ISSN 1517-5901 (online)
POLÍTICA & TRABALHO
Revista de Ciências Sociais, nº 59, Julho/Dezembro de 2023, p. 164-182
TWITCH.TV, AS NOVAS FRONTEIRAS DO TRABALHO PLATAFORMIZADO
TWITCH.TV, NEW FRONTIERS OF PLATFORM LABOR
____________________________________
Maria Aparecida Bridi
Thiago Bedin

Resumo
A Twitch.tv é uma plataforma de transmissões ao vivo, onde milhares de pessoas tentam ganhar a vida
realizando Transmissões ou streams. A Twitch nos apresenta a possibilidade de compreender parte de como as
novas formas de trabalho o organizadas e condicionadas pelo desenvolvimento das novas tecnologias da
informação (TICs). Os dados tornaram-se ponto central da produção capitalista. Empresas de plataforma
utilizando suas bases de dados colocam-se como interface que medeia as relações produtivas entre seus
diferentes autores. Além das plataformas, vemos outro tipo de configuração organizacional surgir com as TICs,
as redes de empresas, uma estrutura amorfa com vários pontos produtivos que se conectam, formando, assim,
cadeias produtivas complexas. O trabalho dos streamers e outros produtores de conteúdo condicionados pelos
modelos de empresa de plataforma e empresa em rede nos permite vislumbrar como o trabalho é moldado dentro
da lógica do capitalismo de plataforma. Analisamos como o trabalho toma um aspecto não clássico que foge de
uma relação diádica entre trabalhador e patrão e passa para uma concepção de uma multiplicidade de autores
presentes no fazer-saber do trabalho. Para compreender como as relações de trabalho são organizadas e
transformadas, adotamos a análise metodológica de netnografia na coleta de dados na plataforma Twitch.tv.
Também realizamos entrevistas com os trabalhadores que usam a Twitch como meio de trabalho, permitindo
uma melhor compreensão das relações produtivas e do trabalho inseridos no capitalismo de plataforma.
Palavras-chave: Capitalismo de plataforma. Trabalho plataformizado. Twitch. Streamers.
Abstract
Twitch.tv is a streaming platform where thousands of people try to make a living. Twitch presents us the
possibility to comprehend part of how the new forms of labor are organized and conditioned by the development
of the new Information Technologies (ITs). Data has become a central part of capitalist production. Platform
companies utilize their database to put themselves as the interface that mediates the productive relationships
between the different parts of the process. Beyond the platforms another organization configuration surges, the
network company, an amorphous structure with several interconnect points that form complex chains of
production. The work of streamers and other content creators conditioned by the platform and network models
allow us to perceive part of how the process of labor is shaped from a platform capitalism perspective. We
analyze how this labor takes a non-classical aspect that differentiates from the diactic relations of employee and
employer and focus on a multiplicity of authors present in the know-how labor. To comprehend how the labor
relations are organized and transformed we adopt a netnography methodology that consists of the collection of
data on the platform Twitch.tv. Also we interviewed three streamers that use Twitch as their primary source of
income. This allows us a better understanding on how these productive relations and labor are inserted into the
logic of platform capitalism.
Keywords: Platform capitalismo. Platform labor. Twitch. Streamers.
____________
*
Possui graduação em Ciências Sociais pela Universidade Federal do Paraná (1988), mestrado e doutorado em
Sociologia pela Universidade Federal do Paraná (2005 e 2008). Coordenadora do Grupo Trabalho e Sociedade
(GETS/CNPq). Professora Associada do Departamento de Sociologia da Universidade Federal do Paraná e do
Programa de Pós-Graduação em Sociologia. E-mail: macbridi@gmail.com
**
Possui graduação em Licenciatura em Ciências Sociais pela Universidade Federal do Paraná (2022), bacharel
em História pela Universidade Estadual de Ponta Grossa (2010). Participante do Grupo Trabalho e Sociedade
(GETS/CNPq). E-mail: ThiagoBedin@hotmail.com
BRIDI, M. A.; BEDIN, T.
__________________
Introdução
As novas tecnologias produtivas alteram a organização do trabalho, as formas de
trabalhar, de organizar e distribuir a produção. Novos negócios emergiram em razão das
tecnologias de informação e comunicação (TICs) e das mudanças políticas que aderiram à
onda neoliberal da flexibilização dos direitos do trabalho. Fenômeno recente, as plataformas
digitais vêm promovendo significativas reconfigurações no mercado de trabalho e no próprio
trabalho. Trata-se de tema que vem despertando o interesse de investigação pela comunidade
científica latino-americana, embora como afirmam Bridi, Véras de Oliveira e Salas (no prelo),
os estudos são bastante concentrados nos trabalhadores que atuam no segmento de transporte
de passageiros e de mercadorias e alimentos, as chamadas plataformas digitais no ecossistema
location-based, isto é, para aqueles trabalhos que utilizam aplicativos, caso de motoristas de
Uber, motoboys e ciclistas, que trabalham sob demanda, em um espaço definido e sob o
controle dos algoritmos das empresas
1
. Quanto às plataformas de tipo web based, nos quais os
trabalhadores atuam a partir de suas casas, por meios telemáticos, com uso intensivo de
desktop/notebooks e software (Bridi, 2022), os estudos são ainda escassos.
Muitas das plataformas promovem formas adaptadas de relações que existiam ou
modelos criados a partir do desenvolvimento de novas tecnologias. Esse é o caso dos
streamers” que trabalham dentro da Twitch.tv, uma plataforma de transmissões ao vivo. Para
que possamos compreender o funcionamento dessa plataforma e como o trabalho nela se
configura, utilizamos a metodologia de Kozinets (2014), a netnografia, que consistiu na
inserção de um dos autores dentro de diferentes canais e comunidades que existem dentro da
Twitch, para a produção de diários de campo. Coletamos dados referentes ao funcionamento
da plataforma e suas mudanças ao longo do tempo, bem como às diferentes formas de
sociabilidades que permeiam a plataforma. No presente artigo, desenvolvido a partir de Bedin
(2022), nos focamos no aspecto organizacional da plataforma e sua relação com os que
trabalham. Dessa maneira, fizemos o contato direto com os trabalhadores que a utilizam para
trabalhar. Com isso, foram realizadas três entrevistas no ano de 2022 com streamers que
tinham na Twitch sua principal forma de renda.
____________
1
Entre as inúmeras pesquisas no Brasil sobre esse trabalho plataformizado, citamos Abílio (2020), Festi e
Oliveira (2022), Kalil, Fonseca e Almeida (2021), Machado e Zanoni (2022).
165
Cosmovisões e territórios:
Abya Yala como Território Epistêmico
Os três entrevistados serão referenciados aqui por codinomes a fim de resguardar suas
identidades: Streamer A (SA), Streamer B (SB) e Streamer C (SC)
2
. Como todos os
entrevistados são de outros países, as entrevistas foram realizadas em inglês e por meio da
internet. Soma-se às entrevistas (com tradução livre nossa), a análise e acompanhamento do
próprio site da Twitch.tv, que oferece todo seu arcabouço legal, termos e outros programas
direcionados a streamers, que serão discutidos à frente. Outras ferramentas importantes foram
os sites TwitchTracker
3
e StreamsCharts
4
,
que, apesar de não afiliados à Twitch ou à Amazon,
disponibilizam dados e informações sobre a plataforma Twitch.tv.
Para efeito de apresentação e análise dos dados, organizamos o artigo em dois eixos de
análise. O primeiro trata das plataformas como um modelo de empresa. O segundo analisa
como o trabalho dos streamers se estrutura dentro da lógica da empresa de plataforma.
A Twitch.tv e os streamers que lá trabalham
A Twitch é um site onde aqueles que o acessam podem escolher uma miríade de
transmissões ao vivo. Todos aqueles que possuem uma conta na Twitch podem fazer
transmissões, pelo menos na teoria. Fazer uma transmissão ao vivo não nos torna
automaticamente um streamer; consideramos como streamers as pessoas que realizam
transmissões ao vivo dentro de plataformas dos mais variados tipos. Um streamer seria então
um indivíduo que se utiliza de determinada plataforma para realizar essas transmissões com
uma certa regularidade tendo uma continuidade da prática por um tempo mais longo (não
importando o quão esparsa ela é). Essa prática pode ter ou não um retorno financeiro,
dependendo de uma série de fatores: número de inscritos no canal, patrocínios, contratos etc.
____________
2
O SA é um streamer do sexo masculino, na faixa etária de 30 anos, residente na Europa. Possui formação
dentro da área de ciência da computação, mas nunca trabalhou na área, assim que terminou a faculdade começou
suas atividades dentro da Twitch, que transformou em sua carreira. Faz streams desde 2015 e tem como média
de 3000 espectadores. O SB está na Twitch mais de 10 anos. SB é um homem também na faixa etária dos 30
anos, nascido e criado nos EUA e possui uma formação acadêmica em história, tendo sido professor antes de
virar youtuber e streamer. SB teve uma média de 800 espectadores, o seu número de inscritos não pode ser
visualizado, pois ele não disponibilizou essa informação para acesso. A SC é uma Vtuber e está na Twitch desde
2016. É uma mulher com idade em torno dos 20 anos, é dos EUA. Começou uma faculdade de arte gráfica
voltada para o 3D, mas não concluiu. A SC nos últimos 90 dias teve uma média de 1000 espectadores, tendo
totalizado mais de 300 horas de stream. Os dados das streams foram coletados no mês de julho de 2022, no site
TwitchTracker. Disponível em: https://twitchtracker.com/ Acesso em: 02 jul. 2022.
3
Disponível em: https://twitchtracker.com/ Acesso em: 02 jul. 2022.
4
Disponível em: https://streamscharts.com/ Acesso em: 02 jul. 2022.
166
BRIDI, M. A.; BEDIN, T.
__________________
A diferença principal de um streamer e um usuário normal está nessa atividade periódica de
realizar transmissões ao vivo.
Quando denominamos os trabalhadores e o seu trabalho como streamers e stream, é
necessário manter uma compreensão de que existe uma interconexão com toda uma esfera
social da internet e da produção de mídia dentro dela. Os trabalhadores desse meio também
podem ser definidos como criadores de conteúdo, termo acolhido por aqueles que trabalham
na área. A diferença entre streamers e criadores de conteúdo é que o primeiro trata de um
indivíduo que tem sua atividade dentro das plataformas de streaming; e o segundo se atém a
uma visão mais geral que envolve toda atividade desses indivíduos em diversas plataformas.
Os termos streamer e criadores de conteúdo têm similaridades, mas o último se refere a uma
atividade de trabalho mais ampla que escapa do espaço da plataforma da Twitch.tv.
Mas o que podemos compreender como sendo conteúdo”? A ideia de conteúdo se
relaciona a algo produzido e disseminado pela internet, geralmente dentro de redes sociais
e/ou plataformas de vídeos. Conteúdo é algo muito flexível que pode ser aplicado para
diversos tipos de atividades, mídias e ações. Essa flexibilidade de tipos de mídia e formas de
engajamento é a razão para afirmarmos que o termo mais correto para se referenciar a esses
trabalhadores seja de criadores de conteúdo dentro de toda cadeia produtiva a qual pertencem.
Os termos discutidos aqui não são excludentes, mas sim partes de uma mesma categoria de
trabalhadores. No entanto, para compreender as dinâmicas do trabalho dos streamers é
necessário o entendimento de como as plataformas digitais se estruturam como empresas e,
por sua vez, estruturam as dinâmicas dos trabalhos que as permeiam.
A figura da Empresa no Capitalismo de Plataforma
As empresas de plataforma foram analisadas por Srnicek (2017) como aquelas que
criam e organizam estruturas produtivas, ao mesmo tempo em que buscam cercear seus
usuários dentro dessas mesmas estruturas. Não são apenas os modelos de empresa que se
modificam, mas novas estruturas de produção, novas formas de trabalho e de controle do
trabalho também vem em seu seio. A bibliografia sobre o tema das plataformas digitais as
define como “infraestruturas combinadas de software e hardware, de propriedade privada ou
pública, alimentadas por dados, automatizadas e organizadas por meio de algoritmos digitais”
(Bridi, 2022, p. 10). Essas ao entrarem nos setores econômicos já existentes os reconfiguram,
moldando as estruturas organizacionais e criando configurações de negócios e de trabalho.
167
Cosmovisões e territórios:
Abya Yala como Território Epistêmico
Srnicek (2017), no entanto, coloca certas características que podemos perceber para
categorizar plataformas como modelos empresas. A primeira delas seria o papel de mediador
entre as partes: as plataformas se colocam como interface entre seus usuários, sendo aqueles
que trabalham e/ou vendem seus produtos, e aqueles que os consomem. Tudo é mediado pela
plataforma. A segunda seria o “efeito de rede”: quanto mais usuários e quanto mais esses
passam tempo nos sistemas da plataforma, mais valiosa ela se torna. Grande quantidade de
usuários corresponde a uma grande base de dados e um papel maior da plataforma como
intermediária. O efeito de rede proporciona a terceira característica o “subsídio cruzado”: o
capital gasto para subsidiar um serviço gratuito é compensado em outro produto/serviço, tal
como o YouTube, que é gratuito, porém gera ganhos com os anúncios presentes na
plataforma. Srnicek (2017) também define cinco modelos de plataformas, sendo elas: a de
anúncios, a qual envolve a venda de anúncios em seus espaços; a de nuvem, que aluga
servidores, programas e serviços; a industrial, que fornece sistemas de organização da
produção; a de produtos, que oferecem um tipo de serviço que é mantido pela própria
plataforma; e magras, como empresas sem funcionários e até sem mercadorias”. É
importante compreender que todos os modelos de plataforma apresentados se utilizam de
dados como base para seu funcionamento.
Os dados se tornam a principal matéria-prima das plataformas para desenvolver suas
estruturas e sua hegemonia nos modelos produtivos. As maneiras como essas empresas de
plataforma agem e se comportam dentro de uma economia global se demonstram na formação
de suas cadeias produtivas, pelo menos naquelas que detêm uma maior fatia do mercado. Com
a necessidade de manter um número crescente de usuários, a competição entre as diferentes
plataformas é feroz. A capacidade de coletar dados é parte central na disputa entre
plataformas. Porém, a coleta é apenas parte da estratégia de expansão. Com seu
armazenamento, tem-se a necessidade da organização, quantificação e utilização dos dados
coletados. “Expandir a capacidade de coletar dados é um dos imperativos de competição
destas companhias, desenvolver meios correspondentes de análise é outro” (Srnicek, 2017, p.
65).
A manutenção de uma vantagem competitiva faz com que as plataformas precisem expandir
cada vez mais e assim, ao mesmo tempo, se tornam cada vez mais parecidas. Um bom
exemplo disso são os aplicativos de música como Spotify, Itunes, Amazon Music, YouTube
Music etc. Srnicek (2017) destaca que a contínua expansão para todos os lados dessas
168
BRIDI, M. A.; BEDIN, T.
__________________
plataformas faz com que elas se tornem incrivelmente semelhantes; o desafio delas é como
fazer com que os usuários fiquem em suas plataformas e não nas de seus concorrentes. Para
isso, as plataformas se utilizam de estratégias como a incompatibilidade ou imobilidade para
outras plataformas
5
; descontos ou brindes vinculados a outros serviços da plataforma. O nível
de conectividade e flexibilidade que existe nos modelos contemporâneos de empresas, e o
processo de globalização do capital fazem com que as empresas se transformem, não apenas
para lidar com seus mercados, mas também para moldar as formas como se relacionam umas
com as outras.
Empresas de Plataforma em Rede: a relação entre Amazon e a Twitch
Os modelos de empresa desde a revolução informacional, nos termos de Castells
(2019), se transformam junto com os meios produtivos. Como analisa o autor, as novas
condições introduzidas pelo surgimento e avanço de novas tecnologias informacionais
possibilitam a emergência de novos meios organizacionais da produção e do trabalho. As
empresas, no final dos anos 80 e começo dos anos 90, configuradas como entidades únicas,
tendiam a ter parte de sua produção concentrada e com uma estrutura produtiva “fordista”.
Com o avanço das TICs, as empresas vão deixando essa verticalidade para tomarem formas
mais horizontais, com base em uma relação que envolve várias empresas que se organizam
sobre uma mesma “marca”, ou uma empresa-mãe. Por exemplo, a Google, Google Capital,
Calico etc. são empresas de propriedade de outra empresa, a Alphabet, que se configura como
empresa em rede, tendo suas estruturas produtivas descentralizadas em outras empresas que,
por sua vez, se conectam entre si. a Amazon funciona em uma lógica parecida, várias
empresas se conectam dentro de sua rede: Amazon Ads, AWS, Amazon Logistics e claro a
Twitch.tv
6
.
A maneira como essas empresas se configuram reforça o modelo do capitalismo de
plataforma proposto por Srnicek (2017), visto que a posse do software, ou a posse da
propriedade intelectual da empresa, de sua marca, de seu código se torna um bem quase que
mascarado pela densidade e complexidade de sua rede, mas é também fator primário no
____________
5
Como a Apple, que prende seus usuários dentro de seu próprio sistema operacional.
6
Não discutimos a relação entre essas empresas e o grau de subordinação de uma em relação a outra, o que
exigiria pesquisa específica.
169
Cosmovisões e territórios:
Abya Yala como Território Epistêmico
controle do capital e do trabalho. Isso não significa que possamos declarar o fim do trabalho e
do capitalismo industrial, visto que parte dele é transferido para as novas fronteiras da
economia mundial. Os processos de exportação da produção são parte dessa rede produtiva.
As empresas de plataforma têm uma vantagem nesse processo, pois seu modelo de estrutura e
de funcionamento nasce dentro dessa perspectiva de conectividade das relações. Castells
(2019) e Srnicek (2017) apresentam em suas análises certas diferenças, enquanto o primeiro
coloca empresas em rede como sendo a união de sistemas descentralizados, ou pelo menos, de
uma difusão de funções dentro dos modelos clássicos de empresa; o segundo compreende o
surgimento de um novo tipo de organização, onde o controle se concentra na propriedade de
sistemas e dos dados por onde ela se estrutura. Vemos em ambos características que refletem
a atual configuração do capitalismo industrial de plataforma, como nomearam Amorim, Bridi
e Cardoso (2022). O conhecimento de como as plataformas lidam com os dados, sistemas,
softwares etc. criando estruturas e serviços que conectam diferentes partes para o
fechamento do ciclo do capital é de vital importância para a compreensão de como a Twitch
Interactive e, em consequência, plataformas como a Amazon, operam dentro da esfera
produtiva da internet. Compreender as empresas em rede nos permite vislumbrar como as
plataformas conseguem estruturar redes produtivas complexas e compreender como se
inserem dentro do ciclo capitalista de circulação. Essa visão é importante principalmente para
compreender a relação da Twitch.tv e sua “empresa-e”, a Amazon, tanto como plataformas
quanto como empresas em rede.
A Amazon combina dentro de sua alçada estruturas que tocam em todos os modelos
colocados por Srnicek (2017). Ela trabalha com sistemas de organização da produção
industrial, com a produção de mercadorias em si para serem comercializadas dentro de sua
própria plataforma de vendas; funciona como empresa magra, onde seus “colaboradores”
trabalham como entregadores, estoquistas etc.; e ainda por cima também lida com a venda de
anúncios dentro de suas plataformas. Com a aquisição da Twitch.tv, em agosto de 2014, a
Amazon começa a inserir a Twitch dentro de sua rede produtiva, conectando-a a seus outros
serviços, por exemplo, os anunciantes que compram espaços na Twitch o fazem pelo
programa de anúncios da própria Amazon, ou a inserção de programas de parcerias com a
plataforma de vendas da Amazon, através de links de produtos que podem ser comprados
diretamente da plataforma.
170
BRIDI, M. A.; BEDIN, T.
__________________
As estruturas da Twitch e suas inserções na rede da Amazon
A Twitch se estrutura através de canais. Cada usuário tem o seu canal e pode usá-lo
para realizar streams. As categorias de canais em sua maioria se referem a jogos eletrônicos,
mas existem outros tipos como o “só conversando” ou o “criativo”. Os canais consistem em
três partes principais: a tela onde a stream aparece; o painel de informações do canal, que
consiste em painéis montados pelo próprio streamer contendo informações como uma
introdução sobre quem ele é; tipo de computador utilizado; suas redes sociais; links para dar
doações/gorjetas; e o espaço do chat onde os espectadores podem conversar entre si e
interagir com o streamer. Na plataforma, existem três tipos de espectadores (não estamos
considerando neste estudo os perfis de empresas ou marcas de produtos eletrônicos). O
primeiro tipo são os espectadores em geral, que não possuem nenhum vínculo com aquele
canal específico. O segundo tipo são os seguidores, aqueles que clicaram no botão de seguir o
canal. O terceiro tipo é o dos inscritos no canal, ou, como se diz no jargão da Twitch, os
“subscribers (ou subs, ou inscritos), que escolheram pagar uma mensalidade para acesso ao
canal.
A inscrição paga nos canais é o objeto da alteração mais significativa na incorporação
da Twitch dentro da rede produtiva da Amazon. A mudança consiste na introdução de uma
nova forma de inscrição nos canais, utilizando o serviço do “Twitch Prime”. A inscrição
prime é basicamente a possibilidade de se inscrever em um canal de “graça”, porém esse
brinde é recebido por aqueles que possuem o Amazon Prime
7
. Após a introdução do
Twitch Prime, temos a introdução de diferentes níveis de inscritos organizados em: 1, 2, e 3.
Cada nível corresponde a um preço que aumenta gradativamente. A recompensa que o
inscrito ganha é ter do lado do seu nome no chat uma imagem e acesso a uma seleção de
emojis (que na Twitch são chamados de “emotes”) que são exclusivos daquele canal e podem
ser utilizados em toda a plataforma. Desde final do ano de 2021, os preços dos inscritos
começaram a variar de acordo com as moedas locais dos países (daqueles incluídos nessa
precificação) onde o espectador reside. A diferença nas moedas também afeta o pagamento
feito aos streamers. A divisão do valor é feita pelo preço da moeda em que foi paga, então
teoricamente um inscrito brasileiro valeria menos dinheiro do que um inscrito americano
____________
7
O Amazon Prime é um serviço de assinatura que benefícios como frete grátis na Amazon, acesso ao Prime
Vídeo, Amazon Music, entre outros. Seu valor gira em torno de 119 reais por ano. Retirado de
https://www.amazon.com.br/prime Acesso em: 26 mar. 23.
171
Cosmovisões e territórios:
Abya Yala como Território Epistêmico
devido à diferença cambial. O SA relata sobre como essa mudança afetou a renda dos
streamers, principalmente aqueles de médio e pequeno porte. Ficou mais fácil para pessoas de
outros países se inscreverem. Porém, para os streamers menores o houve um aumento real
do número de inscritos, apenas a desvalorização das inscrições realizadas por inscritos de
outro país
8
. Já os streamers grandes tiveram um aumento em inscritos no canal. A média de
inscritos que esses canais tinham passa a render menos, refletindo que o preço dessa inscrição
não corresponde aos 5 dólares de antes da mudança. A precificação em moedas nacionais
pode ter ajudado na rentabilidade do trabalho, mas com ela veio um corte significativo no
pagamento.
O Twitch Prime, conforme mencionamos, é uma maneira de o espectador se inscrever
em um canal de graça”, desde que ele seja assinante do Amazon Prime. A introdução do
Twitch Prime significou, para aqueles que usavam a plataforma para meios de trabalho, uma
viabilidade que antes não existia. SA ao relatar sobre sua primeira experiência com o Twitch
Prime diz que no dia em que ficou disponível ganhou mais de 150 inscritos, conseguindo
atingir uma meta pessoal de 300 inscritos no canal.: “Atingi a meta de 300 inscritos em um
dia, foi insano, mudou tudo completamente, foi uma das coisas que me fez ver que viver de
streams na Twitch era possível.” (Entrevistado SA, 12 de abril de 2022).
O Twitch Prime possibilitou que pessoas com o serviço da Amazon conseguissem se
inscrever nos canais de seus streamers favoritos. Sua principal contribuição foi a inserção da
Twitch.tv dentro da estrutura produtiva da Amazon. Essa inserção é exemplificada pelo
“prime gaming” (mais um benefício de assinar o Amazon Prime). Nele, o inscrito ganha
vários jogos de graça, e recompensas dentro dos mais diversos jogos, como cosméticos, itens,
entre outros. Os jogos disponibilizados mudam, e as recompensas dentro dos jogos costumam
ter um tempo limite para que possam ser resgatadas. A decisão sobre quais jogos serão
selecionados ou quais terão recompensas cabe à Twitch e à Amazon. O modelo prime, dessa
forma, fez com que a plataforma da Amazon passasse a fazer a ponte entre suas próprias
estruturas produtivas no universo da Twitch. Os desenvolvedores de jogos e eletrônicos, os
criadores de conteúdo e a audiência de espectadores da Twitch se inserem, assim, na
plataforma da Amazon, seja na parte de anúncios, na parte do entretenimento ou no próprio
comércio de mercadorias.
____________
8
E isso ainda sem considerar a diferença no pagamento para streamers de outros países, como o Brasil, no qual a
mudança significou um corte ainda maior.
172
BRIDI, M. A.; BEDIN, T.
__________________
O prime não é a única mudança que ocorre na plataforma, também temos outras
ferramentas e maneiras de interagir com a plataforma, um exemplo disso são os bits, uma
moeda virtual que pode ser comprada e usada dentro dos canais da Twitch para dar gorjetas
para os streamers. Outra maneira, foram os drops, que são uma forma dos espectadores
ganharem brindes em certos jogos se assistirem por um certo período às streams participantes.
Observando essas interconexões, percebemos como a Twitch se integra à plataforma da
Amazon tornando-se mais um espaço para que os sistemas da empresa sejam implementados
e utilizados.
As estruturas e características das plataformas podem parecer à primeira vista como
apenas um detalhe. Porém, é preciso considerar que os meios e maneiras pelas quais as
grandes plataformas (pelo menos, as hegemônicas) se organizam, tornam-se padrões a serem
seguidos. A maneira como os canais são organizados: o layout; as ferramentas
disponibilizadas; os espaços como chat; os bônus como emotes e bits, todos eles se tornam
razões para que os usuários continuem a usar a plataforma em detrimento de outra. Isso não se
deve apenas ao layout ou estrutura que o chat possui, mas todo um suporte provido pela
plataforma que continua criando ferramentas e mudanças sempre a fim de manter seus
usuários dentro de seus sistemas. Todas estas características desenvolvidas pelas plataformas
seguem a lógica apontada por Srnicek (2017) de manter cada vez mais usuários
ensimesmados dentro delas. As dificuldades de sair desses sistemas para mudar de plataforma
são enormes. Segundo o nosso entrevistado, SB, é preciso ver onde está o público. Se novos
espaços surgem, e tentam competir com as plataformas estabelecidas, eles precisam provar
que o público está lá, para que streamers e espectadores se interessem em sair da Twitch.
Organização e controle do trabalho: as relações entre os Streamers e a Twitch.tv
enquanto Plataforma Magra
A organização do trabalho também passa por estruturas ditadas pelas plataformas. A
relação de trabalho na Twitch.tv se configura em sua maioria como uma plataforma magra.
Para receber um pagamento da plataforma por fazer streams na Twitch é necessário que o
streamer participe dos programas de parceria que, segundo o contrato disponível, não consta
como sendo de emprego, ambas as partes são empreendedores individuais como vemos no
artigo 14 do contrato dos afiliados
173
Cosmovisões e territórios:
Abya Yala como Território Epistêmico
“Art. 14. Relação das Partes. Vo e nós somos, e permaneceremos em todos os
momentos, contratados independentes, e nada neste Contrato será interpretado para
criar uma agência, emprego, fiduciário, representante ou qualquer outro
relacionamento entre você e nós. Você não se apresentará como um funcionário,
representante ou agente nosso. Você entende e concorda que não tem autoridade
para nos vincular de qualquer maneira, ou entrar em qualquer acordo ou incorrer em
qualquer responsabilidade em nosso nome” (Twitch, 2019).
Essa desvinculação da relação entre as duas partes permite que a empresa não seja
obrigada a pagar custos trabalhistas, como férias, seguros, horas extras etc. As plataformas,
segundo Srnicek (2017), são magras justamente pela capacidade de funcionar sem a
“presença” de trabalhadores e de estruturas. A Uber não detém posse dos carros que estão
trabalhando nela, da mesma maneira, a Twitch também não detém a posse dos computadores,
jogos, mixadores de áudio e outros aparelhos usados para realizar streams em sua plataforma.
A plataforma possui os servidores por meio dos quais esses indivíduos trabalham. Essa
independência, no entanto, o significa uma liberdade total entre as partes. No contrato de
afiliado, temos também uma cláusula de exclusividade
9
em que o conteúdo produzido ao vivo
é exclusivo da Twitch.tv por um certo período, no caso aqui 24 horas após o término da
transmissão. A exclusividade é mais uma estratégia para manter usuários dentro de seus
sistemas.
Os contratos na Twitch seguem o mesmo padrão, em que existe uma divisão de 50/50
no dinheiro gerado pelas inscrições no canal. Canais que tenham durante 3 meses pelo menos
350 inscritos que pagam recorrentemente
10
podem se classificar como sendo “parceiros plus”,
que tem uma divisão de 70/30 no pagamento das inscrições. Após entrar no programa, os
streamers ficam nele por 12 meses. A divisão de 70/30 no entanto dura até o canal ter 100 mil
dólares de renda, após isso ela retorna para a divisão 50/50. Outras plataformas podem até ter
melhores divisões no pagamento, mas os streamers não conseguem trazer seus espectadores
para ela. Diferentes plataformas têm diferentes meios de consumo e tipos de público.
A renda dos anúncios é gerenciada por outra divisão que depende muito da quantidade
de espectadores, como relata o streamer entrevistado SB, que afirma que um terço de sua
renda anual vem de anúncios. Quando uma stream alcança em média 500 espectadores
regulares é que os anúncios começam a dar um bom retorno. Os anúncios dentro das streams
____________
9
TWITCH Interactive. Twitch Affiliate Agreement. Califórnia, 2019. Disponível em:
https://www.twitch.tv/p/en/legal/affiliate-agreement/. Acesso em: 24 ago. 2022.
10
São apenas contabilizadas inscrições feitas diretamente pela Twitch. Inscrições do Twitch Prime, ou inscrições
que foram dadas de presente, não contam para o programa do parceiro plus.
174
BRIDI, M. A.; BEDIN, T.
__________________
é um dos pontos centrais por meio do qual a plataforma impõe o seu controle sobre o meio.
Outra entrevistada, a SC, relatou como ela foi “fortemente encorajada” para passar mais
anúncios. O streamer pode programar anúncios para passar em determinados horários; ou
deixar na reprodução automática que passa anúncios segundo seu algoritmo próprio. Se
links para outras lojas, de lembranças, roupas etc. e eles estiverem colocados dentro da
plataforma, o streamer recebe parte da venda também. Alguns streamers possuem contratos
de exclusividade com termos adicionais, por exemplo, um bônus caso completem metas de
produção realizando x horas de stream ao mês.
A relação entre a plataforma e os streamers se dá primeiramente pelas regras aplicadas
pela empresa, os Termos de Serviço (TOS). É pela violação deles que streamers são banidos e
impedidos de trabalhar. Dependendo da ofensa, o banimento dura um período diferente,
podendo até mesmo ser permanente. Fora o policiamento dos TOS, a plataforma não tem
ingerência direta em como o trabalho é realizado dentro da plataforma. O controle do trabalho
se pelo algoritmo da Twitch. A principal forma que observamos o algoritmo agindo são
como os canais são organizados em determinada categoria, tendo como primeiros os canais
que teriam “mais afinidade” com suas preferências
11
. Enquanto os TOS seriam as regras pelas
quais as streams precisam seguir; o algoritmo é a força que molda e orienta o conteúdo que é
divulgado. Não é à toa que a grande maioria dos vídeos do YouTube contém uma capa do
youtuber fazendo uma careta apontando para algo e seus vídeos são todos reações deles de
outros conteúdos. Todo esse formato é fortemente influenciado pelo algoritmo que define os
parâmetros para recomendar ou não certo tipo de conteúdo.
O trabalho dos streamers parece à primeira vista um trabalho simples, afinal é apenas
jogar videogames on-line ou se sentar em uma mesa, ligar a câmera e ficar conversando.
Enquanto acompanhamos a rotina dos streamers, percebemos uma realidade bem mais
complexa. Ao longo de nossa observação na plataforma, identificamos que as streams duram
geralmente em torno de 6 horas ao vivo, podendo variar, mas a tendência é sempre para mais
tempo. Essa quantidade de horas trabalhadas o foge muito dos padrões da Twitch, pois
quase todos os streamers com os quais tivemos contato, e/ou acompanhamos a partir de nossa
inserção na plataforma, têm horários em torno de 8 horas. Os horários não o fixos, o
streamer pode escolher quando trabalhar e a duração de sua stream. É necessário que
____________
11
É possível organizar os canais por número de espectadores, mas a configuração padrão é a organização titulada
como “para você”.
175
Cosmovisões e territórios:
Abya Yala como Território Epistêmico
tenhamos a noção que diferentes streamers em diferentes países ou regiões de um mesmo país
têm necessidades diferentes. A quantidade necessária de trabalho para que se possa viver de
fazer streams varia de acordo com a realidade social do trabalhador.
O trabalho dos streamers vai além do seu período on-line. Existe toda uma preparação
para que a stream aconteça. Como a produção de elementos gráficos que possam aparecer na
tela, layouts, a produção de novos emotes temáticos para determinado jogo etc. A entrevistada
SC, por exemplo, sendo uma vtuber, cria figurinos e detalhes para incrementar seu avatar
virtual para algo relacionado a um jogo ou tema para a stream. A SC relata como se a
preparação de figurinos para seu avatar, desde seu design até sua programação e/ou
configuração. O processo pode levar horas e até mesmo dias de trabalho, on-line e/ou off-line,
antes que o avatar possa ser utilizado. Esse é um trabalho invisível, oculto, em que a maioria
do processo não aparece. É uma parte do trabalho que em sua grande maioria não é pago. O
retorno dessa atividade se pelo aumento de seus espectadores e do crescimento do canal,
mas não garantia de que ocorra. Porém, se o o fizer de tempos em tempos, seu conteúdo
não é mais distribuído pelo algoritmo. As horas trabalhadas fora da bolha do on-line são
gastas dentro de outras redes sociais, pesquisando sobre novos jogos; novidades para suas
streams; contatos com outros criadores de conteúdo; reuniões com possíveis patrocinadores e
na produção de outros conteúdos para diferentes plataformas. Streamersm em suas relações
de trabalho a disseminação de conteúdo por mais de um meio de distribuição. Isso torna a
relação que esses criadores têm com outras plataformas e redes sociais de grande importância
para a viabilidade do trabalho.
A presença dos streamers em outras plataformas sociais é central, ela expande a área
de alcance que seu conteúdo pode ter, aumentando sua Discoverabilty”, a chance de alguém
ser descoberto pela internet ou dentro de certa plataforma. Existe toda uma lógica de
postagem nas redes sociais para conseguir melhores resultados, quais horários postar, em que
redes fazer e a mesmo que imagem colocar na capa de seus vídeos do YouTube. O
entrevistado SB detalhou como a presença e os números nas redes sociais importam. São
através desses números que os patrocinadores escolhem quem contratarão. A rotina de
trabalho de um streamer é repleta de uso de diversas plataformas, cada uma com algoritmos
diferentes que influenciam o processo de produção do conteúdo. Essa cadência de
envolvimento em diversas plataformas não é algo exclusivo dos streamers, podemos até
colocar que criadores de conteúdo em geral dependem desse marketing multifacetado para
divulgar o que fazem, e talvez com isso ganhar mais olhos voltados ao que estão fazendo,
176
BRIDI, M. A.; BEDIN, T.
__________________
afinal, quanto mais pessoas você alcançar maior serão as chances de que algm continuará a
seguir o seu conteúdo.
Diferentes plataformas significam diferentes formas de trabalho ou novas formas de
apresentar um mesmo conteúdo. A adaptação a esses ritmos diferentes, que se misturam e
mudam constantemente, é outra faceta do trabalho dos criadores de conteúdo. A necessidade
de se manter relevante dentro de um cenário que muda constantemente intensifica essa
necessidade de se adaptar, de estar sempre presente, sempre disponível para as novas
mudanças do mercado. O poder dos algoritmos usados nas plataformas se expressa na
necessidade de “manter-se relevante”. Se o conteúdo não estiver dentro do modelo que o
algoritmo preferência ele será menos sugerido a novos espectadores. O relacionamento
com seus pares também faz parte da vivência do trabalho dos streamer, a colaboração entre
streamers é uma maneira de aumentar sua disponibilidade de expandir a esfera de
espectadores e aumentar sua esfera social dentro da plataforma. Uma pausa no trabalho pode
causar queda de seus números, quantas pessoas se inscreveram, seguiram e assistiram nos
últimos 90 dias. É por essas médias que são decididos os valores pelos quais os streamers vão
ser pagos em contratos de patrocínio e/ou publicidades que seus canais podem fazer.
O trabalho não envolve apenas a interação dentro da stream, é também a construção de
redes de relações pelos criadores de conteúdo e seus seguidores, chamadas de comunidades. A
ideia de construir uma comunidade é muito presente no universo da Twitch.tv, seja ela pela
própria plataforma ou por aqueles que a utilizam. A comunidade é um lugar para cultivar, ou
melhorar, o seu contato com os espectadores, fazer crescer seu canal, planejar o que será
produzido no futuro, fazer contatos com outros streamers, etc. O fazer do trabalho dos
streamers e de outros criadores de conteúdo é marcado por essa interação com aqueles que
lhes assistem. No caso da Twitch, esse contato é muito mais direto, afetando o trabalho
enquanto ele está sendo produzido. As vontades de seus espectadores, de seus consumidores,
estão sempre presentes moldando o produto. Com o passar do tempo, o streamer consegue ter
uma noção de que tipo de conteúdo as pessoas preferem que ele faça. Essa preferência dos
espectadores é tanta que streamers encontram dificuldade para realizar streams de outros
jogos/conteúdos, pois, ao fazerem, perdem boa parte de seus espectadores. É comum
encontrar streamers comentando que não fazem conteúdo X ou Y porque diminuiria seus
números de espectadores (e, em consequência, prejudicam seu canal e também a renda de seu
trabalho). As novas formas de trabalho nascidas dentro das revoluções tecnológicas de nossa
177
Cosmovisões e territórios:
Abya Yala como Território Epistêmico
era carregam consigo aspectos novos e antigos da morfologia do trabalho. Quanto às
possibilidades engendradas pelas novas tecnologias, Bridi e Lima (2018) apontam que elas
trazem novos espaços de acumulação de capital, focados principalmente em ambientes
virtuais, que trazem consigo novos negócios e novos meios de trabalhar e, com isso, novos
mecanismos de controle do trabalho.
O streaming como trabalho não clássico
O trabalho dos streamers e de grande parte de criadores de conteúdo não pode ser
compreendido da mesma forma de um trabalhador de fábrica ou de escritório. A definição de
Trabalho o Clássico de Garza & Hernández (2018) pode ser adequada para essa atividade.
Segundo os autores, a análise marxista da produção capitalista focava (até hoje de certa
maneira) a relação industrial de produção, a venda de uma força de trabalho, que se converte,
então, em mercadoria e toma forma de quaisquer produtos. Assim, precisamos diferenciar
estes novos tipos de trabalho que fogem de uma noção de trabalho ligada ao modelo de uma
produção industrial. Os autores Garza & Hernández (2018) ao proporem o conceito de
“trabalho não clássico” lembram que Marx (2013) observa que o trabalho é em si atividade
humana, dispêndio de força de trabalho que se completa em sua materialidade histórica,
independentemente se essa materialidade é ou não ligada a uma relação de produção
capitalista. O “marco mais amplo que imprime diferentes sentidos às categorias do trabalho
acaba sendo o das relações sociais de produção […] Nessa medida, a relação social de
produção entre capital e trabalho aparece somente como uma de suas formas” (Garza;
Hernández, 2018, p. 221). As relações sociais de produção dentro do capitalismo passam por
transformações e podem ser entendidas como relações diádicas de capital/trabalho em seus
modos mais clássicos, depois em relações triádicas e, por fim, em um novo momento do
capital em relações múltiplas.
O processo do trabalho é diretamente influenciado dentro do espaço público tendo sua
completude moldada pelos significados e sentidos imbuídos a ele. O trabalho dos streamers é
a produção de suas streams, do conteúdo midiático que ficará guardado em suas plataformas,
do momento de sua live. Enquanto os processos que ocorrem no YouTube têm um certo
tempo para acontecerem, principalmente, com seus espectadores, na Twitch, as influências
ocorrem quase que instantaneamente. O entrevistado SB informou que fazer conteúdo para a
Twitch e para o YouTube é como a diferença entre fazer uma peça de teatro e um show de tv.
178
BRIDI, M. A.; BEDIN, T.
__________________
“Na Twitch você vai na frente da audiência e sabe imediatamente se eles gostaram [...]
quando vocoloca no YouTube tem cortes, edições e pausas entre o que você filma e edita”.
(Entrevistado SB, 27 de outubro de 2022). O trabalho dos streamers em sua relação de
constante transformação com a mediação dos algoritmos, participação de seus espectadores
através do chat e outras ferramentas que resultam na produção de um conteúdo imbuído de
significados é exatamente onde se percebe as relações múltiplas do processo de trabalho.
A ideia de mercadoria, ou da realização do que é o produto desse trabalho, também
seria definida através dessas relações. Garza e Hernández (2018) apontam um problema nas
teorias clássicas do trabalho, onde se existem diferentes relações de produção e trabalho nos
quais seus resultados são determinados por sua materialidade histórica, o foco das teorias
clássicas na fisicalidade do resultado da produção capitalista precisa ser revisado. Objetos
possuem características subjetivas, sendo repletos de significados que surgem durante o
próprio processo do trabalho. Mercadorias e produtos o dependem de ser físicos, eles são
objetos construídos socialmente através de relações sociais de produção. Sendo assim, é
indiferente para os modelos da produção capitalista que “sejam produzidas mercadorias
físicas materiais imprimidas de significados, de signos objetivados imateriais ou que se trate
de interações com significados geradas por trabalhadores assalariados” (Garza; Hernández,
2018, p. 223), a sua completude dentro da relação capitalista está em sua capacidade ou não
de gerar a mais-valia.
Essa dinâmica, então, cria a necessidade de que examinemos a ideia de força de
trabalho mais de perto. Garza e Hernández (2018) argumentam que não podemos considerar
força de trabalho apenas a partir do dispêndio de energia imbuído na produção das
mercadorias, visto que há todo um processo que escapa à parte da produção em si. As relações
sociais de produção determinam a produção de mercadorias que podem ser ou não físicas e
que englobam certos tipos de trabalho e trabalhadores. O próprio Marx (2013) nos uma
resposta a esse problema, quando afirma que o valor de uma mercadoria não é seu valor
individual, mas sim seu valor social, isto é, o tempo socialmente necessário de trabalho para
produzir a mercadoria. Nele, estão incluídos todos os processos de construção de significados
e sentidos presentes na ideia de “trabalho não clássico”. Um exemplo de signos criados
através do trabalho dos streamers pode ser visto nos emotes que são gerados para um canal,
neles estão imbuídos valores e significações construídas através desse trabalho imaterial
12
. A
____________
12
Eles não refletem a totalidade dos signos que o trabalho produz, esse sempre estará em si próprio, mas
demonstram facetas que podem ser observadas.
179
Cosmovisões e territórios:
Abya Yala como Território Epistêmico
mercadoria só se completa depois de seu consumo, depois que seu ciclo gerador de mais-valia
se completa. Essa lógica traz alguns desafios para pensar a produção de conteúdo. A visão de
como a noção de mercadoria entra no processo: o conteúdo enquanto tal tem seu valor de uso
realizado, por exemplo, quando alguém assiste ao ou vê o conteúdo X. Porém, não é apenas o
conteúdo que se caracteriza como mercadoria, a imagem do próprio criador também se torna
ao mesmo tempo parte dessa mercadoria e também uma mercadoria em si mesma. Essa
imagem da marca do criador de conteúdo é construída no mesmo processo de trabalho não
clássico, moldando-se em uma relação dialética com o conteúdo produzido. Através dessa
marca, surgem outras relações de produção nas quais o trabalho dos criadores de conteúdo se
insere.
A relação do valor de uso e de troca do conteúdo enquanto mercadoria não fecha por si
o ciclo do capital. O valor de troca aparece (em ambas as formas) na capacidade de
alcançar o maior número de pessoas, ou gerar um maior volume de consumo que leve a um
aumento de sua capacidade de visualização. O conteúdo, diferentemente de mercadorias
físicas, tem sua replicabilidade levada à última instância. Isso não significa que o conteúdo
tenha um valor de troca infinito. Sua validade enquanto mercadoria está diretamente ligada a
como os sentidos e significados imbuídos nela são ou não relevantes dentro da materialidade
histórica em que estão incluídos
13
. É nessa relação que se cria a necessidade dos criadores de
conteúdo de estarem sempre presentes, sempre conectados em diversas plataformas, em um
ritmo constante de trabalho, adaptando sua produção para seguir as tendências das redes, dos
algoritmos. As plataformas não recebem parte do resultado desse trabalho, por exemplo na
divisão de inscritos na Twitch, como vendem essa capacidade de alcance dos criadores que
trabalham dentro de suas estruturas para outros setores de produção, sejam eles quais forem,
pois se adaptam dependendo do contexto de cada região.
Considerações finais
O capitalismo se transformou rapidamente desde o começo do milênio. As
transformações das cadeias produtivas condicionadas pelo desenvolvimento de novas
tecnologias como as TICs trouxeram com elas novas formas de organização e de trabalho. A
____________
13
Isso não quer dizer que o conteúdo entre em um limbo quando não é mais relevante, mas sim que conforme a
materialidade histórica se transforma, juntamente são transformados os sentidos e significados que se tornam
centrais em determinadas sociedades e nos processos de produção capitalista.
180
BRIDI, M. A.; BEDIN, T.
__________________
organização a partir das TICs trouxe consigo novos modelos de produção capitalista.
Empresas se tornam cada vez mais descentralizadas dentro de redes produtivas que formam
um outro tipo de modelo empresarial. A consolidação das informações como meio principal
de organização da produção capitalista através dos dados trouxe consigo espaços e condições
para que novas formas de trabalho aparecessem. Trabalhos esses que poderiam até existir
antes dessa consolidação, mas se consolidaram enquanto prática após o surgimento de um
processo produtivo transformado pelos avanços tecnológicos. O surgimento das
plataformas e seus modelos organizacionais são fruto direto dessa transformação, assim como
novas formas de trabalho também o são. Trabalho constantemente delapidado pela
necessidade de estar em contato com diversas plataformas e redes ao mesmo tempo, cada uma
trazendo consigo dinâmicas diferenciadas.
O trabalho dos streamers surge neste contexto, ao contrário de trabalhos como os
motoristas e entregadores de aplicativos que foram “adaptados” aos novos modelos
produtivos, o trabalho dos produtores de conteúdo já nasce inserido nessa lógica (pelo menos
na produção de conteúdo dentro do espaço digital). Sua característica de trabalho não clássico
sendo formado por uma multitude de relações sociais não teria o mesmo alcance ou
complexidade se não fossem as TICs. Trabalho que já aparece dentro do processo em um tipo
plataformizado que possui aspectos bem diferenciados no fazer do trabalho e, ao mesmo
tempo, com um controle do saber-fazer em sua prática rigorosamente julgado e condicionado
pela intermediação que a tecnologia impõe. O surgimento do algoritmo como ferramenta de
controle se demonstra cada vez mais eficaz em condicionar os modelos organizacionais do
trabalho.
Uma coisa, no entanto, nos parece certa: as relações de produção e de trabalho mesmo
que desenvolvidas a partir de novas sociabilidades que surgem com as TICs ainda
carregam em si a essência das “antigas” relações de trabalho, mas em um ambiente de
negação do estatuto do trabalho. Talvez essas plataformas sejam, como defendem Amorim,
Bridi e Cardoso (2022), a fase radicalizada da externalização da produção advinda, sobretudo,
a partir das crises do capitalismo dos anos 1970, quando as empresas começam um franco
processo de expulsão da força de trabalho de suas vistas.
181
Cosmovisões e territórios:
Abya Yala como Território Epistêmico
Referências
ABÍLIO, Ludmila C. et al. Condições de trabalho de entregadores via plataforma digital durante a COVID-19.
Revista Jurídica Trabalho e Desenvolvimento Humano, Campinas, v. 3, p. 1-21, jun. 2020. Disponível em:
http://www.revistatdh.org/index.php/Revista-TDH/article/view/74. Acesso em: 30 ago. 2021.
AMORIM, Henrique; BRIDI, Maria. A; CARDOSO, Ana. C. M. Trabalho Digital e Plataformizado no Século
XXI: reconfigurando o passado no presente. Caderno CRH, Salvador, v. 35, p. e022019, 2022. Disponível em:
https://periodicos.ufba.br/index.php/crh/article/view/50225. Acesso em: 16 jun. 2023.
BEDIN, Thiago. Obrigado por se Inscrever: O caso da Twitch.tv e as novas formas de trabalho. 2022.
Monografia (Licenciatura em Ciências Sociais) Departamento de Ciências Sociais, Universidade Federal do
Paraná, Curitiba, 2022.
BRIDI, Maria Aparecida; LIMA, Jacob Carlos (org.). Flexíveis, Virtuais e Precários? Os trabalhadores em
tecnologias da informão. Curitiba: Editora UFPR, 2018.
BRIDI, Maria. A. Prefácio. In: MACHADO, Sidinei.; ZANONI, Alexandre. P. (org.). O trabalho controlado
por plataformas digitais: dimensões, perfis e direitos [meio eletrônico]. Curitiba: UFPR: Clínica Direito do
Trabalho, 2022. p. 9-15
BRIDI, Maria Aparecida; VÉRAS DE OLIVEIRA, Roberto; SALAS, Minor M. O estado da arte dos estudos
sobre capitalismo de plataforma na América Latina. Revista Brasileira de Sociologia (no prelo).
CASTELLS, Manuel. A Sociedade em Rede. São Paulo: Paz e Terra, 2019.
FESTI, Ricardo; OLIVEIRA, Roberto V. Entregues à sua própria sorte: os autônomos” entregadores por
plataformas. Revista Ciências do Trabalho, São Paulo, n. 21, p. 1-4, abr. 2022.
GARZA, Enrique De La; HERNANDEZ, José Angel Cerón. Os Youtubers como trabalhadores não clássicos.
In: BRIDI, Maria Aparecida; LIMA, Jacob Carlos (org.). Flexíveis, Virtuais e Precários? Os trabalhadores em
tecnologias da informão. Curitiba: Editora UFPR, 2018. p. 219-245.
KALIL, Bernardi Renan; FONSECA, Vanessa Patriota; ALMEIDA, Paula Freitas. Estratégias adotadas por
empresas prestadoras de serviço via plataforma digital para afastar o reconhecimento de vínculos empregatícios.
In: LEONE, Eugenia Troncoso; PRONI, Marcelo Weishaupt (org.). Facetas do Trabalho no Brasil
Contemporâneo. Campinas, SP: Unicamp, 2021. p. 187-202. Disponível em: chrome-
extension://efaidnbmnnnibpcajpcglclefindmkaj/https://www.eco.unicamp.br/images/publicacoes/Livros/centros-
e-nucleos/facetas_do_trabalho_no_brasil_contemporaneo.pdf Acesso em:25 mar. 2023
MACHADO, Sidnei; ZANONI, Alexandre. P. (org.). O trabalho controlado por plataformas digitais:
dimensões, perfis e direitos. Curitiba: UFPR: Clínica Direito do Trabalho, 2022.
KOZINETS, Robert. V. Netnografia: Realizando pesquisa etnográfica online. Porto Alegre: Penso, 2014.
MARX, Karl. O Capital: crítica da economia potica. São Paulo: Boitempo, 2013.
SRNICEK, Nick. Platform Capitalism. Cambridge: Polity Press, 2017.
Documentos jurídicos
TWITCH Interactive. Terms of Service. California, 2021. Disponível em: http://www.twitch.tv/p/en
/legal/terms-of-service/. Acesso em: 24 ago. 2022.
TWITCH Interactive. Twitch Affiliate Agreement. California, 2019. Disponível em: https://www.twitch.tv/p/en
/legal/affiliate-agreement/. Acesso em: 24 ago. 2022.
Sites
STREAMCHARTS. Disponível em: streamscharts.com/ Acesso em: 02 jun. 2022.
TWITCH. Disponível em: twitch.tv. Acesso em:02 jun. 2022.
TWITCH TRACKER, Disponível em: twitchtracker.com. Acesso em:02 jun. 2022.
182
Recebido em 03/08/2023
Aceito em 30/10/2023