes. As evidências iniciais acerca do surgimento do vírus e suas primeiras vítimas atestam a cidade chinesa de Wuhan como o foco central da disseminação, primeiramente pela China, depois se estendendo globalmente para todo o mundo. Mas a pergunta a ser feita é: além das medidas sanitárias e epidemiológicas de segurança adotadas pelos diversos governos, como os policiais são mobilizados para combater a doença? Quais riscos envolvem a atuação desses profissionais?
Obviamente que a área de saúde é a primeira a ser movimentada em casos crônicos, como uma pandemia global, mas igualmente exige-se dos profissionais de segurança pública, em especial dos policiais, participação efetiva na resolução desses problemas. No caso dos policiais, eles são utilizados para a garantia da ordem através da quarentena obrigatória de pessoas que passam a ser monitoradas e controladas nos seus direitos de ir e vir para evitar a proliferação dos “inimigos virais invisíveis”.
É nesse contexto, de compreender a guerra travada pelas forças de segurança contra esse inimigo oculto e silencioso, que recobramos como tal assunto diz respeito a considerações biopolíticas. Nesse caso, gostaríamos de destacar o duplo papel desempenhado pelos policiais quando são obrigados a agir em situações de quarentena: ao mesmo tempo em que exercem a força em nome do Estado para evitar o caos, digamos assim, eles também se expõem aos riscos da doença viral. Temos, então, corpos policiais produtivos que tendem a salvar outros corpos funcionalmente capazes como almeja o biopoder (FOUCAULT, 2007), mas que também podem perecer legitimando a dinâmica biopolítica.
Segundo a máxima foucaultiana para a modernidade e sua lógica biopolítica, “pode-se dizer que o velho direito de causar a morte ou deixar viver (no período absolutista) foi substituído por um poder de causar a vida ou devolver à morte” (FOUCAULT, 2007, p. 150), ou seja, em tempos biopolíticos é preciso “fazer viver e deixar morrer”. Essa situação nos conduz a perceber que no caso da quarentena, em situações como a do coronavírus, a morte parece ir ao encontro dos policiais que trabalham diretamente se expondo ao encontro com o agente biológico invisível, já que eles precisam abordar pessoas nas ruas que não demonstram estarem infectadas. Sendo assim, temos a emergência de um tipo de morte que parece consolidar a promessa policial após a formação para o exercício da profissão, quando em juramento se enaltece a proteção da sociedade “mesmo com o risco da própria vida”.
Metodologicamente falando, o assunto aqui debatido nos despertou a atenção pelo fato de desenvolvermos pesquisas sobre as Polícias Militares no Brasil, o que se tornou algo interessante perceber que em uma situação inusitada de uma pandemia viral os agentes da ordem passariam a correr riscos em suas atuações cotidianas, o que foi constatado com as primeiras impressões sobre o assunto com a divulgação de notícias pela mídia. Desse modo, resolvemos mapear algumas dessas notícias específicas sobre o emprego de policiais para manter a quarentena, já que o controle estatal para o combate ao coronavírus, aliado ao próprio risco de contaminação pelo patógeno, permanece em vigência enquanto produzimos este artigo, o que nos impede, por exemplo, de realizarmos técnicas de pesquisa presenciais com PMs ao modo da etnografia. Nesse viés, de modo qualitativo, analisamos diversos sítios eletrônicos que destacam reportagens sobre a situação de risco e morte dos policiais militares que trabalham durante a pandemia do coronavírus no Brasil e em outros países, além de documentos governamentais que expressam a obrigatoriedade de emprego dos PMs. Como uma categoria profissional que desempenha uma tarefa difícil em sociedade, considerada ambígua em muitos aspectos, ressaltamos aqui a importância da atuação dos policiais em contextos biopolíticos, como forma de destacar os sintomas de uma profissão que é regida a todo o momento pelo risco.
Inicialmente, pretendemos tecer algumas reflexões exatamente sobre a relação entre quarentena e biopolítica sob a ótica de processos que colocam os policiais como produtos ativos e passivos de uma lógica de manutenção da vida pela exposição à morte. Por fim, refletiremos sobre a atuação policial no exercício do estado de vigilância contra a pandemia, destacando o lugar de morte biopolítica e riscos advindos de estados de emergência nos quais profissionais de segurança pública são obrigados a exercer seus ofícios.
Quarentena e biopolítica
Em “Vigiar e punir”, ao descrever sobre o panoptismo, Foucault (1987) analisa um regulamento do final do século XVII que deveria ser aplicado ao se declarar a existência da peste em uma cidade. As medidas são drásticas: isolamento total com um policiamento espacial de todas as casas e ruas, com a erradicação dos animais que perambulam livres, além da aplicação da pena de morte aos indivíduos que desobedecerem à ordem de proibição de saída. A divisão espacial é rígida com a vigilância dos quarteirões sob o poder de um intendente. As ruas são monitoradas por um síndico que também poderia sofrer pena de morte caso abandonasse sua função. A fiscalização contínua se estabelece de modo que,
Todos se fechem em suas casas: proibido sair sob pena de morte. O próprio síndico vem fechar, por fora, a porta de cada casa; leva a chave, que entrega ao intendente de quarteirão; este a conserva até o fim da quarentena. Cada família terá feito suas provisões; mas para o vinho e o pão, se terá preparado entre a rua e o interior das casas pequenos canais de madeira, que permitem fazer chegar a cada um sua ração, sem que haja comunicação entre os fornecedores e os habitantes; para a carne, o peixe e as verduras, utilizam-se roldanas e cestas. Se for absolutamente necessário sair das casas, tal se fará por turnos, e evitando-se qualquer encontro. Só circulam os intendentes, os síndicos, os soldados da guarda e também entre as casas infectadas, de um cadáver ao outro, os “corvos”, que tanto faz abandonar à morte: é “gente vil, que leva os doentes, enterra os mortos, limpa e faz muitos ofícios vis e abjetos”. Espaço recortado, imóvel, fixado. Cada qual se prende a seu lugar. E, caso se mexa, corre perigo de vida, por contágio ou punição (FOUCAULT, 1987, p. 162).
A longa transcrição sobre a quarentena nos indica que vai se delineando nessa época uma nova forma de poder cunhado por Foucault (1987) de disciplinar, próprio da modernidade, o qual diz respeito a formas de governo das condutas de indivíduos que passaram a agir em respeito a técnicas disciplinares que fizeram do corpo a morada de comportamentos esperados conforme as doutrinas institucionalizadas, desde a família até as diversas instituições, como as prisões, escolas, hospitais, exércitos, fábricas, asilos, manicômios. Trata-se de uma dimensão de poder produtiva, não repressiva, pautada pela busca da normalização de comportamentos que devem ser vigiados a ponto de o próprio indivíduo entender que sua autovigilância seria o ideal a ser atingido, para não ser considerado um anormal. Essa anormalidade denunciaria um desvio na curva de indivíduos civilizados que deveriam ser adestrados para aceitarem as regras do sistema de trabalho capitalista, ou melhor, antes da exploração nas fábricas, é preciso condicionar corpos para a obediência estrita e respeito à autoridade, já que a quebra da regra carrega consigo metaforicamente uma pena de morte, como visto na quarentena da peste, mas que se desdobrou posteriormente nas punições comuns às instituições disciplinares modernas.
Mas algo nos chama a atenção na narrativa descrita por Foucault (1987) sobre a quarentena da peste. Em meio ao isolamento das pessoas, relatórios são confeccionados e enviados dos síndicos aos intendentes, assim como dos últimos aos almotacés ou prefeitos. Todas as informações constam nos relatórios, desde nome, idade e sexo das pessoas até o número de mortos e doentes para subsidiar os médicos em suas ações. A partir do controle médico-policial, “o registro do patológico deve ser constante e centralizado. A relação de cada um com sua doença e sua morte passa pelas instâncias do poder, pelo registro que delas é feito, pelas decisões que elas tomam” (FOUCAULT, 1987, p. 163). Por mais que exista um modelo inicial de “dispositivo disciplinar” na forma de isolar a peste pelo tratamento individualizado dado às pessoas que devem respeitar a quarentena, as informações sobre essas mesmas pessoas que passam a auxiliar as medidas sanitárias governamentais parece-nos ser um indicativo de que já existia, naquele momento, traços de um poder sobre a vida em conjunto, enquanto espécie, que mais tarde Foucault dirá tratar-se de uma biopolítica, que enseja a lógica de um biopoder.
O que Foucault (1987) faz ao escrever sobre a quarentena da peste é construir um ponto de ruptura entre o modelo confinatório da lepra, baseado na exclusão, e o modelo da cidade pestilenta, orientado para a disciplinarização individual dos vigiados, que precisam ter as vidas salvas em nome de um poder que visa à produtividade dos corpos. Mas os modelos, em certo sentido, aproximam-se pelas estratégias empregadas, ou melhor, “’Pestilentam-se’ os leprosos. A divisão do normal e do anormal, a que todo indivíduo é submetido, leva até nós o exílio dos leprosos; a existência de todo um conjunto de técnicas e de instituições faz funcionar os dispositivos disciplinares que o medo da peste chamava” (FOUCAULT, 1987, p. 165). Contudo não foi apenas a aproximação entre os modelos da lepra e da peste que se descortinou nesse momento. Como dissemos, traços biopolíticos já anunciavam estratégias governamentalizadoras ao dispor de informações das pessoas como dados para se construir as medidas sanitárias de intervenção. São informações compiladas de toda uma massa de pessoas que passam a ser controladas em conjunto, cujas condutas uniformizadoras de respeito à quarentena demonstram o alcance de um poder de outra ordem, que age conforme as informações e registros disponíveis de um conjunto de pessoas que precisam ser regidas pelas políticas estatais. Até mesmo os síndicos e intendentes de quarteirão (em seus procedimentos policiais para manutenção da quarentena e isolamento) dispõem seus corpos ao cálculo biopolítico, expondo-se para exercer controle para salvar vidas, mas com o risco de fazerem de suas próprias vidas números para as estatísticas de morte.
Foucault só passará a tratar do biopoder em seus escritos em 1976, um ano depois que lança “Vigiar e punir”. É quando ele publiciza seu primeiro volume de uma “História da sexualidade: a vontade de saber”, assim como seu curso ministrado no Collège de France naquele ano, intitulado “Em defesa da sociedade”. Notem que em nosso argumento estamos buscando mostrar, de certa forma, a partir da perspectiva foucaultiana, que a polícia –que também nasce no século XVII, como braço principal do Estado para o exercício do governo da espécie, como se vê na quarentena da peste – é a mesma cujos integrantes também estão enredados pela metáfora biopolítica de “fazer viver e deixar morrer” (FOUCAULT, 2005, 2007). Afinal, trabalhar para a imposição do isolamento às pessoas é também expor-se ao contágio e aos riscos da doença.
Não por acaso, para Foucault (2009), as formas de poder por ele estudadas (poder disciplinar e biopoder) são relações de força que funcionam como redes de transmissão nas quais todos estão implicados. Por mais que no governo das condutas as relações estratégicas envolvidas funcionem de modo a que um dos lados na relação de poder acabe por impor, como em uma guerra com um vencedor, mecanismos estáveis de condução do derrotado, nessa “estratégia sem estrategista” até mesmo os fiscais do Estado, como os policiais, sucumbem quando são transformados naqueles que não merecem viver para manterem a sociedade sadia. Nesse sentido, a dominação biopolítica opera “na escala do corpo social inteiro, o entrelaçamento das relações de poder com as relações estratégicas e seus efeitos de interação recíproca” (FOUCAULT, 2010, p. 295).
A biopolítica, de forma mais clara, se configura como uma “estatização do biológico” (FOUCAULT, 2005, p. 286) na medida em que complementa as condições individualizantes do corpo disciplinado ao considerar o homem enquanto espécie. Para tanto, temos o uso das medições estatísticas para o controle das doenças, das taxas de natalidade e mortalidade, os processos de vacinação, as condições demográficas. A população torna-se alvo de um poder que, por exemplo, tem na medicina “a função maior da higiene pública, com organismos de coordenação dos tratamentos médicos, de centralização da informação, de normalização do saber, e que adquire também o aspecto de campanha de aprendizado da higiene e de medicalização da população” (FOUCAULT, 2005, p. 291).
No tocante à polícia, é o próprio Foucault (2005) que nos lança a percepção de que se trata de uma instituição que funciona por meio de um jogo duplo de proposições: ao mesmo tempo em que é um aparelho disciplinar, cujos membros são subjetivados pelas técnicas disciplinares, também não deixa de ser uma instituição estatal de controle no modus operandi. Esta última característica como já delineamos anteriormente, é o que faz as polícias serem parte de uma estratégia sem estrategista quando o corpo político estatal precisa atuar para proteger a sociedade, cujas guerras também nos servem de exemplo, já que os soldados doam a vida em sacrifício nos campos de batalha para honrarem e defenderem suas pátrias.
Na verdade, parece-nos, a princípio, que existe uma biopolítica reversa nesse quadro de uma instituição policial disciplinar-biopolítica, situação que adiante esclarecemos. De fato, tendemos a inclinar nosso olhar quase que “naturalmente” para uma crítica às forças da ordem como as polícias pelo exercício repressivo que elas desempenham em nome do Estado. Por outro lado, analiticamente falando, precisamos reconhecer como o jogo de forças biopolítico é mais rizomático do que aparenta à primeira vista quando nos distanciamos de um posicionamento de crítica ao braço armado do Estado para uma perspectiva mais objetiva. O que passamos a enxergar, nos policiais, são corpos dóceis moldados para a morte em nome da vida. Claro que a economia política participa desse jogo, já que ela está na gênese da biopolítica enquanto razão governamental estatal (FOUCAULT, 2008), pois em tempos de crise, o capital sempre se fortalece e o mercado se renova, mas esse não é o nosso foco argumentativo.
O que se torna claro é que as polícias e seus agentes, por mais que ajam em certas situações para legitimar o campo biopolítico quando atuam em nome do Estado, estão inextricavelmente constituídas pelo encontro das disciplinas (na formação que capacita seus membros) com os mecanismos reguladores da biopolítica (quando os policiais são usados colocando suas vidas em risco quando o dever do ofício exige). Nesse sentido, podemos dizer que estamos no campo da norma, que seria o “elemento que pode tanto se aplicar a um corpo que se quer disciplinar quanto a uma população que se quer regulamentar” (FOUCAULT, 2005, p. 302).
Mas, nesse recorte sobre a relação entre as polícias e a norma, talvez exista um paradoxo que o próprio Foucault pode nos ajudar a resolver. Segundo ele, o poder disciplinar e o biopoder teriam emergido pela perda de força do poder soberano, próprio do período absolutista. No regime de soberania, o monarca tinha o poder absoluto sobre os súditos a ponto de “fazer morrer e deixar viver”. Os espetáculos públicos de execução judicial, verdadeiro “teatro dos horrores” em forma de suplícios corporais, eram a demonstração de força simbólica do poder de soberania que agia através da morte ritualizada. Logo, olhando-se para nosso objeto de análise, ao policial colocado em ação pelo Estado, mesmo com sua vida apenas em risco, teríamos, portanto, a entrada em cena do poder de morte soberano, e não do biopoder. Só que Foucault levanta a indagação e responde ao mesmo tempo da seguinte forma: “Como esse poder que tem essencialmente o objetivo de fazer viver pode deixar morrer? É aí, creio eu, que intervém o racismo” (FOUCAULT, 2005, p. 304).
Entenda-se o racismo, pelo prisma foucaultiano, como um corte entre o que deve viver e o que deve morrer em termos biopolíticos, de maneira que, como em uma relação de guerra de recorte biológico deve-se matar o inimigo para que sua vida se mantenha. No caso dos policiais, se tomarmos, como o fez Foucault (2005), o nazismo como limite para provar o funcionamento do racismo a partir da destruição causada aos judeus, por exemplo, certamente teríamos de localizar os policiais, ou melhor, todo o aparato militar nazista como aquele que matou para garantir a vida, isto é, “a função assassina do Estado só pode ser assegurada, desde que o Estado funcione no modo do biopoder, pelo racismo” (FOUCAULT, 2005, p. 306).
Por isso, falamos anteriormente, em relação aos policiais, que a priori parece existir uma biopolítica reversa que, nesse caso, nos faria perceber que milhões de jovens, influenciados culturalmente pelo doutrinamento nazista, jogaram-se efusivamente para a morte na guerra pensando na construção de um mundo racialmente puro dominado pelo povo ariano. Todavia, nesse ponto, a biopolítica também opera utilizando-se dos seus próprios defensores, cujas mortes se aproximam de algo como a lógica totalitarista, que passa a destruir até mesmo os aliados do sistema se assim for preciso, ou seja, “quantos mais numerosos forem os que morrerem entre nós, mais pura será a raça a que pertencemos” (FOUCAULT, 2005, p. 308). É preciso ampliar o argumento para mostrarmos que a defesa da sociedade, como nos coloca Foucault (2005), se vista por parâmetros biopolíticos, deve levar em consideração não apenas a limpeza dos indesejados pelos aparatos do Estado, mas como, em algum grau, os vitimizadores também podem ser vítimas perdendo suas vidas em nome da manutenção do status quo.
A destruição das outras raças é uma das faces do projeto, sendo a outra face expor sua própria raça ao perigo absoluto da morte. O risco de morrer, a exposição à destruição total, é um dos princípios inseridos entre os deveres fundamentais da obediência nazista, e entre os objetivos essenciais da política. É preciso que se chegue a um ponto tal que a população inteira seja exposta à morte. Apenas essa exposição universal de toda a população à morte poderá efetivamente constituí-la como raça superior e regenerá-la definitivamente (FOUCAULT, 2005, p. 310).
Assim, o racismo torna-se ponto de passagem para o poder soberano exercer a morte em uma situação biopolítica, ou, ao contrário, também se verifica quando o biopoder precisa exercer o poder de morte, de forma que no encontro dos dois tipos de poder desenvolve-se um Estado ao mesmo tempo racista, assassino e suicida (FOUCAULT, 2005). Mas atentemos para as palavras de Esposito (2010, p. 23) quando ele indaga: “porque é que, pelo menos até hoje, uma política da vida ameaça sempre transformar-se numa obra de morte? ” Para responder a isso, ele, de certa forma, não corrobora a perspectiva foucaultiana de que o racismo seria a passagem para que biopolítica e a soberania se encontrem, vislumbrando no paradigma da imunização um sentido positivo de valorização da vida. Isto significa dizer que “a imunização é uma proteção negativa da vida” (ESPOSITO, 2010, p. 74, grifo do autor).
Como a prática médica da vacinação em relação ao corpo individual, também a imunização do corpo político funciona introduzindo no seu interior um fragmento da mesma substância patogénica da qual o quer proteger e que, assim, bloqueia e contraria o seu desenvolvimento natural. Neste sentido, não há dúvida de que se encontra um seu protótipo na filosofia de Hobbes: na medida em que ele não só põe no centro da sua perspectiva o problema da conservatio vitae como a condiciona à subordinação a um poder coactivo que lhe é exterior, que é o poder soberano, o princípio imunitário já está virtualmente fundado (ESPOSITO, ٢٠١٠, p. ٧٤-٧٥).
De acordo com o exposto por Esposito (2010), parece-nos que, em certo sentido, o princípio imunitário se entrelaça com a soberania moldando um corpo político que aceita a ordem soberana como paradigma de manutenção da vida no regime biopolítico, com o acréscimo de reconhecimento da legitimidade do direito individual à vida – conservatio vitae –, cuja representação se descortina exatamente com o rompimento do mundo absolutista que passa a centrar-se na “era dos direitos”. Pelo contrário, devemos esclarecer que “absolutismo e individualismo implicam-se numa relação recondutível ao processo genético. Através do absolutismo os indivíduos afirmam-se e negam-se ao mesmo tempo” (ESPOSITO, 2010, p. 93). E talvez nenhuma instituição seja mais representativa da manutenção do paradigma imunitário do que a polícia. Não por acaso, podermos afirmar que “ligar o sujeito moderno ao horizonte da segurança imunitária significa reconhecer a aporia em que a sua experiência fica presa: a de procurar o refúgio da vida nas mesmas potências que impedem o seu desenvolvimento” (ESPOSITO, 2010, p. 88). Potências essas que encontram nos aparatos policiais constante refúgio quando o Estado os mobiliza para atuarem nas situações de manutenção da ordem pública.
Nesse ponto, a pandemia viral do coronavírus, eclodida em 2020, é um exemplo mais que exemplar para pensarmos o paradigma da imunidade quando as forças policiais em todo o mundo passaram a ser mobilizadas para agir na contenção do vírus impondo a quarentena às pessoas. Os policiais, nesse exemplo, representam a ordem e a validade do poder de soberania. Contudo não queremos aqui diminuir o caráter de dominação ou de poder existente no modelo da quarentena que impõe forçosamente às pessoas o exílio em suas próprias casas, mas queremos demonstrar certo deslocamento que encontra na noção de risco um princípio de relevância que nos indica que o encontro entre soberania e biopolítica se trata, em algum grau, da produção de uma tanatopolítica (ESPOSITO, 2010). Não é preciso ser a morte em si, mas o risco, de forma pontual, enquanto uma instância que perpassa condições biopolíticas, já que a presença da morte diante de um inimigo invisível é algo real e muito próximo. E os policiais que trabalham na quarentena de cidades para conter a pandemia são vítimas em potencial de uma forte probabilidade de contaminação que pode ser mortífera, em uma espécie de ramificação da concepção do encontro entre biopolítica e soberania, por meio de uma “autoimunização” (ESPOSITO, 2010).
Ser policial: profissão de risco
Em 1987, ocorreu no Brasil, mais precisamente na cidade de Goiânia, o acidente radioativo com césio-137. Silva (1998), em seu texto intitulado “Soldado é superior ao tempo: da ordem militar à experiência do corpo como locus de resistência” – título esse que expressa uma crença típica da cultura dos quartéis, ou seja, de que o militar é um ser preparado para tudo –, relata o sofrimento dos PMs que foram obrigados a atuar no isolamento dos locais atingidos pela contaminação, bem como, na contenção das pessoas afetadas. Sem usarem nenhum tipo de proteção contra a radiação, o que provocou inúmeros problemas de saúde a dezenas de PMs anos depois do acontecimento, os policiais tiveram que agir inicialmente sem saber o que estava acontecendo e, depois de conhecer o fato, atuaram sob as ordens do comandante da operação, que os ameaçava de possível desobediência. As palavras de um PM entrevistado que atuou no episódio do césio-137 são esclarecedoras:
“Se eles [os oficiais1] mandam a gente realizar um serviço e a gente não tem como realizar, do jeito que eles queriam, eles não querem nem saber. Igual lá no Depósito de Rejeitos Radioativos, a gente andava debaixo de chuva de lá pra cá. E lá fazia frio porque é alto. Eles falavam: não, você tem que fazer, soldado é superior ao tempo. E sempre teve isto dentro da polícia: Soldado é superior ao tempo, segundo os oficiais. Eles estão pouco se lixando pra nós. Nós somos apenas uma máquina, ou um animal, que eles soltam no pasto. Ali a gente pega chuva, sol, desde que não saía do pasto. Assim, se ficar no pasto tudo bem. A mesma coisa é o soldado” (SILVA, 1998, p. 126, grifo nosso).
Como se vê na experiência do desastre radioativo, a percepção que os próprios PMs subordinados tinham acerca de si mesmos era de que eles eram tratados como “máquinas” ou “animais” capazes de suportar as intempéries e doando o corpo produtivo e disciplinado (FOUCAULT, 1987) em nome de realizar as atividades de alto risco que envolvia o acidente com o césio-137. Ao longo dos anos, e com o surgimento dos diversos problemas de saúde entre os PMs que participaram das ações atinentes ao desastre, os quais passaram a ser conhecidos como os “policiais do césio”, descortinou-se uma trajetória de luta contra o Estado por indenizações e auxílio para tratamento de saúde apoiada por uma associação de cabos e soldados. Afinal, a luta travada no passado contra um inimigo invisível como a radioatividade, sem o uso devido de equipamento para situações de acidentes radioativos, baseou-se na “angústia, ansiedade e a constatação de desproteção e consequentemente de contaminação e de doença” (SILVA, 1998, p. 121).
Segundo Silva (1998), foi apenas ao longo do processo de atuação no desastre que os PMs perceberam tratar-se de um tipo de atividade que demandava equipamentos e preparo especializados para aquela situação, especialmente após a chegada dos técnicos nucleares da Comissão Nacional de Energia Nuclear com seus macacões brancos e amarelos. Para os PMs, demarcava-se a constatação de que o corpo militar, orientado e construído pela disciplina dos quartéis, não se mostrava preparado para situações emergenciais de acidentes com radioatividade.
O encontro com a morte e a angústia pelo risco envolvido na situação do césio-137 nos faz perceber que, nesse sentido, elementos biopolíticos em consonância com o paradigma da autoimunização (ESPOSITO, 2010) são mobilizados na utilização de policiais em processos crônicos de emergência e contingência. Na verdade, percebemos o desenrolar de um processo ambíguo que, ao final, revela a autoimunidade como sintoma do paradoxo no qual a vida biológica da população é colocada obrigatoriamente em quarentena para a proteção da vida política dela mesma; por outro lado, a vida política do policial, enquanto funcionário estatal, é coagida para que sua vida biológica seja colocada em risco para salvar outras vidas. Em termos biopolíticos, parece-nos que, de alguma forma, pensar a relação entre vida biológica e vida política é sabermos que em algum ponto uma biopolítica afirmativa (ESPOSITO, 2010) perde força sempre diante da necessidade de uma biopolítica que necessita da morte para se afirmar.
Nessa profissão, o risco pode ser caracterizado – resguardadas as diversas e polissêmicas interpretações para a sua compreensão – como a possibilidade negativa de um evento ocorrer, o que propicia a busca de “racionalidade e de neutralidade, em uma complexa tentativa de reduzir incertezas e de controlá-las melhor” (NEVES; JEOLÁS, 2012, p. 17). Nosso foco não é discutir o conceito de risco, o que demandaria, certamente, um espaço específico para tal tarefa, mas apenas localizá-lo a partir da condição particular de como os PMs podem ser colocados diante de situações que limitam suas vidas a um limiar entre a existência física de seus corpos e a negação dessa condição.
Em um evento de pandemia viral, que é o modelo para nossa compreensão, não se trata de analisar uma “sociedade de risco”, por meio dos riscos que a modernização nos legou como consequências do progresso (especialmente de ordem industrial, tecnológica e ambiental), mas sim de enxergar que “o visível incorre nas sombras de ameaças invisíveis. Aquilo que escapa à percepção já não coincide com o irreal, podendo chegar mesmo e possuir um grau de concretude em termos de ameaça. A necessidade imediata rivaliza com o teor de risco” (BECK, 2010, p. 54). Logo, essa necessidade passa a endossar concepções biopolíticas na atuação de policiais que lutam contra o inimigo invisível – mas não “irreal” –, fazendo da vida e da morte atores de um palco com aproximações constantes, tendo no risco as luzes que iluminam o espetáculo.
Os riscos ligados à profissão de policial militar foram tematizados por diversos autores (BRITO; SOUZA; LIMA, 2011; FERNANDES, 2016; MELLO; NUMMER, 2015, 2017; MINAYO; ADORNO, 2013; MINAYO; SOUZA; CONSTANTINO, 2007; SOUZA; MINAYO, 2005), mostrando-nos as variadas circunstâncias nas quais os PMs podem se tornar vítimas de acontecimentos relacionados ao modo de trabalho que desempenham. Tais riscos surgem, em graus variados de acordo com as circunstâncias às quais os PMs são submetidos, como componentes de uma profissão que exige, como aduz um jargão popular utilizado pelos PMs de modo geral, que eles sejam “policiais 24 horas por dia”.
Em relação à pandemia de coronavírus, que chegou ao Brasil em meados do mês de fevereiro de 2020, trata-se de um risco epidemiológico contra um inimigo invisível, como já enfatizamos anteriormente e, em nosso país, pelo que sabemos, desde o evento do césio-137, não existem dados que comprovem a realização de qualquer tipo de treinamento específico sobre procedimentos de quarentena e ações contra agentes patológicos por parte das PMs. Diante de todo o bombardeamento de informações disseminadas pela mídia e pelas autoridades e órgãos governamentais sobre a potencialidade de contaminação do coronavírus, a sua letalidade por atingir o sistema respiratório e a velocidade com que causa danos à saúde humana, não teríamos outra coisa a esperar dos policiais do que o medo de contrair o vírus e se tornar um vetor de transmissão, além da iminência de morte. Esse sentimento pode ser captado pelas falas de policiais militares brasileiros presentes em matéria do Blog do Poliglota (2020): “Sei da minha função e quero cumprir minha missão. Mas, tenho muito medo de me contaminar e transmitir essa doença para a minha mãe, ela é uma idosa e quem cuida dela sou eu. ” Outro PM relata: “Estamos nas ruas, expostos a todo tipo de doenças. E o pior é que quando vamos abordar, os paisanos olham pra nós com medo, como se fôssemos contaminá-los. Na verdade, tá todo mundo assustado.”
A mesma reportagem, da qual extraímos as falas, ainda destaca que “Homens da Polícia Militar seguem trabalhando nas ruas sem álcool em gel, máscaras e luvas. As principais armas de guerra para se salvaguardar e proteger a população da pandemia. ”Em Pernambuco, sindicato e associações de policiais civis e militares entraram com uma liminar na justiça, no dia 20 de março de 2020, exigindo que o Estado “forneça álcool em gel, ou produto similar, e equipamentos de proteção individual (máscaras e luvas) a todos os servidores” (CAVALCANTE, 2020). Após concedida por um juiz, a liminar foi revogada pelo Presidente do Tribunal de Justiça do Estado. Em São Paulo, a justiça também determinou que o Governo do Estado adote providências para salvaguardar a integridade dos policiais civis em face do coronavírus (ISTO É, 2020). Para nós, essas ações do sistema judiciário só demonstram o quanto as instituições de segurança pública, especialmente as policiais, estão despreparadas para situações de emergência epidemiológica, como se o uso naturalizado de policiais para resolver os problemas de ordem pública, que o próprio Estado cria pela ineficiência em outros campos, fosse algo evidente por si mesmo, ou melhor, é a biopolítica operando no melhor sentido que lhe cabe.
Mas essa situação não é específica do Brasil. Na França, os sindicatos de policiais denunciam a imposição do governo francês de que os policiais não devem usar máscaras ao abordarem pessoas, apenas se elas apresentarem sintomas ou afirmarem estarem doentes. Em entrevista, o secretário nacional do sindicato policial Alliance destacou que “os policiais estão em perigo. Há vários dias que a gente briga com o governo para tentar fazer as autoridades entenderem. E eles ainda não compreenderam” (FRANCO, 2020). O ministro do interior da França, também quando entrevistado, ressaltou o fato de que os policiais não corriam risco, porém, “segundo sindicalistas, 90 policiais se contaminaram com o coronavírus desde que a doença chegou à França, no final de janeiro. Outros 5 mil agentes das forças de segurança estão isolados por suspeita de terem contraído o Covid-19” (FRANCO, 2020). Com as dificuldades para a polícia francesa impor a quarentena à população, ocorreu, inclusive, de um policial ser mordido por um homem (MOYSÉS, 2020).
Na Espanha, a situação não é diferente. Sindicatos policiais denunciam as deficiências no emprego dos profissionais para manter a quarentena no país pela falta de equipamentos de proteção individual, de modo que parte dos próprios policiais tem obtido por conta própria material de proteção. Como resultado, 700 policiais e guardas civis espanhóis estão contaminados e outros 7.400 estão isolados em suas residências, apresentando sintomas de contágio. Ainda assim, as autoridades do país afirmam que os policiais e guardas civis não são considerados pessoas de alto risco (SALVADOR, 2020a, 2020b).
Em Nova York, nos Estados Unidos, até o dia 27 de março de 2020, o Departamento de Polícia registrou que mais de 500 policiais estão contaminados com o Covid-19. Além disso, de um total de ٣٦ mil membros, 3.016 policiais têm apresentado sintomas similares aos da contaminação pelo coronavírus (ISTO É, 2020) e, até o dia 28 de março de 2020, foram confirmadas as mortes dos três primeiros policiais nova-iorquinos (UOL, 2020).
No Brasil, ao longo da pandemia, vários estados passaram a apresentar mortes de policiais militares vítimas da doença,2 situações cujas informações a mídia passou também a veicular. Um caso sintomático foi o do Pará. Segundo dados divulgados pelo site de Lúcio Flávio Pinto (FERNANDES, 2020), entre os dias 25 de abril e 15 de maio de 2020, 41 PMs faleceram no Pará, entre aqueles da reserva ou reformado (aposentados) e os da ativa, que estavam trabalhando durante o período de quarentena, ou melhor,
Duas mortes a cada dia. A grande maioria, pelos menos 35, por complicações relacionadas ao vírus, por problemas respiratórios ou por serem portadores de outras doenças de risco. Metade estava em atividade na corporação. No Instagram, a página do órgão virou um cemitério virtual. Postagens com mensagens de luto tomaram conta da rede social e a população paraense se manifesta, a cada novo obituário, de forma atônita. O número de mortes de policiais militares no Pará por covid-19ou suspeita é maior, por exemplo, do que no Estado do Rio de Janeiro, o terceiro mais afetado pelo coronavírus no Brasil. Na região fluminense, com o dobro do número de habitantes e com quase o triplo de efetivos na PM, 10 policiais perderam a luta contra a covid-19. No dia 29 de abril, o G1 publicou uma reportagem na qual informava que, segundo a PM paraense, até o dia 27 do mesmo mês a corporação contabilizava705 casos suspeitos, 97 confirmados e 1.007 policiais afastados (FERNANDES, 2020).
Ainda mais, a reportagem do site aponta que dentre as 41 mortes registradas, 32% dos PMs morreram pelas complicações relacionadas à covid-19. 20% deles apresentaram sintomas da doença sem confirmação e 17% apresentaram síndrome respiratória aguda grave e problemas pulmonares. Cinco PMs não tiveram a causa revelada e outros quatro faziam parte do grupo de risco por apresentarem câncer e problemas do coração. Nesses vinte dias de dados divulgados pelo site, temos uma média de quatro óbitos por dia no Pará entre PMs.
Em casos epidemiológicos, como o da pandemia do coronavírus, os riscos para os policiais são enormes, já que eles precisam, por obrigação profissional, atuar nas ruas assumindo a função de combater a criminalidade, além de manter a ordem pública para evitar saques às lojas pela população, por conta do pânico generalizado, e ainda exercer a quarentena obrigatória forçando as pessoas a ficarem em suas casas. Exemplo dessas condições ocorreu na Bahia, quando PMs precisaram perseguir e levar de volta para casa um homem que estava em quarentena por ser suspeito de contaminação (ALMIRANTE, 2020). E quando analisamos o Decreto Federal nº 10.282, de 20 de março de 2020, que regulamenta a Lei 13.979, de 6 de fevereiro de 20203, observamos que as atividades de segurança pública como serviços essenciais são elencadas depois da assistência à saúde (inclusos os serviços médicos e hospitalares) e da assistência social e atendimento à população em estado de vulnerabilidade.
Essas situações em conjunto só provam que os policiais “não são superiores ao tempo” a partir do momento em que eles começam a serem suspeitos também de contaminação, como ocorreu no Ceará com dois PMS que foram colocados em isolamento (SISNANDO, 2020). O interessante fica por conta do protocolo institucional da PM cearense que destaca o fato de que os PMs em quarentena terão seus casos divulgados no Boletim Geral da instituição (espécie de arquivo coletivo, como um Diário Oficial, comum às instituições militares de forma geral, que publiciza para o público interno tudo o que envolve os PMs a nível administrativo, jurídico, instrucional) e o acompanhamento da situação de saúde dos policiais centra-se na possibilidade da volta ao serviço. Em contrapartida, um advogado “comentou que vai ingressar judicialmente para que o Governo do Estado forneça máscaras, álcool gel e coletes balísticos individuais, pois o colete que é usado por um policial, posteriormente, pode ser usado por outro, colocando, assim, em risco a vida dos agentes de segurança” (SISNANDO, 2020).
Ainda no Ceará, o Ministério Público Estadual (MPEC) lançou o Ofício nº ٠٠٥١/٢٠٢٠/١١٧ªPmJFOR – PGJ/PJM/CEAPM, de ٢٤ de março de ٢٠٢٠, endereçado aos Comandantes-Gerais das Corporações Militares Estaduais (Polícia e Bombeiro) com a “necessidade de que sejam traçados mecanismos racionais e efetivos de prevenção de contágio (do coronavírus) nos nossos aquartelamentos e viaturas militares” (MPEC, 2020, p.1). Entre as considerações feitas pelo órgão público de fiscalização das PMs, encontramos que, em face da obrigação constitucional do dever da profissão, os PMs devem “não se auto contaminar, não contaminar suas famílias e não permitir que o vírus alastre-se no seio da tropa, evitando a subtração do poder de emprego e operacionalidade da força militar estadual (MPEC, 2020, p. 1, grifo nosso).
Como se vê, a dimensão biopolítica (FOUCAULT, 2005, 2007) do documento é clara, ao destacar, acima de tudo, que os policiais se protejam para que possam ser produtivamente colocados em risco no combate à pandemia. Além disso, o documento ainda exorta, como destacamos adiante, não só as obrigações dos PMs em face do código disciplinar castrense, como também, sem nenhuma base científica que possa embasar as afirmações, que os PMs devem agir sem medo de contaminação pelo revezamento no uso dos materiais de trabalho e pelo espaço comum ocupado nas viaturas:
Considerando que a Lei estadual nº 13.407, de 2013, - Código Disciplinar – aponta como alguns dos valores fundamentais dos militares estaduais o patriotismo, o civismo, a disciplina, o profissionalismo e, ademais, é dever ético do militar estadual manter ânimo forte e fé na missão militar, mesmo diante das dificuldades, demonstrando persistência no trabalho para superá-las. Esclareça-se ao efetivo militar de que não correm riscos de contaminação pelo fato da alternatividade no uso do material bélico, inclusive colete balístico de proteção, tendo em vista que o tempo de sobrevivência do vírus nas superfícies de contato é interrompido por um correto asseio, assim como não correm riscos aqueles que patrulham na mesma viatura utilizada por outros militares em turnos diversos (MPEC, 2020, p. 2, grifo do autor).
Ao final, por mais que “um correto asseio” se encontre no documento como forma de indicar a maneira de os PMs terem a garantia de não se contaminarem, é notória a disposição institucional em tornar evidente que os PMs interessam mais como corpos produtivos do que como profissionais que devem ser tratados com medidas preventivas diante das situações de contaminação (SILVA, 1998). O documento referencia os cuidados a serem tomados, mas, diante da situação inusitada de emergência, o que se destaca é a obrigatoriedade do serviço a ser desempenhado pelos PMs, o que nos leva a refletir que, certamente, os PMs devem agir mesmo que não existam as condições de segurança para isso, como ocorreu com os “policiais do césio”, sendo passíveis de punições disciplinares ou do cometimento de infrações penais à luz do Código Penal Militar.
As considerações que fizemos, provavelmente, ainda serão circunscritas por novos eventos ao longo do combate à pandemia do coronavírus no Brasil, revelando as “ressonâncias biopolíticas” que circundam o exercício da profissão policial e a relação que se estabelece entre a manutenção de uma vida biológica e uma vida política que habitam um mesmo ser. Preferimos aqui reconhecer, distante de uma crítica unilateral por parte de cientistas sociais sobre as instituições policiais, especialmente as PMs, que é preciso termos em conta esses profissionais como objetos de compreensão, dada a implicada participação que eles têm em sociedade. Portanto, quando colocamos em suspenso que os PMs são apenas agentes de manutenção da ordem, com destaque para o lado repressivo deles já tão conhecido, uma perspectiva analítica possibilita-nos ter um melhor entendimento de que, quando se trata de fenômenos sociológicos como poder e dominação, não importa quem são os atores, pois a peça, quando tem um tom macabro, demanda um exercício de desconstrução que nos desperte empatia em um sentido de que somos todos seres viventes, independente das identidades sociais que assumamos. Nesse caminho, talvez, uma biopolítica afirmativa (ESPOSITO, 2010) se mostre o melhor sentido que podemos alcançar.
Conclusões
Em tempos de uma pandemia global, como a que está acontecendo com a proliferação do novo coronavírus pelo mundo, não sabemos se acreditamos em uma teoria da conspiração que denuncia “forças ocultas” orquestradas pelas potências mundiais que visam lucrar com a tragédia global, não temos certeza se os inimigos invisíveis surgiram do contato humano com animais selvagens (talvez já não seja mais moda jogar a culpa nos símios) ou, até mesmo, até que ponto a histeria coletiva e o pânico moral construído pela mídia se trata de uma “verdade real” ou uma “pós-verdade”, que resguarda a audiência ininterrupta sincronizada com o aumento das propagandas de produtos que irão explodir suas vendas em meio ao caos social generalizado.
Nossos sentimentos se misturam entre a credulidade e a incerteza, entre o medo e a solidariedade, entre o egoísmo e o instinto de sobrevivência, até que, talvez, nossas vidas sofram certo impacto quando descobrimos que alguém próximo foi atingido pelos malefícios do micro-organismo mortal ou alguém que amamos veio a óbito, o que faz das estatísticas objetivas dos noticiários algo que passa a ter significado direto para nós. Passamos então a nos mobilizar como nos filmes de ficção científica, vigiando nossas ações, limpando nossas mãos, objetos, tentando expurgar algo que não temos a menor noção de onde está, mas que, certamente, é um elemento capaz de nos colocar nas encruzilhadas que situam a relação entre a vida e a política, ou melhor, no campo da biopolítica.
Foi exatamente nesse contexto que procuramos refletir, neste artigo, sobre a relação entre vida biológica e vida política no tocante ao emprego de forças policiais no exercício da quarentena em situações epidemiológicas, como uma pandemia. Nesse sentido, interpretamos que biopolítica e paradigma da autoimunização revelam aproximações quando as próprias forças da ordem são aquelas que devem proteger a sociedade colocando a vida biológica de profissionais policiais em risco em nome da manutenção de um corpo político coletivo. Se geralmente essas forças são mobilizadas em nome da soberania para manter a sociedade livre de seus inimigos internos, como apontou-nos Foucault, por outro lado, em situações-limite como uma pandemia viral, parece-nos que o par soberania-biopolítica opera uma limpeza a partir de seus próprios aparatos, não como uma forma deliberada de tanatopolítica, mas criando probabilidades que encontram no risco um forte indicativo dessa situação.
Referências
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Recebido em 23/03/2020
Aceito em 16/09/2020
1 De acordo com o sistema hierárquico das Polícias Militares no Brasil, o qual foi herdado do modelo organizativo do Exército, existe o quadro dos oficiais (que diz respeito aos postos e cargos, em tese, de comando e direção das instituições da PM) e o das praças (que seriam os responsáveis pela execução das atividades operacionais, nas ruas e administrativas). No entanto, após a função de soldado, a primeira da base da pirâmide hierárquica da PM, cada ascensão na carreira policial indica assumir também responsabilidade de comando em relação às posições consideradas inferiores.
2 Não existem estatísticas específicas sobre a morte de PMs vitimados pelo coronavírus, o que talvez venha a ocorrer no futuro com dados fornecidos pelas próprias instituições policiais.
3 A Lei Federal 13.979 dispõe sobre as medidas para o enfrentamento da emergência de saúde pública de importância internacional decorrente do coronavírus, responsável pelo surto de 2019.
CATADORAS DE MATERIAIS RECICLÁVEIS E O CUIDADO EM SAÚDE: subvertendo estruturas de desigualdade
WASTE PICKERS AND THE HEALTH CARE:
subverting inequality structures
__________________________________
Joaquim Pedro Ribeiro Vasconcelos*1
Bruna Carvalho Barros Rosa Nobre**
Izabel Cristina Bruno Bacellar Zaneti***
Sílvia Maria Ferreira Guimarães****
Resumo
As trabalhadoras catadoras de materiais recicláveis são fundamentais na promoção de ações sustentáveis para a proteção do meio ambiente, apesar de viverem num cenário de precarização da vida. Diante disso, este artigo tem como objetivo compreender o contexto de vida e o cuidado em saúde dessas mulheres na lida cotidiana. Este estudo revela o universo dessas trabalhadoras informais organizadas em uma associação com sede em Ceilândia (DF). Foram realizadas entrevistas semiestruturadas com as catadoras, sendo complementada pela observação de suas atividades cotidianas no galpão de triagem de materiais recicláveis. Os achados apontam para questões marcantes relativas a: precariedade do trabalho na lógica da reestruturação produtiva do capital; opressões das mulheres na perspectiva interseccional de raça, gênero e classe; as dificuldades do acesso aos serviços oficiais de saúde. Especialmente, é discutido também as experiências relacionadas à assistência à saúde e à rede popular de compartilhamento do cuidado como forma de resistência.
Palavras-chave: Trabalho. Catadoras de materiais recicláveis. Sociabilidades. Saúde.
Abstract
The workers who waste pickers are fundamental in promoting sustainable actions for the protection of the environment, despite living in a scenario of precarious life. Therefore, this paper aims to understand the context of life and health care of waste pickers in their daily work. This study reveals the universe of these informal workers, especially female workers, organized in an association based in Ceilândia/DF. Semi-structured interviews were carried out with the collectors, complemented by the observation of their daily activities in the shed for sorting recyclable materials. The findings point to striking issues related to: the precariousness of work in the logic of the productive restructuring of capital; the oppressions of women in the intersectional perspective of race, gender and class; and difficulties in accessing official health services. In particular, experiences related to health care and the popular network for sharing care as a form of resistance are also discussed.
Keywords: Work. Waste pickers. Sociabilities. Health.
1* Doutorando em Ciências e Tecnologias em Saúde da Universidade de Brasília (UnB) e professor de Saúde Coletiva do Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia de Goiás (IFG), Campus Águas Lindas. E-mail: vasconcelosjpr@gmail.com
** Sanitarista. Pós-graduanda em Saúde Coletiva da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz), em Brasília. E-mail: brunarnobre@gmail.com
*** Pedagoga pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul, mestre em Educação pela Universidade de Brasília e doutora em Desenvolvimento Sustentável também pela UnB. Vice-coordenadora do Programa de Pós-Graduação em Rede Nacional para Ensino das Ciências Ambientais e professora do Programa de Pós-Graduação em Desenvolvimento Sustentável da UnB. E-mail: izabel.zaneti@yahoo.com
**** Doutora em Antropologia, professora do Departamento de Antropologia da Universidade de Brasília. E-mail: silviag@unb.br
ISSN 1517-5901 (online)
POLÍTICA & TRABALHO
Revista de Ciências Sociais, nº 52, Janeiro/Junho de 2020, p. 141-159
Introdução
Este artigo visa compreender as práticas de cuidado desencadeadas por catadoras de materiais recicláveis por meio de uma pesquisa qualitativa, com o intuito de ter uma teoria do social a partir das narrativas dessas pessoas. A pesquisa aconteceu em uma associação de catadoras na cidade de Ceilândia, periferia do Distrito Federal, e teve como foco as mulheres, tendo em vista que essas se encontram em maior número. Nesse sentido, para este trabalho iremos nos referir a elas, por isso iremos usar a expressão catadoras. O interesse e a motivação pela temática advêm das experiências dos pesquisadores em estudos científicos e ações de extensão no tratamento das temáticas relacionadas à saúde e ao meio ambiente. Especialmente, fomos motivados pela vida potente e criativa dessas mulheres, que pertencem a uma classe trabalhadora de camadas populares da periferia urbana e encontram-se inseridas em uma lógica opressora, marcada pela informalidade, precarização e riscos à saúde.
Uma das características marcantes na natureza da ocupação das catadoras de materiais recicláveis é a informalidade (SILVA; GOES; ALVAREZ, 2013). As ocupações tidas como “informais” vêm ganhando relevância no mundo do trabalho exatamente porque têm sido acionadas como forma de produção preferencial do capital e não como escolha exclusiva das trabalhadoras (BOSI, 2008). As exigências para o acesso ao mercado formal e também o aumento do desemprego, direcionados pela organização produtiva, favoreceram o crescimento da quantidade de pessoas que vivem da atividade de catação dos recicláveis como forma de sobrevivência (MEDEIROS; MACÊDO, 2006). Sobre a informalidade, Cardoso e Guimarães (2018) encontraram-na no trabalho de diarista de mulheres da periferia urbana e compreenderam-na como a precariedade das condições de trabalho, falta de registros oficiais nas carteiras de trabalho, o que as deixa privadas de benefícios de seguridade social e medidas de proteção à saúde.
Além da informalidade, outra característica que marca a vida das catadoras é a precarização do trabalho. Essas mulheres desempenham um papel fundamental na cadeia produtiva, mas acabam sendo o elo mais frágil (ZANETI; SÁ; ALMEIDA, 2009). A catação de resíduos está inserida em dimensões da precarização do trabalho disfarçada de estratégia de sobrevivência, tendo em vista que a lógica de produção capitalista gera uma massa de trabalhadoras que são obrigadas a se sujeitarem a condições cada vez mais violentas de trabalho (ALVES; OLIVEIRA, 2013).
O cotidiano de trabalho dessa categoria apresenta riscos marcantes para a saúde humana, quais sejam, a lida com produtos químicos, biológicos, problemas físicos, ergonômicos e emocionais, além dos acidentes (GUTBERLET et al., 2013). Segundo Hoefel et al. (2013), esse tipo de atividade laboral gera um precário sustento e desencadeia processos de adoecimento que agravam a condição de vida. Dessa maneira, essas mulheres convivem cotidianamente com alguns adoecimentos como verminoses, leptospirose, dengue, meningite, dores no corpo, estresse, gripe, febre, alergia, náusea, infecções respiratórias agudas e infecções intestinais (BALLESTEROS; ARANGO; URREGO, 2012; DALL’AGNOL; FERNANDES, 2007; JÚNIOR et al., 2013).
Inseridas nesse cenário, as catadoras de materiais recicláveis estão vulneráveis a agentes de sofrimento, devido à precarização já mencionada e também à estigmatização e preconceitos que marcam essa ocupação (COELHO; BECK, 2016). Para Carmo e Guizardi (2018), vulnerabilidade representa múltiplas dimensões que incidem sobre os contextos de cidadãs que vivenciam o frágil ou nulo acesso aos direitos. Segundo Ayres et al. (2009), a noção de vulnerabilidade busca responder à percepção de que a chance de exposição das pessoas ao adoecimento não é a resultante de um conjunto de aspectos apenas individuais, mas também coletivos e contextuais. Nesse sentido, pode-se afirmar que essas mulheres vivenciam processos de vulnerabilização, pois ser vulnerável não é intrínseco à vida dessas mulheres, mas é produzido e fomentado, assim como as margens são estrategicamente produzidas pelo Estado de acordo com Kleinman, Das e Lock (1996). De acordo com esses autores, forças sociais como poderes políticos, econômicos e institucionais podem causar prejuízos à experiência humana, ao mesmo tempo que essas forças influenciam respostas a tais problemas. O processo de vulnerabilização é fomentado por forças difusas, que incluem o Estado e o capital, e esse mesmo Estado pode ser o lócus de possibilidade de pôr fim a esse processo.
Este artigo pretende ampliar essa discussão e apresentar as contribuições das Ciências Sociais no campo da saúde em discutir outras dimensões que fragilizam a vida das pessoas, como o racismo, o machismo e a exploração do trabalho. Além disso, pretende considerar a realidade de vida das catadoras, considerando-se o contexto dos sistemas de opressões vividos e sentidos por essas trabalhadoras, principalmente vivido pelas mulheres negras catadoras. Assim, faz-se necessário, para compreender a realidade desse grupo social, ter como chave analítica os marcadores sociais da diferença, isto é, as categorias de gênero, raça e classe, em uma perspectiva interseccional (CRENSHAW, 2004). Essa maneira de “olhar” permite revelar melhor o contexto social e o cuidado em saúde dessa classe trabalhadora.
Percebeu-se que, mesmo diante dos processos de vulnerabilização que estão inseridas, essas catadoras de materiais recicláveis apresentam maneiras de subversão da realidade, produzindo as suas próprias alternativas para o cuidado em saúde e o manejo da vida. As intelectuais negras Collins (2019) e Davis (2016) trazem ferramentas analíticas que auxiliam na compreensão das práticas de resistência a opressões vividas pelas mulheres negras para além de percebê-las como formas de sobrevivência. É esse, portanto, o percurso que será seguido neste artigo mostrar os sistemas de opressões vividos no cotidiano dessas trabalhadoras e como essas se reinventam para cuidarem de si e dos outros, familiares e amigas catadoras.
Além desses riscos de adoecimento, essas mulheres precisam ter seus direitos sociais garantidos enquanto trabalhadoras (VASCONCELOS; GUIMARÃES; ZANETI, 2018). Por conseguinte, apesar da relevância no aprofundamento dos riscos ocupacionais para a construção de intervenções em saúde, analisados pelo prisma da Epidemiologia e das Ciências da Saúde, esses riscos ocupacionais não serão o foco principal deste artigo, os quais já foram abordados em outros estudos (ALENCAR; CARDOSO; ANTUNES, 2009; ALMEIDA et al., 2009; BALLESTEROS; ARANGO; URREGO, 2012; HOEFEL et al., 2013; PORTO et al., 2004).
Nesse sentido, para compreensão da realidade dessas mulheres, considerou-se para este artigo, segundo Cecílio (2011), três dimensões da gestão do cuidado em saúde: as de caráter individual e familiar e a societária do cuidado. Essas dimensões envolvem o cuidado de si e dos outros, escolhas das terapias e dos percursos, apoio social que diz respeito às relações com os familiares, amigos e vizinhos e também as relações com o Estado na produção de políticas públicas e de saúde.
De acordo com Menéndez (2003), os processos sociais, econômicos e culturais possibilitam o desenvolvimento de diferentes formas de atenção a partir das necessidades e possibilidades dos diferentes grupos sociais. Aqui enfatizamos a dimensão popular dessa atenção, nos termos de Silva e Guimarães (2020, p. 23), sistemas de atenção popular articulam significados simbólicos, práticas/saberes que atuam em instituições sociais, familiares, suportes dos serviços de saúde e modelos de interação pessoal específicos. Esses sistemas se dinamizam por meio de redes sociais acionadas em contextos populares reunindo familiares, vizinhos, colegas de trabalho e profissionais de saúde. Constatou-se no campo que as catadoras produzem formas e maneiras de cuidarem de si e dos outros (familiares, amigos e vizinhos), especialmente coletivas. Essas possibilidades agem atendendo a suas necessidades em saúde e sofrimento.
Articulando uma rede de sociabilidades, essas trabalhadoras apontam para os elementos da lida cotidiana na produção do cuidado em saúde, das relações com a rede de apoio social e organização social, demonstrando que o processo saúde-adoecimento efetivamente tem caráter histórico e social (LAURELL, 1982). Entende-se, de acordo com Ayres (2004), que o cuidado em saúde também é um constructo filosófico, pois tem dado sentido às ações de saúde nas diversas situações em que se envolvem uma ação terapêutica, havendo, assim, uma interação entre duas ou mais pessoas, visando ao alívio de um sofrimento ou o alcance de um bem-estar, sempre mediada por saberes, valores, epistemes, especificamente voltados para essa finalidade.
Delineando o campo e práticas metodológicas
Esta investigação se configura em uma pesquisa qualitativa que busca as narrativas, conceitos e valores das entrevistadas, o que permitiu construir uma teoria do social a partir da perspectiva dessas mulheres. De acordo com Minayo (2010), essa abordagem metodológica interpela as pessoas e o seu modo de atuação em determinado contexto social. No caso, revela o contexto de uma associação de catadoras, sediada na cidade de Ceilândia, periferia do Distrito Federal, que trabalham num galpão de triagem cedido pelo governo distrital. A associação funciona no local há aproximadamente 16 anos, foi criada em abril de 2004. Na época da sua fundação, contava com 79 trabalhadoras. Hoje, conta com 66 trabalhadoras (28 homens e 38 mulheres).
Dessa maneira, para compreensão do contexto de vida dessas mulheres, diante da singularidade das catadoras, recorreu-se à abordagem etnográfica. Segundo Nakamura (2011), a abordagem etnográfica caracteriza-se pela descrição aprofundada dos fenômenos e pela sua observação minuciosa. Essa abordagem é pautada pelo o olhar, ouvir e o escrever (OLIVEIRA, 1996). Nesse sentido, esta pesquisa combinou técnicas da etnografia, como entrevistas semiestruturadas, conversas informais, observação participante e anotações em diário de campo com o intuito de capturar as narrativas dessas mulheres (MINAYO; DESLANDES; GOMES, 2012).
O campo aconteceu no galpão de triagem e teve início em 2015, quando, entre os meses de outubro de 2015 a fevereiro de 2016, foram realizadas visitas para negociação até a imersão na realidade das trabalhadoras. O espaço destinado ao trabalho, à alimentação e ao descanso foram os locais privilegiados do campo, oportunizando os primeiros encontros e a observação. As visitas eram realizadas durante o turno diurno (7h às 15h), com duração aproximada de três horas e pelo menos um dia na semana. No espaço da associação, trabalhavam 15 pessoas, ressalta-se que o galpão era utilizado por outra associação de catadoras e também pelos/as grupos/pessoas atravessadores/as. Esta pesquisa contou com a participação da associação que mostrou maior interesse no estudo e pela maioria expressiva das catadoras serem moradoras de Ceilândia (DF). Após esse período inicial mais intenso de pesquisa, projetos de extensão foram desenvolvidos e continuamente estamos em contato com as catadoras.
Foram entrevistados dez trabalhadores (6 mulheres e 4 homens), algumas informações relevantes do perfil sociodemográfico das participantes estão apresentadas abaixo (Quadro 1). As entrevistas gravadas decorreram do consentimento das catadoras, combinando perguntas abertas e fechadas. Com isso, buscou-se o diálogo entre as participantes e os pesquisadores, sendo em seguida transcritas e analisadas seguindo as unidades de significados (MINAYO; DESLANDES; GOMES, 2012). Algumas questões orientaram as conversas e foram disparadoras para interação, como: a noção de saúde, o cuidado em saúde individual e coletivo, os problemas enfrentados na lida cotidiana e as experiências com o acesso aos serviços de saúde.
As participantes foram convidadas seguindo o critério de amostra intencional, por meio do recurso snow-ball, o qual uma catadora indicava outra para ser entrevistada, sendo que a primeira indicação partiu da presidente da associação. Destaca-se que caso a indicada não aceitasse participar, outra catadora era indicada, algumas pessoas não quiseram participar das entrevistas, entretanto, foram atoras participantes nas observações do ambiente durante as visitas ou no momento das conversas informais que mantiveram com os pesquisadores. As anotações e percepções desses momentos foram registradas e posteriormente analisadas no diário de campo.
Quadro 1- Perfil das trabalhadoras catadoras entrevistadas
Nome |
Idade |
Cor/ |
Tempo |
Escolaridade |
Cidade/ |
Maria |
36 |
Parda |
22 anos |
Fundamental incompleto |
Jacobina - Bahia |
Carla |
25 |
Parda |
8 anos |
Médio completo |
Luzilândia - Piauí |
Rita |
23 |
Parda |
5 anos |
Fundamental incompleto |
Ceilândia – DF |
Luís |
18 |
Pardo |
1 ano |
Médio incompleto |
Irecê - Bahia |
Ingrid |
30 |
Parda |
10 anos |
Fundamental incompleto |
Barro Duro - Piauí |
Sara |
29 |
Parda |
8 anos |
Fundamental incompleto |
Tuntum - Maranhão |
Aparecida |
30 |
Parda |
6 anos |
Fundamental incompleto |
Irecê - Bahia |
José |
25 |
Pardo |
2 anos |
Fundamental incompleto |
Irecê - Bahia |
João |
35 |
Negro |
5 anos |
Fundamental incompleto |
Jacobina - Bahia |
Paulo |
27 |
Pardo |
1 ano |
Superior incompleto |
Luzilândia - Piauí |
Fonte: elaboração própria.
As informações sociodemográficas corroboram a realidade das catadoras presentes na literatura, caracterizando-as por: inserção no mundo do trabalho antes da maioridade, poucas trabalham com vínculo empregatício, e a maioria sem direitos trabalhistas assegurados, baixa escolaridade, predominância de pessoas da cor negra ou parda e histórias de migração (GALON; MARZIALE, 2016; VASCONCELOS; GUIMARÃES; ZANETI, 2018). A renda oriunda do trabalho de catação variava entre um e dois salários mínimos por mês. Elas não viam a necessidade de terem outra renda, apenas uma catadora afirmou receber auxílio do “Programa Bolsa Família” e outro catador fazia bicos. Destaca-se que todas trabalharam durante a infância, as mulheres, geralmente em casas, como empregadas domésticas ou diaristas, e os homens em serviços da construção civil, agricultura ou pecuária.
Por fim, em relação às considerações éticas do estudo, os nomes das entrevistadas e de seus familiares citados nos relatos foram modificados.
Trazendo narrativas, cenários e pessoas: saúde e o mundo do trabalho
A natureza social da doença não se verifica no caso clínico, mas no modo característico de adoecer e morrer nos grupos humanos, mostrando as dimensões sociais e econômicas no processo saúde-adoecimento (LAURELL, 1982). Esse paradigma apoia-se na perspectiva contextual e social do adoecimento, ao contrário do modelo teórico-conceitual hegemônico da biomedicina, o qual se baseia no entendimento da saúde como meramente a ausência de doenças, enaltecendo especificamente os fatores biológicos do corpo (SANTOS; WESTPHAL, 1999). A partir de tal perspectiva social, cabe “olhar” para a compreensão crítica dos contextos de opressões vividos pelas trabalhadoras.
A vida das catadoras de materiais recicláveis é marcada pela exclusão social ou pela inclusão perversa (ALVES; OLIVEIRA, 2013; BOSI, 2008). As precárias condições de vida e trabalho dessas mulheres colocam-nas em uma situação extremamente prejudicial à saúde (PEIXOTO et al., 2015). Suas vidas precarizadas e vulnerabilizadas refletem as desigualdades estruturais da sociedade capitalista.
As percepções das entrevistadas sobre a noção de saúde trazem reflexões sobre o excesso de submissão ao trabalho e à saúde como parte essencial da realização de suas atividades laborais. Como elas relataram: “Ter saúde hoje é principal porque se não tiver saúde como é que vai trabalhar?” (Carla). “A gente doente não tem como trabalhar, não ganha, ter saúde é tudo né” (Rita). “Pra mim é se sentir bem, tá bem, ajuda no dia a dia e até com o trabalho também” (Luís).
Pode-se afirmar que essa narrativa, no dizer de Antunes e Praun (2015), refere-se à exploração sem limites da força de trabalho, exprimindo as contradições estruturais desse contexto de trabalho que, ao mesmo tempo em que não pode prescindir do trabalho vivo para sua reprodução, necessita explorá-lo ao extremo. Segundo Medeiros e Macêdo (2006), o trabalho das catadoras de materiais recicláveis apresenta um paradoxo, ao mesmo tempo é fonte de subsistência e de sofrimento. Contraditoriamente, não são as catadoras que negam essa relação do seu trabalho com os danos provocados a sua saúde, mas a própria estrutura da desigualdade onde elas se inserem que as submete à exploração. E, assim, os adoecimentos e seus sintomas do cotidiano da catação precisam ser negados ou apagados, pois devem trabalhar e manter sua renda (PORTO et al., 2004). Como explicam as catadoras: “(..) Assim é perigoso ainda essa seda mesmo a gente fura o dedo porque vem agulha” (Aparecida).
“[...] estamos cobrando, porque para as mulheres é difícil infecção urinária e outras infecções até piores a gente pega também. A gente já pediu solicitação para Valor Ambiental para arrumar, eles só vêm, tiram foto e nada, até hoje o banheiro está lá do mesmo jeito. Aí pedimos pra fazer um aqui dentro do galpão, disse que não pode, aí esse dia trouxe a CAESB pra ver se dar pra puxar um cano de esgoto aqui pra gente, porque desse jeito não dar, porque tá tendo muita doença mais de acordo com o banheiro.” (Rita).
“(...) em relação ao respiratório, porque a gente trabalha em um ambiente contaminado, em relação ao contato com material que pode pegar alguma bactéria, alguma doença relacionada à seda que a gente trabalha mesmo aqui, em relação a isso traz.” (Paulo).
De acordo com Antunes e Alves (2004), constata-se na classe trabalhadora, no século XXI, um processo de perda significativa de direitos e de sentidos, em sintonia com o caráter destrutivo do capital vigente. Algumas classes de trabalhadores têm essa situação agudizada, caso das catadoras de materiais recicláveis. Essa modalidade de trabalho é caracterizada por uma renda muito baixa, além da não garantia ao acesso a direitos sociais e trabalhistas básicos, como: aposentadoria, FGTS, auxílio-doença, licença-maternidade; se ficarem doentes, são forçadas a parar de trabalhar, perdendo integralmente sua fonte de renda (ANTUNES, 2014).
A precarização das relações de trabalho sempre esteve presente na vida das catadoras, variando apenas o universo das modalidades do trabalho informal. Assim, elas vivem numa lógica à margem da sociedade, tanto relacionada ao trabalho quanto às questões sociais (VASCONCELOS; GUIMARÃES; ZANETI, 2018). Inicialmente, inserem-se no universo da catação pelas dificuldades do ingresso no mercado formal, pelo desemprego e pela necessidade de sobrevivência (FERRAZ; GOMES; BUSATO, 2012).
Essas mulheres permanecem por muito tempo nesta atividade sem vislumbrar perspectivas de melhores condições de trabalho (ALMEIDA et al., 2009). Como observado no campo, em relação ao tempo de catação exposto no Quadro 1, muitas permanecem por vários anos nessa atividade. Poucas tiveram trabalho com “carteira assinada”. Nesse contexto, o desemprego apenas explicita e problematiza, no plano da demanda, a condição de vendabilidade da força de trabalho (ALVES, 2005).
A catação em uma associação está relacionada com a flexibilidade, entendida como uma liberdade no trabalho, e isso foi ressaltado pelas entrevistadas como positivo, ao avaliarem as mudanças ocorridas em comparação às atividades laborais exercidas anteriormente, especialmente, devido ao fato de não gostarem de receber ordens de patrões, apontando que na catação não tinha tais cobranças patronais. Essa percepção corrobora os achados de uma revisão da literatura, em que as catadoras de materiais recicláveis também expressaram esse mesmo sentimento da flexibilidade como ponto positivo relacionado ao trabalho na catação (COELHO; BECK, 2016). Como nos diz uma catadora:
“Ah, melhorou foi muito porque doméstica é outra coisa trabalha mais ainda aqui já é um trabalho assim que não é muito essas coisas mais a gente trabalha para nós mesmos pode se dizer, né. O que eu achei bom foi isso [...] Na casa de família tem muita pessoa que cobra, é isso e aquilo, aquilo e isso, aqui não é tanto igual uma casa de família, né, aí aqui já sabe o nosso dever direitinho, lá a gente sabe na casa de família, mas sempre tem a pessoa pode falar “não é isso, saiu daquele jeito aqui, não é tanto assim também” [...]. Aqui é a gente já sabendo o jeitinho que a gente trabalha como é que é não precisa a pessoa ficar em cima, né, trabalhando direitinho, né, não tem reclamação. ” (Ingrid).
Apesar de as catadoras entenderem que estão inclusas em um trabalho dotado de maior flexibilidade em suas vidas, ainda assim estão submetidas a uma lógica de exploração. Elas trabalham na mais precária situação devido à insalubridade da atividade de catar e coletar o material, irregularidade do ponto de vista da legislação trabalhista e injustiça sob o ponto de vista das condições de vida. Dessa forma, embora a natureza do seu trabalho ainda não possa ser substituída pelas máquinas, a qualquer momento um catador pode ser facilmente substituído por outra pessoa seguindo a mesma ideia da flexibilização. Esse cenário revela a expansão do trabalho precarizado, parcial, temporário, terceirizado, informalizado, além de enormes níveis de desemprego, de trabalhadoras desempregadas (ANTUNES, 2005). Assim, elas afirmam:
“Mais pra frente se eu ver que as coisas, pode ser que as coisas melhora mais de emprego, aí eu posso, não sei né, não posso sair porque a coisa está feia né. O desemprego tá grande né, você arrumar um emprego fichado hoje em dia pra ganhar bem é difícil, é meio difícil, é complicado.” (José).
As catadoras recebem o salário de acordo com a produção coletiva, ou seja, recebem mais se há um maior número de materiais coletados, reciclados e vendidos para os atravessadores, a preços mais baixos do que o ofertado para as indústrias. Para as autoras Zaneti, Sá e Almeida (2009), essa catadoras entram no sistema hegemônico em uma relação de ultraexploração e quase marginal, ficando com a menor remuneração da cadeia de transformação do resíduo em matéria-prima. Assim, percebe-se, com os apontamentos teóricos de Antunes (2005) e Alves (2005), que, na verdade, essas trabalhadoras encontram-se numa lógica maior de um sistema de opressão em suas vidas, restando a elas desempenharem este trabalho.
Em relação à divisão do trabalho pelo viés do gênero, as mulheres eram maioria expressiva no contexto da associação participante e elas também ocupavam um espaço significativo na categoria. O estudo feito pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada, Ipea (SILVA; GOES; ALVAREZ, 2013), uma das pesquisas mais detalhadas sobre o tema, analisou a situação social das catadoras e dos catadores, em que os homens representavam 68,9%, em contraste a 31,1% das mulheres, sendo que a participação de negras e negros representava 66,1% do total. Entretanto, Cherfem (2016), no seu estudo publicado também pelo Ipea, problematizou que o detalhamento, a partir do censo do Ipea divulgado em 2013, gerou forte reação entre as catadoras em relação a divergências de algumas informações, principalmente no mais contestado por elas, o domínio de distribuição de gênero. A percepção do trabalho cotidiano do Movimento Nacional de Catadores de Materiais Recicláveis (MNCR) indicava que acontecia exatamente o inverso. Estudos empíricos fortalecem a visão do MNCR, mostrando a grande quantidade de mulheres na atividade de catação Porto et al. (2004), Almeida et al. (2009) e Hoefel et al. (2013), assim como também se constatou neste estudo.
As mulheres catadoras ocupam a margem mais precária e mais desgastante na cadeia produtiva da catação/reciclagem (RIBEIRO; NARDI; MACHADO, 2012). As catadoras não têm acesso aos direitos sociais básicos, como creche, educação, saúde, o que acaba prejudicando ainda mais a situação da trabalhadora, aumentando sua opressão e exploração (ROSA, 2014).
Segundo as tendências da reestruturação produtiva do capital abordadas por Antunes e Alves (2004), trata-se do aumento significativo do trabalho feminino, principalmente em funções precarizadas e desregulamentadas, destacando uma diferenciação entre homens e mulheres na questão salarial, onde os homens, mesmo desempenhando a mesma atividade, possuem salários melhores que as mulheres. Destaca-se que esse caso não se aplica à realidade das catadoras, pois os salários são os mesmos, embora existam outras diferenciações iniciais observadas no campo desta pesquisa que marcam uma intensa lida cotidiana no mundo do trabalho da mulher negra catadora como: o machismo e o assédio sexual no próprio ambiente de trabalho, os desafios para o cuidado com os filhos, a luta pelos direitos sociais básicos, ausência de um ambiente adequado para o trabalho e os períodos trabalhados durante e até o fim das gestações.
Os elementos apresentados se tornam mais críticos quando se percebe que a maioria das catadoras são mulheres negras como visto no Quadro 1 e no estudo do Ipea (CHERFEM, 2016). De acordo com Marcondes et al. (2013), as mulheres negras configuram o segmento que mais sofre com o racismo e machismo, pois são as últimas a se inserirem no mercado de trabalho. Para Crenshaw (2004), as mulheres negras não têm condições de concorrer adequadamente no mercado em decorrência dos poucos empregos disponíveis, assim tendem a ser mulheres socialmente marginalizadas.
O dossiê publicado pelo Ipea, sobre as condições de vida das mulheres negras no Brasil (MARCONDES et al., 2013), aponta para o fato de que ser mulher aumenta a dificuldade em se inserir no mercado de trabalho e caso essa mulher seja negra as dificuldades são ampliadas. Segundo Crenshaw (2004), para o reconhecimento das experiências das mulheres negras, as categorias raça e gênero não podem ser enquadradas separadamente, pois, a partir da realidade da mulher negra, o peso combinado dessas duas estruturas marginaliza as mulheres que estão na base da pirâmide socioeconômica. Em relação ao mercado de trabalho, as questões de raça, gênero e classe não devem ser ignoradas, assim como em outras dimensões da vida social, conforme afirmam as intelectuais negras (HOOKS, 1995; DAVIS, 2016; CRENSHAW, 2004). Contraditoriamente, os estudos que abordam os riscos e danos à saúde dessa classe trabalhadora, com o viés do ambiente de trabalho, não abordam as perspectivas apresentadas pelas intelectuais negras citadas.
Processos de vulnerabilização das mulheres catadoras
Os marcadores interseccionais de gênero, raça e classe marcam a vida das mulheres negras catadoras, deixando-as em condições mais vulneráveis, pois estão inseridas em um contexto de trabalho precário, ainda mais quando são responsáveis por todos os cuidados com a casa e os filhos (SILVA, 2014). A lógica produtiva do mundo do trabalho e as questões de gênero, raça e classe afetam diretamente o contexto de saúde da classe trabalhadora de catadoras de materiais recicláveis.
Para a intelectual negra Collins (2019), a dinâmica do trabalho surge para as mulheres negras como uma forma de opressão, violência e controle, pois, historicamente, o trabalho serviu como uma ferramenta de exploração de seus corpos. Seguindo o argumento dessa autora, as mulheres negras, na infância, já executam o trabalho não remunerado doméstico e, como visto no caso das catadoras, também exercem trabalhos remunerados precarizados nessa fase da vida. Por essa razão, o trabalho vivido pelas mulheres brancas abarca uma outra lógica quando comparado ao universo das mulheres negras, por exemplo, podem alcançar melhores empregos via educação e melhores salários. Em contrapartida a isso, as mulheres negras devem trabalhar para ajudar no sustento da família.
As mulheres negras vivem uma luta diária dicotômica entre o trabalho não remunerado do espaço privado do lar, no cuidado com os filhos e os afazeres domésticos, e o trabalho assalariado precarizado em vários momentos dos seus ciclos de vida, como dito por uma catadora: “É a rotina do dia a dia né, a gente cansa... serviço, casa, menino. A gente se sente cansada. Tem uma hora que o corpo da gente cansa né?” (Sara).
Collins (2019) e Davis (2016) auxiliam na compreensão da vida das catadoras, ao mostrarem que os homens compartilham poucas responsabilidades ou nenhum compromisso com a casa e a família, assim as mulheres negras se intitulam pai e mãe ao mesmo tempo, mostrando um complexo cenário da desigualdade de gênero e raça. Exige-se que essas mulheres sejam fortes o tempo todo, naturaliza-se a criação dos filhos e violenta-se seus corpos. Segundo Davis (2016), uma das dimensões de opressão de mulheres negras é a forma específica com que o trabalho dessas mulheres é historicamente explorado para a construção e manutenção do capitalismo. As catadoras explicam que:
“Então estressa, você chega, ainda mais no caso da mulher... a mulher ainda chega em casa e tem que cuidar da casa, o homem não, o homem chega em casa, sentou e pronto. Tomou banho, sentou e pronto. Mulher não. A mulher ainda vai cuidar da casa, sabe que quando chegar tem que... é obrigada a fazer comida, cuidar de criança, essas coisas, é cansativo. Então já sei o que vai acontecer amanhã: vou trabalhar, vou chegar e vou ter que arrumar a casa. A gente já fala aqui “nossa, hoje é dia de lavar roupa” “eu também”... aí a gente já sabe a nossa rotina” (Rita).
“Então ela... aí esse outro eu perdi com 13 mesmo. Esse, esse... uma menina. Uma menina que tive com 13 anos. Aí vim de lá pra cá buchuda. Aí a gente morava em um albergue. Aí meu marido tava brigando, tava brigando lá e eu fiquei com muito medo e assustada, porque ele tava com a tesourinha, pronto, vai me matar, vai matar, vai matar. Ficava só gritando. Aí me assustei, buchão já, tava com 8 meses. Aí senti aquele bolo virando na minha barriga assim, virando. Aí nem liguei também. Cacei água lá pra beber, não tinha. [...]Aí depois de uma semana também, eu senti dor, muita dor, muita dor mesmo, muita, muita, muita. Aí quando eu cheguei lá no hospital, aí olharam o coração, tentaram escutar o coração de todo jeito lá e não acharam o coração dela. Aí me largaram lá também, jogada lá. Aí veio um médico lá, aí estourou a bolsa, aí já tava morto, morto. Aí veio o médico “o bebê já tá morto tem uma semana, tem uma semana que ele tá morto aí dentro.” (Maria).
As desigualdades sociais estruturais marcam o contexto das mulheres negras brasileiras. As ocupações e relações de trabalho informais figuram como outro marco social, enraizado no seu cotidiano, da precarização da vida humana (COLLINS, 2019; DAVIS, 2016). A situação de violência de gênero amplia a vulnerabilidade das mulheres catadoras. Muitas vivem em um contexto conturbado de violência sobre seus corpos, que as subjuga. Alheias a uma efetiva ação dos órgãos públicos, reinventam-se diante das violências vivenciadas de acordo com os seus relatos em ambientes domésticos, hospitalares ou no próprio trabalho (VASCONCELOS, 2016).
Entre as catadoras, constata-se um contexto de violência doméstica; das seis mulheres entrevistadas, cinco relatam terem sido agredidas por seus companheiros, sendo que duas ainda convivem com os agressores e algumas delas ainda trabalham no mesmo espaço que eles. Em um dos casos de violência, uma delas se culpa por ter sofrido a agressão, explica que quando consome bebida alcoólica provoca confusão com o marido, e esse fato a fez diminuir o consumo de bebida alcoólica. Após ter vivido quatro agressões físicas, quando perguntada se essa estratégia teria resolvido o problema, ela afirma que sim. Nesse caso relatado, os vizinhos denunciaram o companheiro, embora ela nunca tenha procurado a delegacia para registrar o boletim de ocorrência por medo de o marido ser preso, como relatado nas seguintes narrativas: “[...] não, mas fui espancada pelo esposo. Batia, batia nele, era uma confusão. ” (Carla).
“Eu e meu marido, a gente já se pegou no boxe [...] uai, o policial foi bater lá, aí eu falei que era mentira. Porque se eu falasse que era verdade, Deus me livre, ia prender ele. (..) aí ele falou “não, isso é mentira, não é verdade não [...] Ele me agrediu depois de nós separados [...] eu fiz uma ocorrência, deu 3 ocorrências seguidas em menos de 15 dias... ele me agrediu né, 3x, menos de 15 dias ele me agrediu. ” (Sara).
No âmbito dos direitos reprodutivos, casos de mortalidade fetal marcam a vida dessas mulheres. Uma catadora relata que perdeu uma criança devido à violência física provocada pelo seu ex-companheiro: “Aí foi, ele me bateu, fui lá no hospital e lá perdi o bebê. Só que lá no hospital não falei que foi agressão. [...] é, podia ser preso. Aí também não falei não, falei que tinha levado uma queda” (Sara).
Diante da problemática das mulheres estarem desamparadas de ações e intervenções estatais que tratem do enfrentamento à violência contra a mulher, especialmente, as catadoras aparentemente já se encontram em uma condição de normalização da violência. Essas mulheres contam com sua rede de apoio social, que é acionada quando necessitam. Assim, os vizinhos, as amigas catadoras e a igreja cumprem o papel de suporte, sendo formas de agenciamento do cuidado de si. Os vizinhos denunciam, quando o fato ocorre perto das residências, as amigas catadoras compartilham experiências, sentimentos e trocam afeto, cuidam das angústias e desejos dessas mulheres e a igreja significa a transformação social e a salvação. Desse modo, percebe-se que, no contexto patriarcal e da desigualdade de gênero, essas mulheres desencadeiam a vivência de práticas de cuidado, especialmente, a partir dessa rede de cuidado, que tem como um elemento importante outras mulheres, catadoras e vizinhas, que trocam experiências entre si. Mulheres negras enfrentam a desigualdade e a violência, principalmente, acionando uma rede de cuidado entre mulheres (COLLINS, 2019; DAVIS, 2016).
As dificuldades do acesso aos serviços de saúde do SUS: as experiências relacionadas à assistência e à rede popular de compartilhamento do cuidado
O Sistema Único de Saúde (SUS) aumentou o acesso ao cuidado com a saúde para uma parcela considerável da população brasileira em uma época em que o sistema vinha sendo progressivamente privatizado (PAIM et al., 2011). O artigo 196 da Constituição Federal de 1988 diz: “Saúde é direito de todos e dever do Estado, garantido mediante políticas sociais e econômicas que visem à redução do risco de doença e de outros agravos e ao acesso universal e igualitário às ações e serviços para sua promoção, proteção e recuperação”. Entre os princípios e diretrizes doutrinários do SUS estão a universalidade, integralidade e equidade. As catadoras, contudo, trazem em suas narrativas a desassistência em saúde, ocasionada pela dificuldade de acesso e o péssimo cuidado em saúde prestado pelos profissionais de saúde, marcado aqui pelo racismo e machismo.
De acordo com Goes e Santos (2014), a população negra, sobretudo as mulheres negras, é colocada em uma situação de desvantagem e vulnerabilidade no acesso aos serviços de saúde, assim como de violência, violação e negação à vida. O SUS, como política social, deveria ser estratégia para minimizar as mazelas que afetam a lida cotidiana dessas trabalhadoras pela sociedade capitalista. No entanto o que se observa ainda é a organização desse serviço voltada para atender aos interesses do capital, tendo em vista que está concentrado em centros urbanos e em hospitais e apresenta melhor qualidade de atendimento e acesso à população mais rica.
Em relação ao atendimento das necessidades de saúde dessa população, que vive nas margens, seria fundamental o fortalecimento da Atenção Básica em Saúde (ABS), assim como o aumento da cobertura Estratégia Saúde da Família (ESF), que atuariam nas perspectivas da promoção da saúde e prevenção de doenças, devendo incluir, nos espaços de atuação dos serviços de saúde, as associações e cooperativas de catadoras. Os autores Alencar, Cardoso e Antunes (2009) revelam a necessidade de ter as Unidades Básicas de Saúde (UBS) ativas nos territórios onde possuem associações ou cooperativas, preparadas para o atendimento de demandas provenientes dessas trabalhadoras. No caso em tela, as catadoras revelam as dificuldades que encontram para o acesso aos serviços de saúde no território, preferindo, às vezes, até se endividarem para acessarem a atenção à saúde privada: “É frustrante, né, que o atendimento é muito precário, falta médico, a fila é imensa, as pessoas estão lá desde cedo e não é atendido” (Paulo). “Moço, nunca fui em nenhum hospital, nenhum aqui não, uma vez eu fui não deu certo, nunca mais eu fui. Agora se tiver dinheiro é particular, agora tudo é pagando, ou paga ou não é atendido, o capital é, você tem que ter dinheiro que se adoecer é mal” (José).
Devido à precarização do trabalho, essas catadoras convivem cotidianamente com dores musculares, problemas respiratórios e gastrointestinais. Com isso, se automedicam e não costumam fazer consultas de rotina para a avaliação e a manutenção da saúde. Ao mesmo tempo que os serviços de saúde deveriam dar esse suporte à saúde, as experiências que carregavam desses causava maior frustação e estresse: “Deus é mais (risadas) Pra quê? Pra você vim mais doente? É raro ir no médico, porque quando eu preciso eu não sou atendida e quando eu sou atendida é uma guerra, tem que brigar” (Maria).
Uma das contradições era que a unidade de saúde funcionava no mesmo horário de trabalho na associação, dificultando, assim, a disponibilidade e o tempo para pleitearem uma consulta ou informações. Como relatado por uma catadora: “Não, o posto de saúde, meu fi, pelo amor de Deus, fala em posto não, eu fui pra marcar um exame, eu fui 2h da manhã eu aqui ٢h da manhã e é longe” (Maria).
Embora recorressem ao sistema de saúde privado quando necessitavam de exames ou consultas, quando envolvia uma situação mais complexa, retornavam ao SUS, pois não tinham condições financeiras para pagarem por todo o atendimento. Com isso, ficavam perdidas a respeito do que deveria ser feito e onde conseguiriam atendimento para resolução dos seus problemas de saúde. Enfatizavam que a procura por atendimento médico somente ocorria quando a doença ou agravo era considerado grave por elas ou quando a necessidade acometia os seus filhos. Além das dificuldades de acesso, que mostram a omissão do Estado, as catadoras questionavam a qualidade da assistência à saúde prestada pelos profissionais de saúde, ao mesmo tempo que mostravam esse contexto violento nos corpos negros femininos. No momento do parto, todas as mulheres catadoras tinham relatos desumanos referentes à assistência obstétrica prestada no SUS, deixando marcas de um contexto de violência institucional em suas vidas: “Eu ganhei ela praticamente sozinha... ela saiu sozinha, faltou eu segurar... Só eu e Deus. Até a médica falou: “esse foi o verdadeiro parto humanizado, você teve sozinha” (Rita).
“Ah, a médica nem ligou. Ficou foi brigando lá porque eu tava gritando. Porque doi tanto que eu não consegui suportar, foi inexplicável” (Carla).
“Não, me largou lá sentindo dor até... quando viu que já tava nascendo a menina morta ainda... eu sozinha no quarto... aí viram que tava nascendo e tiraram a menina e pronto” (Maria).
Diante de todo esse contexto, elas agenciam os seus próprios percursos de cuidado, associando maneiras para lidar com os seus problemas e resistir à ausência de direito à saúde pública em suas vidas. Para lidarem com as doenças consideradas não graves, especialmente, aquelas que estão intrínsecas ao cotidiano da catação, como a diarreia, os resfriados e as dores no corpo, buscam práticas populares de cuidado como chás caseiros e massagens. Essas práticas fazem parte das formas de cuidar de si e dos familiares, constituem-se como melhores alternativas, mais do que ir até os estabelecimentos de saúde em busca de atendimento, sendo a farmácia local da comunidade onde vivem o primeiro estabelecimento ao qual elas recorrem para o cuidado.
“Esses dias deu uma tal de dor de barriga aqui na gente e aí a gente toma chá, toma sorrisal” (Maria). “Quando tá com alguma dor nas costas chama os meninos pra fazer massagem (risos) porque aqui também dar muita dor na coluna, dor nas pernas, é muito difícil porque a gente trabalha em pé” (Aparecida).
Com base na narrativa acima, podemos dizer que, quando a doença é interpretada e a sua dimensão social é reconhecida, deve-se identificar quais ações são construídas socialmente e não de maneira individual e quais interações sociais são de extrema relevância para se estudar os cuidados em saúde (LEITE; VASCONCELLOS, 2006). As interações sociais levam ao compartilhamento de experiências de saúde popular que é o cuidado com a saúde que não representa o discurso oficial, mas nem por isso o nega ou o exclui (FLEISCHER; TORNQUIST; MEDEIROS, 2009).
As relações sociais contribuem para o compartilhamento de formas de cuidado à saúde e dinamizam práticas populares de autocuidado. Neste rumo, as catadoras descobrem as terapias a partir do convívio social com suas colegas de trabalho, vizinhas e familiares. Daí a saúde popular constitui um repertório de ações dentro dos itinerários terapêuticos, individuais e coletivos, que fazem sentido para elas, e é uma alternativa escolhida como complemento e não a única alternativa diante da falta de outras, como geralmente se supõe. Essas formas de cuidado passam a funcionar quando são agenciadas pelos sujeitos, dependem delas para serem acionadas e passam a fazer sentido quando elas passam a ter autonomia e “agência”. Algumas demonstram o que aprenderam com os seus familiares: “Eu aprendi com a minha mãe, chá de erva-cidreira, capim santo, chá de banana de cheiro, são bons pra barriga e de sete dor, boldo amargo e ferro de boi, tomo pra dor” (Maria). “Desde a Bahia que eu sei, mel de aurora com limão e alho é bom” (José).
As dificuldades do acesso às políticas públicas de saúde e as experiências frustrantes com os serviços ofertados deixam-nas desamparadas pelo Estado. Essa situação complexa das catadoras não é presente somente na realidade brasileira. Ballesteros, Arango e Urrego (2012) problematizam também a situação precária do trabalho das catadoras em Medellín, Colômbia, demonstrando os riscos e a ausência do Estado. Gómez-Correa, Agudelo-Suárez e Ronda-Pérez (2008) em pesquisa com catadoras em Medellín apontam para a necessidade de um sistema sanitário público na Colômbia, observando os problemas de acesso aos serviços de saúde e as barreiras sociais e econômicas existentes para esse grupo social. Embora no Brasil haja o SUS, essa população não consegue atenção à saúde, assim como as tecnologias de cuidado dos serviços públicos não a alcança, revelando a necessidade de aprimoramento dos serviços e discussão sobre o racismo institucionalizado.
Considerações finais
As práticas de cuidado desencadeadas por catadoras de materiais recicláveis devem ser entendidas no contexto de vida dessas mulheres, o qual revela estruturas de desigualdades que marcam seus corpos e suas vidas. Ser mulher, negra, da periferia e catadora configuram-se em marcadores sociais que pesam em suas condições de trabalho. O próprio oficio da catação revela dimensões de uma classe trabalhadora fragilizada pela precariedade, informalidade, com altos riscos de adoecimento, estigmatização e vulnerabilização.
Ao longo deste artigo foi possível ver as reflexões dessas mulheres sobre seu contexto de vida e a produção de uma teoria do social. Inseridas nas margens e marcadas por violência, essas mulheres acionam redes de cuidado, especialmente de mulheres no cuidar de si. Ao acionarem essa rede, subvertem a situação de opressão em que se inserem, elas produzem suas próprias tecnologias alternativas de enfrentamento do cotidiano relacionadas ao que é sentido e é vivido no seu dia a dia. Destaca-se que as estratégias de busca do cuidado perpassam o campo das práticas populares, tornando-se o primeiro acesso a medidas para tentar solucionar os problemas relacionados à saúde. Fazer parte de uma associação, recebendo como todos e sem responder a um patrão, traz uma sensação mais aprazível a essas mulheres que constroem um contexto de trabalho com mais autonomia, mesmo elas estando cientes da situação de exploração de toda uma rede de reciclagem que ainda as situa no elo frágil. Como Cardoso e Guimarães (2018) enfatizaram para as trabalhadoras diaristas, algo semelhante se replica no contexto das catadoras, unindo essas mulheres periféricas: “Nas margens do Estado e de seus direitos como cidadãs e vivendo sob o jugo do racismo, machismo e desigualdade de classe, resta a essas mulheres criarem estratégias de cuidado, em uma rede de apoio marcada pelo feminino subvertendo a subalternização de suas vidas” (2019, p. 224).
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Recebido em 28/03/2020
Aceito em 16/09/2020
TERCEIRIZAÇÃO E INTERMEDIAÇÃO
DE TRABALHO TEMPORÁRIO NAS PARADAS DE MANUTENÇÃO:
o caso da Companhia Siderúrgica Nacional em Volta Redonda (RJ)*
OUTSOURCING AND INTERMEDIATION
OF TEMPORARY WORK AT MAINTENANCE STOPS:
the case of Companhia Siderúrgica Nacional in Volta Redonda (RJ)
__________________________________
1Marcio Moises de Souza Barbosa**
Raphael Jonathas da Costa Lima***
Resumo
O presente artigo tem como objetivo analisar a construção social de um mercado de trabalho temporário nas atividades de “paradas de manutenção” da Usina Presidente Vargas (UPV), pertencente à Companhia Siderúrgica Nacional (CSN), em Volta Redonda, estado do Rio de Janeiro. Tais atividades paralisam total ou parcialmente a usina, visando a manutenção e limpeza dos equipamentos e elevam sensivelmente a demanda por trabalhadores. Uma série de instituições e atores são mobilizados de forma a realizar o encontro entre ofertantes e demandantes de trabalho temporário, conformando um mercado de trabalho específico para essa atividade. O presente estudo se insere nos debates da sociologia econômica, que tem como premissa analisar os “fenômenos econômicos” como fatos socialmente construídos e imersos em relações sociais. Utilizou-se, fundamentalmente, uma abordagem metodológica qualitativa, através de entrevistas presenciais com diferentes atores articulados a esse mercado de trabalho. Os principais resultados mostraram que o arranjo institucional herdado historicamente da cidade de Volta Redonda, interagindo com novas relações de trabalho temporário, terceirizadas e quarteirizadas, conforma a manutenção e reprodução desse mercado, reduzindo as incertezas no contexto intermitente das “paradas de manutenção”.
Palavras-Chave: Mercado de Trabalho. Sociologia Econômica. Trabalho Temporário. Terceirização.
Abstract
The article looks into the social construction of a market for temporary jobs during maintenance stops at the Presidente Vargas plant of the Brazilian steel-making giant Companhia Siderúrgica Nacional (CSN), situated in the city of Volta Redonda, in the Brazilian state of Rio de Janeiro. During these stops, the plant is either fully or partially shut down to have its equipment cleaned or repaired, and this significantly increases the demand for workers. Many institutions and actors are mobilised in order to establish a match between the supply and demand of temporary jobs, setting up a specific labour market for this activity. The study adopts a qualitative approach, based on interviews with different players within this market. The results show that the more recent subcontracting practices rely on the institutional setting historically set up in the city of Volta Redonda, designating it as a ‘company town’ to stabilise the reproduction of the otherwise unstable market of intermittent maintenance stops.
Keywords: Labor Market. Economic Sociology. Temporary job. Outsourcing.
1* Graças ao apoio financeiro do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq) e da Fundação Carlos Chagas Filho de Amparo à Pesquisa do Estado do Rio de Janeiro (Faperj) pudemos fazer a pesquisa que resultou neste artigo.
** Doutorando em Sociologia (PPGSA/UFRJ), mestre em Sociologia (PPGS/UFF) e professor da Faculdade Lusófona do Rio de Janeiro. E-mail: mmsb21@gmail.com
*** Doutor em Sociologia (PPGSA/UFRJ), professor do Programa de Pós-Graduação em Sociologia (PPGS/UFF) e do Programa de Pós-Graduação em Administração (PPGA/UFF). E-mail: raphaeljonathas@id.uff.br
ISSN 1517-5901 (online)
POLÍTICA & TRABALHO
Revista de Ciências Sociais, nº 52, Janeiro/Junho de 2020, p. 160-177
Introdução
O presente artigo visa a explorar as instituições e práticas sociais que constroem o mercado de trabalho em um contexto de transformações nas relações de trabalho a fim de compreender a dinâmica das paradas de manutenção na Usina Presidente Vargas (UPV), unidade da Companhia Siderúrgica Nacional (CSN), em Volta Redonda, no sul do estado do Rio de Janeiro. A UPV foi planejada e construída durante o Estado Novo e é símbolo da industrialização brasileira (LIMA, 2010), empregando, em 2016, cerca de 23.736 mil empregados, entre diretos e indiretos. Em períodos de parada de manutenção, a usina é total ou parcialmente paralisada pela empresa, com a finalidade de realizar manutenção e limpeza dos equipamentos. Por ser uma atividade localizada, de curto prazo e com alta demanda de trabalho, que ocorre algumas vezes durante o ano, as empresas que prestam esse serviço à CSN recorrem a trabalhadores externos, no mercado de trabalho local, sob a forma de uma relação contratual temporária.
A Usina Presidente Vargas é uma indústria de processo contínuo, o que implica possibilidades e necessidades diferentes em relação ao processo produtivo e ao gerenciamento de mão de obra. Segundo a American Production and Inventory Control Society (APICS), indústrias de processo contínuo são aquelas que agregam valor aos materiais, misturando, separando, formando ou promovendo reações químicas (FRANSOO; RUTTEN, 1994). Nesse tipo de caracterização industrial, exige-se um rígido controle de todo o processo, um elevado investimento em capital e poucas interrupções ao longo das corridas de produção (MOSCHIN, 2015). Para tal, requer-se formação e qualificação constante do trabalhador que já atua diretamente para a CSN, o que geralmente se dá através de treinamento no local de trabalho (on the job) e de cursos de especialização.
Porém, nas chamadas paradas de manutenção, também conhecidas como “paradões”, agrega-se trabalhadores que não possuem vínculo com a empresa e muitas vezes nem com esse tipo de atividade. Durante essas paradas, toda a planta industrial, ou só uma determinada parte de produção, é interrompida para o processo de manutenção, que se estende do momento imediatamente anterior à parada até o início do planejamento da parada seguinte, o que acontece de maneira frequente ao longo do ano, impactando a região de Volta Redonda, por conta da movimentação do mercado de trabalho local com inúmeras contratações temporárias.
Objetiva-se aqui descrever a construção social desse mercado de trabalho temporário nas paradas de manutenção. À presente discussão interessa, fundamentalmente, uma abordagem que conjugue o recurso a redes contínuas de relações sociais na reprodução do mercado de trabalho (GRANOVETTER, 1988; 2007) à caracterização dos mercados como campos em que os diversos atores buscam dominar e produzir “mundos estáveis”, através do processo de institucionalização (FLIGSTEIN, 2001; 2002; 2007). A proposta é identificar as razões que levam uma empresa verticalmente integrada1 a desintegrar determinada atividade e subcontratá-la, recorrendo à utilização de mão de obra terceirizada com trabalhadores submetidos à condição de temporários ou a contratos a prazo determinado.
Contexto da pesquisa e método
A presente pesquisa orientou-se metodologicamente por um viés qualitativo, utilizando-se de dados primários e secundários colhidos no período de 2015 a 2017, visando à compreensão dos elementos discursivos e das práticas dos diversos atores no processo de institucionalização do campo do mercado de trabalho temporário das “paradas de manutenção”. Além disso, foram contactadas empresas subcontratadas para a reforma no Alto-Forno 2 (AF-2) e grupos em aplicativos de relacionamento com o propósito de acessar informações compartilhadas acerca das vagas de emprego em “paradões”.
Os dados primários foram obtidos, majoritariamente, através de cinco entrevistas (quadro abaixo) semiestruturadas com atores selecionados por conveniência de acordo com a importância relativa no âmbito das dinâmicas desse mercado em estudo. Entre esses atores, incluem-se um gerente de empresa de trabalho temporário; um engenheiro mecânico da CSN e ligado ao Sindicato dos Engenheiros de Volta Redonda (Senge); um dirigente do Sindicato dos Trabalhadores da Construção Civil, Montagem e Construção Pesada de Volta Redonda e Região (STICCMMP); um trabalhador temporário com experiência em paradas de manutenção; e um ex-funcionário de empresa terceirizada, que já foi responsável pelo recrutamento e seleção de trabalhadores para as paradas de manutenção.
Quadro 1: Agenda de entrevistas
Nome |
Idade |
Profissão |
Local da Entrevista |
Data |
Zeomar Tessaro |
50-60 |
Secretário geral do Sindicato da Construção Civil de Volta Redonda |
STICCMMP - |
01/12/2015 |
Adriano |
40-50 |
Gerente Comercial |
Nacional RH em Volta Redonda |
05/02/2016 |
Edmilson |
30-40 |
Montador de Andaime |
Nacional RH em Volta Redonda |
06/02/2016 |
Carlos |
50-60 |
Engenheiro Mecânico |
Senge |
12/07/2016 |
Lidiane |
30-40 |
Gerente Comercial/Professora |
Via Skype |
12/01/2017 |
Elaboração própria
Uma sociologia econômica do mercado de trabalho temporário
A sociologia econômica é descrita por Swedberg (2004) como uma aplicação de ideias, conceitos e métodos sociológicos aos fenômenos econômicos – mercados, empresas, lojas, sindicatos e assim por diante. Tal subcampo da sociologia surge como reação ao domínio da teoria econômica marginalista no fim do século XIX (STEINER, 2006) e se estabelece como uma crítica à divisão do trabalho entre ciências econômicas e sociológicas (RAUD-MATEDDI 2005; STEINER, 2006). Com a obra de autores como Granovetter (2007), a partir dos anos 1970, abre-se um novo horizonte de discussões através do recurso ao conceito de enraizamento (embeddedness), assumindo as ações econômicas como imersas em sistemas concretos e contínuos de relações sociais (SMELSER; SWEDBERG, 1994).
As implicações de tal abordagem para os mercados de trabalho podem ser observadas quando Granovetter (1974 apud STEINER, 2006) analisa a maneira como os indivíduos procuram emprego, assinalando o peso do contato pessoal ou da rede de relações sociais contínuas para o preenchimento de vagas. Demonstra ainda que esses empregos são mais bem remunerados e que o índice de satisfação com eles é maior que o daqueles empregos obtidos por mediações formais, como anúncios ou organizações de intermediação de trabalho. Porém o recurso à rede de contatos e às informações que nela circulam varia de acordo com a qualidade da rede e da posição que os indivíduos nela ocupam. Como apontado anteriormente, as instituições do mercado são formadas, segundo Granovetter, em torno dessas redes sociais e se estruturam a partir delas, e isso tem grandes implicações para o mercado de trabalho.
Em outra frente, Fligstein (2001; 2002; 2007; FLIGSTEIN; DAUTER, 2012; FLIGSTEIN; DIOUN, 2015) desenvolve uma teoria sobre os mercados a partir do que chama de abordagem político-cultural. Tal abordagem está assentada na perspectiva dos mercados como campos (domínios, setores ou espaços sociais organizados), no qual coletivos de atores procuram produzir um sistema de dominação no espaço social. Tal dominação se concretiza – e assim produz um campo estável – a partir do momento em que diversas instituições são produzidas, oferecendo aos atores um quadro de referência de quem eles são no campo, além de definir a hierarquia de status dentro desse campo e o significado da ação dos outros atores. Atores dominantes no campo buscam construir “mundos estáveis”, de modo a reproduzir sua dominação, enquanto os demais atores buscam redefinir a sua posição. Para Fligstein, as relações propriamente políticas de conflito e cooperação entre os atores são essenciais para construir esse campo que é o mercado.
O Estado é um agente central na teoria de Fligstein (2001, 2002), pois é essencial no processo de formação dos mercados ao criar e/ou reforçar instituições para a existência desses. É ao seu poder que recorrem os diversos grupos em disputa no campo como forma de assegurar e reforçar suas posições. Além do Estado, são necessários ao funcionamento dos mercados de trabalho, de acordo com Fligstein (2002): a) os diretos de propriedade – as credenciais, isto é, habilidades reclamadas para participar do mercado e cujo controle é disputado por Estado, trabalhadores e firmas; b) a estrutura de governança – as regras sociais a partir das quais os grupos podem controlar o fornecimento de trabalho; c) as concepções de controle, isto é, entendimentos que estruturam as percepções de como funciona um mercado, permitindo que os atores interpretem seu mundo e ajam no sentido de controlar as situações. Nos mercados de trabalho, as concepções de controle são construídas de forma que os grupos organizados estruturem o mercado para beneficiar seus membros; d) regras de troca – as regras sobre as quais o trabalho é livre, orientando a contratação, demissão, pagamento e promoção.
Os diversos grupos de trabalhadores, firmas e governo interagem e lutam nesse espaço social que é o mercado de trabalho, procurando dominar e/ou realizar coalizões de forma que possam produzir instituições que atendam aos seus interesses. Nesse sentido, o controle sobre a competição, sobre o fornecimento de trabalhadores e sobre quem pode participar desse mercado é resultado das relações no campo que é o mercado de trabalho.
De acordo com Guimarães (2009), uma sociologia econômica dos mercados de trabalho procura compreender esses mercados não só pelos seus resultados, ou melhor, pela “estrutura” resultante, mas, principalmente, pelos processos inerentes a eles. Assim, uma sociologia econômica do mercado de trabalho está então preocupada em entender os processos, as instituições e as redes de relações que compõem a dinâmica do mercado de trabalho. Nesse sentido, para a sociologia econômica, pensar esse mercado é ao mesmo tempo pensá-lo de forma ampla (com toda a construção social envolvida nisso) e pensar a especificidade do produto, isto é, a força de trabalho que nele é “trocada”. A partir disso, surgem instituições específicas, como o direito do trabalho, formas de remuneração e assalariamento, setores de recursos humanos, qualificações e certificações, organizações voltadas exclusivamente à localização, à alocação de trabalho e às oportunidades ocupacionais etc.
Os contratos de trabalho, os formatos organizacionais, e as formas de gestão da mão de obra têm impacto decisivo nas dinâmicas de segmentação e constituição do mercado de trabalho. A sua constituição, longe de ser produto de qualquer “darwinismo” institucional que escolheria as formas mais eficientes, é antes produto de disputas políticas no interior dessa arena que é o mercado de trabalho.
Intermediação de trabalho e trabalho temporário
As relações no mercado de trabalho aparecem como relações básicas entre demandantes de oportunidades ocupacionais (os trabalhadores) e os ofertantes de oportunidades ocupacionais (os empresários) (GUIMARÃES, 2009). Como foi mencionado anteriormente, os mercados são compostos tanto de redes de relações pessoais como de campos institucionalizados onde diversos atores, em diversas posições, interagem buscando a estabilidade do campo através da sua dominação.
Como aponta Guimarães (2009), é necessária uma complexificação do modelo de mercado de trabalho inserindo novos atores, quais sejam aqueles que conformam a dinâmica de intermediação da relação entre empregador e trabalhador. A instituição da intermediação do trabalho insere agentes que reduzem a opacidade do mercado de trabalho, possibilitando a circulação de informações sobre oportunidades ocupacionais, seleção e qualificação da mão de obra. A autora define duas formas “ideais-típicas” de instituição de intermediação:
A estrutura com a qual se organizam as relações de trabalho temporário se dá em forma triangular (ECHEVERRIÁ, 2001). Nesse caso, uma determinada empresa “A” solicita a uma determinada empresa de trabalho temporário (ETT) um ou mais trabalhadores. A ETT irá realizar a busca e a seleção desses trabalhadores requisitados pela empresa “A”. Esta e a ETT formam um contrato de prestação de serviços para o fornecimento de determinado(s) trabalhador(es). Outras atividades podem ser inclusas, como a seleção desses trabalhadores e algum tipo de supervisão, em alguns casos fornecendo treinamento etc. A relação da ETT com o trabalhador se dá através de um contrato trabalhista, sendo a ETT a empregadora formal deste trabalhador, responsável pela remuneração e demais questões trabalhistas e sociais. Nesse sentido, forma-se uma triangulação conforme a Figura 1:
Figura 1 – Vínculo Empregatício Terceirizado
Adaptado de Echeverría (2001).
As empresas de emprego temporário (ETTs), portanto, não são apenas agências de emprego, são empresas que se assumem como provedoras de trabalhadores que trabalham para outras empresas. Conforme mostra Echeverría (2001), as ETTs administram as relações de trabalho que se realizam na empresa onde de fato o serviço é prestado, inscrevem e colocam fim ao contrato de trabalho, pagando a remuneração e os demais custos.
Esse triângulo persiste enquanto a relação contratual existir e, assim que o contrato se encerra (por qualquer motivo), a relação no âmbito formal é desfeita. Uma nova relação pressupõe a formação de um novo contrato entre as partes, tanto entre empresa e ETT como entre ETT e trabalhador.
Como apontam Peck e Theodore (1999), as ETTs (podendo estender essa observação às AEs) atuam num ambiente muito variável de demanda de trabalho e isso afeta diretamente seus contratos com as empresas. Porém, para além de vítimas, é justamente nesse ambiente variável que as intermediadoras conseguem obter vantagens. No Brasil, especificamente, a regulação da atividade de trabalho temporário e da ETT se deu em 1974 pela lei n.º 6019/74, que foi regulamentada no mesmo ano pelo Decreto n.º 73841. A sua utilização serve à substituição ou acréscimo extraordinário de serviço, não como substituição de trabalho sob condições “habituais”2.
A dinâmica das paradas de manutenção na CSN
A parada de manutenção é um momento complexo do processo siderúrgico, com diversos tipos de especialidades e demandando tanto trabalhadores com alta (para a manutenção geral ou o aprimoramento de um determinado equipamento, por exemplo) como trabalhadores com baixa qualificação técnica (para serviços de limpeza industrial, por exemplo). Segundo Verri (2015), uma parada pode ser considerada como um esforço temporário para se criar produtos, serviços ou resultados exclusivos, tendo assim início e fim definidos.
Na siderurgia, a manutenção assume três formas básicas: corretiva, isto é, executada após o reconhecimento da falha, tendo por finalidade colocar o item em condições de voltar a executar a função desejada; preventiva, qual seja aquela que tem a finalidade de reduzir as probabilidades de falha e degradação do item; e, por fim, preditiva, que se traduz no acompanhamento de determinados parâmetros do equipamento com a finalidade de possibilitar a previsão de defeitos ocultos.
Diante de tamanha variedade de perfis e qualificações, um fato crítico se coloca: como estabilizar relações, reduzir incertezas e garantir a mão de obra considerada necessária (em quantidade e qualificação) à realização da parada? Acrescenta-se a isso que um problema central é os trabalhadores das paradas serem em sua maioria desconhecidos (tanto as pessoas como as qualificações) dos gerentes:
Chega a ser inacreditável, mas os executantes são quase desconhecidos dos gerentes. É uma massa sem rostos, composta por números ou nomes sem nenhum significado. Não me espanta a questão da greve estar cada vez mais séria nas grandes Paradas. Às vezes, fica-se procurando as lideranças desses movimentos e não se encontra ninguém para negociar (VERRI, 2015, p. 147).
Essa “massa sem rostos”, de baixa qualificação e “sem interesse no sucesso das paradas” é uma “fonte de problemas” para a o sucesso da atividade. Além do mais, o baixo nível dos qualificados implica justamente uma relativa vantagem dos trabalhadores mais qualificados em relação às paradas, visto que são “disputados a peso de ouro” (VERRI, 2015, p. 150) pelas empresas. De acordo com o autor, uma “certificação em massa” dos trabalhadores reduziria tal dependência de recursos das empresas em relação aos trabalhadores mais qualificados e colocaria um “fim” a um ciclo vicioso.
A partir do cenário descrito, é possível verificar que tal mercado não se constrói somente a partir de uma relação entre oferta e procura de vagas, mas precisa de outros elementos sociais. Na UPV, as atividades das paradas surgiram progressivamente ao longo do tempo de existência da usina. No início, a manutenção na CSN aparecia somente como manutenção corretiva. Porém, a partir de um processo de intercâmbio com a United States Steel e, posteriormente, com a presença marcante dos “japoneses”3, começa um processo de manutenção mais preventiva. As paradas de manutenção aqui estudadas começam a surgir a partir da virada dos anos de 1960 para os anos de 1970. Assim, a CSN sai somente da manutenção corretiva para a preventiva e, depois, para a preditiva, aplicando conceitos de pesquisa e engenharia de manutenção.
As paradas nas áreas de equipamentos mecânicos/elétricos e para limpeza industrial não duram mais que 10 a 15 dias, podendo chegar a durar apenas 2 dias no caso da limpeza, por exemplo. Mas, apesar do chamado “paradão” não ser uma coisa homogênea no caso da siderurgia, dois elementos permanecem constantes: subcontratação de empresas e contratação de trabalhadores temporários por essas. Em todas as entrevistas, a centralidade destes dois elementos é recorrente. Assim, a importância e o peso da empresa terceira na busca e seleção torna-se central. É a empresa contratada para realizar o “paradão” que assumirá o ônus de selecionar os candidatos e de garantir a qualificação desses para o serviço. Na construção social desse mercado de trabalho das paradas, então, a empresa contratada tem importância central na dinâmica de possibilitar a circulação da informação sobre as paradas.
A terceirização das atividades consideradas “periféricas” na CSN iniciou-se durante o período militar (1964-1985) e intensificou-se a partir dos anos 1990 com o processo de privatização da companhia, mas parte da gestão da manutenção já havia sido repassada desde os anos 1980 à Fábrica de Estruturas Metálicas (FEM), subsidiária da CSN, criada nos anos 1950 (DIAS, 2010; 2015). Dessa forma, o controle sobre as atividades das paradas ficou por muito tempo totalmente a cargo da FEM, que respondia à CSN na sua relação como subsidiária. CSN e FEM, então, respaldadas pela reformulação promovida pelo decreto-lei n.º ٢٠٠ de ١٩٦٧4, passaram a privilegiar a subcontratação de empresas (sob a forma de quarteirização) à contratação de pessoas. Os ônus legais com os contratos dos empregados ficaram a cargo das empresas quarteirizadas pela FEM, enquanto a estrutura de relações CSN-FEM-Quarteirizadas-Trabalhadores passou a alimentar o fluxo de trabalhadores e a organizar a estrutura de relações das paradas de manutenção.
Nesse sentido, as empresas quarteirizadas apareciam somente como empregadoras formais, fornecendo unicamente a mão de obra necessária à parada de manutenção, sem qualquer expertise no desenvolvimento da parada, enquanto os seus trabalhadores passavam a ser fichados no quadro da FEM exclusivamente para o desenvolvimento dessa atividade específica. Enquanto isso, equipes mistas eram formadas entre trabalhadores da FEM e de empresas quarteirizadas de forma a complementar as deficiências de experiência, qualificação, etc., dos trabalhadores novos e manter o controle da qualidade e do comando pela FEM. No caso da manutenção mecânica, por exemplo, formavam-se diversas equipes de 5 a 10 pessoas, dependendo da função.
A cada “paradão”, um novo contingente de trabalhadores adquiria experiência e qualificação de forma cumulativa devido ao treinamento on the job e à composição das equipes mistas. Com o passar do tempo e a repetição dessas “paradas”, a região em torno da usina – que não se limitava mais à Volta Redonda – passou a concentrar um “cinturão” de trabalhadores com experiência em paradas de manutenção, em siderurgia, etc., não necessariamente trabalhando diretamente para a CSN ou a FEM:
[Carlos, ex-engenheiro da CSN] – Normalmente, a gente procurava pessoas que a gente até conhecia ou que a gente tinha informações que o “caboclo” sabia fazer o trabalho. Não dava tempo de treinar o cara para o serviço. Normalmente, você já pegava pronto, ou pelo menos bem “esboçado”. Porque quem tocava mesmo, vamos dizer assim, quem comandava os subgrupos era o pessoal da própria empresa. Pessoal da FEM mesmo [bate na mesa várias vezes] ... você botava, por exemplo, uns três mecânicos da FEM e botava um mecânico... terceirizado.... ele agregava no grupo e então esse convívio com esses três era a escola dele e... tocava... Não dava tempo de “vou ensinar vocês a ser mecânicos” ... Não tinha como.
Além da formação de um “cinturão” de trabalhadores em condições de participar do mercado de trabalho das paradas, a rede de relações pessoais se ampliou e tornou possível a disseminação de informações sobre as paradas, auxiliando no recrutamento da mão de obra. Como sugere Granovetter (1995), os “laços fracos”5 formados pelos trabalhadores entre si e entre eles e o pessoal da FEM tornavam-se mecanismos fundamentais na consecução de trabalho nas paradas. A ampliação de “laços fracos” a partir das paradas permitiu a formação de uma rede contínua de trabalhadores com experiência e qualificação necessárias para compor o quadro dessas atividades. A manutenção de um mercado de trabalho das paradas na época da FEM teve, portanto, nessa rede de conhecidos uma forma de dinamização das informações sobre vagas e trabalhadores. E isso não somente quanto aos critérios de qualificação e experiência, mas também de confiança e demais características pessoais dos trabalhadores, como dedicação e presteza.
A complexificação das dinâmicas de subcontratação das paradas se dá justamente na quarteirização através de empresa de intermediação de trabalho temporário. É o caso da Nacional RH, ETT criada por volta de 20066 para fornecer mão de obra para empresas terceirizadas para atuarem nas paradas dentro da CSN. Diferente das empresas que apenas forneciam seu status legal para que a FEM quarteirizasse a mão de obra temporária, a Nacional RH possui uma posição mais proativa com relação às paradas de manutenção já que, além de ser a empresa empregadora de fato, atua também na busca e seleção desses trabalhadores, além de fiscalizar seu desempenho. Conforme o depoimento do seu gerente comercial, a Nacional RH apresenta-se como uma empresa que alcançou certa expansão e diversificação de atividades na região, beneficiando-se de uma prolongada atuação na área industrial da CSN.
[Adriano Nacional Rh] - Nosso trabalho se diversificou muito, tá?! Antigamente, a gente trabalhava muito na área de montagem industrial dentro da CSN. Hoje, não. Hoje, a gente trabalha com a Fundação CSN7, fornecendo mão de obra qualificada. Hoje, a gente trabalha com drogarias, com mercados...
Na composição das dinâmicas do mercado de trabalho nas paradas de manutenção em Volta Redonda, a empresa de trabalho temporário torna-se fundamental não só absorvendo os passivos trabalhistas, mas também eximindo as empresas que não são da região ou que não são especializadas em paradas de manutenção de arregimentar esses trabalhadores. A relação triangular da intermediação, própria da terceirização, descrita anteriormente, muda então de desenho, formando uma relação “losangular”, como na figura 2:
Figura 2 – Vínculo empregatício “losangular”, ou quarteirização de trabalho temporário
Elaboração própria
Essa estrutura de organização das relações de contrato temporário implica que o trabalhador é um empregado formal da ETT, que o selecionou, assina o seu contrato e responde por todo o passivo trabalhista. Porém a empresa que contratou a ETT será seu empregador de fato, pois é quem irá subordinar o seu trabalho. Neste caso, é a CSN que aparece como a beneficiária do serviço desse trabalhador e onde ele de fato efetuará seu serviço. Assim, a condição do trabalhador e do coletivo é fraturada duas vezes por dois processos combinados de intermediação: da empresa terceirizada e da ETT. Essa condição fica bem definida na fala de um operário que participou de diversos “paradões” na CSN:
[Entrevistadores] - Quando está fazendo “paradão”, você está trabalhando pra quem? Para a CSN ou para outra empresa?
[Edmilson, trabalhador de “paradões”] - Ah, é igual quando trabalhei agora. Eu trabalhei pra empresa CBSI8 mas quem me contratou com carteira e tudo foi a [Nacional] RH. É encomenda da empresa com a [Nacional] RH. Eles sabem como funciona. Eu não entendo mesmo como funciona não. Eu trabalho com o uniforme da CBSI mas na hora de pagar quem paga é a [Nacional] RH. É que deve funcionar assim: deve ganhar aqui a [Nacional] RH por funcionário. Em cima do funcionário, né? Eu imagino que deve tirar em cima de mim.
A fala de Edmilson aponta para a “confusão” de relações empregatícias que esse vínculo quarteirizado provoca. Do ponto de vista das relações de trabalho e do mercado de trabalho, é possível verificar que as paradas de manutenção possuem uma autonomia relativa frente ao restante das atividades da CSN. Acompanhando o processo histórico de realização dessas paradas, é possível inferir que a terceirização e até a quarteirização sempre foram práticas comuns nesse mercado de recrutamento e seleção, além de formas de transferência dos passivos trabalhistas, conformando um “mundo estável” para a reprodução da atividade de manutenção.
A utilização do trabalho temporário via ETT não é adotada por todas as empresas que realizam paradas de manutenção. Algumas possuem dinâmicas particulares, com o uso do próprio setor de recursos humanos para fazer esse recrutamento e seleção. E isso tem implicações no estatuto do trabalhador e no tipo de vínculo dele com a empresa. Por fim, há outras formas de contrato, como a prazo determinado por obra certa e por experiência, geralmente utilizadas quando não existe uma ETT para intermediar essa relação.
Conseguindo trabalho nas paradas de manutenção: rede de relações pessoais e instituições de informação
A criação de instituições em torno da obtenção e circulação de informações sobre o que se troca é um dos pilares da construção social dos mercados. E, no caso do mercado de trabalho, as informações cruciais são com relação à qualificação e experiência dos trabalhadores, bem como sobre demandantes e ofertantes de oportunidades ocupacionais. Dessa forma, para assegurar qualidade e confiança nos serviços de determinados trabalhadores, pode-se usar meios formais, como as certificações e a vida profissional pregressa desses trabalhadores, através do currículo ou da comunicação com empregadores anteriores. Segundo Granovetter (1988), à medida que os trabalhadores migram para outros empregos e realizam tarefas diferentes, eles adquirem não somente “capital humano”, como também ampliam a rede de contatos que conhecem suas habilidades e personalidade – que é um tipo de recurso sem custos. As possibilidades de mobilidade no mercado de trabalho e a ascensão social seriam afetadas diretamente pelo tipo, tamanho e consistência dessa rede.
A circulação das informações sobre oportunidades ocupacionais e sobre ofertantes de trabalho (trabalhadores) é também intermediada por uma série de instituições e práticas que são operacionalizadas por diversos atores, como os próprios trabalhadores, os empregadores diretos, as empresas terceirizadas, o poder público e as empresas cuja função é somente realizar o encontro entre ofertantes e demandantes de oportunidades ocupacionais. Em outros termos, a terceirização praticada pela CSN nas paradas de manutenção não está somente calcada na exteriorização das atividades das paradas de manutenção e dos vínculos empregatícios, há também uma terceirização (e quarteirização) das atividades de seleção e recrutamento dessa força de trabalho temporária. Essa atividade não apenas é custosa como também complexa, requerendo determinados recursos que podem não estar disponíveis, como tecnologia de comunicação (um site, por exemplo), banco de dados de trabalhadores qualificados e redes de contatos pessoais.
A centralidade da CSN em Volta Redonda é um fator importante para entender as dinâmicas da formação de organizações voltadas à produção e circulação de informações sobre oportunidades ocupacionais. Uma evidência é o caso do site “VR Empregos”, que foi desenvolvido pela Secretaria Municipal de Desenvolvimento Econômico e Turismo de Volta Redonda para atuar como AE pública. Como afirmado em reportagem no dia 16 de julho de 2015 no portal VR Emprego, “por enquanto, as principais parcerias (dessa AE pública) são a CSN e as empreiteiras que prestam serviço à empresa e que utilizam o banco de dados do site para efetuar suas contratações”9.
As instituições de intermediação do trabalho em Volta Redonda são fundamentais para o desenvolvimento das paradas de manutenção, conformando relações que assegurem o encontro entre demanda e oferta de trabalho temporário. Assim, parcerias estratégicas entre a CSN e as empresas terceirizadas com as AEs e ETTs da região são essenciais ao processo de formação desse mercado de trabalho temporário. Inclusive, a relação entre a própria Nacional RH e o Portal VR Empregos, ou seja, entre uma ETT privada e uma AE pública, mostra que a dinâmica das instituições de intermediação implica uma rede de compartilhamentos de informações cruzadas. Como aponta Adriano, gerente comercial da Nacional RH, a prefeitura revela-se solícita em disponibilizar informações do portal VR emprego:
[Adriano Nacional RH] - O portal VR capta vários currículos na região toda. Então, quando a gente precisa, quando tem alguma vaga que a gente está tendo alguma dificuldade, ele sempre é muito positivo conosco. O trabalho da prefeitura, nesse sentido, é excelente.
Zeomar Tessaro, secretário geral do Sindicato dos Trabalhadores da Construção Civil, Montagem e Construção Pesada de Volta Redonda e Região (STICCMMP), também afirma utilizar o banco de dados do sindicato como uma forma de reduzir os custos da busca por trabalhadores para as paradas e para a construção dos contratos com a CSN:
[Zeomar Tessaro] - [...] Você trouxe um cara lá do interior de Minas, da Amazônia, do Pará. Você vai ter que ir lá, custear... fazer exame do cara, trazer para cá, botar num alojamento, então o custo é muito maior. Então, a empresa já vem aqui, vê o que a gente tem no quadro, o que é possível oferecer pra saber de fato como é que ela acaba oferecendo a proposta dela... Senão, ela apresenta uma proposta muito baixa, depois não consegue manter e vai ser um problema.
Assim, o banco de dados constitui-se em ativo essencial na dinâmica desse mercado de trabalho local por concentrar boa parte das informações e funcionar como um “canal” utilizado por demandantes e ofertantes de oportunidades ocupacionais. Adicionalmente, sistemas informais de circulação de informações sobre oportunidades ocupacionais são utilizados tanto por trabalhadores quanto por pequenas empresas terceirizadas. A TecnoRioSul, pequena empresa contratada para paradas, por exemplo, não recorria à Nacional RH, pois, segundo sua gerente comercial, “cobravam um alto valor” e deixavam “a gente em uma situação um pouco complicada por ser uma pequena empresa”.
A implicação disso é justamente que a diferença entre ETTs e empresas terceirizadas que prestam serviço para a CSN nas paradas é um tanto “borrada nas suas margens”, exatamente porque, ao serem contratadas, elas não somente prestam o serviço objeto da parada de manutenção, mas também incorporam a função de busca e seleção de trabalhadores temporários. A utilização de um banco de dados próprio e de redes de relações pessoais como estratégia de busca e seleção substitui o uso de outros intermediadores por parte da empresa terceirizada.
Portanto constata-se que as redes de relações pessoais são recursos estratégicos utilizados pelas empresas e pelos trabalhadores, como descreve o trabalhador Edmilson, ao ser questionado acerca de como adquiria informações sobre as paradas de manutenção:
[Edmilson, trabalhador de “paradões”] - Os amigos, conhecidos, que já trabalharam num paradão... A gente trabalha e a gente cria um elo que a gente pega e está sempre se comunicando. Quando um sabe, passa para o outro.
Cria-se assim uma espécie de “circuito da dádiva”, no qual há a indicação de um trabalhador a um empregador, conformando-se um sistema de trocas recíprocas entre conhecidos com possibilidade de retribuição futura e de adensamento dos laços de relações pessoais.
O que conforma as instituições formais e informais10 que favorecem o “matching” entre demandantes e ofertantes, ou melhor, agências de emprego e empresas de trabalho temporário de um lado e redes de relações sociais e circuito de dádiva do outro, são justamente as posições e os recursos que os diversos atores conseguem lançar nesse campo. Cada contrato conforma dinâmicas e necessidades próprias nas quais atores com mais recursos e contratos já firmados com a CSN tendem a utilizar e a quarteirizar os serviços para a ETT, e aqueles com menos recursos e externos à CSN passam a explorar as redes de conhecimentos próprios e dos trabalhadores. Por sua vez, os próprios trabalhadores são atores ativos na produção e reprodução dessas instituições formais e informais de circulação, seleção e qualificação para as paradas de manutenção.
Nas paradas de manutenção, os temporários são apresentados como trabalhadores menos qualificados, conforme define Lidiane:
[Lidiane, TecnoRioSul] – [...] pelo menos o que eu percebi muito, quando você trabalha nessa área, principalmente de paradão, é que pessoas que normalmente estão desempregadas estão disponíveis no mercado. Então, às vezes são pessoas com baixa instrução, que às vezes não têm noção de como preencher um formulário, de como preencher um boletim de obra, nada disso. Mas são pessoas que no dia a dia têm tanto conhecimento, elas já viveram aquilo, já trabalharam em tantas empresas, já fizeram aquele serviço tantas vezes e têm muito conhecimento, muita bagagem boa mesmo para agregar naquele projeto.
A qualificação para o trabalho passa a ser um dos elementos de diferenciação entre os trabalhadores temporários e os não temporários, mas a própria atividade e o tipo de parada podem fazer variar o nível de exigência de qualificação sobre esse mesmo trabalhador temporário.
[Lidiane, TecnoRioSul] – Então, era uma obra, um paradão, simplesmente pra limpeza eu não precisei da qualificação. A única coisa que a gente precisou foi dar o treinamento da nr-3311, que é de espaço confinado, porque era limpeza num lugar muito complicado mesmo, um lugar no alto, então o acesso era complicado.
Essas paradas, em geral, são atividades de limpeza industrial e podem durar menos de duas semanas, rotinizando, entre os trabalhadores de paradas de manutenção em Volta Redonda, a experiência de viverem, entre uma parada e outra, alternadamente, as experiências do desemprego e da complementação da renda através de “bicos”.
[Edmilson, trabalhador de “paradões”] - Esse dinheiro aí é para aquele momento mesmo. É só aquele momento. É porque eu não sou de ficar parado. Eu trabalho na rua também. Tem um vizinho meu lá no bairro que é pedreiro, aí eu costumo pegar uma obra ou outra com ele para levantar uma grana. Porque ficar sem dinheiro no bolso ninguém merece.
Edmilson aponta para o fato de ter perdido as contas de quantas paradas de manutenção já participou em quase 10 anos na CSN. Além disso, conta que já foi contratado para o quadro fixo como auxiliar, mas que não quis ficar, pois não era o que queria, já que a sua profissão é de montador de andaime, preferindo ser contratado para esse cargo. Para ele, participar das paradas de manutenção é um momento em que pode estabelecer relações no interior da própria CSN a fim de conquistar um trabalho fixo na área que ele almeja:
[Edmilson, trabalhador de “paradões”] – Quero um fixo. O “paradão”, às vezes, eu tenho uma oportunidade de estar lá dentro da CSN junto com o chefe [...] Essas pessoas pra ver se eu consigo entrar na minha profissão.... Às vezes, depois de um paradão, né [...].
Assim, as estratégias dos trabalhadores no mercado de trabalho temporário das paradas de manutenção apontam para a condição de atores ativos que ressignificam sua situação como trabalhadores temporários. Nesse sentido, as paradas de manutenção podem ser momentos que esses diversos trabalhadores utilizam como um “bico” para sair da condição de temporários ou para entrar em determinados mercados de trabalho, entre outras estratégias.
Considerações finais
Este artigo objetivou descrever a construção social do mercado de trabalho temporário nas paradas de manutenção da UPV-CSN em Volta Redonda, o que implicou automaticamente compreender as dinâmicas e estruturas sociais que abarcam os atores relativos a tal mercado. Circunscritos no tempo, os vínculos e relações aparecem, pelo menos à primeira vista, como frágeis, sem tempo para se consolidar e, a cada parada, tudo deveria ser (re)construído do zero. Não obstante, as evidências trazidas pelos depoimentos coletados apontam que a frequência e a orientação dos atores em torno dessa atividade são capazes de produzir relações no território que garantem a construção de “mundos estáveis”.
A institucionalização dos processos de busca e seleção de trabalhadores, bem como a circulação das informações, é outra face das relações de subcontratação. ETTs, AEs públicas e privadas e sindicatos estabelecem relações com a CSN e com suas empresas subcontratadas, organizando instituições formais de circulação e recrutamento da força de trabalho. Redes de relações pessoais aparecem, assim, como instituições informais que podem auxiliar na circulação de informações sobre as oportunidades ocupacionais nas paradas entre empresas pequenas e trabalhadores.
Constata-se que as relações são forjadas orientando-se em torno da CSN e dos recursos simbólicos e materiais que ela concentra na região sem, contudo, significar que os atores são passivos em relação a ela, mas sim que, no campo desse mercado de trabalho temporário, interagem e criam acordos e conflitos. Por sua vez, os sindicatos e o poder público denunciam e criticam os processos de terceirização e os vínculos temporários como sendo precários, ao passo que participam da oferta de cursos de qualificação e fornecem às empresas terceirizadas e à CSN acesso ao seu valioso banco de dados. Por fim, as empresas terceirizadas e as ETTs, ao mesmo tempo que concorrem entre si, estabelecem relações de parceria, formando uma quarteirização com o aval da CSN. E, assim, trabalhadores acessam suas redes de contatos pessoais, auxiliando as pequenas empresas terceirizadas na tarefa de encontrar trabalhadores qualificados e com experiência, enquanto se utilizam das paradas de manutenção como estratégia para eles mesmos saírem desse mercado de trabalho temporário.
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Recebido em 13/05/2020
Aceito em 16/09/2020
1 Uma empresa verticalmente integrada é aquela cujos processos produtivos são internalizados ao invés de utilizar o mercado para adquirir produtos ou serviços, como, por exemplo, determinados tipos de insumos (HOPKINS; WALLERSTEIN, 2000).
2 A lei federal n.º ١٣.٤٢٩, de ٣١ de março de ٢٠١٧, altera alguns elementos como a mudança de “aumento extraordinário de serviço” para “demanda complementar de serviços” (BRASIL, 2017). Tal lei entrou em vigor após o desenvolvimento da pesquisa, mas não altera substancialmente o conteúdo dela.
3 Referência a vinda de japoneses na mudança tecnológica durante a expansão da usina.
4 Decreto-lei n.º 200, de 25 de fevereiro de 1967, que tinha como princípio a reforma administrativa e a descentralização do Estado, além de, posteriormente, promover um intenso processo de terceirização (BIAVASCHI; DROPPA, 2014).
5 A força dos laços dependeria da quantidade de tempo de relacionamento entre os atores, da intimidade, da intensidade da relação e das suas trocas.
6 Entrevista concedida em 05/02/2016 na sede da Nacional RH em Volta Redonda.
7 A Fundação CSN foi criada em 1961 e atua em projetos sociais na área da educação, esporte e cultura, sendo, segundo seu site institucional, o “braço de responsabilidade social” do grupo CSN. Para mais informações sobre a trajetória da Fundação CSN, ver Lacerda (2017).
8 Companhia Brasileira de Serviços de Infraestrutura. A CSN criou, por volta de 2011, junto com a Cikel (antiga terceirizada da própria CSN), essa joint venture da qual possui o controle de 50% das ações.
9 Matéria “VR Empregos movimenta o mercado de trabalho na região” (2015).
10 Formal e informal para instituições é aqui utilizado para designar respectivamente instituições legalmente constituídas e projetadas, e instituições não instituídas legalmente e/ou espontaneamente constituídas. Para um maior debate sobre essa problemática ver Hodgson (2006).
11 Norma regulamentadora 33 – estabelece os requisitos mínimos de segurança em espaços confinados.
A COMUNIDADE ARTESÃ DO ALTO DO MOURA NO SÉCULO 21:
tensões emergentes em um espaço social local em transformação1
THE ARTISAN COMMUNITY OF ALTO DO MOURA IN THE 21ST CENTURY:
emerging tensions in a local social space in transformation
_____________________________________
Marcio Sá*
Denise Clementino de Souza**
Jessica Rani Ferreira de Sousa***
Bárbara Tayná Leal****
Resumo
Este trabalho teve como objetivo caracterizar as tensões disposicionais emergentes entre membros-proprietários(as) de negócios na comunidade artesã do Alto do Moura, Pernambuco, neste século 21. Nesse sentido, são recuperadas discussões acerca dos conceitos de território, urbanização e espaço social na literatura nacional e internacional, que permitiram situar as tensões emergentes na comunidade enquanto um espaço social local em transformação. Apoiando-se na noção de tensão disposicional (Bourdieu) como instrumento teórico e metodológico, a pesquisa foi norteada por uma abordagem epistêmica construtivista e utilizou como intrumentos para o trabalho de campo entrevistas semiestruturadas, notas de campo e grupos focais. As principais tensões disposicionais analisadas foram referentes às novas paisagens, vizinhanças e à insegurança comunitária, associadas aos conjuntos habitacionais mais recentes e a seus novos moradores, e à concorrência exacerbada e ao fator classe na aceitação social, relativos às mudanças no padrão de relacionamento comunitário.
Palavras-chave: Comunidade artesã. Alto do Moura. Espaço social local. Tensões disposicionais emergentes.
Abstract
This work aimed to characterize emerging dispositional tensions between business-owner members in the artisan community of Alto do Moura-PE in the 21st century. In this sense, discussions about the concepts of territory, urbanization and social space in the national and international literature are recovered, which have allowed us to situate the emerging tensions in the community as a local social space in transformation. Relying on the notion of dispositional tension (Bourdieu) as a theoretical and methodological instrument, the research was guided by a constructivist epistemic approach and used as field instruments semi-structured interviews, field notes and focus groups. The main dispositional tensions analyzed were related to the new landscapes, neighborhoods and community insecurity, associated to the most recent housing developments and their new residents, and to the exacerbated competition and the class factor in social acceptance related to changes in the pattern of community relations.
Keywords: Artisan community. Alto do Moura. Social local space. Emergent dispositional tensions.
Introdução
Um mapeamento realizado pelo Ministério do Desenvolvimento, Indústria e Comércio em 2013 apontou que existiam aproximadamente 8,5 milhões de artesãs e artesãos no Brasil. Os registros no Sistema de Informações Cadastrais do Artesanato Brasileiro (Sicab) apresentam um pouco mais de 120 mil artesãos cadastrados. Dada a importância de pensar o caráter histórico e contextual que molda as condições nas quais se desenvolve a atividade artesã, vale a pena ressaltar que a produção de artesanato ocorre, tradicionalmente, no âmbito das famílias, como uma forma de suprimento das necessidades das mesmas, em situações, em geral, bastante próximas da autossuficiência. É importante destacar que a atividade se encontra, normalmente, mesclada ao cotidiano familiar, não havendo horários específicos ou separados para a feitura do artesanato, o preparo de alimentos, a realização de tarefas domésticas e o cuidado com os animais e os filhos (BRASIL, 2013; LORÊTO, 2016; ARAÚJO, 2006).
No Alto do Moura (PE), a existência de núcleos marcadamente familiares que se aglomeraram no espaço, como grupos domésticos de produção, constituiu um dos fatores responsáveis por moldar as relações dentre aqueles envolvidos com a atividade (ROCHA, 2014). O convívio com os vizinhos é íntimo, e por muito tempo se costumava deixar portas abertas e entrar na casa do lado sem maiores cerimônias. Muitos membros da comunidade artesã são irmãos, primos, ou amigos de infância, que mantêm laços por toda a vida. A relação de compadrio é forte, o que ainda os vincula e nutre o pertencimento que sentem em relação à comunidade. Por lá se costumava ouvir, “aqui todo mundo se conhece”, ou melhor, conhecia. Essa, dentre outras mudanças de caráter espacial e relacional, vem tensionando a comunidade e o espaço social por ela constituído.
Diante disso, este artigo tem como objetivo caracterizar as tensões disposicionais emergentes entre membros-proprietários(as) de negócios na comunidade artesã do Alto do Moura no século 21. Parte-se do pressuposto de que para compreender devidamente as condições de produção e a comercialização numa comunidade artesã como essa, é necessário problematizar as principais mudanças referentes às dimensões espacial e social que possibilitam e constrangem as condições locais de vida e de trabalho.
A noção de tensão disposicional emergente (ou daqui em diante, tensão emergente ou somente tensão) serve para suportar a construção de nosso entendimento sobre o confronto entre a herança coletiva local e as forças contextuais que afetam o individual e o coletivo na extensão de um agrupamento social localizado. Para alcançar o objetivo declarado, o trabalho está estruturado em cinco seções. Logo após esta introdução, apresenta-se um panorama da comunidade diante de um contexto social-produtivo localizado como um “espaço social local” (PEREIRA, 2018; LAFERTÉ, 2014; WACQUANT, 2018) em transformação, a abordagem teórico-epistêmica e a metodologia são apresentadas na terceira seção, as tensões disposicionais emergentes são caracterizadas na quarta e principal seção, por fim, são apresentadas algumas considerações e questões que servem ao seguimento da pesquisa.
A comunidade artesã do Alto do Moura como um espaço social local em transformação
Localizado a sete quilômetros do centro do município de Caruaru (PE), o hoje bairro do Alto do Moura tem suas origens em um povoado rural, localizado nas proximidades do Rio Ipojuca, e que, sob a liderança de Antônio Moura, foi denominado Alto dos Mouras, por volta de 1850. Há relatos de que o trabalho com artesanato em barro precede à colonização portuguesa na região, existindo desde a época em que povos indígenas habitaram aquele território2. Posteriormente, o artesanato foi transmitido para a comunidade a partir das “loiceiras”, mulheres que se dedicavam ao artesanato utilitário em barro e tem sido incorporado àquela comunidade como fator de identidade cultural (LIMA, 2001).
A literatura relata que, ao ver sua mãe trabalhando nesse ofício, ainda menino, Vitalino Pereira do Santos (1909-1963) brincava com o barro e dele fazia seu passatempo. Aponta-se que o reconhecido artesão tenha produzido sua primeira peça ainda em 1915, aos seis anos de idade, quando a levou para vender na feira junto às peças da mãe (MELLO, 1995). Mestre Vitalino é visto por muitos como o fundador da arte figurativa em barro do Alto do Moura. Foi com a projeção nacional e o estabelecimento da família Vitalino no Alto do Moura que o lugar se consolidou como vila artesã, principalmente em decorrência das pessoas que se encarregaram de dar continuidade a este legado (ROCHA, 2014).
A produção local artesã se trata de um processo de aprendizagem que se inicia muito cedo no seio de muitas famílias, tendo como base um tipo de saber transmitido de geração a geração e difundido entre vários núcleos domésticos dentro de uma mesma comunidade. As crianças observam e aprendem com os pais: a princípio, como uma brincadeira, modelando figuras iniciais e, progressivamente, aprendendo o ofício de uma forma lúdica, por meio da qual a transmissão e apreensão dos saberes são disseminadas no cotidiano familiar (ARAÚJO, 2006).
O conceito de identidade em Santos (2002), ou seja, o sentimento de pertencer àquilo que nos pertence, indica que o pertencimento a um lugar (e vice-versa), enquanto condição sociocultural partilhada, permite sugerir que as mudanças relacionais e espaciais às quais nos referimos no território do Alto do Moura têm implicações para a identidade da comunidade original que o habita. É importante dizer que, embora a configuração territorial, ou configuração geográfica, tenha uma materialidade própria, sua existência social, isto é, sua existência real, somente lhe é dada por meio da tessitura das relações sociais que constituem o local (SANTOS, 2006). É assim que o território se torna sinônimo de espaço habitado e objeto de análise social.
Por mais peculiar que possa ser uma comunidade artesã como a do Alto do Moura, as transformações (não somente urbanísticas) por lá observadas em pleno século 21 são inerentes à sua condição periférica no mundo, Brasil, região e estado. Ou seja, se por algum tempo, localmente se acreditou que o Alto do Moura constituía algo como um “universo à parte”, até mesmo denominado por alguns de “santuário do artesanato”, isso não mais se mostra evidente em sua contemporaneidade.
É importante pontuar que as noções de território e urbanização aqui elencadas foram consideradas como contribuições geográficas pertinentes à compreensão da comunidade artesã do Alto do Moura como um espaço social local, noção esta desenvolvida a partir da pertinência do legado da obra de Pierre Bourdieu para estudos sobre urbanização (BOURDIEU, 2006, 2008, 2018; SAVAGE, 2011; WACQUANT, 2018; PEREIRA, 2005, 2018).
No âmbito da sociologia internacional contemporânea, é possível destacar esforços recentes que exploram possibilidades de uso da abordagem bourdieusiana em estudos dessa natureza. Em trabalho intitulado “A sociologia urbana perdida de Pierre Bourdieu”, Mike Savage (2011, p. 512) sugere que “a teoria social de Pierre Bourdieu retém o potencial para efetivamente reenergizar os estudos urbanos”. Em 2012, Mike Savage e Loïc Wacquant organizaram um seminário na University of York (“Poder simbólico e desigualdade urbana: levando Bourdieu à cidade”), copatrocinado pelo International Journal of Urban and Regional Research. Em sua intervenção, posteriormente publicada no referido Journal, Wacquant (2018) argumenta a favor da pertinência das elaborações de Bourdieu para estudos sobre cidades e processos de urbanização, recuperando seus trabalhos de juventude sobre poder, espaço e difusão das formas urbanas. Além de tais trabalhos que apontaram para a urbanização como força motriz da transformação social em regiões interioranas de dois contextos nacionais bastante distintos (Argélia de meados do século passado e França da década de 1990), “As estruturas sociais da economia” (BOURDIEU, 2006), que pode ser apontado como “seu último trabalho substancial” (SAVAGE, 2011, p. 516), voltou-se para a questão da construção objetiva e simbólica do mercado de casas na França do final do século passado. Além de uma contribuição para estudos sobre fenômenos relativos aos processos de urbanização, no que se refere às transformações sociais a esses associadas na (re)estruturação de um espaço social e do seu respectivo espaço físico, Bourdieu também apontou para a “necessidade de análises locais” (SAVAGE, 2011, p. 516), entendendo o local como lócus no qual se dá a tensão entre as “forças universalizantes” e a “particularidade local”.
Aos nossos olhos, espaço social é um instrumento teórico que permite ao pesquisador compreender determinada estrutura social por meio da comparação entre as características que diferenciam aqueles agentes que ocupam uma posição em relação aos outros. Neste sentido, “o lugar pode ser definido absolutamente como o ponto do espaço físico onde um agente ou uma coisa se encontra situado, tem lugar, existe. Quer dizer, seja como localização, seja sob um ponto de vista relacional, como posição” (BOURDIEU, 2008, p. 160). Ou seja, para ele:
o espaço habitado (ou apropriado) funciona como uma espécie de simbolização espontânea do espaço social [...]. Efetivamente o espaço social se traduz no espaço físico, mas sempre de maneira mais ou menos confusa [...]. A posição de um agente num espaço social se exprime no lugar do espaço físico em que está situado (BOURDIEU, 2008, p. 160, grifo nosso).
Dentro de tal contexto, Laferté (2014) propõe a noção de espaço social local como um modo de compreensão das estruturas sociais as quais observa nos grupos formados e situados em regiões interioranas, não mais passíveis de serem caracterizados como meramente agrícolas, e que demandam por uma abordagem de pesquisa que se distancie da polarização rural/urbano ou da reprodução dos modelos de estruturas sociais urbanas em meios situados e vinculados ao universo interiorano.
É válido pontuar que o Alto do Moura é um desafio empírico às noções de rural e urbano e, consequentemente, aos esforços de estudo sobre as dimensões espaciais e sociais da vida rural ou urbana. Afinal, é uma comunidade que tem sua história vinculada aos povos indígenas e atividades agrícolas, tem um posicionamento geográfico que a manteve significativamente distante do modo de vida urbano mais convencional por décadas, mas que, desde 19803, foi enquadrado pelo ordenamento municipal oficial como bairro, mesmo mantendo uma dinâmica própria e distinta da cidade.
Uma ressalva faz-se necessária antes de seguirmos adiante, neste artigo não há pretensão de reconstruir o espaço social como recomenda Bourdieu, mas a ideia é lançar luz sobre as tensões que se manifestam dentro de um espaço social local como o Alto do Moura. Ou seja, mesmo não (re)construindo as relações sociais do Alto do Moura como espaço social, a noção serve de suporte à identificação de um tensionamento no espaço físico e, ao mesmo tempo, no espaço social local.
Abordagem teórico-epistêmica e estratégia metodológica
A estruturação de todo o trabalho investigativo do qual este artigo toma parte vem sendo norteada pela convicção no construtivismo epistemológico como abordagem/prática pertinente à pesquisa social contemporânea. O que está no cerne do que aqui se entende por tal construtivismo é a condição criadora inerente a este tipo de prática, ou seja, aceita-se que os pesquisadores são responsáveis pela criação – por meio e ao longo de sua atuação reflexiva – daquilo que apresentam como conhecimento.
Há ao menos três aspectos da trajetória e do legado de nossa principal inspiração, a epistemologia consagrada sob a assinatura de Pierre Bourdieu, que precisamos recuperar por serem decisivos à elaboração da noção de “tensão disposicional emergente” que norteia o desenvolvimento deste trabalho: (1) sua experiência original de pesquisa na Argélia de meados do século passado; (2) a importância que consagrou à construção do objeto em sua prática de pesquisa; e (3) a intencionalidade que observava em sua maturidade na noção de habitus.
O primeiro aspecto se deve ao entendimento de que há nas origens argelinas da epistemologia bourdieusiana uma atitude construtivista que autoriza novas elaborações de instrumentos teóricos (noções) a partir dos desafios que o trabalho de campo apresenta. A condição de vida-trabalho e a estrutura social com a qual se deparou na Argélia demandaram-lhe a criação de critérios e categorias próprias para a compreensão daquele quadro, “o notável é como ele, antes de aplicar um esquema teórico pré-concebido, procede em um sentido indutivo para gerar suas categorias” (BARANGER, 2012, p. 121-122). A manipulação do material de campo resultou principalmente “de um procedimento empírico que, praticamente por ensaio e erro, foi agrupando os entrevistados em categorias internamente homogêneas” (BARANGER, 2012, p. 123). Ou seja, resgatar esta sua experiência original nos permite destacar “como suas inovações conceituais foram guiadas pelas questões práticas da pesquisa de campo” (WACQUANT, 2006, p. 16).
O segundo aspecto surge daquilo que é apontado como seu signo mais distintivo, seu modus operandi (WACQUANT, 2006), em particular, a atenção que consagrou ao processo de construção dos seus objetos (BOURDIEU; WACQUANT, 1992); tal processo era por ele considerado ato fundamental à pesquisa (BOURDIEU, 1989). Aos seus olhos,
a eficácia de um método de pensar nunca se manifesta tão bem como na sua capacidade de constituir objetos socialmente insignificantes em objetos científicos ou, o que é o mesmo, na sua capacidade de reconstruir cientificamente os grandes objetos socialmente importantes (BOURDIEU, 1989, p. 20).
Interpretamos a sociologia bourdieusiana como uma linguagem progressivamente elaborada, com seus significados ajustados às novas situações de pesquisa que o próprio Bourdieu enfrentava com suas equipes, por meio da construção de novos objetos.
O terceiro e último aspecto aqui retomado é a intencionalidade explicitada pelo próprio Bourdieu, em sua fase madura, ao olhar em retrospectiva para o que intencionou comunicar com a noção de habitus, um instrumento teórico a serviço da sua prática de pesquisa. Para ele, o surgimento e os usos iniciais do termo em suas pesquisas se deram em decorrência de uma “estratégia prática do seu habitus científico”, “tendo por função, sobretudo, designar de maneira estenográfica, uma postura teórica, princípio de opções metódicas, tanto negativas como positivas, na condução da pesquisa... a sua força teórica residia precisamente na direção da pesquisa por ela designada” (BOURDIEU, 1989, p. 61-62). Muito embora tenha sido apresentada em “Esboço de uma teoria da prática” (BOURDIEU, 1977), foi em “A Distinção” que teve seu uso consagrado (BOURDIEU, 2007) e, grosso modo, pode ser entendida como um sistema coerente de disposições transponíveis, transferíveis, duradouras e homogêneas na extensão de uma classe social ou fração de classe. O que mais nos importa aqui registrar é que “quando Bourdieu começou a usar o conceito de habitus, ele estava procurando por um conceito com o qual pudesse descrever ações estratégicas localizadas” (ROBBINS, 2000, p. 27).
Em termos específicos e relativos à pesquisa da qual este artigo é parte, a condição de vida e trabalho dos membros-proprietários de negócios no Alto do Moura do século 21 se mostrou como um desafio empírico para o qual sentimos a necessidade de promover ressignificações conceituais no aporte teórico-epistêmico ofertado pela sociologia bourdieusiana, aqui em particular, no sentido da construção das tensões espaciais e relacionais mais recentes que condicionam e possibilitam a atuação de tais personagens como objeto de pesquisa. Afinal, uma característica marcante a esse campo é a relação íntima entre os pesquisados, seus negócios e a comunidade.
Além da localização e ressignificação da noção de espaço social em função de nossos interesses investigativos, a principal noção que elaboramos para nos servir de instrumento teórico – entendido como uma ferramenta que orienta a atitude investigativa, organiza o trabalho de campo e o que se produz por meio dele – pode ser lida como uma ressignificação contextualizada da noção de habitus. Enquanto essa tende a destacar o passado incorporado pelos indivíduos que se faz presente nas disposições, propensões e apetências que transparecem no sentido prático de suas ações, a noção de tensão disposicional emergente, conforme já declarado anteriormente, serviu para dar suporte à nossa compreensão sobre o confronto de tal herança com as forças contextuais que interferem no individual e no coletivo na extensão de um agrupamento social localizado, como é o caso da comunidade artesã do Alto do Moura. Herda o caráter heurístico (BOURDIEU; WACQUANT, 1992; SANTORO, 2008) e o núcleo disposicional da sua origem bourdieusiana, porém nos serve para elaborar sobre como as mudanças contextuais (LAHIRE, 2010, 2015) e geracionais (em termos de ocupações, modos de vida, juízos de valores e horizontes de futuro, por exemplo) estão sendo incorporadas por alguns membros daquela comunidade, aqui tratada como um espaço social local em transformação. Tem a condição de instrumento teórico-exploratório, ou seja, serve como uma bússola para seguir adiante com o trabalho de campo, organizando-o em função dos temas que governam nossos interesses investigativos.
De modo associado a tal elaboração teórico-epistêmica, essa pesquisa teve natureza qualitativa e caráter descritivo, pois enfoca a descoberta e análise de fenômenos procurando descrevê-los e interpretá-los de forma detalhada (RICHARDSON, 1989). Para explorar assuntos principalmente relacionados aos temas artesanato, comunidade artesã e Alto do Moura, empreendemos a reunião e a revisão de estudos sobre a localidade caruaruense, bem como sobre questões relacionadas à produção artesanal no Brasil deste século.
Em termos de trabalho de campo, a maior parte se deu ao longo do segundo semestre de 2017 e início de 2018 e possibilitou a elaboração de informações primárias. Foram realizadas 36 entrevistas semiestruturadas até se chegar a um ponto de saturação com os públicos de interesse. Os(as) principais entrevistados(as), artesãos(ãs) proprietários(as) de lojas-oficinas ou membros da comunidade que então possuíam um negócio de outra natureza, foram selecionados(as) em função das diferenças que apresentavam entre si (por exemplo, em termos de traços, se vinculados às famílias mais tradicionais), do tipo e do porte do negócio, da localização do mesmo e da acessibilidade/disponibilidade do(a) proprietário(a) para a interação.
Para nos apoiar na construção de uma visão externa, porém vinculada de algum modo e medida ao universo do público pesquisado, também selecionamos e realizamos entrevistas com pessoas que foram denominadas de formadoras de opinião. Estes foram: dois historiadores locais, atual presidente e ex-presidente do Instituto Histórico de Caruaru (IHC), sendo um deles mestre em arqueologia e com livro publicado sobre o Alto do Moura; o pároco da comunidade há mais de 15 anos, mas que também é professor da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE) e doutor em educação; uma das profissionais de saúde responsáveis pela Unidade de Saúde da Família do bairro, também professora da UFPE e então moradora do bairro; e um ex-membro da diretoria da Associação dos Artesãos em Barro e Moradores do Alto do Moura (Abmam) por mais de um mandato.
Para identificar a fonte de cada um dos trechos utilizamos a seguinte codificação: “ART” - 20 artesãos(ãs)-proprietários(as) de negócios ligados ao artesanato (oficinas ou ateliês); “PRO” - 11 proprietários(as) de outros negócios não ligados ao artesanato (mercadinhos, padarias, salão de beleza, lanchonete etc.); “FOR” - 5 formadores(as) de opinião.
Ao longo das entrevistas também foram realizadas observações diretas com notas de campo, grupos focais e outras assistemáticas. É válido ainda registrar que um dos autores seguiu acompanhando e tomando notas das reuniões ordinárias (mensais) da Abmam desde 2015 até dezembro de 2019.
Emergência e caracterização das tensões
Antes da caracterização das tensões inicialmente propostas, ou seja, relacionadas às transformações no espaço social local e às mudanças no padrão de relacionamento comunitário, acreditamos seguir adiante com duas questões: quais dinâmicas e processos sociais originaram tais tensões? Qual nova doxa4 se constituiu a partir do confronto da história coletiva local com as tendências de modernização que se impuseram ao Alto do Moura do século 21?
Quase a totalidade do público pesquisado (ART e PRO) nasceu e cresceu numa localidade que preservou por décadas características semelhantes a um povoado rural. Poucas dezenas de famílias habitaram, antes do último quarto do século passado, casas que se seguiam pela quase única via local. Entretanto a virada de século foi marcante para o devir da comunidade ao explicitar, por exemplo, por meio da disseminação da reprodução das bonecas do tipo baianas em série, a inserção de elementos externos de cariz “modernizante” ao modo de produção artesanal comunitário.
Aquela nova peça e seu modo de produção seriado praticamente possibilitaram a formação de um novo grupo de trabalhadores do barro, os “bonequeiros” ou “montadores de bonecas”. Tais denominações são muitas vezes proferidas com certo distanciamento e demarcação de quem se reconhece como artesão, ou seja, aquele que tem a capacidade de criar suas próprias peças com autonomia. Dessa distinção depreende-se dois aspectos, o primeiro seria um novo modo de hierarquização interna, base das mudanças nos padrões de relacionamento também associadas aos diferentes tipos de novos moradores, o segundo, também associado ao primeiro, setenciando que o Alto do Moura não seria mais como em seu passado recente, afinal, muita gente de fora passou a fazer morada por lá e, assim, possibilitou a mudança na doxa de que a localidade se caracterizava como uma comunidade artesã um tanto autóctone e desconectada do mundo contemporâneo, talvez a expressão “santuário do artesanato” sirva bem para sintetizar esta “verdade autoevidente” criada e partilhada localmente.
Já nos anos mais recentes, passou a ser comum escutar depoimentos de moradores afirmando que o Alto do Moura “não é mais o mesmo, mudou muito”, principalmente, após ocorrências criminais. Entre o final de 2016 e o início de 2017, passamos a ver menos vida comunitária nas ruas e calçadas, em particular à noite, portas e janelas fechadas ou mesmo gradeadas com maior recorrência. Além disso, notou-se a construção de casas-prédios de alguns andares, o revestimento de outras com cerâmica, e uma significativa redução nas fachadas originais e de suas portas do tipo “saia e blusa”. Ao mesmo tempo, passou-se a ver maior circulação de públicos não desejados, como os moradores dos novos conjuntos habitacionais populares (do Programa Federal Minha Casa Minha Vida), menos turistas e mais atravessadores.
A noção de tensão disposicional, que pode ser vista como um fio que nos permite interligar os temas (re)elaborados ao longo do trabalho de campo e que tomaram as formas dos tópicos que se seguem, surgiu no processo de investigação teórico-empírica como um modo de enfrentar este devir comunitário singular, em diversos aspectos, e integrado à globalidade em muitos outros. Talvez o desengajamento da nova geração do ofício artesão, rumo a outras atividades mais ou menos qualificadas (a depender do campo de possibilidades que sua condição familiar de partida permite almejar ou mesmo alcançar), e a proliferação de negócios de outra natureza e seus letreiros (isso sem falar naqueles que, ao final da tarde, passam a vender pastéis, espetinhos, bolos etc., no improviso e na frente de casa, na esperança de complementar a renda familiar) possam materializar uma nova doxa: hoje se acredita que para uma família ter um rendimento mensal que a possibilite subsistir, é preciso que parte de seus membros tenham outra atividade que gere renda. Ou seja, esse Alto do Moura não é mais o mesmo em termos do modo de vida, de paisagem urbana, de vizinhança e também do tipo de atividade econômica viável na localidade.
A seguir, o que procuramos elaborar como elemento comum aos nossos pesquisados é o tensionamento íntimo (o drama individual) e coletivo (a trama dos dramas) que transpareceram estar vivenciando naquele espaço social em transformação.
As novas paisagens, vizinhanças e a insegurança comunitária
A chegada dos novos loteamentos e conjuntos habitacionais é um acontecimento recente que vem transformando a dinâmica urbana e comunitária local neste século e, em particular, de modo mais intensificado nos últimos anos, culminando com a entrega de dois grandes conjuntos habitacionais em 2017, gerando considerável crescimento populacional e novas preocupações.
Identifica-se que a região possui cerca de 11 empreendimentos, entre loteamentos e conjuntos residenciais, que estão voltados para diferentes públicos e definem seus ocupantes com base na faixa de renda. Dentre eles, existem três empreendimentos destinados a atender às demandas sociais do município (faixa baixa renda ou situação de risco), que são os conjuntos Barra de Taquara, Luiz Bezerra Torres e Residencial Alto do Moura. Juntos, esses dois últimos, entregues à população em 2017 por meio do programa do Governo Federal Minha Casa Minha Vida, oferecem 3.892 unidades de habitação.
Apesar de estarem habitados desde então, ambos os conjuntos apresentam problemas desencadeados por seu modelo de ocupação. São questões associadas à infraestrutura urbana e déficit no atendimento de serviços públicos, tais como transporte, atendimento médico e educação, o que leva seus moradores a buscar esses serviços nas comunidades mais próximas, sobrecarregando-as. Além disso, está inserido no perímetro geográfico do bairro o Distrito Industrial, que tem crescido nos últimos anos com a instalação de mais unidades fabris.
Muito embora tal quadro não seja novidade nas escalas nacional, regional ou estadual, acreditamos que seja necessário descrevê-lo para ambientar a atual dimensão social do contexto espacial que se impõe àquela comunidade artesã. A proximidade de parcelas específicas desses novos moradores vem fazendo emergir localmente uma demarcação social, já problematizada, acerca de tais modelos habitacionais (CHAMBOREDON; LEMAIRE, 2015). A chegada mais recente de milhares de habitantes para os conjuntos mais populares – e com isso a significativa mudança no volume e no perfil das pessoas, associadas à classificação social de “baixa renda”, circulando no cotidiano do bairro – tem impactado no modo de vida prevalente na comunidade, em particular nos moradores mais antigos e vinculados às famílias artesãs mais conservadoras. É válido mencionar que alguns elementos identificados por Laferté (2014, p. 427), “as relações sociais são interpessoais e não funcionais, e pouco inscritas na divisão do trabalho”, no contexto interiorano francês contemporâneo, são similares a aspectos observados no Alto do Moura.
Retomando o conceito de identidade (SANTOS, 2002, 2006) e as implicações que o surgimento de tais tipos de equipamentos urbanos no perímetro geográfico do Alto do Moura trazem, não somente em termos espaciais mas também relacionais, é possível apontar que este modo de se relacionar característico, inerente ao pertencimento a um lugar e a um grupo (SANTOS, 2002) é tensionado no curso de um processo de urbanização como esse. Indo além da materialidade desse território específico, com Santos (2006) é possível observar que sua existência como espaço social local está em transformação acelerada pelo fluxo significativo de pessoas externas (diferentes de outras desejadas, transitórias ou interessadas em artesanato, como os turistas) ao agrupamento comunitário. Somam-se a isso as mudanças na condição e nos modos de se relacionar intracomunitários e com outros públicos (conforme tratado no item 4.2).
Como efeitos dessas transformações, aqui podem ser destacados dois aspectos tensionadores do público pesquisado, um primeiro vinculado à condição de classe e ao modo como são observados os beneficiários do programa Minha Casa Minha Vida, por exemplo, e um segundo bastante recorrente nos depoimentos dos pesquisados que relacionam o volume significativo de ocorrências criminais com esse boom imobiliário.
A insegurança pública é um sentimento partilhado e uma constatação objetiva, tanto nos conjuntos habitacionais quanto no núcleo central do Alto do Moura: “é porque vem gente de todo tipo, boa e ruim, morar aqui” (ART). Para eles, esse tipo de crescimento é desordenado e impacta negativamente na comunidade, “o Alto do Moura vem crescendo e sendo engolido, não tem estrutura” (PRO). Aos olhos de muitos dos mais antigos, a vida era mais tranquila quando conheciam todos os que residiam na comunidade, ficando difícil se habituar com estranhos circulando com frequência.
O aumento da violência não prejudica apenas a qualidade de vida, mas também os negócios da comunidade, pois os moradores não se sentem seguros em seus estabelecimentos comerciais e oficinas, como ressalta um entrevistado: “vê hoje, o artesão tá com medo até de atender na sua loja, pode ser roubado né? Seis horas tem que fechar tudo, isso existia antigamente?” (ART). Também acreditam que tudo isso afasta o turista que fica assustado ao ver as notícias sobre a criminalidade no bairro. A este ponto, percebe-se como aspectos ligados à nova urbanidade interferem também em heranças disposicionais relativas às práticas nos negócios e ao convívio com a vizinhança. Voltando-se para a comunidade do Alto do Moura como objeto de análise, e debruçando-se sobre o uso do mesmo território enquanto alvo do fenômeno de urbanização, as mudanças pelas quais vem passando o bairro podem ser caracterizadas tanto nos termos de sua fisionomia, fisiologia, estrutura, aparências, quanto em suas relações (SANTOS, 2006).
Assim, a comunidade vem se diferenciando daquela que se constituiu inicialmente a partir dos vínculos familiares entre os moradores, cujo distanciamento geográfico em relação ao núcleo urbano do município possibilitou uma atmosfera associada ao universo rural, um modo de convívio e hábitos culturais bem definidos, ou seja, a partilha de um senso de identidade e pertencimento (SANTOS, 2002).
Além da tensão referente à privação do espaço público, adiciona-se o sentimento de estranhamento perante um lugar que outrora parecia familiar: “minha esposa foi pegar um ônibus, olhou e não viu uma pessoa conhecida aí disse: ‘oxê, mas será que tô no ônibus certo?’” (ART). Em contrapartida, alguns acreditam que a vinda de novas pessoas é um avanço e pode contribuir com o desenvolvimento dos negócios da comunidade, “porque aí gira mais gente e aumenta o fluxo de dinheiro... quanto mais engajado com eles, melhor para o meu comércio” (PRO) ou “é o desenvolvimento que chegou aqui, né” (ART). Um fato curioso nesse sentido é a ponderação que a maioria demonstra ao se expressar de modo paradoxal em termos como: “é aquela coisa, a gente tem que se dá bem com todo mundo, mas nem todo mundo você conhece” (PRO).
A objetividade dos números de assaltos e afins aos estabelecimentos comerciais e moradores se mistura com o modo como questões de distinção social se reconfiguram no Alto do Moura do século 21. O estranhamento ao perfil dos novos transeuntes do bairro pode até ser censurado, relativizado ou mesmo velado nas falas dos nossos entrevistados, mas a tensão social para além do medo da criminalidade se mostra evidente. A insegurança objetiva oferece a justificativa para as novas classificações sociais praticadas num cotidiano progressivamente também ocupado por estranhos, em particular quando esses são portadores de habitus distinto do mais recorrente numa comunidade artesã e daqueles com os quais seus membros anseiam interagir.
Aqui se tem clareza de que o “habitus não é necessariamente coerente e unificado mas revela graus variados de integração e tensão dependendo da compatibilidade e do caráter das situações sociais” (WACQUANT, 2017, p. 215), pode-se dizer que as tensões relacionadas aos conjuntos habitacionais mais recentes e aos seus novos moradores e moradoras de baixa renda se mostram permeadas por um misto de preconceito de classe, associação objetiva de ocorrências criminais e insegurança social. Ou seja, seriam tais elementos os “gatilhos externos” (WACQUANT, 2017, p. 216) que estariam provocando transformações, tanto no espaço social local quanto no modo de interagir comunitário-artesão.
Mudanças no padrão de relacionamento
As mudanças relativas à transformação da paisagem se refletem em impactos sobretudo na dinâmica de relacionamento entre os moradores mais antigos. Porém, para a compreensão de tais mudanças, nos parece importante ressaltar, como ponto de partida, o olhar interno e externo sobre a imagem do bairro e os aspectos simbólicos a ela vinculados, antes e depois das principais transformações urbanas pelas quais vem passando a paisagem do Alto Moura.
Pela perspectiva externa, o olhar romantizado de turistas e frequentadores do local, semelhante às conotações que tendem a aproximar o contexto artesão de um modo de vida supostamente mais associado à ideia de “tradicional” do que de “moderno” (ARAÚJO, 2006) apontava, no imaginário popular, para uma ideia particular sobre a forma como os moradores se relacionavam entre si. Tal visão chega a ponto de vê-los como se constituíssem uma grande família, admirada pelo modo como se respeitavam e “abraçavam” pessoas de fora que chegavam a sua convivência, sobretudo por volta dos anos 1980:
Eu percebia a forma de interação entre eles, a forma de relacionamento deles não era nem de compadrio, era de família mesmo. Eu chegava no Alto do Moura às vezes com hora marcada para voltar e eu não conseguia, porque o clima era tão fraterno, era um clima que eu não encontrava na cidade né, e é como se eu me teletransportasse de fato (FOR).
Manuel Vitalino, filho do Mestre, falou que a união no Alto do Moura foi uma herança do seu pai e que, quando precisava, levava fregueses na casa dos colegas, assim como fazia com ele (COIMBRA; MARTINS; DUARTE, 2010). A fala de um dos formadores de opinião retrata bem essa visão de união e respeito entre as famílias:
ali se tem a história, laços de famílias interligados, é impressionante a imbricação de parentesco, isso é um dado muito forte, todo mundo é compadre de todo mundo e todo mundo é parente de todo mundo, chega lá não pode falar mal de ninguém que você pode tá falando com o tio da outra (FOR).
Curiosamente, ainda hoje tal visão romântica também emana da própria comunidade, assim como retrata uma das entrevistadas que se mudou para o Alto do Moura para abrir seu negócio: “eu amo o Alto do Moura, é aconchegante, aqui se adoecer um, todos se juntam, vende alguma coisa de casa ou faz um bingo e ajuda, eles são assim, muito acolhedores” (PRO).
Com a virada do século e o aumento do fluxo de pessoas para morar no bairro e trabalhar com artesanato, aqueles laços tão evidentes e admirados pelo olhar romântico (tanto externo quanto interno) passaram a se modificar. Nesse sentido, os principais aspectos apresentados pelos entrevistados ou entrevistadas foram a falta de união entre as pessoas de convívio próximo, as “tensões silenciadas” entre as famílias, bem como o impacto dessa mudança de comportamento na vida comunitária: “aonde você procurar, nos quatro cantos do Alto do Moura, não tem união” (ART).
É fato que o lugar apresenta características sócio-históricas e culturais próprias. É ainda costume aludir a uma atmosfera diferenciada, muitas vezes ligada aos aspectos simbólicos associados ao ofício comunitário da atividade artesã, aos núcleos familiares tradicionais (ROCHA, 2014) ou ao vínculo da atividade ao contexto sociocultural local. No entanto a tensão que aqui se busca descrever pode ser bem ilustrada a partir do seguinte depoimento: “eu não tenho mais o Alto do Moura de antigamente, eu tenho ele como um bairro comum, não tem mais aquela essência. Aqui era uma comunidade, era o bairro dos artistas, o bairro de Mestre Vitalino, e hoje não” (ART).
Adicionalmente, a mudança de rotina diante das novas ocupações e dinâmicas de trabalho que vêm surgindo no bairro, bem como o acesso ampliado ao ensino técnico e universitário na cidade também têm contribuído para modificar o modo de vida da comunidade. Muitos moradores passaram a integrar o quadro de empresas no Distrito Industrial e no centro da cidade. Jovens universitários, descendentes de artesãos, questionam-se sobre a viabilidade de seguir ou não no artesanato.
O confronto íntimo e coletivo com as práticas e dinâmicas associadas a outros contextos (como o acadêmico/urbano/industrial) passa a se fazer presente entre os membros das famílias originariamente artesãs. O que se aprende e se incorpora quando se passa a frequentar outros meios flui para o seio da comunidade por meio dos seus membros – que dela se deslocam diariamente rumo às ocupações disponíveis alhures e às possibilidades abertas por caminhos como, por exemplo, a obtenção de um diploma universitário. As diferentes disposições incorporadas em processos como esse (BOURDIEU, 2007) são refletidas em questões de convívio como o tempo e o modo como se escuta (ou não) os mais velhos, bem como que tipo de assunto desperta o interesse das gerações atuais e futuras.
Conforme já tratado anteriormente, os fatores referentes à paisagem e à infraestrutura urbana imputam um caráter mais objetivo a tais mudanças que os fatores relativos à imagem associada à dinâmica do artesanato. Como apontado por um entrevistado, quando a prefeitura asfaltou toda a rua principal, os carros passaram a andar em alta velocidade e, por esse motivo, muitas mães não deixam mais que as crianças brinquem na rua. Muito mais do que a qualidade objetiva do piso da via, o asfalto sobreposto ao antigo paralelepípedo simboliza mudanças no contexto que geram novas demandas disposicionais aos membros da comunidade, aqui, em particular, no uso partilhado do espaço público pelas crianças. O “Alto do Moura de antigamente” é uma referência que carrega um tanto de tristeza e melancolia pela percepção do declínio das condições de vida que diferenciavam o bairro e propiciaram, num passado não tão remoto, um modo de vida e relacionamento interno próprios partilhados entre seus moradores, mesmo que um tanto diverso da “visão romântica”.
Além disso, o modo como recebem e se relacionam com novos moradores é outra forma de divisão social que se manifesta no olhar para pessoas de fora que, mesmo antes desse boom imobiliário mais recente, estabeleceram morada no Alto do Moura. Por ser um bairro mais afastado do centro e considerado tranquilo, ao menos até alguns anos atrás, houve pessoas que optaram por morar nele em busca de uma melhor qualidade de vida ou de uma integração com o caráter e a aura artesanal que pairavam sobre o bairro. Mas, em muitos casos, isso não se deu sem tensionamentos, em particular com aqueles que ao chegar na localidade passaram a se dedicar à atividade artesanal e receberam a alcunha de “forasteiros”. Na visão de alguns dos(as) artesãos(as) forasteiros(as), há uma hierarquia silenciada na comunidade que não os permite serem valorizados(as) ou integrados(as) como deveriam. Uma entrevistada fala que tudo que aprendeu foi na prática, pois ninguém a ajudou ou ensinou nenhuma técnica, tendo enfrentado muitas dificuldades e pensado em desistir diversas vezes, “já teve gente que disse que não sabe o que é que eu vim fazer nesse lugar, aí me dá aquela tristeza” (ART).
Por outro lado, alguns dos comerciantes locais, movidos pelo desejo de maiores ganhos nos seus negócios, dizem receber bem os novos integrantes, “o bairro precisa crescer para misturar o pessoal mais antigo com os novos e criar um novo ar para o Alto do Moura, tirando aquela visão mais tradicional” (PRO). Num sentido contrário a essa perspectiva mais comercial, ouvimos em campo depoimentos que enfatizam o fato de que tal público, por não ser “nascido e criado” no Alto do Moura, estaria prejudicando a atividade por “não saber” fazer peças, e que trata o artesanato como qualquer negócio, excluindo seu valor simbólico como “arte”.
Além disso, reclama-se com recorrência que um dos principais problemas com a concorrência vem desses artesãos e artesãs “forasteiros(as)”. Na fala de um artesão de família tradicional: “50% da população do Alto do Moura já é de fora, quem vem morar aqui, aprende a fazer, vende de graça e toma o lugar de quem já é artesão” (ART). É possível dizer que tal depoimento, somado às considerações do anterior sobre um tipo de “arte” “original do Alto do Moura”, acrescenta a questão da territorialidade, relativa às condições de produção artesã, explícita na insatisfação desses depoentes.
Com relação a essa forma particular como se relacionam com pessoas de fora da comunidade, é válido demarcar três aspectos tensionadores contemporâneos. Primeiro, mesmo em se tratando de um público de origem social distinta do que veio habitar os conjuntos dedicados à faixa de “baixa renda”, a demarcação social entre os “filhos do Alto do Moura” e os forasteiros também emerge. Segundo, a reivindicação de “uma autoridade artesã local” que aplica os critérios – dos quais muitos acreditam ser portadores e guardiões – para a designação de quem tem competência ou não para o ofício, algo que pode ser subentendido na naturalização de um “bom gosto” supostamente herdado pelos nativos e que os permitiria tanto se diferenciar dos “forasteiros” (não possuidores de tal herança) quanto julgar a qualidade “artística” objetivada numa peça (BOURDIEU; DARBEL, 2016). Terceiro, a concorrência incorporada no âmbito do convívio social e que estigmatiza quem chega para também viver da atividade.
Por fim, além das tensões relacionais ora descritas, há muitas outras tensões silenciadas, que não emergem a um ponto crítico, mas, nem por isso, deixam de estar presentes no processo de transformação da dinâmica relacional e do espaço social do Alto do Moura. Conforme exposto nesse sentido, ainda hoje é possível ouvir depoimentos embebidos por uma “visão romântica” dos laços comunitários no Alto do Moura. Tal visão, quando comparada com a dinâmica de vida na comunidade neste século, pode ser entendida como uma dissonância daquela imagem consagrada do Alto do Moura, a partir de sua projeção ao cenário nacional que seguiu o sucesso do Mestre Vitalino.
Por um lado, os vínculos originais das famílias mais antigas parecem estar, em alguma medida, se afrouxando com o devir das novas gerações e com a chegada ao século 21, por outro, uma versão localizada da competição de mercado parece ganhar cada vez mais espaço nas ruas e por entre os membros da comunidade. Esses modos emergentes de se relacionar entre si estariam tensionando as bases sobre as quais foi soerguido o padrão do passado. Essa difere da tensão anterior por seu caráter mais intrínseco, mas se relaciona àquela pela contemporaneidade e modo como está sendo incorporada por aquele corpo social.
Considerações finais e questões ao seguimento da pesquisa
Nossa pretensão com este trabalho foi caracterizar as tensões disposicionais emergentes entre membros-proprietários(as) de negócios na comunidade artesã do Alto do Moura neste século 21, partindo do pressuposto de que para compreender devidamente as condições de produção e a comercialização numa comunidade como tal seria necessário esboçar as principais mudanças referentes às dimensões espacial e social que possibilitam e constrangem a atividade. Muito embora tais tensões já tivessem sido vislumbradas (e sua maioria registradas, mesmo que noutros termos), inicialmente, foi o entendimento de que, em um tecido social como esse, há uma relação íntima entre os(as) pesquisados(as), seus negócios e a comunidade – algo que nos apresenta desafios analíticos e compreensivos específicos – que praticamente nos obrigou a dedicar maior atenção a temas como insegurança pública, questões urbanísticas, modos de vida e de relacionamento social etc.
As noções de espaço social local em transformação e de tensões disposicionais emergentes podem ser tomadas como contribuições que ilustram os esforços de teorização empreendidos neste artigo. Procuramos realizar uma apropriação seletiva e promover uma ressignificação localizada de aspectos do legado da sociologia bourdieusiana e seu “uso aberto” (SANTORO, 2008), inspirados no modo como o próprio Bourdieu elaborou suas noções teóricas e construiu seus objetos.
Ao observarmos as transformações associadas ao processo de urbanização do Alto do Moura – que levam à sua conformação como bairro, mesmo que com suas especificidades, e não mais apenas um ponto turístico ou “santuário de artesanato” – nos parece que a comunidade atravessa passagem histórica da condição de um povoado ou vila artesã para a de um subúrbio periférico nordestino. Tal conjuntura coloca em xeque a discrepância entre o Alto do Moura do século 21 e o lugar que ele ocupou por décadas (e que ainda ocupa) no imaginário de Caruaru e até mesmo do Brasil. A própria identidade dos moradores locais parece se encontrar em crise diante de tudo isso.
Aos nossos olhos, além da reunião sistematizada e da síntese – por meio da elaboração do material empírico como tensões – do conjunto de informações e reflexões com as quais seguimos adiante neste percurso investigativo, um trabalho dessa natureza precisa colocar questões que tenham o potencial de oferecer-nos rumos e, ao fazê-lo, também potencialmente inspirar outros(as) pesquisadores(as) a pensar suas questões em temas e contextos que tangenciam, ou mesmo se aproximam, do que foi aqui tratado.
No que se refere às novas paisagens, vizinhanças e a insegurança comunitária, o que ainda seria necessário acessar para melhor compreender os desdobramentos mais marcantes desses temas junto ao público pesquisado? O que tem sido mais significativo aos posicionamentos dos(as) pesquisados(as) em questões como essas?
Acerca das mudanças no padrão de relacionamento, de que modo a concorrência, mais recentemente exacerbada, tem impactado nas relações sociais entre os membros da comunidade? Além disso, em que medida e em quais termos o fator “classe” pesa nessa “balança imaginária” da aceitação social?
Enfim, as tensões que por ora habitam o Alto do Moura não se esgotam em si mesmas, nem sequer se esgotam nele próprio. O que foi aqui analisado sugere que muito mais há para se refletir sobre o que se incorpora (individual e coletivamente) no processo que se dá entre o “moldar” e o “moldar-se” dos membros da comunidade, uma vez que tais tensões se mostram relacionadas a uma dinâmica mais complexa na qual o Alto do Moura também está inserido.
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Recebido em 16/03/2020
Aceito em 30/09/2020
1 Registramos nosso agradecimento à Fundação de Amparo à Ciência e Tecnologia de Pernambuco (Facepe) pelo apoio à realização da pesquisa. Também registramos nosso agradecimento a Shirley Kevilen da Silva e Tatiane Florêncio de Lima Silva pela colaboração em versões anteriores deste trabalho.
*Professor e pesquisador do Departamento de Ciências Sociais, Universidade Federal da Paraíba. Doutor em Sociologia pela Universidade do Minho, Portugal. E-mail: marcio.sa@academico.ufpb.br
**Professora Adjunta do Centro Acadêmico do Agreste, Universidade Federal de Pernambuco. Membro do Grupo de Estudos e Intervenções do Agreste (GEIA/UFPE/CNPq). Doutora em Administração pela UFPE. E-mail: profadenisesouza@gmail.com
*** Professora Substituta do Centro Acadêmico do Agreste, Universidade Federal de Pernambuco. Membro do Grupo de Estudos e Intervenções do Agreste (GEIA/UFPE/CNPq). Mestre em Administração pela UFPE. E-mail: jessica_rani@hotmail.com
**** Membro do Grupo de Estudos e Intervenções do Agreste (GEIA/UFPE/CNPq). Graduada em Administração pela UFPE. E-mail: lealbarbara18@gmail.com
2 Lima (2001) descreve que, anteriormente ao século XVI, a região que hoje corresponde ao distrito do Alto do Moura integrava um território que teria sido habitado por índios ‘kariris’. Segundo a autora, existem registros que evidenciam que esses índios possuíam como principal atividade a produção artesanal de peças de barro com características utilitárias e decorativas.
3 Conforme Projeto de Lei n.º 2.910, de 10 de abril de 1980, que englobava o antigo povoado e outras áreas.
4 Aqui entendida como uma verdade autoevidente socialmente partilhada.
ISSN 1517-5901 (online)
POLÍTICA & TRABALHO
Revista de Ciências Sociais, nº 52, Janeiro/Junho de 2020, p. 178-195
EMPREENDEDOR E PRECÁRIO:
a carreira “correria” dos trabalhadores da cultura
entre sonhos, precariedades e resistências1
ENTREPRENEURIAL AND PRECARIOUS:
the career “correria” of culture workers
between dreams, precariousness and resistance
____________________________________
Livia De Tommasi*
Gabriel Moreno da Silva**
Resumo
Objetivo do texto é propor algumas chaves de leitura a respeito de uma categoria de trabalhadores, jovens produtores culturais moradores das periferias brasileiras que, a nosso ver, representam um segmento paradigmático para compreender as transformações ocorridas, nos últimos decênios, no mundo do trabalho. Através dos instrumentos da observação participante e da história oral focada na trajetória de vida de alguns produtores culturais, procuramos compreender os sentidos que os atores constroem sobre suas práticas. Indo além das leituras dicotômicas, que celebram ou demonizam a difusão do empreendedorismo entre grupos sociais subalternos, nos interessa compreender de que forma o trabalho precário no âmbito da “arte e cultura” pode ser considerado pelos sujeitos como possibilidade de superação das amarras do trabalho dependente e afirmação da vontade de trabalhar mobilizando desejos; misturando trabalho, militância e lazer.
Palavras-chave: Empreendedorismo. Trabalho precário. Produção cultural. Periferias.
Abstract
The objective of the text is to propose some reading keys and respect a typology of workers, young cultural students residing in the Brazilian peripheries who, in our view, create a paradigmatic category to understand transformations occurred in the last decades in the world of work. Through the instruments of participant observation and oral history, highlighting the biography of some cultural agent, we seek to understand the meanings that the actors construct about their practices. Going beyond the dichotomous readings, we are interested in understanding how precarious work with “art and culture” can be considered as a possibility of overcoming the bonds of dependent work and affirming the will to work by mobilizing desires and mixing work, militancy and leisure.
Keywords: Entrepreneurship. Precarious work. Cultural production. Peripheries.
Introdução
“A precariedade está hoje por toda a parte”, dizia Pierre Bourdieu (1998, p. 72) referindo-se ao mundo do trabalho, em uma intervenção nos Encontros Europeus contra a Precariedade, já em 1997. O sociólogo referia-se a um fenômeno social específico: a perda das garantias associadas ao trabalho assalariado, ocorrida no decorrer do processo de reestruturação produtiva, que se consolidou nos países centrais a partir dos anos 1980. A luta contra a precarização das relações de trabalho se tornou uma bandeira importante para movimentos sociais nos países europeus, no decorrer dos últimos 30 anos. Antes de se tornar uma categoria sociológica, precariedade foi, e ainda é, uma condição existencial evocada (e denunciada) pelos movimentos sociais (ARMANO; BOVE; MURGIA, 2017).
No Brasil, o uso do conceito de trabalho precário ficou bastante restrito ao campo acadêmico da sociologia do trabalho; consequência, talvez, do fato de que “a precariedade sempre foi a regra na periferia do sistema” (BRAGA, 2012, p. 19). As garantias trabalhistas nunca atingiram o conjunto da classe trabalhadora (ANTUNES, 1995); historicamente, no Brasil, foi o tema da informalidade a ocupar um lugar de destaque nas reflexões acadêmicas e nas reivindicações políticas (ULYSSEA, 2006). É importante, portanto, ter em mente a distinção evocada por Leite, Silva e Guimarães entre o uso dos termos precariedade e precarização:
se o conceito de precariedade pode ser usado para analisar o trabalho de forma praticamente universal, o mesmo não acontece com o de precarização, que se refere mais a uma realidade europeia de perda de direitos conquistados durante os 30 anos gloriosos (...). Nesse sentido, ele teria pouco poder explicativo para a análise do emprego e do mercado de trabalho em países com a marca da informalidade, como os latino-americanos. ” (LEITE; SILVA; GUIMARÃES, 2017, p. 53).
Na Europa, foi a perda de direitos e garantias nas relações de trabalho que motivou, já a partir dos anos 1970, o surgimento de movimentos sociais centrados na luta contra a precarização. No Brasil, só recentemente a visibilidade adquirida pelos chamados “trabalhadores de plataforma” (ABILIO, 2017) tornou manifesta a precarização inerente às perdas de garantias nas relações de trabalho. Com a reforma trabalhista operada pela lei 13.467, de 13 de julho de 2017, e a MP da Liberdade Econômica (Medida Provisória 881/19), dispositivos legais de flexibilização e precarização nas relações de trabalho formal foram introduzidos de forma sistemática e difusa.
Entre nós, o termo que adquiriu uma enorme visibilidade no último decênio foi “empreendedorismo”. Podemos dizer, parafraseando Bourdieu (1998), que, no Brasil, “o empreendedorismo está hoje por toda parte”.
Nossas observações sobre a relevância que o tema do empreendedorismo estava assumindo começaram em 2010, no Rio de Janeiro, no contexto das favelas supostamente “pacificadas”, onde nos deparamos com uma significativa difusão de programas, cursos e projetos voltados a estimular o que chamamos de “empreendedorismo de base comunitária” (TOMMASI, 2013). De lá para cá, a difusão da retórica empreendedora foi massiva. Cursos e programas de rádio e TV, instituições públicas nacionais (principalmente o Sebrae – Serviço Brasileiro de Apoio às Micro e Pequenas Empresas), fundações empresariais (BARBALHO; UCHOA, 2019), empresas da new economy (como Facebook e Google) investem significativamente em inúmeras iniciativas de formação ao empreendedorismo, assessoria, “incubação” ou “aceleração” dos chamados “negócios de impacto” e na difusão de eventos onde são apresentados cases de sucesso.
Público-alvo favorito de muitas dessas iniciativas são as populações “vulneráveis”: mulheres, jovens, negros, moradores das periferias, para as quais o empreendedorismo é apresentado como uma via possível para o sucesso econômico. Na mesma linha, insistem os cultos das igrejas neopentecostais centrados na “teologia da prosperidade” (MESQUITA, 2007).
O empreendedorismo virou uma matéria de estudo nas escolas, nas faculdades de educação, nos programas de formação de professores (DIAS, 2006; PANDOLFI; LOPES, 2013) e as universidades criaram “Agências de Inovação e Empreendedorismo”. Um papel importante é revestido também pela literatura, especificamente o segmento dos livros de autoajuda de negócios (LEITE; MELO, 2008). Essa explosão de publicações, programas na mídia, cursos de formação, palestras, visa não somente à difusão de técnicas, mas de uma moralidade centrada nas virtudes do sujeito empreendedor (COLBARI, 2007); a difusão capilar provoca uma naturalização do termo que circula entre nós como se sempre tivesse existido (LEITE; MELO 2008).
Há, em particular, um segmento social em que a adesão ao empreendedorismo surpreende: os integrantes de grupos culturais de periferia, organizadores de batalhas de rap, saraus, feiras de produtos afro, ligados a movimentos identitários (negros, LGBTQIA+, mulheres). Esse segmento é composto majoritariamente, mas não exclusivamente, por jovens, moradores das periferias, negros, onde a presença de mulheres é marcante e que, nos últimos anos, teve um acesso significativo ao ensino superior. São os que o sociólogo Tiarajú D’Andrea definiu como “sujeitos periféricos”, ou seja, jovens moradores das periferias que assumiram com orgulho sua identidade periférica (D’ANDREA, 2013). Geralmente retratados na literatura e na mídia como “marginais”, hoje abrem empresas e incorporam em seu léxico cotidiano a gramática empresarial. Sujeitos e grupos que misturam atitudes de crítica ao sistema, de luta contra a marginalização e a violência policial com a criação de empreendimentos (CAMPOS, 2019). A emancipação via acesso ao mercado é reivindicada, em particular, por setores do movimento negro e de mulheres (SILVA, 2017).
Assim, a retórica empreendedora (com sua ênfase sobre o empoderamento, a criatividade, a inovação, o trabalho em rede) tem contaminado o agir político de sujeitos que experimentam formas alternativas de organização e militância (frequentemente chamadas de coletivos). Práticas e discursos produzem subjetividades que precisam ser interrogadas, inclusive, para compreender os desafios colocados, na atual conjuntura, à expressão do dissenso.
Na academia, existe uma literatura já bastante significativa sobre manifestações artísticas e culturais que acontecem em contextos periféricos, operadas por indivíduos e coletivos que reivindicam seu pertencimento territorial e afetivo à periferia. As pesquisas no campo das ciências sociais se debruçam sobre as práticas e seus significados políticos (PEÇANHA, 2006; SANTOS, 2019), sobre o perfil dos sujeitos envolvidos, as continuidades e rupturas com respeito à organização política anterior (TAVANTI, 2018; MORENO, 2014), ou sobre o significado estético dessas manifestações (LEITE, 2014), mas são quase inexistentes as pesquisas que interrogam essas práticas enquanto atividades laborais.
Nosso intuito, nesse texto, é propor algumas chaves de leitura a respeito desse segmento de trabalhadores, que utilizam expressões diversas para se identificar (a depender do campo discursivo de referência), como “trabalhadores da cultura”, ou “produtores culturais”, ou “empreendedores da cultura”. A nosso ver, representam um segmento paradigmático para compreender as transformações ocorridas, nos últimos decênios, no mundo do trabalho.
Sem passar em resenha a vasta literatura existente sobre essas transformações (ANTUNES, 1995; DE LA GARZA, 2011), nos interessa dar ênfase aos atributos requeridos aos trabalhadores quando, para fazer frente às elevadas taxas de desemprego provocadas pela reestruturação produtiva, à globalização dos mercados, à deslocalização da produção, “flexibilidade” e precarização foram apontadas como únicas saídas possíveis. O “novo espírito do capitalismo” (BOLTANSKI; CHIAPELLO, 2009) requer um trabalhador que coloque em jogo suas capacidades criativas, suas competências sempre renovadas e atualizadas, que invista permanentemente no crescimento de seu “capital humano”, no seu “saber-ser”, que seja autônomo e capaz de colher as oportunidades que o mercado e sua “rede” de contatos lhe oferecem, que assuma os riscos de suas empreitadas sem esperar que o Estado garanta seus direitos de trabalhador. Um trabalhador que se ative permanentemente, que corra atrás, que enfrente os desafios, as incertezas, que aprenda com as caídas, que invista na produção de si, em sua imagem de sucesso, em sua capacidade de “resiliência”. Que seja empreendedor de si mesmo.
Artistas2 e produtores culturais que encontramos nas periferias do Rio de Janeiro e de São Paulo parecem condensar esses atributos. Acostumados a “se virar”, precisam ter capacidades variadas para jogar seu talento criativo em projetos e demandas de múltiplos agentes, precisam procurar seus patrocínios e os financiamentos necessários às suas produções, devem, ainda, “correr atrás” dos recursos possíveis, investir na ampliação de suas redes de contatos e em sua imagem pública. Para sobreviver e manter suas atividades, precisam inventar seu próprio trabalho, costurar redes de relações na espera de uma oportunidade para mostrar seus talentos sem ter certezas quanto aos rendimentos; aceitam os riscos, as incertezas, a falta de garantias, em troca da possibilidade de exercer um trabalho gratificante, buscando realizar seus sonhos (FERREIRA, 2017).
Para jovens que se movimentam nas margens (do mercado de trabalho, da indústria cultural e espaciais da cidade), a cultura tem se tornado um campo possível de trabalho e, ao mesmo tempo, de ativismo político (TOMMASI, 2018). Nesse campo, destacam-se vozes que se posicionam contra o racismo, o machismo, contra as desigualdades que estruturam a sociedade brasileira. Indivíduos que se orgulham de ostentar seus cabelos crespos e que se afirmam a partir de seus corpos, fora do padrão tradicional dos gêneros sexuais. Reivindicam, assim, outro lugar social que escape à imagem binária com a qual a sociedade (e a sociologia) tradicionalmente representa os jovens pobres, ou seja, como trabalhadores baratos ou bandidos, “marginais” (ABRAMO, 1997).
A difusão de expressões culturais protagonizadas por uma juventude que se autointitula “empoderada” ocorre graças à política de editais que objetiva simplificar e tornar mais acessível o acesso aos recursos públicos para a cultura (como o edital dos Pontos de Cultura no âmbito federal, do VAI e da Lei de Fomento às periferias em São Paulo e o edital de Ações Locais no Rio de Janeiro) (TOMMASI, 2018).
Nos últimos anos, as chamadas “culturas de periferia” (TOMMASI, 2013; D’ANDREA, 2013) começaram a fazer parte da programação de museus, ganhando festivais dedicados, coleções de editoras que divulgam a literatura marginal. O funk, o rap, as músicas vindas dos subúrbios, periferias e favelas se tornaram sucesso mundial; a dança do passinho conquistou os palcos dos teatros na Europa. Saraus se multiplicaram em bares e praças, batalhas de rima e slam conquistaram milhares de frequentadores e estabeleceram seus próprios circuitos de competição e reconhecimento (TOMMASI, 2013; CAMPOS, 2019). Esse deslocamento produziu novas possibilidades de trabalho para produtores, articuladores, promotores, curadores, comunicadores. Figuras profissionais de incerta definição, mas de fácil identificação, por compartilhar um estilo, um modo de ser e de se apresentar no espaço público.
É justamente da tentativa de se autodefinir por parte de alguns jovens atuantes na cena do rap que tomam corpo nossas reflexões. Em nossas pesquisas, procuramos desnaturalizar o conceito de trabalho, buscando desvendar, a partir do olhar dos indivíduos sobre suas práticas, a natureza das atividades desenvolvidas. Em lugar de se dedicar a análises estatísticas sobre o trabalho na sociedade contemporânea, optamos por compreender como os indivíduos significam as atividades que desenvolvem. Se o trabalho contemporâneo deve ser lido como produtor de novas subjetividades – o self empreendedor muito bem descrito por Nikolas Rose (2011) ou proposto no trabalho de Richard Sennet (2006) através da lente da corrosão do caráter –, interessa interrogar a natureza dessas subjetividades, complexas, dominadas, mas ao mesmo tempo sempre resistentes (ORTNER, 2007). Indagar as práticas – sempre mais complexas do que as categorias analíticas que utilizamos para interpretá-las, permitindo fazer-nos levar pelos sentidos propostos pelos nossos interlocutores – parece-nos representar um caminho analítico fecundo para escapar das leituras deterministas (que relatam o domínio absoluto da racionalidade neoliberal) ou do romantismo ingênuo (que, ao contrário, enxerga, sobretudo, “potências” e “táticas insurgentes”).
O que fazem os atores? Quais os sentidos que constroem sobre suas práticas? Como narram suas experiências? As vivências nomeadas, narradas, implicam um trabalho reflexivo (MELUCCI, 2005) que procuramos compreender, em diálogo com nossos interlocutores3. Nossas ferramentas de pesquisa são entrevistas temáticas e biográficas, além da observação participante e da pesquisa documental.
Confrontamos nossas observações com aquelas de alguns autores que, em outros contextos geográficos e sociais, se debruçam sobre o segmento dos produtores culturais, indagando os sentidos de suas práticas e de suas lutas (LOREY, 2008, 2016; CORSANI, 2006). Encontramos, assim, a categoria (ao mesmo tempo, analítica e política) do trabalho precário que queremos contrapor àquela de empreendedorismo, como seu outro constitutivo.
Produtores culturais periféricos
“Produtor é a forma de eu explicar para minha mãe o que eu faço,
senão ela acha que sou vagabundo” (SILVA, 2018, p. 25).
Em 2014, o diretor e historiador Arthur Moura convidou Gabriel Moreno para contribuir com a produção de um documentário “O Som do Tempo”, que buscava retratar de forma ampla os agentes que construíram o mundo do rap carioca. Um dos problemas a ser enfrentado era que Arthur havia filmado cerca de 40 entrevistas, mas não possuía nenhuma autorização de imagem. Encontrar 40 pessoas, com agendas sempre lotadas, para assinarem um papel, em lugares diferentes do estado do Rio de Janeiro, era tarefa quase impossível, sobretudo sem orçamento. Assim, surgiu a ideia de elaborar um documento-padrão de cessão de direitos para audiovisual, a ser preenchido pela pessoa à mão, imprimir várias cópias e sair com uma pasta pela cidade para ir coletando as assinaturas. Sair na Lapa (bairro de intenso movimento noturno na cidade do Rio de Janeiro) com uma pasta cheia de documentos de cessão em branco se revelou uma tática bem-sucedida. Em uma noite, era possível conseguir até 20 assinaturas se estivesse acontecendo um evento de rap.
No documento de cessão de direitos, uma das informações a serem preenchidas era o campo “profissão”. Esse pedido de autodeclaração era o campo que mais costumava apresentar dúvidas e/ou comentários: “Devo colocar artista? Músico? MC? Mas eu trabalho de garçom, é essa a pergunta? ”. Certa vez, em uma festa de rap, sem paciência para os muitos pedidos de esclarecimento sobre como preencher o campo “profissão”, Gabriel respondeu: “coloca qualquer coisa”. Melhor teria sido ter falado: “coloca o que você quiser”. Ao ouvir o “qualquer coisa”, um artista virou para ele e respondeu: “qualquer coisa não, rapá, eu sou músico”. A dúvida sobre a definição profissional vinha acompanhada por uma vontade de legitimação através da escolha da palavra certa, que fosse digna de representar a identidade do indivíduo através da profissão. Afinal, os interlocutores tinham sido convidados a dar depoimentos em um filme, ou seja, já havia um reconhecimento implícito no convite, que precedia a assinatura do documento. Na cabeça de alguns, preencher a ficha de cessão de direitos colocando profissões que não eram as que tinham motivado a entrevista poderia diminuí-los ou desqualificá-los.
Uma categoria de ocupação laboral apareceu com frequência inesperada: a de produtor cultural. A heterogeneidade dos sujeitos que se autodeclararam produtores culturais (alguns exclusivamente empresários ou administradores, ou seja, os que gerem o calendário de shows, gravações, entrevistas, atividades das bandas; outros também músicos, cantores, sócios) motivou as perguntas: Afinal, o que faz um produtor cultural? Que tipo de atividades desenvolve? Quais sentidos elabora sobre suas práticas? É possível inventar uma profissão pautada na efetivação do desejo e na atuação no campo da cultura, em um misto entre trabalho e militância?
Para Djoser Botelho, organizador da Roda Cultural de Botafogo, o primeiro passo da sua “metodologia para desenvolver uma Roda Cultural” é motivado pela consideração de que é um empreendimento que você pode começar sem nenhum recurso, basta reunir pessoas dispostas a trocar cultura em um espaço público. A estrutura vai chegando a partir de relações de desenrolo e amizade ou, nas palavras de Djoser, através de pessoas dispostas a trabalhar “no amor”:
A gente vive de favor ou o que a gente chama de “no amor”. Todo mundo conhece essa expressão: “fulaninho faz o show no amor”, “fulaninho bota o som no amor”, “fulaninho da um braço ai, vamos carregar o gelo aqui no amor”. Roda cultural só existe porque existe este fenômeno (SILVA, 2018, p. 40).
O jargão trabalhar “no amor” é bastante conhecido pelos trabalhadores do setor cultural e significa trabalhar sem pagamento, ou por um preço abaixo do mercado, em prol de uma causa na qual se acredita. A expressão revela a dinâmica de precariedade que enfrentam as produções culturais: sem dinheiro para arcar com os custos envolvidos na realização de um evento cultural, é preciso recorrer a favores e ajudas. Djoser positiva o ato de trabalhar “no amor” como uma característica básica dos movimentos de ocupação, ou seja, a capacidade de aglutinar pessoas ao redor de uma causa. As Rodas Culturais acontecem através de redes, que divulgam e garantem o crescimento do público, articulam os artistas que se apresentam, possibilitam a mobilização de equipamentos e que conseguem lutar politicamente contra os órgãos repressores do governo, mantendo uma ocupação semanal em um espaço público.
“No amor” é um conceito central, que permite dar outro significado à precariedade vivida no processo do fazer cultural. Na fronteira urbana entre o legal e o ilegal (TELLES; HIRATA, 2007), inventam-se formas de ocupação dos espaços, criando gambiarras para transformar a escassez de recursos em excedente de experiência. Este conceito se torna, no rap, uma ferramenta potente. O rap do qual falamos aqui é improviso, é uma ferramenta complexa e rica de possibilidades e, ao mesmo tempo, de simples utilização. Basta haver um coletivo de pessoas reunidas com habilidades de improviso na livre associação para que o processo se dê e as rimas se construam. Se são ao menos dois indivíduos, eles podem se enfrentar em forma de batalha, ou ainda marcar o ritmo com a boca ou com o corpo, enquanto o outro rima com as palavras. O limite desse formato de arte é apenas a criatividade subjetiva e coletiva. As rodas costumam acontecer utilizando algum equipamento: som amplificado, microfones, tendas para se proteger da chuva. No entanto essa estrutura é complementar, a única necessidade real para a roda acontecer são as pessoas dispostas à prática do improviso.
Flexibilidade, improvisação, criatividade são qualidades indispensáveis para os produtores culturais periféricos. Podemos dizer que, de certa forma, eles condensam os atributos requeridos aos trabalhadores na atualidade: empreendedores de si e precários; inovadores, criativos e, ao mesmo tempo, apaixonados pelos que fazem; mobilizam seus desejos para se engajar em atividades que podem (ou não) oferecer sustento financeiro e permitem militar em prol de uma causa. Nas palavras de Djoser: “Nós somos um movimento de militância que não tem uma bandeira ao certo, e isso é muito maneiro, porque é uma coisa nova” (SILVA, 2018, p. 40).
Vivem o trabalho como uma forma de engajamento, de ativação permanente das próprias capacidades, desejos e paixões, mobilizando relações e saberes adquiridos em contextos não formais. Para eles, o conhecimento aprofundado sobre determinado assunto e seus desdobramentos é menos importante do que a capacidade de assimilar uma visão geral sobre o assunto e utilizar termos-chave para promover o reconhecimento ou a ativação de certos referenciais no receptor. A ausência de educação formal não representa um empecilho, ao contrário, gera reconhecimento, graças ao acúmulo de um conhecimento específico. Nomear-se produtor cultural é, nesse contexto, uma forma de legitimação social. A utilização do termo transforma o ato de “se virar” em categoria profissional reconhecida.
Ainda que existam, em algumas universidades do país, cursos de bacharel em produção cultural, ainda que outros tantos processos formativos ofereçam formações técnicas como produtor cultural, não existe regularização oficial da categoria profissional, podendo, portanto, ser exercida e reivindicada por qualquer indivíduo. A função de produtor cultural é entendida como um processo de trabalho que se desenvolve pela experiência e não é vinculada necessariamente à formação. Nos processos seletivos para o serviço, raríssimas vezes é exigido um diploma de ensino superior, geral ou específico.
Outra característica que se aproxima daquelas apontadas na bibliografia sobre o trabalho na contemporaneidade (DE LA GARZA, 2011) é a indiferenciação entre experiências, tempos e lugares: trabalho, ativismo político, lazer e arte, lugar de moradia e espaço de trabalho são misturados. O trabalho é uma forma de lazer – gostam do que fazem e não trocariam isso por nada. Não buscam emprego formal e pensam o trabalho como “desenrolo” (solução de problemas) ou “correria” (ativação permanente). Tornar-se empreendedor representa uma oportunidade para trabalhar “sem patrão” e trabalhar com o que “se gosta” e se sabe fazer. Um trabalho, portanto, portador de gratificações. Um trabalho que teria o potencial de explorar as capacidades pessoais e promover a emancipação (TOMMASI, 2018; CAMPOS, 2019; SILVA, 2017).
A remuneração não parece ser um atrativo significativo já que eles ganham, em média, um pouco mais de um salário mínimo. Andam muito, trabalham muito, fazem vários bicos ao mesmo tempo, não podem contar com um salário fixo e, por causa disso, dificilmente podem assumir, sozinhos, as contas de uma casa. O que os atrai, portanto, nesse tipo de atividade? A ideia de “trabalhar com o que gosto”, de se inserir no restrito mundo da “arte e cultura”, de não se submeter à tirania de um patrão, de se relacionar com pessoas, frequentar lugares, estabelecer redes bem mais amplas do que seu local de moradia. Diferentemente de seus coetâneos, geralmente obrigados a trabalhar em ocupações de baixa qualificação, baixa remuneração e nenhuma gratificação, eles buscam a autorrealização.
Ao mesmo tempo, para eles, “produtor é agente de transformação social” (SILVA, 2018, p. 80) e o trabalho vira “trabalho social”, ou seja, a cultura é vista como ferramenta salvadora, produtora de mudança social, cultura que ilumina e leva a luz para a “comunidade abandonada”. Esse “trabalho social” é o trabalho que enobrece.
Se a correria é antes de tudo condição ela é, ao mesmo tempo, objeto de desejo. A reiteração desse termo, os múltiplos significados com os quais é empregado pelos nossos interlocutores nos motiva a pensar se seria possível conceber uma carreira construída a partir da “correria”, termo empregado para se referir à “arte de se virar”. Observando a continuidade de suas trajetórias, podemos notar que, apesar de não serem lineares, são orientadas de forma a tentar se articular, aproveitando e valorizando o passado para construir um horizonte de futuro. Chamamos esses percursos de carreira “correria”, como uma provocação à ideia de que as novas formas de trabalho substituem a constituição de uma carreira estável e consolidada por uma sucessão descontínua de empreendimentos temporários4. A carreira profissional, neste
caso, estaria mais próxima do que Becker (2008)5 estuda com relação à carreira do usuário de maconha, ou seja, como uma sucessão de práticas interligadas e aprendidas de maneira informal (a partir do convívio). É essencial, para conseguir imaginar essa carreira, partir do pressuposto de que ela é construída primeiramente no campo do desejo subjetivo que vai se conformando a partir das determinações externas.
Considerações finais: empreendedores e precários
Um dos pontos centrais da análise de Boltanski e Chiapello no livro “O novo espírito do capitalismo” é a compreensão de como o capitalismo se transformou para responder às críticas que sempre acompanharam sua expansão ao longo da história. Interrogando o sucesso da afirmação do novo espírito do capitalismo, eles argumentam que esse tem tido a capacidade de absorver e se alimentar das críticas que eles denominam como estéticas, das quais os movimentos contraculturais dos anos 1960 e 1970 foram expressão. A crítica estética se distingue da crítica social:
A primeira, que se enraíza num modo de vida boêmio, inspira-se principalmente nas duas primeiras fontes de indicação cujo ligeiro esboço fizemos acima: por um lado, o desencanto e a inautenticidade, e, por outro, a opressão, que caracterizam o mundo burguês associado à ascensão do capitalismo (...). Ela insiste no intuito objetivo do capitalismo e da sociedade burguesa de arregimentar, dominar e submeter os seres humanos a um trabalho prescrito em vista do lucro (...) à qual ela opõe a liberdade do artista. (...) A segunda crítica, inspirada nos socialistas e, mais tarde, nos marxistas, faz referência mais às últimas duas fontes de indicação que identificamos: o egoísmo dos interesses particulares na sociedade burguesa e a miséria crescente das classes populares numa sociedade que conta com riquezas sem precedentes, mistério que encontrará explicação nas teorias da exploração do homem pelo homem (BOLTANSKI; CHIAPELLO, 2009, p. 74).
Segundo os autores, o capitalismo se mostrou ser muito eficaz, a partir dos anos 1980, em alimentar-se das críticas estéticas, absorvendo alguns de seus princípios (por exemplo, as críticas ao modo como o capitalismo industrial aliena a liberdade das pessoas desvinculadas das críticas à força opressora do mercado) e isolando as críticas de tipo estrutural. Ao mesmo tempo, com o fim da Guerra Fria, ao capitalismo não se opunha nenhuma alternativa. Os movimentos sociais de oposição privilegiaram a crítica estética. Em muitos casos, foram justamente indivíduos que estavam na vanguarda da crítica, nos anos 1970, a operar como promotores das transformações do sistema. O conflito social foi, assim, desarmado.
“As garantias foram trocadas pela autonomia, abrindo caminho para um novo espírito do capitalismo que louvava as virtudes da mobilidade e da adaptabilidade, ao passo que o anterior se preocupava bem mais com garantias do que com liberdade ” (BOLTANSKI; CHIAPELLO, 2009, p. 235). O capitalismo incorporou as exigências de autonomia (implicando os trabalhadores nos processos produtivos, substituindo o controle pelo autocontrole), criatividade (enfraquecendo a oposição entre intelectuais, artistas e homens de negócios), autenticidade (através da proliferação e diversificação de bens comerciais dirigidos a alimentar identidades específicas) – como diz Paul Gilroy (2007, p. 124) “qualquer produto pode ser saturado de identidade” – e liberação (especialmente no campo dos costumes) (BOLTANSKI; CHIAPELLO, 2009). Deve ser lida, nesta perspectiva, a próspera expansão, no século XXI, da chamada “economia criativa” (SCOZ, 2014) que inclui setores como a moda, a publicidade, a gastronomia, o turismo, as novas tecnologias, além das artes e da cultura, capturando e transformando as cidades para que se tornem “cidades criativas” (ARANTES, 2002) e apresentando a si mesmas como um antídoto ao capitalismo em crise.
O capitalismo foi capaz de propor, através da ideologia do empreendedorismo, “uma nova modalidade de fazer lucro (modalidade liberada e até mesmo libertária) que também é capaz de permitir a autorrealização e a realização das aspirações mais pessoais” (BOLTANSKI; CHIAPELLO; 2009, p. 237). Até os moderníssimos espaços de coworking mostram a adaptabilidade do capitalismo, sua capacidade de se reinventar, superando, ao mesmo tempo, o anticapitalismo, através da “presença em seu âmago da emancipação e da livre associação entre criadores aproximados por uma mesma paixão e reunidos em pé de igualdade na busca de um mesmo projeto” (ibidem).
As análises de Boltanski e Chiapello fornecem uma chave de leitura importante para compreender a adesão ao empreendedorismo por parte de nossos interlocutores. A produção cultural representa, para eles, um campo aberto à possibilidade de experimentar formas de trabalho e vida, de escapar à rotina e às condições de subordinação do trabalho assalariado. Sobre essa leitura, convergem autores que se debruçam sobre a condição do produtor cultural tanto no contexto latinoamericano (QUIÑA, 2016; MAURO, 2018) como no contexto europeu (BUDEN et al., 2008):
en el ámbito de la cultura existe una cierta particularidad de los trabajadores al autotrabajo en condiciones de precariedad que no son infligidas por un empleador extraño sino por el propio trabajador, en atención a las ventajas que su actividad cultural le reportaría (hacer lo que le gusta, trabajar sin horarios fijos, etcétera). (...) el carácter laboral se diluye simbólicamente tras una actividad que se realiza con amor y pasión, donde el trabajo se despoja de su carga negativa como “penas y fatigas” (al decir de Adam Smith) y de la desigualdad propia de una relación de dependencia laboral para acercarse a una actividad donde los sujetos se realizan (QUIÑA, 2016, p. 4).
Além disso, outros elementos precisam ser considerados para compreender como opera, no contexto brasileiro, a adesão dos produtores culturais periféricos ao empreendedorismo. As condições de trabalho dos pobres, no Brasil, e em particular dos jovens, sempre foram caracterizadas por longas jornadas, baixos salários, informalidade, rotina maçante. Jovens negros, moradores das periferias, foram empurrados pelo desemprego a se engajar no lucrativo comércio das mercadorias ilegais (bem mais lucrativo, em termos econômicos e de status social, do que ser peão de obra). É nesse contexto que deve ser compreendida a adesão de jovens produtores culturais moradores das periferias ao empreendedorismo. A vontade de trabalhar sem patrão, mobilizando o desejo, a criatividade, buscando a realização pessoal, representa, para eles, uma possibilidade de produzir para si outro lugar social. Mesmo que as condições objetivas não se alterem profundamente, muda-se a forma como eles são vistos socialmente (MELO, 2008, p. 121).
Essa possibilidade é apresentada com a aura do sucesso e glamour que envolve o reluzente mundo dos negócios, em oficinas, fóruns, treinamentos, onde as apresentações de jovens empreendedores que encarnam casos de sucesso são sempre o momento mais empolgante. Nesses espaços, o público encontra respostas práticas às questões que assolam seu cotidiano: Como divulgar sua produção? Como projetar um modelo de negócio? Como construir sua marca? Como equalizar despesas e ganhos? Questões urgentes para qualquer trabalhador por conta própria, como os pequenos comerciantes, desde sempre presentes nas periferias, que hoje ganham novos contornos graças à gourmetização da culinária, à difusão de produtos que alimentam a valorização identitária, ao sucesso conquistado por alguns artistas que fazem de sua arte uma arma de luta – emblemático o caso do rapper Emicida (CAMPOS, 2019).
Nos países de capitalismo periférico, o horizonte do emprego formal, com carteira assinada e direitos garantidos, com jornada de trabalho e salário definidos, nunca esteve no campo de possibilidades da maioria dos jovens, sobretudo nas regiões mais pobres6. Viver de bicos, “se virar”, sempre foi uma condição conhecida pelos nossos interlocutores, artistas e militantes da cultura. Para eles, objeto do desejo não é conseguir assinar a carteira, mas ter a possibilidade de se sustentar economicamente por meio do que se gosta e se sabe fazer. Procuram fugir da condição de mão de obra barata sem cair nas malhas da criminalidade. Viver de arte e/ou virar produtor cultural é uma alternativa possível, mesmo que precária (TOMMASI, 2018).
Aproximar empreendedorismo e trabalho precário permite tensionar as ambiguidades inerentes a uma condição que não é imposta desde fora e sim autoimposta, interiorizada (LOREY, 2008). A precarização das estruturas de seguridade se, por um lado, apresenta riscos, por outro, apresenta, na visão de nossos interlocutores, também oportunidades, ainda que questionáveis. Eles se lançam no mundo do trabalho acreditando que ao “ser o seu próprio patrão” poderão ter mais ganhos financeiros e maior controle sobre seu próprio tempo. São poucos os que de fato conseguem se sustentar por muito tempo, mas no discurso promovido por alguns artistas de rap e do funk ostentação, é através da “correria”, do empenho empreendedor, que é possível para um jovem nascido na periferia usufruir das benesses do capitalismo. O discurso defende e promove uma mudança de atitudes, de comportamentos, argumentando que basta o empenho pessoal para se tornar um case de sucesso.
Quem você pensa que é para vim falar de nós?
Quer testar minha fé, mas não sabe metade do corre
Tá achando que a vida é mole, vagabundo aqui se vira como pode
A mira é head shot, junção de black, block, dread, lock
Reggae, trap, rap, core, é sério o sonho, não faz história
Trabalho pra ser rico, pique Steve Jobs
Rock pique Pink Floyd, Slipknot
Com a simplicidade de Nikity, óbvio
Mais um filho pródigo
Sustento a minha boca, isso eu quero, eu posso
Nada deles, tudo nosso
Concorrência não fique afoita
2018 é nós de novo e que se foda
(1KILO CONTRA O MUNDO, 2018).
Para Isabel Lorey (2008), nos anos 1970, as práticas de vida alternativas, o desejo de não se submeter à disciplina do trabalho assalariado, a escolha por formas precárias de trabalho e vida pareciam realizar a possibilidade de manter uma maior autonomia e liberdade, por meio da organização do próprio tempo, da autodeterminação. Mas são precisamente essas formas de trabalho e de vida alternativas que se converteram, hoje, nas mais úteis em termos econômicos, pois favorecem a flexibilidade que exige o mercado de trabalho. A autora acrescenta, contudo, que outras possibilidades ficam abertas:
La precarización significa más que puestos de trabajo inseguros, más que una cobertura social insuficiente dependiente del trabajo asalariado. En tanto que incertidumbre y exposición al peligro, abarca la totalidad de la existencia, los cuerpos, los modos de subjetivación. Es amenaza y constricción, al mismo tiempo que abre nuevas posibilidades de vida y trabajo. La precarización significa vivir con lo imprevisible, con la contingencia (LOREY, 2016, p. 17).
A instabilidade laboral pode ser considerada uma opção de vida, um campo de possibilidades, uma linha de fuga das estruturas sociais que governam a vida, para experimentar novas formas da política, do ativismo que pode surgir nas “zonas fronteiriças” entre trabalho e não trabalho, entre trabalho e lazer, trabalho e ativismo. É o que sugere Antonella Corsani, a propósito dos chamados “trabalhadores intermitentes” do âmbito da cultura na França:
Más que como imbricación de los tiempos de vida y de trabajo, la intermitencia puede ser pensada como “zona fronteriza” entre el empleo y el paro. Un lugar más allá del empleo y del paro desde el cual interrogar tanto el sentido como los contenidos del trabajo. Una zona fronteriza como espacio de experimentación de formas de vida que se alimentan de la hibridación de espacios-tiempos dentro/fuera del empleo. Supernumerario es entonces la expresión de una fuga del trabajo “normalizado”, cuyo sentido y contenido nos parecen cada vez menos evidentes, hacia “zonas de frontera”. (CORSANI, 2006, n.p).
Assim, a precariedade assume múltiplos significados. Pode ser pensada como uma condição de vida, uma situação de trabalho, uma subjetividade e um potencial para a luta. É justamente sobre esse potencial que queremos chamar a atenção. Sem esquecer que a retórica empreendedora “proporciona formas de subjetivação e construção do self que se baseiam na fragmentação, individualização e na lógica empresarial” (ARMANO; BOVE; MURGIA, 2017, p. 4-5). Precisamos considerar também que o termo precariedade tem representado:
Uma forma de reconhecer e organizar um ator coletivo e novas formas de luta política e de solidariedade para além dos tradicionais modelos organizacionais, partidos políticos e organizações sindicais (...). Nesse sentido, a precariedade pode ser vista não só a partir de seu caráter opressor, mas também oferecendo uma potência para o surgimento de novas subjetividades, novas sociedades e novas formas de fazer política” (ARMANO; BOVE; MURGIA, 2017, p. 5).
Na atual dramática conjuntura brasileira, de retrocessos radicais no âmbito dos direitos sociais e das conquistas econômicas, com cortes drásticos nos financiamentos públicos das políticas sociais, educacionais e culturais, é preciso observar como as situações de vida, trabalho e militância dos jovens empreendedores da cultura irão se sustentar. A difusão da subjetividade empreendedora tornará muito mais árdua a tarefa de se organizar coletivamente? Como os produtores culturais periféricos irão se engajar nas lutas pela defesa da democracia? Para os empreendedores da cultura, reconhecer-se enquanto trabalhadores precários pode permitir a saída do isolamento individual implícito na retórica empreendedora e a reafirmação de uma agenda política coletiva.
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Recebido em 05/03/2020
Aceito em 16/09/2020
1 Uma primeira versão desse texto foi apresentada no GT “Cartografías, imágenes y tipologías de la(s) precariedad(es) del trabajo en América Latina” do IX Congreso Alast, em Bogotá (2019). Agradecemos aos integrantes do GT pelos comentários, que ajudaram a reelaborar o texto.
* Doutora em Sociologia pela Universidade de Paris I, professora do Bacharelado em Políticas Públicas da Universidade Federal do ABC e do Programa de Pós-Graduação em Ciências Humanas e Sociais (PCHS) da mesma universidade. E-mail: livia.detommasi@gmail.com
** Mestre em Cultura e Territorialidades pelo IACS/UFF. Graduado em História pela Universidade Federal Fluminense, com ênfase em Cultura Contemporânea. É produtor cultural. E-mail: gabrielmoreno.cultura@gmail.com
2 É importante destacar que o termo artista é empregado, neste texto, fazendo referência a jovens oriundos das periferias das cidades do Rio de Janeiro e São Paulo que encontram na arte um meio para a expressão de ideias políticas e sociais, conforme explorado nos textos de Tommasi (2013; 2018). O ativismo político através das artes é marca essencial da categoria de artistas que evocamos.
3 As reflexões contidas nesse texto são resultado da interlocução que mantivemos com artistas e produtores culturais do Rio de Janeiro e São Paulo ao longo dos últimos dez anos. Gabriel Moreno da Silva desenvolveu uma pesquisa de mestrado junto a alguns grupos de artistas e produtores da cena rap do Rio de Janeiro; Livia De Tommasi realizou, entre 2010 e 2015, uma pesquisa de caráter etnográfico em um território da zona oeste da cidade do Rio de Janeiro, além de manter uma interlocução com artistas e produtores das periferias de São Paulo, entre os quais desenvolveu, entre 2010 e 2012, uma pesquisa voltada a indagar a cena cultural das periferias (TOMMASI, 2013).
4 Sennett (2006) explora a oposição etimológica entre as palavras career e job. Que poderia ser traduzida como a oposição entre percursos longos e encadeados, temporários e avulsos.
5 Em Outsiders, Becker (2008) utiliza o termo carreira para se referir ao processo de aprendizado e de significação do uso de maconha. Em livre adaptação, propomos essa chave de leitura aplicada ao processo de aprendizado e significação da prática de trabalho dos produtores culturais informais.
6 De acordo com os dados da PNAD Continua para 2019, 49,4% dos jovens trabalham na informalidade, com apenas 28,4% inseridos no mercado formal de trabalho. No mesmo ano, a taxa de desocupação entre os jovens de 15 a 29 anos chegou a 22,2% (BRASIL, 2019).
ISSN 1517-5901 (online)
POLÍTICA & TRABALHO
Revista de Ciências Sociais, nº 52, Janeiro/Junho de 2020, p. 196-211
ACEPÇÕES DO CONTEMPORÂNEO:
o convite à leveza e ao cansaço
CONTEMPORARY MEANINGS:
the call for lightness and tiredness
__________________________________
1 Francisco Jadson Silva Maia*
Luzia Cristina Lopes Almeida**
Lídia Raquel Herculano Maia***
Alexsandro Galeno****
Resumo
O presente trabalho expõe os desdobramentos da civilização da leveza, como cunha Gilles Lipovetsky (2016), o tipo atual de projeto civilizatório e suas representações em circuitos midiáticos, articulando especialmente questões referentes à produção, à cultura e ao trabalho. Leveza e liquidez assinalam conjuntamente a precariedade e a insegurança, mas também se contrariam, pois Lipovetsky (2016) e Zygmunt Bauman (2001) parecem divergir sobre a incursão do prazer frente ao trabalho e dos possíveis ganhos civilizatórios desse contexto. Em tempo, a emergência de um capitalismo criativo, transestético estabelece uma economia do leve que dá à cognição e à subjetividade papéis centrais na elaboração de produtos e serviços. Nesta perspectiva, as considerações de Lipovetsky (2016) e Byung-Chul Han (2015) atuam conjuntamente e oferecem uma análise que verifica o caráter esquivo e ambíguo das transformações técnicas atuais, apresentadas tanto nos objetos ultraleves quanto nas implicações de desempenho e de cansaço do trabalho na contemporaneidade. Com enfoque predominantemente teórico, esses aspectos relacionados à leveza e ao cansaço são aqui discutidos tendo como base a obra de Lipovetsky e o olhar para as representações desses fenômenos em espaços midiáticos hegemônicos, como a Veja SP.
Palavras-Chave: Civilização da leveza. Cansaço. Trabalho. Lipovetsky.
Abstract
The present work exposes the unfolding of the civilization of lightness, as conceptualized by Gilles Lipovetsky (2016), the current type of civilization project and its representations in media circuits, especially articulating issues related to production, culture, and work. So, lightness and liquidity jointly indicate precariousness and insecurity, but they also contradict each other, since Lipovetsky (2016) and Zygmunt Bauman (2001) seem to differ on the incursion of pleasure in the workplace and the possible civilizing gains of this context. In time, the emergence of a creative, transesthetic capitalism establishes a light economy that gives cognition and subjectivity central roles in the elaboration of products and services. In this perspective, the considerations of Lipovetsky (2016) and
1* Doutorando em Ciências Sociais pela Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN). Mestre em Estudos da Mídia (UFRN) e Especialista em Propaganda e Marketing na gestão de marcas (UFRN). Membro do Grupo de Estudos Transdisciplinares em Comunicação e Cultura – Marginália (UFRN) e Gemini (UFRN). E-mail: jadsonmaia@ufrn.edu.br
** Mestre em Ciências Sociais pela Universidade Federal do Rio Grande do Norte. Bacharel em Comunicação Social, com habilitações em Radialismo e Jornalismo (UFRN). E-mail: cristinaalmeida1313@gmail.com
*** Professora substituta do Curso de Relações Públicas da UFPB. Doutora em Comunicação pela Universidade do Vale do Rio dos Sinos, com estágio doutoral na Florida State University. Mestre em Estudos da Mídia pelo PPGEM da UFRN. Membro dos grupos de pesquisa em Midiatização e Processos Sociais (Unisinos) e Gemini (UFRN). E-mail: lidiarhmaia@outlook.com
**** Professor associado da UFRN e do Instituto Humanitas (IH/UFRN). Mestre em Ciências Sociais pela UFRN e Doutor em Ciências Sociais pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP). Coordenador do Grupo de Estudos Transdisciplinares em Comunicação e Cultura – Marginália (UFRN). E-mail: alexgalenno@gmail.com
ISSN 1517-5901 (online)
POLÍTICA & TRABALHO
Revista de Ciências Sociais, nº 52, Janeiro/Junho de 2020, p. 212-229
Byung-Chul Han (2015) act together and offer an analysis that verifies the elusive and ambiguous character of current technical transformations, presented both in ultralight objects and in the implications of performance and tiredness of contemporary work. With a predominantly theoretical focus, these aspects related to lightness and tiredness are discussed here based on the work of Lipovetsky and the look at the representations of these phenomena in hegemonic media spaces, such as Veja SP.
Keywords: Civilization of lightness. Tiredness. Labor. Lipovetsky.
Introdução
Este é o tempo da revanche do leve – um leve admirado, desejado, que captura sonhos,
mensageiro de enormes promessas e também de terríveis ameaças.
Gilles Lipovetsky
A contemporaneidade, em certo sentido, é um tema que atravessa de modo oblíquo a obra do filósofo Gilles Lipovetsky. Em suas elaborações, as múltiplas facetas de uma sociedade que emergiu da segunda revolução moderna ganham os contornos de hipermodernidade, que põe em discussão talvez novos dilemas, crises, subjetividades que esculpem a existência do indivíduo no contemporâneo, sempre apresentado em meio a escolhas árduas como os requintes que envolvem o hiperindividualismo emergente pelo atual grau de uma sociedade do consumo.
Um traço distintivo do pensamento de Lipovetsky é realizar uma leitura mais complexa e menos unívoca da realidade, sobrepondo aspectos do imaginário, dos valores, do existencial, da sociedade de hiperconsumo. Assim, com as análises da era do vazio, do efêmero, da felicidade, da moda, da estetização e, mais recentemente, da leveza, o filósofo faz uma descrição e uma profunda análise dos fenômenos, que desembocam num panorama do presente.
Preocupado em superar os antagonismos tradicionais entre os antigos e os modernos, Lipovetsky, em seu mais recente trabalho, Da leveza (2016), nos apresenta a leveza como uma inferência fundamental para a compreensão da hipermodernidade. No âmago da teoria da hipermodernidade, a leveza se revela sob o culto do micro, do leve, do miniaturizado e do nano, mas também o contínuo interesse em bem-estar, conforto e praticidade – que agora são cada vez mais presentes e elementares na atividade humana.
Vale destacar que, para Lipovetsky, a hipermodernidade é o termo que melhor mensura as transformações que se dão, simultaneamente, na economia e na vida das pessoas, como argumenta em Os tempos hipermodernos (2004), em coautoria com Sébastien Charles. Com o prefixo hiper, ele quer deixar evidente que a modernidade chega ao seu arremate através da globalização do liberalismo e da revolução informática. Esses elementos estão em profunda relação com outros acontecimentos, como o protagonismo que atinge a economia de consumo e a comunicação de massa, que ventila novos valores, mais fluidos e atraentes, para a sociedade. Apesar de sinalizar que a hipermodernidade tem origem ainda nos anos 1980, a leveza já estava incluída no seu rol de valores fundamentais e operava em detrimento de tudo que remetesse às imposições disciplinares.
Da arte aos objetos de decoração, das tecnologias aos gêneros literários, das máquinas ao corpo humano: tudo parece ser pautado pelo leve na hipermodernidade. Assim, o curto, o suave, o pequeno, o sem peso e o ligeiro são características e experiências louváveis ao mesmo tempo que intimamente desejadas. No espírito do tempo que corre, o espaço para o leve e para o despretensioso alcançam novos e inéditos horizontes de atuação e representação midiática.
Lipovetsky, ao se debruçar sobre o viés da leveza, analisa que a grande utopia existente seria a da leveza total. Isso estaria fundamentalmente no horizonte intrínseco e extrínseco do indivíduo. Para início de análise, o autor faz referência ligeira a Ícaro, personagem da mitologia grega. O jovem, ansioso para se livrar da prisão labiríntica em Creta, fabrica asas, junto com seu pai e companheiro de cárcere Dédalo, se utilizando de cera de abelha e plumas de gaivota. Dédalo conseguiu fugir, mas a mesma sorte não teve seu filho que, ignorando os conselhos dele de não alçar voo tão perto do sol (por causa do calor, do mar ou da umidade), mergulhou tragicamente no Mar Egeu.
Ícaro precisava voar, mas entorpecido com a oportunidade de se elevar aos céus, desobedeceu aos reclames de seu pai. O mito de Ícaro traz à tona uma perspectiva instigante para a compreensão de como o sonho de voar é transversal e imemorial, sendo presente em diversas sociedades, bem como está presente em diversas crenças religiosas. A aspiração de leveza acompanha o homem há muito, não é certamente uma novidade. Porém, para Lipovetsky, foi no contemporâneo que ela ganhou protagonismo. Assim, o encanto da leveza investe Jesus que andou sobre as águas e ainda Buda que levitou, mas adentra também o universo das máquinas modernas elaboradas com o propósito de alçar voo, como bem encarna o aeronauta, esportista e inventor brasileiro, Santos Dumont, em seus dirigíveis.
Como fica nítido aqui, a leveza deixa cada vez mais de ser um valor intangível ou difícil de ser atingido e passa mesmo a constituir uma realidade. Conforme averigua o autor, não se trata da leveza em um único sentido, mas é o espalhamento da leveza que se faz sentir em cristalizações diversas, como na moda, na arquitetura, nos novos materiais, nos relacionamentos interpessoais ou no gosto pelo bem-estar e pela recreação.
Então, Lipovetsky (2016) nomeia os diversos tipos de leveza: a leveza-mobilidade, responsável por recursos que auxiliam na evasão de quem os utiliza, incorporada tanto nas tendas dos povos tradicionais como no container de lojas e moradias urbanas, comumente retratadas em documentários e séries de plataformas de streaming, como Netflix, mas também presente na pesquisa contínua por novos materiais, que entregam mais desempenho e menos peso, e no nomadismo digital da Internet; a leveza-distração é responsável pelos momentos em que as regras da coletividade dão lugar parcialmente à diversão e ao descanso; e a leveza-frívola ganha a moda, no gosto vaidoso pelos detalhes ínfimos. Ela é, acima de tudo, o interesse pelo efêmero, pela aparência, pelo que já está à vista, mesmo que de longe; já a leveza-sabedoria apresenta-se na união entre filosofia e budismo, que pode oferecer um bem-estar psicológico e discernimento em momentos de reflexão, contemplação e exercício.
Com efeito, a leveza analisada por Lipovetsky não paira nos meandros da metafísica, mas sim nas expressões concretas de uma civilização que a estima e a deseja cada vez mais. Para além do papel que as mitologias desempenharam nas perspectivas da natureza humana, percorrendo o sonho de ganhar o céu, esse mito sobrevoou como um espectro o conjunto de ensaios de Lipovetsky sobre a hipermodernidade, que sugere a todo momento a emergência de uma civilização da leveza.
Para o filósofo, a civilização da leveza se torna mais evidente à medida em que um conjunto de forças estruturais da hipermodernidade passam a ser pautadas pelos princípios do leve. A leveza da hipermodernidade se faz sentir nas características técnicas, sociais e culturais capazes de transformar os modos de vida. Levezas sempre no plural, dada a sua múltipla e contingente aparição nas linhas de expressão da hipermodernidade.
A leveza é a superfície polida dos gadgets e de seu peso tímido, a ausência de fios e a mobilidade que lhe é intrínseca, mas também a procura contínua de tornar a existência menos apregoada dos deveres pessoais e profissionais, na qual o yoga, o feng-shui e a meditação têm espaço cativo e são importadas do Oriente pelo Ocidente para cumprir um arquétipo de felicidade.
Com efeito, a figura de Ícaro parece captar ao mesmo tempo o sonho e a decepção que agora tangem simultaneamente a civilização da leveza. As asas parecem ter caráter ambíguo e incerto. Ora sonho, ora pesadelo. A despeito das asas, o peso do passado e da tradição insiste, o pecado e a culpa afinal pesavam muito na Idade Média, a racionalização do Iluminismo pesou e pesa nas certezas que norteiam o pensamento, o processo de individualização pesa nos ombros de cada um.
Ademais, o que seria o ato de voar perto do sol a ponto de queimar as asas senão a crença ingênua no progresso e na técnica? Essa postura, de voar alto e célere demais, é acompanhada pela avidez de acessar o presente em sua completude, pela urgência de vivê-lo de maneira intensa, sem a gravidade do futuro. É a existência pesada tão característica da civilização em curso que a leveza tenta a todo custo dissipar.
Com enfoque predominantemente teórico, esses aspectos relacionados à leveza e ao cansaço são aqui discutidos tendo como base a obra de Lipovetsky e o olhar para as representações desses fenômenos em espaços midiáticos hegemônicos, como a Veja SP. Destarte, este trabalho se desenvolve com um viés ensaístico e analisa – apenas com o intuito de exemplificação das conceituações aqui abordadas – o conteúdo das falas proferidas nas entrevistas apresentadas em uma matéria da Veja SP. Em dezembro de 2019, essa revista acabou sendo alvo de discussões e deboche em redes sociais, por apresentar as contradições e idiossincrasias da classe alta que frequenta e trabalha na Avenida Brigadeiro Faria Lima, comparada no texto analisado ao Vale do Silício estadunidense, por sua intensa atividade financeira e empresarial (SOARES; ROSARIO, 2019). Os “Faria Limers” (frequentadores dessa avenida, que são assim denominados pela Veja SP) formam um universo predominantemente masculino (65%) de trabalhadores, que recebem altos holerites e transitam numa região onde se localizam as maiores empresas e tem o metro quadrado mais disputado da cidade.
As entrevistas, realizadas pelas repórteres Ana Carolina Soares e Mariana Rosario (2019), demonstram que o estilo de vida leve e bem-sucedido que intentam aparentar contrasta com indícios de uma rotina pesada, que os leva a habituar-se com insônia e gastrite, por exemplo.
Assim, será realizada uma análise de conteúdo (BARDIN, 2009) da matéria de capa intitulada “Os Faria Limers”, publicada em 13 de dezembro de 2019, junto a outros exemplos de textos midiáticos, apenas para exemplificar os paradoxos que envolvem a sociedade da leveza. A proposta é utilizar as falas coletadas no microcosmo abordado nessa matéria para ilustrar aspectos relacionados ao novo capitalismo, que se pretende leve e criativo. O foco, portanto, é a discussão da ambiguidade entre leveza e cansaço na contemporaneidade, com base na obra de Lipovetsky. Este texto não se caracteriza, assim, como um estudo de caso ou análise de estilo de vida de um grupo de executivos – o que demandaria métodos, procedimentos e abordagens diferentes do que é proposto neste ensaio. Esperamos, todavia, que as discussões aqui levantadas possam ser estimuladoras de novas investigações nesse sentido.
Entre a liquidez e a leveza, as aspirações da modernidade
A civilização da leveza traz o leve como um princípio de organização social e o apresenta como um valor que orienta permanentemente as atividades atuais do social. No entanto Lipovetsky lembra que a leveza era antes apenas um princípio admirado e almejado exclusivamente nas artes e que uma longa tradição de intelectuais a negligenciou, o que explica o fato de a leveza permanecer praticamente oculta na filosofia antiga. De mesmo modo, em O império do efêmero, Lipovetsky (2009) critica o pouco interesse pelo fenômeno da moda, que tem seus fitos constitutivos apropriados pela dinâmica do capitalismo contemporâneo. O autor parece estar sempre nos trilhos do frívolo e do banal, desconfiado de que a vulgaridade guarda uma dimensão importante para a compreensão do nosso tempo e que ela é capaz de constituir, assim, uma era, um império.
O leve, portanto, passa a orientar o mundo, por um lado, implicando materiais leves, fluidos e mobilidade e, por outro, busca-se viver de forma leve, o bem-estar, a realização de si. Essa busca revela-se nas selfies e retratos do cotidiano, que são cuidadosamente pensados para entrar em circulação nas redes sociais e expressar o estilo de vida leve, descontraído e feliz dos sujeitos que nelas criam uma representação de si. E é também estimulada em materiais audiovisuais produzidos por amadores para plataformas como o YouTube; em séries documentais de plataformas de streaming, como Netflix (que tem como principal exemplo o reality Tiny House Nation, que mostra a construção de minicasas, com ênfase para aquelas sobre duas rodas); e em textos de veículos jornalísticos. Em uma rápida busca pelas palavras-chave “estilo de vida leve” no Google, principal buscador do mundo, podemos encontrar matérias de veículos como G11, Zero Hora2 e Casa e Jardim3. O interessante é que a matéria publicada no primeiro veículo mencionado se trata de conteúdo produzido por um anunciante, o Parque Memorial Japi, que incluiu em suas “9 maneiras de levar uma vida mais leve” a necessidade de desapego de coisas materiais e a conexão com a natureza, através da visitação aos parques que o mesmo administra, para que se alcance a busca pela tão sonhada leveza. Assim, por vezes, o próprio mercado aponta a ambiguidade presente na civilização da leveza, que opera ora no estímulo ao consumo, ora no apelo ao desapego.
Assim, a leveza se revela como um itinerário civilizacional que investe os objetos ultraleves e dá a tônica de como deve ser a experiência individual perante o mundo. A leveza conduz a uma sensação, a um imaginário, a uma maneira particular de lidar consigo, com os objetos e com o mundo, e se instaura como modo de funcionamento econômico e de cultura global.
É o universo da frivolidade, antes desvalorizado e representado pelo jogo, pelo lúdico, a vida superficial e sua corrida aos prazeres sempre novos, a espelho da moda, que agora entra em cena como uma leveza fundamental da vida prosaica contra o drama existencial. Eis onde salta o paradoxo: quanto mais a sociedade segue a lógica do leve, do veloz, mais a existência se torna pesada. A leveza, na época atual, tem conexão direta com os hábitos de consumo, que atuam conjuntamente com outras forças do leve para aliviar as pressões psicológicas da rotina.
A ironia hipermoderna é que a civilização da leveza não corresponde à uma vida leve. Por mais que o leve se faça sentir, os orçamentos familiares se tornam apertados, o desemprego avança, os contratos de trabalho são rarefeitos, a mobilidade é um imperativo, as atividades, antes de puro lazer, se tornam pesquisas extenuantes, a vigília em torno da saúde e o processo de medicalização são intensificados. Assim:
[... ] A civilização do leve significa tudo, menos viver de forma leve. Pois ainda que as normas sociais vejam seu peso diminuir, a vida parece mais pesada. Desemprego, precariedade, casamentos instáveis, agenda sobrecarregada, riscos sanitários – podemos perguntar o que, atualmente, não alimenta o sentimento de peso da vida. Por todo lado se multiplicam os sinais de desamparo, das novas faces do “mal-estar na civilização” (LIPOVESTSKY, 2016, p. 21).
Engendrada na contemporaneidade, a civilização da leveza é paradoxal e expõe suas premissas em faces multiformes. A leveza no viver deriva de uma lacuna não compreendida até aqui. Talvez a intensa procura pela leveza seja uma maneira de lidar com a frustação ao ver que a libertação e a revolução não se concretizaram. A leveza aqui deve ser compreendida como um estado universalmente desejado, de alcunha antropológica mesmo.
Essa procura pelo leve pode ser percebida nas ainda práticas dos chamados Faria Limers. Sede de gigantes – como Bradesco, Itaú, BTG Pactual, XP Investimentos, Credit Suisse, Google e Facebook, além de dezenas de assets (gestoras de investimentos) – a Avenida Faria Lima é o espaço onde transitam profissionais de alto poder aquisitivo, que operam bolsas e investimentos em ritmo frenético. Todos os entrevistados na matéria demonstraram contentamento por seus soldos, que em muito superam a média salarial brasileira, mas ao mesmo tempo demonstraram altas cargas de stress e esgotamento, que lhes parecia normal ao ofício. As fotos que demonstravam homens e mulheres bem vestidos, em posições que denotavam sucesso e bem-estar, contrastavam com os discursos reveladores de fadiga e cansaço (Fig.1).
Figura 1: Representações de sucesso e bem-estar em Veja SP
Fonte: Soares & Rosario, 2019 (On-line)
Um dos entrevistados chega a confessar: “É um dia a dia puxado, temos gastrite, insônia, mas no fim a gente se acostuma” (SOARES; ROSARIO, 2019). Diante disso, a matéria aponta que alguns apostam na meditação, em exercícios físicos, alimentação saudável, dispositivos tecnológicos que facilitam tarefas corriqueiras, meias ultracoloridas – que revelam a busca pela ludicidade – e formas de transporte mais alternativas, como bicicleta e patinete.
Desse modo, há uma virada do leve em que ele sai parcialmente de uma posição abstrata, evocada pela filosofia, pela religião, pelo xamanismo ou ainda por outras tecnologias da leveza interior e abraça de vez o hiperconsumo que, a partir da experiência junto aos objetos, conduz ao desfrute do conforto e do prazer (LIPOVESTSKY; SERROY, 2015). Esse é o ponto de partida de todos os desdobramentos cabíveis à civilização que tem na leveza seu vigor e, para fins exclusivamente analíticos, marca uma cisão entre antigos e modernos.
Com efeito, a virada do leve, oportunizada pela expansão das economias de consumo no século XX, expõe duas faces da mesma moeda: a leveza-detox encenada, por exemplo, pelos momentos de descanso ou pela prática das disciplinas físicas e mentais orientais, que se coaduna com a leveza consumista que é toda a comodidade do bem-estar material. Além disso, assinalam o avanço de uma cultura que deseja a todo tempo o prazer permanente.
Dentro das categorias de análise utilizadas por Lipovestsky, (leveza aérea, leveza-mobilidade, leveza-distração, leveza-frívola, leveza-inconstante, leveza-estilo e leveza-sabedoria) a leveza-frívola seria a dominante, e o seu oposto estaria no aporte da leveza-sabedoria, crítica enfática da sociedade do hiperconsumo e caracterizada pela procura pelas espiritualidades antigas, como o budismo. A leveza-sabedoria não seria mais o ideal antigo de felicidade, isso ele chama de leveza-serenidade, um estado de alma aliviado pelo peso das coisas, a tranquilidade da alma. Tal arquétipo, esse interesse despertado pelas espiritualidades antigas, não é de origem ocidental. O desejo de desacelerar é extraído do oriente.
Lipovetsky destacou a revolução hipermoderna do leve, como a passagem da civilização do peso para civilização da leveza. Essa dinâmica de haver no passado uma sociedade marcada pelo peso e no presente uma sociedade do leve, já foi percebida pelo sociólogo Zygmunt Bauman (2001), na virada do século XX para o XXI. Ambos os autores estão preocupados, portanto, com as vertigens da modernidade. Lipovetsky cita rapidamente Bauman, quando quer tratar da mudança de uma primeira modernidade, baseada no moralismo, na rigidez e nas convenções sociais, para a de uma segunda modernidade, que articula em suas bases a liquidez e flexibilidade.
Seguindo esse fluxo, Lipovetsky diz que a hipermodernidade se caracteriza pela inconstância, pelo efêmero, pela tenacidade das transformações rápidas, o espelho da dimensão da hipermodernidade do capitalismo contemporâneo. Associada à metáfora da liquidez ou fluidez, Bauman concebeu à epistemologia da sua teoria as nuances do líquido e tingiu assim a modernidade. Assim, Bauman (2001) conjecturou esse cenário volúvel do leve, previamente a Lipovetsky, traçando a relação entre liquidez e leveza, que podem dar conta do que se presencia:
A extraordinária mobilidade dos fluidos é que os associa a ideia de “leveza”. Há líquidos que, centímetro cúbico por centímetro cúbico, são mais pesados que muitos sólidos, mas ainda assim tendemos a vê-los como mais leves, menos “pesados” que qualquer sólido. Associamos “leveza” ou “ausência de peso” à mobilidade e à inconstância: sabemos pela prática que quanto mais leves viajamos, com maior facilidade e rapidez nos movemos (BAUMAN, 2001, p. 8).
Bauman intitulou a modernidade passada de era do hardware, parte da história que acabou com a dissolução dos sólidos, traço permanente da modernidade, e fez surgir a era software ou a da modernidade leve. A primeira é bem semelhante à ideia posta por Lipovestsky (2016), da modernidade denominada “pesada”, que tinha como característica geral, o “maior”, o volume, as máquinas que pesavam toneladas, os amplos muros das fábricas fordistas, as locomotivas colossais, transatlânticos faraônicos, projetos que despendiam numerosa mão de obra e demarcações de territórios. Tamanho era sinônimo de poder e riqueza.
A segunda modernidade, para Bauman, é a do capitalismo software, a era leve, em que impera a volatilidade, a mobilidade, a supressão do espaço e tempo, o desenraizamento, a instantaneidade e a relação íntima com o consumidor – cuja afinidade consumista, Lipovetsky e Jean Serroy (2015) inscrevem como democratização do consumo, o hiperconsumo. No livro de Bauman, Modernidade Líquida (2001), aparece o exemplo de um emprego na empresa Microsoft, que não poderia mais ser chamado de uma carreira, seria como um trabalho sem corpo, que não evoca uma trajetória profissional firme. A organização não condiz com o fordismo, as relações são estabelecidas por pressões de espaço e tempo flexíveis.
Assim como Lipovetsky que remete a expressões da guerra do leve contra o pesado, numa breve menção ao filósofo Peter Sloterdijk, Bauman constata, em algumas passagens, a derrota do pesado, quando se trata de gigantescas plantas industriais e corpos volumosos, que antes representavam a configuração do poder e da força dos donos do capital. No momento dessas considerações realizadas por Bauman, as redes sociais digitais ainda não tinham uma primazia, quase absoluta, como se acompanha hoje, mas o sociólogo já apontava o movimento de desmaterialização da vida em todos os seus âmbitos.
Nessa mesma perspectiva, Lipovetsky (2016) aponta resultados semelhantes tendo em vista que a fluidez, a liquidez e a leveza convergem para o hiperindividualismo e para o nomadismo digital. Bauman, por sua vez, já havia percebido a popularização dos dispositivos high-tech, dos aparelhos de celular, o padrão do corpo leve, a revolução da leveza-mobilidade (que na matéria aqui analisada, da Veja SP, é exemplificada pelo uso dos patinetes, um dos menores meios de transporte existentes), dos produtos miniaturizados e multifuncionais.
Corpo esguio e adequação ao movimento, roupa leve e tênis, telefones celulares (inventados para o uso nômades que têm que estar “constantemente em contato”), pertencentes portáteis ou descartáveis – são os principais objetos culturais da era da instantaneidade. Peso e tamanho, e acima de tudo a gordura (literal ou metafórica) acusada da expansão de ambos, compartilham o destino da durabilidade. (BAUMAN, 2001, p. 148-149).
As análises de Bauman (2001) e Lipovetsky (2016) dão as mãos especialmente quando relatam sobre a dimensão que o consumo ocupa, seja na modernidade líquida ou na civilização da leveza. Nas duas, o consumo parecer ter permeado tudo e a amplitude deste fenômeno fez surgir em todos um consumidor, que é compreendido sob as nuances de nômade digital, zapeador, cool e transestético. Os movimentos da modernidade são, portanto, facilmente versados com o movimento do consumo.
Nesta perspectiva, talvez Lipovetsky (2016) com sua civilização da leveza reconheça mais os ganhos civilizatórios que a expansão das economias de consumo acarretou, que para além do conforto, se apresentou como uma possibilidade de afirmação individualista, democrática e sobretudo de prazer e bem-estar. Assim, acaba por reconhecer que a sensibilidade deste sujeito-consumidor foi menos degradada que acalentada. A leveza deixa de ser apenas um elemento evocado exclusivamente ora pela filosofia, ora pelas festas e passa a encorpar o jogo onipresente do hiperconsumo. A partir daqui há uma virada do leve, isto é, a leveza de espírito agora é consubstanciada pela experiência do consumo. O ato de consumir parece embotado do leve, sendo capaz de dar ao homem, ao menos parcialmente, experiências ligadas à felicidade e ao hedonismo, mas também de preenchê-lo de ludicidade, em detrimento de sensações de repressão e de falta tão características de outrora.
A virada do leve e o convite à leveza e ao cansaço
Se a sociedade do consumo remete a uma noção simplista de um individualismo egoísta e ao reino dos shoppings centers, Lipovestsky (2016) acredita que esses argumentos sustentam apenas os estereótipos politicamente corretos, defendidos a partir dos anos 1960. Assim, Lipovetsky e Serroy (2015) propõem que o hiperconsumo não resguarda um hiperindividualismo baseado em distinção simplesmente, mas também considera que o ato de consumir, levando em consideração as dinâmicas do capitalismo criativo, transestético, é permeado por sensações, como o conforto e a praticidade, que podem indicar uma vida mais leve.
Nesta perspectiva, o hiperconsumo engendra a leveza também sob a dinâmica lúdica do layout de loja, visual mershandising, das embalagens, do design. O consumo na era do capitalismo criativo e transestético é também uma experiência sensorial e, sobretudo, afirmativa de si. É notório que a leveza-frívola do consumo atua na uniformização dos modos de vida, de modo que a globalização econômica, a hegemonia de certas marcas e a massificação são fenômenos que não podem ser ignorados. Na matéria de Veja SP, essa massificação se apresenta pelo padrão de vestimenta adotado pelos trabalhadores da Faria Lima: roupas de cores clássicas, como branco e azul-claro, para os homens, e saias comportadas e calças social ou de alfaiataria, para as mulheres. Até as meias ultracoloridas são um padrão nesse microcosmo social, o que, todavia, não incomoda aqueles que as vestem. Nesse sentido, um dos entrevistados pelas repórteres da revista argumenta: “Não estou nem aí se são consideradas o ‘uniforme da Faria Lima’. São bonitas e eu gosto” (SOARES; ROSARIO, 2019).
Destarte, Lipovetsky compreende que esse estágio do capitalismo traz o estilo para todos envolto numa atmosfera kitsch, disseminando novas estéticas e democratizando o acesso aos bens de consumo, bem como, a era hedonista da leveza consumista multiplicou as ofertas de conforto, facilidade, comodidade, prazer e bem-estar material. Assim, “são lógicas que significam o advento de um sistema-moda que governa a ordem da produção das necessidades”, afirma Lipovetsky (2016, p. 34).
Com efeito, a leveza material ambientada num universo consumista corresponde à procura perpétua por uma leveza de viver, isto é, de um modo em que a vida se faça menos de obrigações sistemáticas e de responsabilidade em demasia e mais com o prazer do riso e do divertimento. Essa lógica vem procurando penetrar, inclusive, no mundo empresarial, incorporando a leveza lúdica e estética (relações informais, arte, humor, descontração, música, dança, jogos etc) no imaginário social e no cotidiano da produção. Mas, conforme Han (2015), os paradigmas disciplinar e do desempenho sobrepõem-se, não se excluem. O trabalho no viés fordista, do século XX, foi o resultado do projeto moderno civilizatório que repousa na técnica constituinte das máquinas e na lida com elas. Por sua vez, o pós-fordismo, paradigma do desempenho, não se desvencilhou dessa herança histórica do grande peso das sociedades industriais, pois o sujeito do desempenho, mesmo atuando por mecanismos flexíveis, ainda continua sendo o sujeito da disciplina, houve uma soma e não uma substituição de atribuições. Corpos e mentes devem ser postos a laborar, a exigência da performance profissional pesará invariavelmente sobre o clima ameno, agradável e despretensioso da leveza.
No entanto, para além da maquinaria técnica, o trabalho está inserido em meio a dispositivos pesados de controle: religião, pátria e dever moral. Assim, o espírito da leveza encontra ainda muitas sanções e dificuldades para se estabelecer na contemporaneidade, sobretudo, quando se leva em consideração as cobranças de alto desempenho que hoje mais parecem interiores do que exteriores ao indivíduo. Há, portanto, uma interiorização da normatividade que clama por alta performance na atividade laboral. Um dos entrevistados na matéria observada confessa às jornalistas: “Tenho cara de velho porque o mercado estressa a gente”, ri. “Mas para mim nem é trabalho, é minha paixão.” (SOARES; ROSARIO, 2019).
Assim, paradoxalmente à leveza, por mais concreta e observável – seja nos corpos esguios, seja na comida light, seja nos objetos ultraleves, reluzentes e sem fio – a existência parece pesada. Os sinais de cansaço no corpo denotam os limites da civilização da leveza e talvez por isso a política não invista mais em monumentais utopias. Diante de um corpo esbelto, mas medicado e cansado, não resta mais tanta força para perseguir sonhos abstratos e disputar com organização criativa algum cenário melhor.
No circuito da leveza, em que as utopias foram perdidas ou desencorajadas pelo tempo, Lipovestsky (2016) menciona o surgimento do culto ao mercado, ao hiperconsumo, ao capitalismo global e seus mantras de: flexibilizar, reduzir, aliviar, moderar. No pós-fordismo, demoliram-se os muros das gigantescas fábricas e preferiu-se os vidros que possibilitam a comunicação entre equipes de trabalho. Os escritórios tendem a ser menores e possibilitam a cooperação entre pessoas que trabalham em home office e ambientes de coworking4. Muitas vezes, equipes enxutas, relações de trabalho esporádicas e a ausência de contratos dão o tom do capitalismo na atualidade, que exige do trabalhador cada vez mais desempenho numa fatia menor de tempo. Seriam estas, certamente, as faces ocultas da leveza-mobilidade.
Como se pode observar, a civilização da leveza permitiu que alguns empregados gozassem de certa flexibilidade, seja no lugar de trabalho ou no cronograma de suas atividades. Um conjunto de trabalhadores, aos ventos da comunicação em rede, creem-se livres como nômades digitais que percorrem precariamente numa ânsia de tornar a vida mais leve. Essa flexibilização seguramente era impensável numa modernidade “sólida”, pois essa era conduzida por um engajamento mútuo. Já o presente parece ser a época do desengajamento, da fuga fácil e da perseguição inútil. A modernidade líquida dirige “os mais escapadiços, os que são livres para se mover de modo imperceptível”, escreve Bauman (2001, p. 140).
Na contemporaneidade, a leveza-frívola do consumidor chega a ser uma aspiração do universo profissional e digna de admiração já que, muitas vezes, foi incorporada e é instigada pelas próprias empresas. “Não importa se a pessoa vem trabalhar de pantufas”, brinca Weider Campos, diretor de recursos humanos do Facebook (SOARES; ROSARIO, 2019). Assim, o convite ao leve atua investindo cosmeticamente os ambientes de trabalho, como empresas de comunicação digital, agências de publicidades, barbearias e varejos de todo tipo. O lema parece ser um só: é possível divertir-se trabalhando. A ideologia do bem-estar consumista chega as aspirações do trabalho em que “toda parte o real se constrói como uma imagem, integrando nesta uma dimensão” estético-emocional (LIPOVESTSKY; SERROY, 2015, p. 11). Com efeito, a dimensão do prazer é incorporada ao trabalho.
Isso se reflete nos escritórios contemporâneos, supercoloridos, com bancos, geladeira vintage, com cafeterias goumert, sem paredes, nem divisórias etc. Há pouco tempo isso seria apenas mais uma descrição fiel de uma bem-sucedida agência de publicidade, mas escritórios do tipo “superlegais” ou “divirta-se trabalhando” ganharam adeptos em diversos ramos da economia. Os mais icônicos são os escritórios das empresas de tecnologia como: Google, Apple, Microsoft, Riot Games, Mozilla, entre outras. As jornalistas Ana Carolina Soares e Mariana Rosario (2019), que assinam a matéria aqui tomada como exemplificadora dos fenômenos em discussão, comentam que até mesmo “o banco mais tradicional do país virou moderninho como uma ‘asset’ ali na Faria Lima. Há casulos coloridos e estofados para reuniões, teto com o pé-direito alto, sem forro e com canos aparecendo, e até balanços como cadeiras”.
Figura 2: Bradesco “moderninho”
Fonte: Soares & Rosario, 2019 (On-line)
A estetização de empresas tradicionais, como os bancos (Fig. 2), opera a partir da união entre arte, arquitetura e mercado e exemplifica bem o caráter do que Lipovetsky e Serroy chamam de “capitalismo artista”, que “liga o econômico à sensibilidade e ao imaginário (...) [e] se baseia na interconexão do cálculo e do intuitivo, do racional e do emocional, do financeiro e do artístico” (2015, p. 43).
Enquanto isso, as empresas contemporâneas parecem encabeçar uma economia do leve, a que se refere Lipovetsky (2016), tensionando e até mesmo superando as dinâmicas anteriores de produção, inclusive energética; de modo que a energia limpa dos ventos ou do sol é apelo das novas sedes empresariais, como faz questão de lembrar o filósofo. Entre outros desdobramentos, esse tipo de capitalismo criativo, transestético, parece ser mais dependente de uma capacidade cognitiva e de comunicação para realizar efetivamente suas atividades, e seus produtos e serviços são guiados pelos preceitos da leveza material, do design. Por isso mesmo, a vida não escapa mais do trabalho. Nessa produção, as ideias e o conhecimento de cada um são utilizados, ganhando certo protagonismo e ditando a ordem de monetização do dia. O trabalho mudo é atualizado pelo trabalho comunicativo, no qual o bom relacionamento com os demais deve vir acompanhado de um currículo considerável, de desenvoltura, de educação e de certa elegância no trato com os clientes.
Não à toa, tal estetização de si, em torno da maneira de produzir (específica de um capitalismo criativo), parece andar lado a lado com a estetização da arquitetura e do design. Aqui, espaços são elaborados para vender felicidade e exaltar um estilo de vida digno da civilização da leveza. A partir de uma leveza imaginária sob o signo do fun – na qual uma perspectiva do lúdico, funcional e leve é levada a cabo – espera-se que haja mais interatividade e sinergia entre os funcionários, como confessa o vice-presidente do Bradesco às repórteres de Veja SP (SOARES; ROSARIO, 2019). A questão que se coloca é: o que está sendo promovido é uma leveza para o funcionário ou para o ambiente? De fato, um ambiente agradável para a rotina do trabalho é importante, acredita-se que tenha um impacto na produtividade, no entanto, aquela estetização pode mascarar outros elementos imprescindíveis como: melhores salários, oportunidade de ascensão, bem-estar, respeito, relação de confiança etc.
A plasticidade leve do espaço pretende desenvolver uma atmosfera sensível e emocional, que guie à felicidade e ao despojamento. A despeito disso, bem como de todo alargamento do consumo, a vida parece ser ainda marcada pelo cansaço, a sentir pelas dificuldades e sanções a rodo que cercam trabalhadores. Apagando as pegadas da política, o mercado triunfa à medida que investe numa capacidade lúdica de leveza, que vai de uma indústria do entretenimento, à arquitetura e ao design, pretendendo render os desejos. Afinal, a descontração e o hedonismo são típicos desta época.
Ao mercado parece competir o papel de mediador que conquistou na civilização da leveza às custas da sedução e da frivolidade. Uma leveza que se sente tanto pela dimensão ultraleve dos objetos de consumo quanto pela democratização do universo do divertimento, pela música e pela televisão. O empobrecimento da subjetividade que atinge a civilização da leveza, isto é, a impossibilidade de criação para além do mercado da sociedade contemporânea, tem o seu preço.
À medida que as singularidades permanecem nubladas, o vigor do mercado pesa sobre as vidas dos gerenciados, que têm de seguir o estilo up da decoração e do design dos escritórios que habitam, ou seja, adotar rotinas de proatividade, fazer sempre mais rápido, liderar e cooperar com alegria e motivação, mesmo que com menos pessoas. Com efeito, trata-se de um paradoxo bem-acabado digno de um capitalismo que conduz a experiências de consumo singulares ao mesmo tempo que aceita apenas uma leveza meramente cosmética como valor organizador da vida. Tal fato pode explicar como o cansaço é indissociável no caso de uma civilização da leveza.
Na vida-trabalho, leveza e cansaço são faces da mesma moeda
Seja em meio a uma arquitetura, a uma economia ou mesmo a uma incorporação de objetos ultraleves, demonstrando a face multiforme da civilização da leveza, o leve parece cosmeticamente adentrar e experimentar com intensidade os meandros do trabalho, isso não sem ambiguidades. As tarefas imperativas de atuar com o máximo de performance, de ser dinâmico, de ser criativo, de ter autoconfiança em si mesmo, como bem diz o coaching executivo5, por mais que estabeleçam uma produção diferente e específica, acabam por reconfigurar o labor no contemporâneo, sincronizando-o mais com o cansaço do que com uma condição melhor de vida. Assim, “a proliferação dos dispositivos leves não consegue eliminar o mal-estar, o estresse e a degradação da autoestima gerados pela influência das normas de desempenho” (LIPOVESTSKY, 2016, p. 298). Portanto, a civilização da leveza estabelece relação íntima com os apontamentos do filósofo Byung-Chul Han em Sociedade do Cansaço (2015).
O ponto de conexão está sobretudo no hiperdesempenho e na condição subjetiva dos indivíduos que estão imersos na civilização da leveza e na sociedade do cansaço. Uma subjetividade que é trabalhada e modulada a todo momento para acomodar uma vida que é inteiramente permeada pelo trabalho. Portanto, com uma vida tomada pela performance e pelo desempenho se conjectura um grau de fadiga e de cansaço, a despeito de toda uma atmosfera que insiste em se apresentar como leve – seja a partir da arquitetura, do peso leve dos objetos ou da fun morality em voga nos programas de TV ou nas famílias cool.
A sociedade do desempenho evidenciada por Han (2015) daria um passo além da sociedade disciplinar de Michel Foucault (1978), pois traz consigo um excesso de positividade que subjuga a negação, imprimindo nos indivíduos os mandamentos de ascensão, de autonomia e de um projeto de carreira extremamente individual. Apesar das tensões, ambas as considerações, de Han e de Foucault, de certo modo se complementam, como se observa no trecho a seguir: “O sujeito do desempenho é mais rápido e mais produtivo que o sujeito da obediência. O poder, porém, não cancela o dever. O sujeito do desempenho continua disciplinado” (HAN, 2015, p. 26). Isto exige um excesso de trabalho, mesmo não estando num local específico: nos momentos de lazer, o indivíduo está sempre administrando seu tempo, tendo que permanecer online e alerta 24 horas. Nesse sentido, um dos entrevistados na reportagem de Veja SP confidencia que alia o sofrimento da falta de sono com a busca por mais desempenho: “Sofro de insônia e, em vez de ficar me revirando na cama, chego às 5 da manhã e me informo antes mesmo do boletim da Bloomberg”. Outro entrevistado conta às repórteres que passa, em média, 11 horas de seu dia no escritório e nas demais horas dedica-se a leituras sobre o mercado de ações. “Minha mulher diria que eu trabalho 24 horas por dia”, afirma orgulhoso (SOARES; ROSARIO, 2019).
A postura de alta performance que se adota na rotina profissional pode esbarrar nos limites do próprio corpo e da psique, dado os números de doenças neuronais como a depressão (HAN, 2015). O Transtorno de Déficit de Atenção com Síndrome de Hiperatividade (TDAH), Transtorno de personalidade limítrofe ou Síndrome de Burnout são algumas das doenças comuns de nossa época, caracterizada por uma violência que se faz sobretudo neurologicamente.
A questão paradoxal que é transversal ao pensamento de Lipovetsky e de Han é que temos, de um lado, uma cultura que elogia e convida à leveza e, de outro, o ultraliberalismo econômico que não cessa de produzir fadiga, mal-estar e insegurança. A ironia hipermoderna da civilização do leve parece ressoar na sociedade do cansaço, já que mesmo que a leveza seja um organizador social e sobretudo uma exigência antropológica ao longo do tempo, ela não consegue se fazer presente de forma permanente e soberana. O desemprego, a precariedade das rotinas de produção e a vida sobrecarregada andam a passos largos. Além disso, há uma profunda sensação de desamparo no indivíduo contemporâneo.
O que aparece na análise de Lipovetsky (2016) sob os termos de individualização e desamparo, Han (2015) chama de cansaço e inscreve a depressão e o tédio como seus efeitos mais tocantes. Tais preceitos parecem atuar como frutos de uma economia do leve, aquela que tem na desmaterialização, isto é, no domínio do conhecimento para manejar as partículas infinitesimais sua principal prerrogativa. As tradicionais commodities devem ceder lugar a objetos ultraleves e altamente tecnológicos se se quer despontar nesse tipo de economia já hegemônico.
Todavia Lipovetsky (2016) parece rivalizar com a análise de Han (2015) ao dizer que nossas sociedades não se apoiam apenas no princípio de desempenho, mas também e especialmente na valorização do corpo e de seus prazeres. Assim, o culto ao bem-estar corporal é apenas uma das manifestações dessa cultura hedonista. A aposta de Lipovetsky é que o novo corpo contemporâneo seria mais abrigo do prazer e da leveza do que do desempenho, pois o presente se impõe como eixo temporal expressamente dominante. Desse modo, os desejos de leveza e bem-estar são colocados sempre no agora, no presente, muito embora o carpe diem não pareça aliado do corpo magro. Então, Lipovetsky (2016, p. 84) conclui que o nosso modo de pensar presentista predomina mais que a cultura do desempenho.
Ao passo que Lipovetsky afirma que as cobranças coletivas diminuíram, Han diz que isso é resultado de uma perspectiva intra e subjetiva que chega ao poder. A guerra é consigo mesmo, uma guerra internalizada. No mundo do trabalho, o que dita a regra é a intensificação da concorrência, a cultura de avaliação individualizada, sempre sob um espiral de competição, que exige uma maximização da performance. O recuo da leveza de ser coaduna com a cultura empresarial hipermoderna que quer tanto chefes quanto empregados sob pressão e repercute a saturação da informação. O verniz que cobre a vida leve não demora muito para apresentar suas nuances mais caras. Por debaixo da fina e polida camada de prazer, estão os sulcos de performance e de desempenho. No contemporâneo, leveza e cansaço são faces da mesma moeda, vide o avanço das doenças neuronais e da medicalização.
Considerações finais
A civilização da leveza surge e é substancialmente ligada aos movimentos do capitalismo contemporâneo, sendo resultado de um aprofundamento da análise de seu cunhador. Desse modo, em Felicidade paradoxal, Lipovetsky (2007) traz historicamente três ciclos do capitalismo. Após o nascimento dos mercados de massa, entre 1890 e 1950, e o consumo emocional ou o consumo por distinção, entre 1950 a 1970, vem o ciclo de hiperconsumo. Neste último, estabelece-se mais um consumo para si e menos um consumo para o outro. Consumir é uma experiência de prazer desopilante. É a vez de uma nova moralidade, calcada no trabalho e no divertimento, e de uma nova economia psíquica que leva a cabo a civilização em que tanto a leveza quanto o cansaço são igualmente celebrados – como se pode ver nos relatos dos “Faria Limers”, coletados para a reportagem de Veja SP.
Corre na contemporaneidade uma nova maneira de viver e lidar com a família, a pátria e com os ideais. A perspectiva do poder e da política diante da civilização da leveza é transformada. A força da leveza é dada pela sua presença ubíqua e multiforme no contemporâneo. Uma leveza que sai de vez da clausura antes estabelecida pela filosofia e pelo budismo para ser glamourizada em produtos audiovisuais e textuais de empresas midiáticas. Essa leveza que se pretendia sábia pelo gosto de viver com equilíbrio abraça com vigor o hiperconsumo, o hedonismo e, por conseguinte, o cansaço do desempenho.
Esse projeto civilizatório do leve tem seus princípios: a tecnociência, o mercado, o individualismo. As transformações técnicas contínuas no mundo dos objetos, com ênfase na predominância do leve, nos processos de miniaturização, desmaterialização, voltados para o reino do infinitamente pequeno, do micro, do nano e o imaterial, têm reflexos no trabalho, na economia e na produção, mas também estimula novos horizontes de poder e ameaça à política.
Com efeito, o que nos faz mudar de civilização não é mais o trabalho mudo ou fordista, mas a positividade do nanopoder, ou seja, o domínio sobre as partículas infinitesimais, o domínio do imaterial. Conhecimento sobre as nanopartículas é fundamental tanto na produção quanto na economia, pois atua sempre numa perspectiva muitas vezes imperceptível e caminha para a desmaterialização. Com a miniaturização dos chips e a forte presença do digital, desenvolve-se a Internet of everything (Internet de tudo), que supera a Internet of things (Internet das coisas), provando que a conectividade e a mobilidade são motivos que orientam as condutas pessoais, engendrando uma economia psíquica e subjetiva bastante específica, digna da civilização do leve.
Se estamos num frenesi da leveza-mobilidade, velozmente nos deslocando ou mesmo nos comunicando com o mundo de um só lugar, deixando soprar o nomadismo digital, permanecemos sempre conectados a nossos compromissos, cada vez mais dispostos numa rede de afetos em fluxo. O trajeto feito não acontece sem deixar pegadas e ser a todo tempo interpeladas por big data. Assim, a análise maciça dos dados realizada por big data pode indicar os passos e as decisões futuras com maior precisão.
Para Lipovestky (2016), isso tensiona os preceitos do biopoder e atualiza as condições da microfísica do poder, ambas noções de Michel Foucault. Timidamente, Lipovetsky mensura que o poder está mais no arranjo das nanopartículas e na inovação e na rentabilidade que isso pode causar, do que numa política que frisa apenas os corpos da população e seus desdobramentos relativos à saúde, higiene e natalidade. Neste rumo, estamos imersos num governo das partículas muito pequenas que dão o tom de uma microfísica do poder devidamente atualizada e expressa, não mais em instituições bem delimitadas, mas nos fluxos dos dados.
BARDIN, Laurence. Análise de conteúdo. Lisboa: Edições, 2009.
BAUMAN, Zigmunt. Modernidade líquida. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2001.
FOUCAULT, Michel. Microfísica do poder. São Paulo: Paz e Terra, 1978.
GOSDSMITH, Marshal; LYONS, Laurence S.; MCARTHUR, Sarah. Coaching: o exercício da liderança. Rio de Janeiro: Elsevier, 2012.
HAN, Byung-Chul. Sociedade do cansaço. Petrópolis; Rio de Janeiro: Vozes, 2015.
LIPOVETSKY, Gilles. Da leveza: rumo a uma civilização sem peso. Barueri; São Paulo: Manoele, 2016.
LIPOVETSKY, Gilles. Felicidade paradoxal: ensaio sobre a sociedade de hiperconsumo. São Paulo: Companhia das Letras, 2007.
LIPOVETSKY, Gilles. O império do efêmero: a moda e seu destino nas sociedades modernas. São Paulo: Companhia das Letras, 2009.
LIPOVETSKY, Gilles; CHARLES, Sébastien. Os tempos hipermodernos. São Paulo: Barcarolla, 2004.
LIPOVETSKY, Gilles; SERROY, Jean. A estetização do mundo: viver na era do capitalismo artista. São Paulo: Companhia das Letras, 2015.
LUPION, Raquel. Veja 20 hábitos simples para você adotar no dia a dia e melhorar sua qualidade de vida. Zero Hora, Porto Alegre, 08 dezembro 2018. Disponível em: < https://gauchazh.clicrbs.com.br/donna/fitness/noticia/2018/10/veja-20-habitos-simples-para-voce-adotar-no-dia-a-dia-e-melhorar-sua-qualidade-de-vida-cjpimgeqn0005t0cne72bqbah.html>. Acesso em: 10 jan. 2020.
PARQUE Memorial Japi. 9 maneiras de levar uma vida mais leve. G1, 13 julho 2020. Disponível em: < https://g1.globo.com/sao-paulo/sorocaba-jundiai/especial-publicitario/parque-memorial-japi/a-natureza-acolhendo-lembrancas/noticia/9-maneiras-de-levar-uma-vida-mais-leve.ghtml>. Acesso em: 10 jan. 2020.
OLIVEIRA, Julyana. 11 maneiras de tornar a vida mais leve. Casa e Jardim, 20 fevereiro 2017. Disponível em: <https://revistacasaejardim.globo.com/Casa-e-Jardim/Dicas/noticia/2016/10/11-maneiras-de-tornar-vida-mais-leve.html>. Acesso em: 10 jan. 2020.
SOARES, Ana Carolina; ROSARIO, Mariana. Os Faria Limers: como é o jeito de viver de quem trabalha no “condado”. Veja São Paulo, São Paulo, ١٣ dezembro 2019. Disponível em: < https://vejasp.abril.com.br/cidades/faria-lima-condado-mercado-financeiro/>. Acesso em: 20 dez. 2019.
Recebido em 21/02/2020
Aceito em 16/09/2020
1 Parque Memorial Japi. 9 maneiras de levar uma vida mais leve. G1, 13 jul. 2020. Disponível em: < https://g1.globo.com/sao-paulo/sorocaba-jundiai/especial-publicitario/parque-memorial-japi/a-natureza-acolhendo-lembrancas/noticia/9-maneiras-de-levar-uma-vida-mais-leve.ghtml>. Acesso em: 10 jan. 2020.
2 LUPION, Raquel. Veja 20 hábitos simples para você adotar no dia a dia e melhorar sua qualidade de vida. Zero Hora, 08 dez. 2018. Disponível em: < https://gauchazh.clicrbs.com.br/donna/fitness/noticia/2018/10/veja-20-habitos-simples-para-voce-adotar-no-dia-a-dia-e-melhorar-sua-qualidade-de-vida-cjpimgeqn0005t0cne72bqbah.html>. Acesso em: 10 jan. 2020.
3 OLIVEIRA, Julyana. 11 maneiras de tornar a vida mais leve. Casa e Jardim, 20 fev. 2017. Disponível em: <https://revistacasaejardim.globo.com/Casa-e-Jardim/Dicas/noticia/2016/10/11-maneiras-de-tornar-vida-mais-leve.html>. Acesso em: 10 jan. 2020.
4 Coworking é um modo de realizar novas dinâmicas de ambiente de trabalho. A ideia é oportunizar um espaço para pessoas que trabalham de forma independente, permitindo o compartilhamento de conhecimento e o estabelecimento de relações pouco institucionalizadas e burocráticas.
5 Profissional que realiza processo de aperfeiçoamento profissional e pessoal, visando ao aumento das competências do cliente. Assim, o coaching executivo atende a área de negócios empresariais e seus contratantes podem ser líderes, CEOs ou gerentes, como escrevem Gosdsmith, Lyons e McArthur (2012).
Entrevista
A POTÊNCIA DOS FEMINISMOS NA LUTA CONTRA
A RAZÃO NEOLIBERAL NA AMÉRICA LATINA:
uma entrevista com Verónica Gago
THE POWER OF FEMINISMS IN THE FIGHT
AGAINST NEOLIBERAL REASON IN LATIN AMERICA:
an interview with Verónica Gago
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Mônica Vilaça*
Bárbara Freitas**
Esta entrevista com Verónica Gago, professora da Universidade de Buenos Aires (UBA) e da Universidade Nacional de San Martin (UNSAM), busca dialogar com as recentes movimentações construídas no bojo das lutas e interpretações que têm marcado os últimos anos na América Latina. Este tem sido um período atravessado por uma pujante produção e tradução para o português de livros de mulheres intelectuais e feministas de várias tradições, e por intensas mobilizações pelos direitos das mulheres, como as lutas pelo direito ao aborto e de enfrentamento ao feminicídio, que criaram ressonância em diversos países e continentes, e que vêm provocando uma inflexão por novas perguntas e métodos de ler, interpretar e incidir na realidade social. No conjunto destas articulações, tem-se ampliado ações que buscam melhor conhecer a produção latino-americana e é neste movimento que se inserem os diálogos com Verónica Gago. Em nosso encontro, durante o Seminário Internacional “As perspectivas feministas sobre a geopolítica global patriarcal e racista”, realizado em Salvador (BA), em 20191 – momento de articulação dos movimentos e intelectuais feministas da América Latina, que coincidia com a visita realizada pela italiana Silvia Federici para o lançamento do livro “O Ponto Zero da Revolução: trabalho doméstico, reprodução e luta feminista” –, propusemos a realização desta entrevista. Com a impossibilidade de realizá-la durante o seminário, contamos com a generosidade de Verónica de responder às perguntas que formulamos por escrito. Esta forma de realização da entrevista permitiu uma elaboração densa e rica, e que compartilha também novos debates produzidos pós-seminário, que coincidem com novas publicações suas, mencionadas ao longo da entrevista. Nossa tradução buscou preservar com o máximo cuidado as complexas elaborações apresentadas, mantendo aspectos da formatação do texto da entrevista – grifos e itálicos – enviado por Verónica, que buscavam destacar e salientar algumas ideias nas análises. Esperamos que o diálogo consolidado nesta entrevista contribua com a partilha, mas também o reconhecimento, das elaborações que se têm construído na íntima relação entre academia e militância, expressas na experiência da Verónica Gago e que refletem uma estratégia de produção de conhecimento mobilizada por muitas mulheres nas universidades da América Latina.
Você poderia se apresentar, falar um pouco sobre você?
Verónica Gago – Me chamo Verónica Gago. Vivo em Buenos Aires (ainda que não tenha nascido aqui, e sim em um povoado a 200 quilômetros da capital). Estudei Ciência Política na Universidade de Buenos Aires e depois de vários anos, nos quais só me dediquei à militância e ao trabalho, iniciei o Doutorado em Ciências Sociais. Sou professora nesta mesma Universidade e ensino na graduação e pós-graduação sobre economia internacional e teoria política. Também trabalho na Universidade Nacional de San Martin, onde sou responsável pelos cursos de teoria crítica, economias populares e economia feminista. Sou investigadora no Conselho Nacional de Investigações Científicas e Técnicas (CONICET). Comecei minha militância na Universidade como estudante e continuei vinculada a um grupo de investigação e ação militante que se chama Coletivo Situações. Como parte dessa iniciativa também se formou a Editora independente Tinta Limón, da qual sigo sendo editora. Desde 2016, sou parte do coletivo NiUnaMenos.
Como foi o teu encontro com o feminismo, enquanto teoria e movimento social?
Verónica Gago – Na militância na universidade, o feminismo estava presente entre as companheiras que conformavam o Coletivo Situações, porém de uma forma que não buscava, acredito, impactar de modo direto as lógicas mistas da organização do próprio coletivo. Sem dúvida, a discussão sobre o papel das mulheres na política – ainda sem nomear especificamente como feminismo – era muito forte nos debates que circulavam então nos anos 1970, também sobre as trajetórias de várias militantes que se fizeram feministas durante seus exílios, e também sobre como essas dinâmicas e biografias se expressaram na década de 1980, momento que aqui se chamou “transição à democracia”. Tem um ponto fundamental que marca a sensibilidade de várias gerações, o papel das Mães e Avós da Praça de Maio, como um fio vermelho de longa duração. Neste contexto, a militância vinculada aos direitos humanos dessa geração foi fundamental para nós que tínhamos em torno dos 20 anos nos anos de 1990, já que foi um primeiro momento de ação direta, em que o “escracho” aos genocidas, que estavam impunes em suas casas, foi um modo de pôr em prática outra ideia de justiça. Nesse momento, se tenho que me referir a uma experiência de feminismo que me/nos marcou, a nós que militávamos juntas naquele momento, foi conhecer a prática de Mulheres Criando, da Bolívia. Tanto seus grafitis, como seu periódico, que difundíamos em Buenos Aires. Logo, uma das experiências de formação mais intensas para mim foi vivenciar a crise de 2001, na qual movimentos sociais muito importantes, especialmente de trabalhadorxs desempregadxs, abriram um horizonte político popular muito radical. Nestas experiências, com as quais me vinculei a partir do coletivo do qual era parte, elaborou-se um desafio à legitimidade política do neoliberalismo e para todxs nós, que nos comprometemos com as assembleias, os piquetes e as redes de intercâmbio e organização, foi como atravessar um limiar de como habitar as ruas e vivenciar uma nova política. A partir do trabalho editorial, alguns anos depois, também estabelecemos uma relação com companheiras cuja trajetória de luta e pensamento são chaves para uma sensibilidade e um arquivo feminista que, para mim, seria muito importante. Refiro-me a pessoas como Silvia Federici, Raquel Gutiérrez Aguilar, Silvia Rivera Cusicanqui e Suely Rolnik. Logo, com minha militância no coletivo NiUnaMenos, sou parte de uma experiência que nos permite viver e militar de forma plena o feminismo, no preciso momento em que ele se torna um movimento social, massivo e radical, algo que é uma novidade em nosso país e, ao mesmo tempo, que existe dessa forma na medida em que expressa uma conexão e uma força transnacional muito potente.
Como tua militância no NiUnaMenos e tua formação como cientista social se encontram na tua atuação como pesquisadora?
Verónica Gago – Minhas problemáticas de investigação estiveram sempre vinculadas ao trabalho, desde o ponto de vista das dinâmicas do que se chama feminização do trabalho, e do trabalho migrante, que se encontram, sem dúvida, com as economias subalternas. Isto imediatamente me levou a indagar a partir das perspectivas feministas. Tanto no que sistematizei para meu trabalho de tese, como nas questões que me interessavam previamente em termos teóricos e de minhas experiências, essas questões se conectavam. Daí também é que comecei a aprofundar minhas formulações sobre o mapa do neoliberalismo na América Latina. O fiz partindo de minha investigação que se localizava na Argentina, mas à medida que envolvia trajetórias feminizadas migrantes e pela própria dinâmica do capital transnacional – especialmente em sua fase de hegemonia financeira –, tornou-se essencial sair de um “nacionalismo metodológico” para pensar outras chaves explicativas. Minha investigação sempre teve, para mim, um caráter de intervenção política e esteve associada a formas de militância, mesmo quando parte dela era realizada na universidade. Isto tem relação também com uma tradição de compromisso político da universidade pública e gratuita em nosso país. Minha militância no NiUnaMenos e especialmente na dinâmica de organização da greve feminista internacional certamente se articula e impacta de múltiplas maneiras minha própria pesquisa, sobretudo porque a greve produz um mapeamento prático da heterogeneidade das formas de trabalho em uma chave feminista, colocando, em primeiro lugar – como falarei mais à frente – trajetórias de vida e trabalho historicamente desvalorizadas e superexploradas. Desta maneira, acredito que tenha uma contaminação recíproca das formas de prática política e da investigação militante que faz com que a produção de conceitos não seja um monopólio da academia, nem que a prática política se reivindique como anti-intelectual.
Em teu livro “A potência feminista, ou o desejo de transformar tudo” 2, que acaba de ser lançado no Brasil pela Editora Elefante, em parceria com a Tinta Limón, você discute a greve internacional de mulheres. Neste contexto podemos pensar em uma ressignificação da greve a partir da luta feminista? A greve assumiria um novo sentido? Qual?
Verónica Gago – Sim, acredito que a prática da greve vivenciada a partir do movimento feminista modifica-a por completo porque, para dizê-lo de modo simples, a greve se pratica “fora do lugar”. Devo explicar: em primeiro lugar, a greve torna-se um dispositivo específico para politizar as violências contra as mulheres, lésbicas, travestis, trans e não binários. Em outras palavras, a greve cruza duas questões que historicamente se viam desencontradas. Conectar as violências machistas com a ferramenta da greve realmente amplia nossa compreensão das violências. Com a ferramenta do “paro”3 [greve] começamos a vincular de modo prático as violências que se enlaçam com a violência machista: a violência econômica na diferença salarial e nas horas de trabalho doméstico não reconhecido e não pago, com o disciplinamento que se enlaça com a falta de autonomia econômica; a violência da exploração que se traduz no lar como impotência masculina e explode em situações de violência “doméstica”; a violência do sucateamento dos serviços públicos com a sobrecarga do trabalho comunitário. A greve, neste sentido, é uma ação que nos situa como sujeitxs políticos frente às violências e sua tentativa sistemática de reduzir nossas dores, colocando-nos na posição de vítimas, a serem culpadas e revitimizadas. A greve nos põe em situação de luta. Não esquece a dor, porém nos retira do “estado” de dor.
Mas também, fazendo isso, expande-se e é apropriada por aquelxs que supostamente não estavam autorizadas nem legitimadas para fazer greve, uma ferramenta clássica monopolizada pelo movimento trabalhista e sindical (e majoritariamente masculino, heterossexual e branco). Daí coloca-se uma pergunta prática e teórica muito desafiante: Como a greve feminista é protagonizada simultaneamente desde territórios, sujeitxs e experiências que não cabem na tradicional ideia de trabalhadorxs e que, por isso mesmo, têm a capacidade de reinventá-la e transformá-la?
Neste sentido, a greve analisada a partir do movimento feminista, como tem acontecido nos últimos quatro anos inclui, reconhece e visibiliza como força de trabalho, como potência produtiva, como criadoras de valor, uma multiplicidade de sujetxs que historicamente foram definidxs como improdutivxs, ao mesmo tempo que eram superexploradxs. Desta maneira, o “paro” conseguiu traduzir novas gramáticas de exploração, nomeá-las e situá-las, estabelecendo novas gramáticas de conflito. Redefine assim o que é um conflito de “trabalho” porque o alarga: localiza-o, não só nas fábricas ou em espaços de trabalhos formais, para levá-lo a outros lugares – do lar às economias populares, das camponesas às migrantes sem documentos, das feiras aos restaurantes comunitários. Essa trama, que implica um processo político de organização, envolvimento e de compartilhamento, produz as condições para entender a conexão entre o trabalho doméstico e a exploração financeira, o trabalho precário e a hierarquia nos sindicatos, evidenciando as áreas de exploração que historicamente foram invisibilizadas e sua relação íntima com áreas de trabalho “visíveis”.
O paro, por esta capacidade de mapear a heterogeneidade do trabalho a partir de uma chave feminista, tomou múltiplas formas, distintas modalidades de protesto, de assembleia, de usos da própria noção de parar e bloquear, de ocupar e esvaziar os espaços de trabalho, as casas e os espaços de produção nos bairros. A partir dessa multiplicidade, outra pergunta também encontra espaço: Por que o paro expressa um modo de subjetivação política, um modo de atravessar fronteiras sobre o limite do possível? Em meu livro, proponho o paro feminista como “lente” de leitura para as reconfigurações do capitalismo contemporâneo, de seus modos específicos de exploração e extração de valor, e das dinâmicas que lhe resistem, sabotam e contestam. Porque se o paro é um modo de parar a continuidade da produção do capital, entendido como relação social, é porque põe em marcha uma desobediência à contínua expropriação de nossas energias vitais, espoliadas em rotinas exaustivas. Por essas razões, novas perguntas continuam se abrindo: que acontece com a prática do paro quando é pensado e praticado com base em sensibilidades que não se reconhecem a priori como de classe e que, sem dúvida, desafiam a própria ideia de classe? Em que sentido esse “deslocamento” do paro, seu “uso” fora do lugar, remapeia as espacialidades e temporalidades da produção e do antagonismo?
O paro reinventado pelo feminismo se transformou em seu sentido histórico também ao sair do âmbito estrito dos sindicatos: deixou de ser uma ordem emanada de cima (hierarquia sindical) que se acata ou adere, para converter-se em uma pergunta-investigação concreta e situada: que significa parar para cada realidade existente e de trabalhos diversos? Essa pergunta pode ter um primeiro momento que consiste em explicar por que não se pode fazer paro no lar, ou como vendedora ambulante, ou como encarcerada, ou como trabalhadora freelance (identificando-nos como as que não podem parar), mas imediatamente depois de verificada essa impossibilidade (completamente massiva em nossos países) assume outra força: essas experiências são levadas a ressignificar e expandir o que se suspende quando a greve deve compreender e acomodar essas realidades, ampliando o campo social em que a greve se inscreve e produz efeitos. No livro, descrevo várias situações concretas nas quais essa simultaneidade entre impossibilidade e desejo de parar abrem caminho para uma imaginação política radical.
Por último, gostaria de sublinhar que o paro vai além e integra a questão trabalhista porque torna visível que paramos nosso trabalho e paramos contra as estruturas e a ordem que tornam possível a valorização do capital. Esses ordenamentos (da família heteropatriarcal à maternidade compulsória, do aborto clandestino à educação sexista) não são meramente questões culturais ou ideológicas. Eles respondem ao próprio entrelaçamento do patriarcado, do colonialismo e do capitalismo e destacam que tipo de violência específica necessita hoje o capital e contra quais corpos e territórios ela incide de maneira diferenciada.
A economia feminista tem problematizado a invisibilidade dos trabalhos domésticos e de cuidados na Economia. Como as greves ajudaram a ampliar a visibilidade destas fronteiras do trabalho na produção e reprodução da vida?
Verónica Gago – A greve feminista tem colocado o foco no terreno da reprodução para, como dizia antes, relevar e revelar todas essas tarefas como diretamente produtivas e obrigatórias por ordenamentos de gênero. O modo de visibilizar esses trabalhos imprescindíveis foi a base para sua interrupção: deixar de fazê-los para que sua ausência os torne evidentes em toda a sua presença historicamente invisível e desvalorizada.
As teorizações feministas popularizaram a noção de tripla jornada: trabalho fora de casa, trabalho dentro de casa e trabalho afetivo de produção de vínculos e redes de cuidado. Parar essa multiplicidade de tempos é uma subtração que parece quase impossível, porque é nesse excesso que a vida e o trabalho se encontram e onde a reprodução visibiliza-se imediatamente como produção. Fazer “paro”, em todos estes tempos de trabalho, põe em relevo o tempo a partir do ponto de vista feminista, em sua condição sobreposta: como se “produz” a hora que mais tarde é contada como trabalho? Como se produzem xs trabalhadorxs para sua reprodução vital e cotidiana? Portanto, “parar”, nesta chave, é repensar tudo.
No trabalho político da greve, realizado entre organizações territoriais e sindicatos, em universidades e em grupos de migrantes, tem-se feito tão popular o que Silvia Federici sintetiza sobre o trabalho reprodutivo dizendo: «não é amor, é trabalho não pago”. Isso significa uma historicização de como se tem organizado o trabalho reprodutivo em nossas sociedades capitalistas, patriarcais e coloniais. Destaca sua obrigatoriedade e sua gratuidade – também obrigatória, seu vínculo com a heteronormatividade, seu caráter de subordinação política ao trabalho considerado produtivo e, também, sua sobreposição com os trabalhos no mercado de trabalho, porque são poucas as que hoje fazem apenas trabalho reprodutivo em suas casas (a figura ideal da “dona de casa”). Além disso, o trabalho reprodutivo não é apenas o que acontece nos lares; também reúne uma série de qualidades que caracterizam cada vez mais o trabalho precarizado – e, por isso, fala-se de uma feminização do trabalho – em geral.
Colocando em termos concretos: a dimensão gratuita, não reconhecida, subordinada, intermitente, e às vezes permanente, do trabalho reprodutivo serve hoje para ler os componentes que compõem as formas históricas das economias populares; mas também a precarização como um processo transversal atual. Fornece chaves sobre as formas de exploração intensiva das infraestruturas afetivas e, por sua vez, permite compreender o alargamento extensivo da jornada de trabalho no espaço doméstico e a disponibilidade permanente como recurso subjetivo primordial.
Neste sentido, ao incluir o trabalho reprodutivo, mas também o trabalho migrante, precário, de rua, feminizado, a greve feminista tem permitido repensar, requalificar e relançar outro sentido para a greve geral. A tese seria assim: a greve geral se torna realmente geral quando se torna feminista. Porque pela primeira vez alcança todos os espaços, tarefas e formas de trabalho. Por isso, consegue enraizar-se e territorializar-se sem deixar nada de fora e a partir daí produz generalidade. Abarca cada rincão de trabalho não pago e não reconhecido. Traz à luz cada tarefa invisibilizada e não contabilizada como trabalho. E, ao mesmo tempo que as afirmam como espaços de produção de valor, as conecta em sua relação subordinada com outras formas de trabalho. Assim torna-se visível a cadeia de esforços que traçam um continuum entre a casa, o emprego, a rua e a comunidade. Ao contrário do confinamento a que se quer reduzir os feminismos (a um setor, a uma demanda a uma minoria), assumir que a greve é geral só porque é feminista, é uma vitória e é uma vingança histórica. É uma vitória, porque dizemos que se nós paramos, para o mundo. É, por fim, evidenciar que não há produção sem reprodução. E é uma revanche em relação às formas de greve em que o “geral” era sinônimo de uma parcialidade dominante: trabalho assalariado, masculino, sindicalizado, nacional, que sistematicamente excluía o trabalho não reconhecido pelos salários (e sua ordem colonial-patriarcal).
Como podemos pensar as recentes lutas pela legalização e descriminalização do aborto que atravessaram a América Latina e o mundo no último período frente a um contexto de fortalecimento de narrativas fascistas e retomada de uma agenda neoliberal mais ampla?
Verónica Gago – Estou interessada em pensar qual é a relação entre ambas as coisas. Por isso, acredito que podemos entender o momento da fascistização atual em termos de contraofensiva. Quer dizer, constatar uma reação à força demonstrada pelos feminismos na região. É importante observar a sequência: a contraofensiva responde a uma ofensiva, a um movimento anterior. Isso envolve situar a emergência dos feminismos, em seu papel de desestabilização da ordem sexual, de gênero e política e tornando-se um ator-chave na disputa das fragmentações da crise econômica em curso. Acredito que é este movimento que deve localizar-se como anterior em relação à virada fascista subsequente na região, com conexões em nível global. Duas considerações emergem daqui. Em termos metodológicos: localizar a força dos feminismos em primeiro lugar, como força constituinte. Em termos políticos: afirmar que os feminismos colocam em marcha uma ameaça aos poderes estabelecidos e ativam uma dinâmica de desobediência que esses poderes tentam conter, opondo formas de repressão, disciplinamento e controle em várias escalas em um momento em que as relações de acumulação estão instáveis. A contraofensiva, em boa medida sintetizada pela “cruzada contra a ideologia de gênero”, é um chamado à ordem e é a produção de inimigos internos que concentra seu ataque nxs sujeitxs dxs feminismo. Por esta razão, a feroz contraofensiva desencadeada contra os feminismos nos dá uma leitura inversa, ao contrário, da força de insubordinação que se tem percebido como já acontecendo e, ao mesmo tempo, a possibilidade de sua radicalização.
Neste sentido, o papel das lutas pela legalização do aborto na Argentina e em toda a América Latina acredito que é fundamental. Mas lembremos também que o “paro” na Polônia, em outubro de 2016, também protestava contra a restrição do direito ao aborto. E, ao mesmo tempo, vemos hoje um retrocesso a esse respeito em vários estados dos Estados Unidos. Em outras palavras, não é apenas uma questão do terceiro mundo. No direito ao aborto, está em jogo o poder masculino e eclesial sobre o corpo de mulheres e os corpos gestantes. Na Argentina, com a maré verde de 2018, temos visto a ampliação do debate sobre o aborto em termos de soberania, autonomia e classe, ao mesmo tempo que tem acontecido uma radicalização militante pelas novas gerações. A luta pelo aborto (e toda a reação conservadora que desperta) evidencia que não há forma de governo que não pressuponha intrinsecamente a subordinação das mulheres como o a priori dessa ordem estruturada por, como diz Carole Pateman, um contrato sexual. Por isso, a discussão leva diretamente a pensar a soberania dos corpos e, em particular, um vínculo interessante que concebe os corpos como territórios, segundo o conceito de corpo-território lançado pelas feministas da América Central. Simultaneamente, a discussão sobre sua clandestinidade remeteu diretamente à importância dos abortos seguros e gratuitos, uma vez que são os custos que o tornam uma prática diferencialmente arriscada, de acordo com as condições sociais e econômicas. Aqui, como um desenvolvimento também presente no livro, tentou-se inverter a força que assumiu esse argumento classista para repudiar a clandestinidade, e a campanha construída a partir da hierarquia da Igreja Católica dizendo que o aborto é algo “estranho” e “externo” às classes populares; em outras palavras: que é uma preocupação exclusiva da classe média.
Há mais uma questão: o debate ultrapassou o marco único do argumento da saúde pública, e do aborto como questão preventiva da gravidez não desejada, para abrir justamente as veias de exploração do desejo. A partir da palavra de ordem “a maternidade será desejada ou não será” até a reivindicação por educação sexual integral no currículo educacional, aprofundaram-se os debates sobre sexualidades, corporalidades, vínculos e afetos que deslocaram a questão de modo também radical. Isso permitiu inclusive variações das palavras de ordem sobre o aborto legal: não apenas no hospital, mas reivindicado também nas redes autônomas que o vêm praticando “em qualquer lugar”; não apenas educação sexual para decidir, mas para descobrir; não apenas contraceptivos para não abortar, mas sim para desfrutar; e não apenas aborto para não para morrer, mas para decidir.
A localização histórica das mulheres na economia reprodutiva e de responsabilidade com a reprodução da vida permitiria explicar as mulheres tornarem-se protagonistas nas lutas recentes, considerando as agendas de cuidados, as novas expressões de violência como o avanço sobre os territórios e a expropriação de bens naturais?
Verónica Gago – Sim, acredito que hoje é evidente como a reprodução social da vida aparece retificando e repondo e, ao mesmo tempo, criticando o desmonte da infraestrutura pública e lutando na linha de frente contra as desapropriações dos territórios. Vemos isso tanto nas lutas antiextrativistas pela defesa da água e dos territórios como na maneira em que as economias populares constroem hoje infraestrutura comum para a prestação dos serviços chamados básicos, mas que não são: da saúde à urbanização, da eletricidade à educação, da segurança até os alimentos.
Deste modo, eu me concentro no livro4 em como as economias populares funcionam simultaneamente como tecido reprodutivo e produtivo e, como tais, põem em debate as formas concretas de precarização das existências em todos os planos. É por isso que eles conseguem denunciar o nível de desapropriação nos territórios urbanos e suburbanos, que é o que possibilita novas formas de exploração. Por sua vez, isto implica a implantação de um conflito concreto sobre os modos de entender o território como uma nova fábrica social.
Com a contraofensiva econômica atual (que anda junto com a contraofensiva militar e a contraofensiva dos fundamentalismos religiosos) vemos uma característica fundamental do neoliberalismo: o aprofundamento da crise da reprodução social que é sustentada por um aumento do trabalho feminizado que substitui as infraestruturas públicas e permanece envolvida na dinâmica da superexploração. A privatização dos serviços públicos ou a restrição de seu alcance significa que essas tarefas (saúde, cuidados, alimentação etc.) devem ser supridas pelas mulheres e os corpos feminizados como tarefa não remunerada e obrigatória. Nesta chave, acredito que se compreende uma agenda de uma ética de cuidado que vocês mencionam: ampliando a noção de cuidado para além do marco familiar e, ao mesmo tempo, transformando-a em uma ferramenta de valorização das resistências vitais.
Você propõe em seu livro, A razão neoliberal, compreender a “captura” das tramas vitais da produção do cotidiano por uma racionalidade neoliberal, e a partir dessa “captura”, como a produção da vida passa a trabalhar para uma “financeirização” da vida. Como podemos pensar essa produção de subjetividades e de economias barrocas?
Verónica Gago – Em A razão neoliberal me propus discutir a noção mesma do neoliberalismo, o modo de historicizá-lo em nossa região, de aprofundar debates teóricos e de traçar genealogias a partir das lutas, dando uma ênfase especial ao que significou na Argentina a crise de 2001. Este interesse surgiu junto com a investigação que realizei durante muitos anos sobre economias populares, as estratégias de trabalho, de comercialização e de politização que daí se desdobram. Daqui também começo a refletir como o neoliberalismo não vem só “desde cima” (governos, corporações e organismos internacionais), mas que se faz persistente justamente porque consegue ler e capturar – ou seja, expropriar – tramas vitais que operam produzindo valor, inventando recursos onde não existem, repondo infraestrutura popular ante a expropriação e criando modos de vida que excedem as fronteiras do capital. Como o neoliberalismo vai metamorfoseando-se em nossos países me parece um ponto-chave, que geralmente fica fora de certas caracterizações mais gerais que “aplicam” o termo chave do neoliberalismo a todo o planeta. Eu me propus entendê-lo e contextualizá-lo a partir de seu desembarque e ensamblagens5 com situações concretas.
Na nossa região, essas situações concretas são os territórios nos quais se cozinhou a revolta popular contra a legitimidade política do neoliberalismo nas crises do início dos anos 2000 a que me referia antes. Aí há uma singularidade porque são essas situações nas quais a exigência popular abre uma temporalidade de revolta que logo se mistura com uma tentativa de reconhecimento e estabilização por cima. São estas “economias barrocas”, como as chamo, que obrigam a pluralizar o neoliberalismo além de suas características mais conhecidas (privatizações, desregulamentação, mercantilização etc.). Aqui situo claramente uma perspectiva que olha para “baixo” para encontrar aquilo que antagoniza, e que arruína, estraga e/ou confronta essa pretensa hegemonia, sem por isso ter um programa “anticapitalista” em termos puros ou precisos, mas que não abandona a luta “contra” os modos de expropriação do capital. Essa zona do “entre”, heterogênea e promíscua, é o que me interessa colocar em foco.
Com a questão financeira isto se exaspera, acelera, volta mais intensa. Na América Latina, entender como a dívida extrai valor das economias domésticas, das economias não assalariadas, das economias populares, das economias camponesas, das economias consideradas historicamente não produtivas, permite captar os dispositivos financeiros como verdadeiros mecanismos de colonização da reprodução social. Entendo que a partir daqui podemos ver como funcionam hoje novas formas de extração de valor que exploram trabalhos precários e informais e, ao mesmo tempo, como esses dispositivos de dívida funcionam a partir da moralização das existências desprezadas nas ordens de gênero. Quer dizer, na captura de valor que a dívida pratica, podemos ver uma certa articulação entre reprodução e produção que tem a família heterossexual como núcleo e a superexploração como trama contínua.
Com Luci Cavallero temos aprofundado esta investigação fazendo “uma leitura feminista da dívida”6, no calor da organização da greve feminista. Temos trabalhado a articulação entre endividamento e trabalho reprodutivo, e também, como a violência machista se faz ainda mais forte com a feminização da pobreza e a falta de autonomia econômica que o endividamento implica. As companheiras da Criação Humana Editora publicaram, com a tradução de Helena Vargas e o prólogo de Fernanda Martins, esse texto no Brasil, pelo qual esperamos que se converta em uma possibilidade de intercâmbios aqui também.
Você propõe que o neoliberalismo se enraíza nas lógicas comunitárias e isso produz uma experiência de ambivalência na produção do cotidiano, porque a lógica comunitária se opõe à organização macroeconômica. O que poderíamos chamar de resistência nesses contextos?
Verónica Gago – Entendo que as dinâmicas comunitárias são um compêndio de saberes, tecnologias e temporalidades históricas que entram em um complexo sistema de relações variáveis com os diversos momentos do capitalismo em suas, também diversas, fases coloniais. Mas, sobretudo, são recursos enormes que se põem em jogo nos protestos, nos movimentos sociais, e também nas formas de economia popular e nas trajetórias migrantes, tanto em sua capacidade de disputar formas de vida com o capitalismo colonial e patriarcal como por abrir espaço em realidades de extrema expropriação e violência.
Claro, também há um aproveitamento e uma exploração dessas modalidades comunitárias na medida que se busca compatibilizá-las com as ordens de flexibilidade, precariedade e autogestão da reprodução social como maneira de desresponsabilizar os Estados de certas obrigações. Em todo caso, para pensar essas questões eu trabalho principalmente em diálogo com os textos da socióloga boliviana Silvia Rivera Cusicanqui e com os da matemática mexicana Raquel Gutiérrez Aguilar, as quais, para mim, são fundamentais para compreender e situar uma riqueza comunitária que está em permanente tensão entre a exploração e as reinvenções de um horizonte comunitário-popular, para uma multiplicidade de lutas. Esses debates se cruzam com as dinâmicas ambivalentes de subjetivação na governamentalidade neoliberal e, portanto, complexificam as experiências de resistência e insubordinação, tanto nos momentos cotidianos como nos momentos de desdobramento massivo e coletivo.
Aqui também me parecem importantes as reflexões das feministas J. K. Gibson-Graham7 e seu trabalho por visibilizar “economias diversas”. Elas o fazem também derivando de Marx uma noção de diferença. A partir daí põem a ênfase em economias que teriam capacidade prefigurativa, antecipatória, em seus desenvolvimentos no presente como não capitalistas. Trata-se de uma perspectiva que põe em relevo o caráter experimental das economias comunitárias que conseguem abrir e descolonizar a imaginação econômica sobre como representamos as alternativas anticapitalistas e como desconstruir a hegemonia do capital a partir dos espaços, aqui e agora. A diferença age para iluminar a realidade efetiva de práticas que negam o capital. Mas, também buscam dar à noção de diferença um caráter processual e experimental. Sua aposta nos permite pensar as economias diversas desde o devenir: elas argumentam que se tem que “cultivar” o desejo e as subjetividades que habitam esses espaços não capitalistas. Deste modo, entrelaçam uma subjetividade que está por vir, mas que por sua vez se constrói com a materialidade do desejo de outra vida no presente. Isso me parece que é importantíssimo para não seguir idealizando um programa “anticapitalista” puro e perfeito, pronto para ser aplicado e, portanto, sujetxs igualmente purxs e já completxs. Para voltar ao início: acredito que exercícios coletivos como o processo político da greve feminista permitem-nos praticar esse caráter processual e experimental do desejo de transformação de nossas resistências.
A informalidade tem crescido e se transformado na América Latina apresentando contornos a cada dia mais complexos. Que lugar a informalidade ocupa na produção dos territórios?
Verónica Gago – A visão dominante sobre a informalidade aponta que se trata de uma economia realizada por pessoas pobres que desenvolvem atividades desorganizadas por fora dos marcos legais (podemos remontar aos anos 1970, quando se produz a incorporação da categoria “economia informal” impulsionada por parte da OIT a partir do trabalho de Keith Hart sobre o Quênia). Parece-me que toda uma série de conceitos e premissas se encadeiam e devem ser criticados: a informalidade como sinônimo de ilegalidade e as assim chamadas economias de subsistência como sinônimo de pobreza. O colonialismo dessas caracterizações é histórico.
Creio que há perspectivas, por outro lado, que buscam localizar a quem se desenvolve nas economias populares como parte de uma relação social e laboral específica, na medida em que se trata de uma relação na qual a estrutura dos custos (fiscais, de bens e de capital) é assimétrica com a valorização do trabalho. Funda, neste sentido, um tipo de relação social de exploração que devemos entender com mais profundidade. Por exemplo, como a captação do mais trabalho passa pelo consumo, por uma estrutura fiscal regressiva e por um custo financeiro altíssimo no endividamento do qual falávamos antes.
São realidades que emergem frente à desestruturação neoliberal do mundo do trabalho assalariado como modelo capaz de incluir as massas em sua maioria urbanas, e frente ao aprofundamento dos regimes laborais predominantemente flexíveis e desprotegidos no interior desse esquema global. Em termos espaciais, aparecem de modo mais generalizado como uma experiência de bairros marginais ou periféricos das metrópoles latino-americanas e terceiro-mundistas do chamado Sul Global. São nesses territórios e nessas economias onde se produzem novas imagens da conflitividade trabalhista, mas em uma chave de conflitividade social difusa, ampliando os limites da experiência proletária. Isso quer dizer que essas economias reconceitualizam praticamente o que entendemos por trabalho, enquanto sistematizam formas de trabalho que hoje em nosso continente são majoritárias e que não cabem na categoria de marginais simplesmente por não serem assalariadas de modo estrito. Pensando assim, emergem outras geografias do trabalho que permitem entender os processos de valorização do capital como parte de um processo de colonização em direção a novos territórios que se transformam em espaços de conflito.
Claro que um novo tipo e escala de violência está profundamente entrelaçada com as economias populares que todo o tempo trabalham na fronteira (e borrando o limite) entre legalidade e ilegalidade. É justamente a regulação e gestão permanente dessas fronteiras que ficam a cargo das novas “forças” paramilitares, paraestatais etc. Essas violências se moldam em uma dimensão territorial específica. A conflitiva ocupação da terra em áreas urbanas e suburbanas dos últimos anos (que aumenta os conflitos nos territórios camponeses de longa data intensificados pela voracidade do agronegócio) tem assumido uma escala de violência e complexidade que está diretamente vinculada à multiplicação de atores que envolve a especulação imobiliária e que assume modalidades que são ao mesmo tempo formal e informal, legal ou ilegal.
Da época do lançamento de A razão neoliberal até hoje o contexto político e econômico mudou: vemos uma ofensiva ultraconservadora na América Latina e no mundo, um processo articulado e sistêmico. Como localizar as elaborações que você traz no livro para ler este momento?
Verónica Gago – A situação no Brasil com o assassinato de Marielle Franco e o triunfo de Bolsonaro tem levado a pergunta sobre o neoliberalismo mais longe: como se está relançando a acumulação neoliberal em aliança com o fascismo com formas extremas de racismo, sexismo e classismo?
O neoliberalismo necessita agora aliar-se com forças conservadoras retrógradas porque a desestabilização das autoridades patriarcais põe em risco a própria acumulação do capital. Diríamos assim: o capital é extremamente consciente de sua acumulação orgânica com o colonialismo e o patriarcado para reproduzir-se como relação de obediência. Uma vez que a fábrica e a família heteropatriarcal (mesmo que imaginários) não consigam sustentar disciplinas e uma vez que o controle de segurança é desafiado por formas feministas de gestar a interdependência em épocas de precariedade existencial, a contraofensiva se redobra. Por isso, tem que introduzir em nossa atualidade outra “cena” que abre novas leituras dinâmicas do neoliberalismo. Refiro-me ao movimento feminista que nos últimos anos tem tomado as ruas de modo massivo e radical e que tem transbordado os limites nacionais impulsionando um movimento verdadeiramente internacionalista e cujas ressonâncias fundamentais se enlaçam na América Latina, o melhor: em Abya Yala, traçando novas temporalidades e geografias. Assim, vemos muito claramente por que neoliberalismo e conservadorismo compartilham objetivos estratégicos de normalização.
Claro que isso não é uma novidade na América Latina. Aqui, a origem do neoliberalismo é indiscriminadamente violenta. São as ditaduras que vieram reprimir um ciclo de lutas trabalhistas, estudantis e de bairros que marcam seu início. Como princípio do método e como perspectiva desse continente, portanto, é necessário sublinhar a emergência do neoliberalismo como resposta a certas lutas. Por isso, o neoliberalismo se apresenta como um regime de existência do social e um modo do comando político instalado regionalmente, com o massacre estatal e paraestatal da insurgência popular e armada, e consolidado nas décadas seguintes a partir de grandes reformas estruturais, de acordo com a lógica de ajuste de políticas globais. Com isso, quero dizer que a conjunção do neoliberalismo e do fascismo tem, na América Latina, um arquivo-chave. Creio que esse ponto permite, como mencionava, colocar outra perspectiva à ideia de “novidade” de um neoliberalismo que tem deixado sua roupagem liberal e inclusive progressista para conectar sua atualidade com a experiência originária em certas regiões (sem dúvidas, terceiro-mundistas) do mundo.
Esse seminário internacional8 se propõe a construir uma leitura a partir de quatro preocupações: o extrativismo ampliado, o sistema financeiro, as economias populares e o futuro do trabalho, e apontar caminhos. Quais estratégias são possíveis para essa articulação feminista dentro do contexto que estamos vivendo?
Verónica Gago – O movimento feminista a partir da sua multiplicidade (feminismos populares, villeros9, indígenas, comunitários, negros, queer, trans) tem desbloqueado uma articulação por baixo das conflitividades e das lutas. Mas isso não é fácil: hoje assume uma multiplicidade de violências articuladas e incrementadas que irrompem nos corpos e nos lares, nos territórios urbanos e rurais e nos locais de trabalho, nas camas e nas fronteiras. E o faz produzindo um diagnóstico feminista dessa conflitividade – que inclui desapropriações e feminicídios, exploração e endividamento, racismo e abusos – baseado em lutas concretas, o qual conecta e enlaça a dor de cada uma com um corpo-território mais amplo.
Como dizia antes: por que o movimento feminista politiza de maneira nova e radical a crise da reprodução social como crises, ao mesmo tempo, civilizatória e da estrutura patriarcal da sociedade, o impulso fascista que se põe em marcha para enfrentá-lo propõe economias da obediência para canalizar a crise. Seja pelo lado dos fundamentalismos religiosos ou pelo lado da construção paranoica de um novo inimigo interno, o que constatamos é uma tentativa de aterrorizar as forças de desestabilização arraigadas em um feminismo que tem ultrapassado as fronteiras e é capaz de produzir um código comum entre lutas diversas.
O movimento feminista, tomando também as finanças como um terreno de luta contra o empobrecimento generalizado, pratica uma contrapedagogia a respeito de sua violência e suas formas abstratas de exploração dos corpos e dos territórios.
Tudo isso nos dá, outra vez, uma possibilidade mais ampla e complexa de entender o que diagnosticamos da aliança do neoliberalismo com as forças conservadoras que se expressam como violências que tomam os corpos feminizados como novos territórios de conquista. Por isso, é necessário animar a crítica ao neoliberalismo como um gesto feminista sobre a maquinaria da dívida – como dispositivo generalizado de exploração financeira -, porque é também apontar contra a maquinaria neoliberal da culpabilização, sustentada pela moral heteropatriarcal e pela exploração de nossas forças vitais.
O movimento feminista atual repõe a chave antineoliberal como antagonismo. Por isso mesmo reabre a dinâmica que redefine o neoliberalismo “desde baixo” em termos de seu confronto corpo a corpo. A razão neoliberal se opõe hoje a uma potência feminista (que é a sensibilidade, modo de cálculo, estratégia e produção de sentido): isto é, um modo de pensar, fazer, lutar e desejar que ultrapassa a opção imposta entre ser vítima ou empreendedora (ambas opções de subjetivação do catálogo neoliberal). Por isso mesmo, porque se mete na trincheira cotidiana de disputa com o capital e com os modos renovados de exploração e extração de valor, o movimento feminista atual recebe uma contraofensiva feroz: militar, financeira e religiosa. Estamos precisamente nessa luta agora: não nos deixando expropriar pelo neoliberalismo aliado com o fascismo, com dinâmicas feministas que, juntas, se responsabilizam “desde baixo” por abrir novas possibilidades vitais para todes.
Recebido em 13/05/2020
Aceito em 30/09/2020
1* Doutoranda do Programa de Pós-Graduação em Sociologia da Universidade Federal da Paraíba, na linha de Trabalho, Políticas Sociais e Desenvolvimento. E-mail: monicavilaca2@yahoo.com.br
** Mestre em Estudos Interdisciplinares em gênero, mulheres e feminismo, PPGNeim – Universidade Federal da Bahia. E-mail: barbaraferreiradefreitas@gmail.com
Evento realizado a partir da articulação entre o Coletivo de Mulheres Calafate/AMB Bahia, a Editora Elefante, o Instituto Eqüit e Rebrip, o Instituto Odara e a Rede de Mulheres Negras da Bahia, o PPGNeim/UFBA, a Réd de Gérnero y Comérico, o Fondo de Mujeres del Sur e Heinrich Böll Stiftung Brasil.
2 GAGO, Verónica. A potência feminista, ou o desejo de transformar tudo. São Paulo: Elefante, 2020.
3 Nesta entrevista, optamos por manter “paro” sem tradução. Em A potência Feminista (2020), “paro” é apresentado como um termo que surgiu em uma assembleia multitudinária que buscava nomear a ferramenta de organização que estava em construção, assim como, estabelecer um léxico político capaz de organizar e interpretar as estratégias e dinâmicas estabelecidas pelos diversos movimentos feministas que se arrojaram na construção das greves de mulheres e assumiram uma dimensão internacionalista em 2017 e 2018.
4 GAGO, Verónica. A razão neoliberal: economias barrocas e pragmática popular. São Paulo: Elefante, 2018.
5 Para Verónica Gago, a organização dos trabalhos informais requer um alto grau de gestão e logística que exigiria repensar sua imagem associada a uma improvisação ou simplicidade. O conceito de ensamblagem, apresentado pela autora, busca propor olhar para as dimensões complexas em que os trabalhos informais desenvolvem-se e articulam-se “permite esquadrinhar o olhar da unificação e homogeneização para deter-se nas articulações específicas, com suas características e conexões parciais e temporais” (GAGO, 2018, p. 67).
6 GAGO, Verónica; CAVALLERO, Luci. Uma leitura feminista da dívida: vivas, livres e sem dívidas nos queremos. Porto Alegre: Criação Humana Editora, 2019.
7 J. K. Gibson-Graham é a identidade autoral utilizada pelas geógrafas econômicas feministas Julie Graham e Katherine Gibson.
8 O Seminário Internacional “As perspectivas feministas contra a geopolítica global patriarcal e racista” já mencionado no texto de apresentação desta entrevista
9 Mantivemos aqui a palavra original que demarca uma experiência de feminismo que surge nos debates da organização e enfrentamento de violências originadas na produção dos espaços urbanos, as Villas, bairros constituídos de construções precárias e ausência de serviços básicos, têm similaridades, em sua constituição histórica, com as favelas brasileiras.
ISSN 1517-5901 (online)
POLÍTICA & TRABALHO
Revista de Ciências Sociais, nº 52, Janeiro/Junho de 2020, p. 231-245
Resenha
O NOVO ILUMINISMO E SUAS TENSÕES
ENLIGHTENMENT NOW AND IT IS TENSIONS
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Harlon Romariz Rabelo Santos*
PINKER, Steven. O novo iluminismo: em defesa da razão, da ciência e do humanismo. São Paulo: Companhia das Letras, 2018. E-book.
Resumo
A resenha apresenta uma análise do livro O novo iluminismo: em defesa da razão, da ciência e do humanismo, obra do psicólogo e neurocientista Steven Pinker, que propõe uma defesa pública da razão, da ciência e do humanismo, num intuito de reconstruir as ideais iluministas no cotidiano contemporâneo. O diálogo dessas reflexões com o campo das ciências sociais pode gerar tensões e críticas, no entanto, produtivas, equilibrando as perspectivas em um momento de necessidade de reafirmação do pensamento científico.
Palavras-chaves: Iluminismo. Ciência. Negação da ciência. Humanismo.
Abstract
The review presents an analysis of the book Enlightenment Now: The Case for Reason, Science, Humanism, and Progress, the work of psychologist and neuroscientist Steven Pinker, who proposes a public defense of reason, science and humanism in order to reconstruct ideals. enlightenment in contemporary everyday life. The dialogue of these reflections with the field of social sciences can generate tensions and criticisms, however productive, balancing the perspectives in a moment of need for reaffirmation of scientific thought.
Keywords: Enlightenment. Science. Denial of science. Humanism.
O novo iluminismo é um recente livro de Steven Pinker no qual ele elabora o argumento de que os avanços no bem-estar social alcançados na contemporaneidade são resultados, ao cabo, das ideias iluministas. Para ele, tais ideais moveram, sobretudo no Ocidente, pessoas e recursos para uma valorização da razão, da ciência e de uma moral humanista. Um modus de construção da realidade que supera o pensamento religioso e formas precárias de relações humanas, promovendo as noções de direitos humanos e democracia.
Psicólogo canadense, especializado em cognição e linguagem, professor doutor do departamento de psicologia da Universidade de Harvard, defende, entre outras teses, a ideia de que há uma complexa estrutura mental e da consciência, comum entre os indivíduos, que se manifesta na linguagem e em fenômenos sociais, portanto, em alguma medida, uma história humana comum1.
1* Doutorando em Sociologia pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul. E-mail: harlon.romariz@gmail.com
Também autor de Os anjos bons da nossa natureza: porque a violência diminuiu, obra na área de psicologia da violência que antecede argumentos da sua posição otimista em relação ao desenvolvimento humano moderno, pós-iluminismo.
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POLÍTICA & TRABALHO
Revista de Ciências Sociais, nº 52, Janeiro/Junho de 2020, p. 247-253
O livro é dividido em três grandes partes. Na primeira parte, busca delinear o iluminismo como um processo histórico e como princípios sociais e políticos, além de apresentar respostas ao que denomina de “contrailuminismos”. Na segunda parte, apresenta uma série extensa de dados sobre a evolução das condições humanas, em vários âmbitos, como na educação, segurança, saúde, estabilidade política, entre outros progressos que ele atribui à experiência moderna e iluminista. Por fim, há uma terceira parte onde desenvolve argumentos de cunhos epistemológicos e filosóficos em defesa da razão, da ciência e do humanismo como prática moral universal.
Trata-se de uma obra circunstanciada pelos conhecimentos das áreas da neurociência, biologia e psicologia evolutiva, mas com muitos dados históricos e tentativas de diálogos com as ciências humanas e sociais, buscando promover um debate mais ampliado sobre os benefícios produzidos pelas ideias iluministas. Para Pinker (2018, p. 19), “O Iluminismo deu certo – talvez seja a maior história (quase nunca contada) de todos os tempos”. O livro busca, portanto, resgatar um pouco dessa história e defender os ideais iluministas a partir de uma aproximação com questões e discussões contemporâneas de nível global, apesar de acabar centrando-se no debate norte-americano.
Pinker situa-se epistemologicamente dentro de um paradigma materialista e evolutivo que o conduz a argumentar sobre a continuidade estrutural existente entre o mundo físico, biológico e social. Para o autor, um dos principais fundamentos que permite a conexão ordenada e estruturada entre esses mundos, visto a história da evolução humana, é a informação que “pode ser concebida como uma diminuição da entropia – como o ingrediente que distingue um sistema ordenado, estruturado, do imenso conjunto de sistemas aleatórios e inúteis” (PINKER, 2018, p. 35).
Essa perspectiva argumenta que o processo evolutivo humano foi, em termos gerais, um crescente acumulativo de estruturas e informações capazes de controlar processos naturais, como a entropia e o decaimento da matéria. Dessa forma, entende-se a inteligência e o conhecimento humano como ápices de um progresso que extrapola o âmbito social e até biológico (PINKER, 2018, p. 39).
A partir dessa fundamentação e contextualização é que Pinker elabora seus argumentos em favor do Iluminismo e da Era Moderna como períodos de início a uma nova fase do processo humano de evolução. Dessa forma, para além de argumentos históricos, Pinker busca na explicação evolutiva uma justificativa para a defesa desse projeto moderno e iluminista de pensar e estar no mundo. O autor defende que o período moderno e o iluminismo foram processos de valorização do conhecimento científico. Um modo de conhecer mais capaz de produção de informação, análise da realidade e intervenção. Período em que o modus operandi da ciência se coaduna com racionalidade social e política e estabelece leis, condutas sociais, direitos e uma estrutura política tendente à democracia, que possibilitou avanços civilizatórios. Tais progressos foram latentes e crescentes nesse período e o desenvolvimento humano e do bem-estar social têm bases nesses ideais (PINKER, 2018, p. 39).
Ao longo da segunda parte do livro, Pinker (2018) apresenta centenas de dados, organizados em gráficos e tabelas, para argumentar sobre como o processo de progresso humano, melhoria do bem-estar social e individual, qualidade de vida, estabilidade social e política foram resultados sociais acumulativos e que tiveram forte processo de ascensão e melhoria a partir do avanço das ideias iluministas. Essa argumentação é sustentada por uma hipótese de que tais resultados são frutos de um processo quase inevitável de evolução humana.
Ao se posicionar em defesa das ideias iluministas, da ciência e da razão, Pinker se contrapõe a discursos e movimentos que negam a evolução e o progresso humano e que se articulam em bases de conhecimentos pré-científicos. Aqui figuram dois tipos de narrativas criticadas por ele: a narrativa religiosa, que se impõe ao mundo social, e narrativa de movimentos políticos e culturais de negação da ciência, como os defensores da terra plana, movimentos antivacinação, negacionistas climáticos e propagadores de fake news.
Para Pinker, essas narrativas alternativas avessas à ciência resultam, em geral, de reminiscências evolutivas e sociais que não coadunam com o modo de existir humano moderno e racional. Pinker mostra como a religião foi um processo ou mesmo etapa singular no processo de evolução humana, servindo, entre outras funções, para proporcionar conforto cosmológico para indivíduos humanos impactados pela natureza e seus extremos. Em um determinado momento evolutivo, a religião foi importante nessa interpretação do mundo, hoje não mais. Um dos exemplos do autor está na forma como a religião concebe a justiça. Em termos de expiação e satisfação, o pensamento místico-religioso exige reparações e punições exacerbadas, num contexto de coerência moral. Para o mundo moderno, no entanto, a punição é um instrumento racional de desestímulo àquilo que a moral laica julga inapropriado para a eficiente convivência humana. Para Pinker (2018), o berço desse pensamento são as ideias iluministas.
Outro exemplo de reminiscências do passado evolutivamente estruturado que não coaduna com o modus contemporâneo de vida humana é a tentativa de proteção do grupo social próximo ou da identidade. Em algum momento da história evolutiva humana, a formação grupal com forte coesão de crenças e atividades foi importante para viabilizar a cooperação e a sobrevivência. Pinker chama de proteção cognitiva da identidade a tentativa de formação de grupos e coletivos que, em torno de crenças comuns, são capazes de negar fatos pelo conforto cognitivo do grupo. Por meio desse processo, entre outros, crenças metafísicas almejadas acabam por serem vistas e tomadas como narrativas explicativas para fenômenos do mundo (PINKER, 2018).
Pinker apresenta uma série de pesquisas na área de psicologia evolutiva e psicologia social para demonstrar o efeito do grupo social próximo ou dos grupos de identidades compartilhadas sobre a percepção da realidade. Esse efeito se estende ao mundo político, onde ideologias são por vezes fortemente defendidas, sobretudo pelo fator conector que tais perspectivas exercem sobre as pessoas. Assim, o autor tenta demonstrar a necessidade de conhecimentos e postura, um exercício racional contínuo de superação dessas crenças coletivas e valorização do método racional e científico para explicação da realidade, e, por fim, intervenção qualificada. O iluminismo inaugura essa postura. Pinker considera que
[...] os principais impulsionadores foram os ideais não políticos da razão, da ciência e do humanismo que levaram as pessoas a buscar e aplicar conhecimentos que aprimorassem o desenvolvimento humano. [...] A vida antes do Iluminismo era obscurecida por inanição, pestes, superstições, mortalidade materna e infantil, cavaleiros e guerreiros saqueadores, execuções e torturas sádicas, escravidão, caça às bruxas e Cruzadas, conquistas sangrentas e guerras religiosas genocidas (PINKER, 2018, p. 422).
O argumento central de Pinker é que o iluminismo se caracteriza como um processo resultado de uma série de desenvolvimentos evolutivos e sociais que culminaram nesse período em que a racionalidade e o modus científico de pensar passaram a solapar outras formas anteriores de vida e modus de pensamento. A partir de séries históricas e dados sobre o desenvolvimento civilizatório e de melhorias significativas no bem-estar humano, ele busca evidenciar os resultados práticos desse período. Além disso, argumenta que o iluminismo influenciou na formação do que ele chama de democracias capitalistas, com livre mercado e aponta benefícios dessas economias (PINKER, 2018).
O autor busca estabelecer nexos de causalidade entre evolução da mente, iluminismo e capitalismo democrático. Um processo difícil e reticente, mas que ao final produziu, pelo argumento de Pinker, as melhores condições para a vida humana já registradas. Uma das instigantes hipóteses de Pinker é a ideia de “progresso contínuo” (2018, p. 380), a partir da qual é possível estabelecer uma crítica ao autor. No campo da história e das ciências sociais, observa-se os acontecimentos dentro de uma linha causal muito estrita, com coerência teórica. Pinker faz saltos históricos grandes, sendo difícil, apenas pela evidência evolutiva, justificar as democracias capitalistas como resultados do progresso ou desenvolvimento humano. De igual maneira, toma o Iluminismo ou Era das Luzes como um acontecimento quase inevitável do progresso ou evolução humana, e não como um resultado de um processo histórico e social específico, situado e conflituoso.
Ademais, foi no âmbito do iluminismo, do evolucionismo social e de um período de razão eurocentrada, que proposições eugenistas, de extremo nacionalismo e de normatização da vida social e cultural foram propagadas. Essas proposições não surgiram sem tensões mesmo entre os iluministas. No entanto a ampliação para uma visão mais universal, que incluísse diferentes povos, continentes e minorias, nesse processo de conquista de direitos, não foi algo fundante desse período e o foi conquistado posteriormente com muita tensão.
Diferentemente da suavidade processual que Pinker faz parecer, o processo civilizador decorre de novas tensões e arranjos sociais que vão se impondo. O aumento da complexidade social, a necessidade de regulação do conflito, os processos de diferenciação social e o aumento da densidade demográfica, criam uma situação de centralidade do poder (ELIAS, 1994), porém uma centralidade não mais assentada no argumento divino ou na ideia do poder como substância, mas como algo acordado e movido por agentes em seus interesses (WEBER, 1999). Quando Hobbes diz que ter poder é estar acreditado de poder (apud BOURDIEU, 2001, p. 295), ele faz, para além de uma prescrição, uma constatação de como o processo de conflito e dominação começava a se desenhar na Europa ocidental no século XVII. O poder deixa de ser uma essência e passa a ser fruto de acordos e crenças compartilhadas. Ou seja, poder relacional, inaugurando na modernidade uma nova forma de estruturação da realidade (SEWELL, 1992). Pinker não desenvolve nenhuma noção de dominação ou de relações de poder ou conflito, que estão fortemente presentes em todos esses processos históricos por ele descrito.
O aumento da perspectiva de vida ou do nível de escolarização da população mundial, por exemplo, não podem ser relacionados como resultados diretos ou gratuitos das ideias iluministas como tenta Pinker. Apesar de se reconhecer o ambiente racional e mais democrático que as ideias iluministas promoveram, os avanços inegáveis nos níveis de bem-estar social nos últimos séculos são também resultados de processos sociais, de empenhos, lutas e conflitos entre grupos de interesse. Numa sociedade do conhecimento, a informação e a técnica passam a ser bens indispensáveis para o processo produtivo. Nesse contexto, como bem apontou Theodoro Schultz (1973), o capital humano torna-se uma variável central na explicação do crescimento econômico. Essa pressão por capital humano se desdobra na necessidade de educação básica para as massas e de uma educação seriada que atenda a diversos níveis de produção. Dessa forma, o aumento significativo no acesso à educação, inclusive das mulheres, que Pinker argumenta, não pode ser dissociado de um contexto econômico específico, não apenas contínuo, mas tenso e com atores em disputa. A luta pela mobilidade social na Europa, a construção da ideia de educação para todos como um direito, e não apenas para uma elite intelectualizada, são avanços que se alimentam do iluminismo, mas que radicalizam as perspectivas dos iluministas. Esse caminho histórico, conectado, conflituoso e dinâmico, fica pouco explicitado na narrativa de Pinker.
Ele faz crítica às ciências sociais como um todo por supostamente negarem processos cognitivos e linguísticos e por serem alarmistas. Entretanto seria necessário especificar essa crítica genérica e situada no contexto estadunidense. Uma aproximação com determinados grupos e áreas das ciências sociais – campo tão plural – seria produtivo para esse debate. Inclusive para perceber que há sérios problemas em assemelhar “pensamento humanista” como “neoliberalismo” (2018, p. 18) – apesar da polissemia do termo – sobretudo fora dos EUA.
Considera-se, no entanto, que um dos objetivos finais de Pinker é defender os valores iluministas, o protagonismo da ciência e as benesses da razão em meio a um período de negação da narrativa científica, numa época de apegos identitários e ideológicos que se fecham ao debate e a razoabilidade democrática. O livro é contra ao que ele chama de “populismo autoritário” (p. 391), que nega a ciência e os especialistas, produzindo pós-verdades. Ele faz críticas pontuais a líderes políticos, apoiados por pessoas, que, segundo o autor, vivem em “ressentimento cultural” por mudanças culturais.
Essa e demais publicações de Pinker são voltadas para o público em geral, como uma espécie de extensão pública dos seus estudos em linguística e neurociência. Tais publicações, bem como textos congêneres de outros autores, estão circulando e ganhando espaço no debate público, figurando como um modus específico de interpretação do comportamento humano. Assim como a sociologia e demais ciências sociais deveras impactaram o debate público, ao longo do século XX, com a proeminência, por exemplo, de conceitos como o de classe social ou cultura. Hoje, essas ciências da mente imprimem seu modus de análise das questões do comportamento humano, das relações sociais, entre outros, o que enriquece o debate.
O termo iluminismo tem suas ranhuras históricas, o que pode fazer indigesto a proposição de um “novo iluminismo”. Para além da terminologia, Pinker defende que os princípios da liberdade, o valor da ciência, os direitos humanos e a valorização da razão para a solução dos problemas sejam refundados, tudo isso enleado em um espírito democrático e socialmente otimista. Por fim, o autor defende uma moral laica, um realismo moral, calcado na possibilidade de uma moral em diálogo com pressupostos do realismo biológico e psicologia evolutiva. Para o autor “a moral humanista baseia-se no fundamento universal da razão e dos interesses humanos: é uma característica inelutável da condição humana que todos nós ficamos em melhor situação se ajudarmos uns aos outros e abster-nos de ferir uns aos outros” (PINKER, 2018, p. 500).
De maneira análoga, mas no âmbito da sociologia, Émile Durkheim propôs a institucionalização de uma moral laica que promovesse coesão social, considerando o dever ser como ideal criado coletivamente, autoreferenciado e, portanto, uma segunda natureza (WEISS, 2010), o que indica que a prática consistente da ciência implica em uma prática epistemológica e moral pública.
Em O novo iluminismo: em defesa da razão, da ciência e do humanismo, Steven Pinker busca defender que os avanços civilizatórios, a melhora da qualidade de vida, a democratização da política e o fortalecimento dos direitos humanos são consequências de um processo evolutivo humano que teve no Iluminismo uma das formas mais singulares. Esses avanços, no entanto, somente se sustentarão se as formas e maneiras de convivência social e política continuarem a se articular com o modus científico e racional de pensar e projetar a realidade.
Referências
BOURDIEU, Pierre. Meditações pascalianas. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2001.
ELIAS, Norbert. O processo civilizador: formação do estado e civilização. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1994.
PINKER, Steven. O novo iluminismo: em defesa da razão, da ciência e do humanismo. São Paulo: Companhia das Letras, 2018. E-book.
SCHULTZ, Theodore. O capital humano: investimentos em educação e pesquisa. Rio de Janeiro: Zahar, 1973.
SEWELL, William. A theory of structure: duality, agency, and transformation. American Journal of Sociology, Chicago, v. 98, n. 1, p. 1-29, jul. 1992. Disponível em: <https://www.journals.uchicago.edu/doi/abs/10.1086/229967>. Acesso em: 29 jun. 2019.
WEBER, Max. Economia e sociedade: fundamentos da sociologia compreensiva. Brasília: UNB, 1999.
WEISS, Raquel Andrade. Émile Durkheim e a fundamental social da moralidade. 2010. 188 f. (Doutorado em Sociologia) – Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2010.
Recebido em 01/11/2019
Aceito em 16/09/2020