ISSN 1517-5901 (online)
POLÍTICA & TRABALHO
Revista de Ciências Sociais, nº 59, Julho/Dezembro de 2023, p. 226-248
AS CLASSES SOCIAIS NA TEORIA DE ERIK OLIN WRIGHT E O
PROGRAMA MARXISTA DE PESQUISA CIENTÍFICA
´
SOCIAL CLASSES IN ERIK OLIN WRIGHTS THEORY AND THE MARXIST
SCIENTIFIC RESEARCH PROGRAM
____________________________________
Mateus Azevedo
Paula Marcelino

Resumo
O tema do artigo é a teoria das classes sociais de Erik Olin Wright. Nosso objetivo é avaliar, a partir do
programa de pesquisa marxista elaborado pelo sociólogo Michael Burawoy, quais aspectos específicos e
conceitos da obra de Wright possuem maior relevância e consisncia no tratamento de dois temas presentes em
um dos postulados teóricos centrais do marxismo: aquele que afirma que a luta de classes é o motor da história.
Os dois temas são: a) o papel das classes na reprodução e na transição entre modos de produção e b) o problema
das classes médias para o marxismo, isto é, a expansão de posições interpostas entre burguesia e proletariado na
divisão social do trabalho em sociedades capitalistas avançadas. Defenderemos a tese de que Wright, ao se
apropriar da problemática da estratificação social em sua teoria de classes, acaba se afastando do postulado
central do marxismo que é aquele da luta de classes como motor da hisria. Isso ocorre porque Wright abandona
a tese da constituição relacional das classes sociais ou seja, a ideia de que elas se constituem através da
contradição de interesses determinados pela sua posição na divisão social do trabalho , assim como abandona
as ideias de polarização e de conflito político transformador, contidas na base da teoria de classe marxista. O
artigo foi elaborado a partir de uma pesquisa de natureza bibliográfica e teórica.
Palavras-chave: Classes sociais. Estratificação social. Erik Olin Wright. Teoria marxista.
Abstract
The subject of the article is Erik Olin Wright's theory of social classes. Our aim is to evaluate, from the Marxist
research program elaborated by the sociologist Michael Burawoy, which specific aspects and concepts of
Wright's work have greater relevance and consistency in the treatment of two themes present in one of the
central theoretical postulates of Marxism: the one that affirms that class struggle is the engine of history. The two
themes are: a) the role of classes in the reproduction and transition between modes of production and b) the
problem of the middle classes for Marxism, that is, the expansion of interposed positions between bourgeoisie
and proletariat in the social division of labor in advanced capitalist societies. We will defend the thesis that
Wright, by appropriating the problem of social stratification in his class theory, ends up moving away from the
central postulate of Marxism, which is that of class struggle as the engine of history. This is because Wright
abandons the thesis of the relational constitution of social classes that is, the idea that they are constituted
through the contradiction of interests determined by their position in the social division of labour as well as
abandoning the ideas of polarization and transformative political conflict, contained in the basis of Marxist class
theory. The article is based on bibliographical and theoretical research.
Keywords: Social classes. Social stratification. Erik Olin Wright. Marxist theory.
____________
Possui mestrado em sociologia pelo Programa des-Graduação em Sociologia da Universidade de São Paulo.
Atualmente, integra, enquanto pesquisador, o GP ―Luta: Estudo e pesquisa sobre classes sociais, sindicalismo e
gênero no Brasil contemporâneo (CNPq), liderado pela Profa. Dra. Paula Marcelino. E-mail:
mateusmga@hotmail.com

Professora do Departamento de sociologia da USP. Editora da revista Crítica Marxista (São Paulo) e
coordenadora do GP Luta (CNPq) e do Centro de Estudos dos Direitos da Cidadania (Cenedic/USP). Autora de
artigos e livros sobre sindicalismo, terceirização e precarização do trabalho. Para mais informações de currículo,
ver: http://lattes.cnpq.br/5794537264211714. E-mail: prpmarcelino@gmail.com
AZEVEDO, M.; MARCELINO, P.
__________________
O tema, o autor, a “régua epistemológica”
1
Em sociologia, a temática das classes sociais ocupa um lugar de destaque desde Karl
Marx e Max Weber a os desenvolvimentos contemporâneos de John Goldthorpe, Pierre
Bourdieu e o próprio Erik Olin Wright. Atualmente, podemos afirmar que a obra desse último
autor representa, tanto para o marxismo quanto para a sociologia em geral, uma das mais
importantes referências sobre o tema. Ademais, dentro do campo marxista, a proeminência da
abordagem neomarxista das classes de Wright é inconteste. Sua obra pode ser entendida como
o segundo projeto mais ambicioso em sistematizar uma teoria das classes sociais marxista,
atrás apenas dos desenvolvimentos de Nicos Poulantzas, o primeiro grande esforço de
sistematização teórica do uso prático da noção de classe nos clássicos do marxismo, como
aponta Wright (1993).
Neste texto vamos analisar a obra de Wright a partir de parâmetros indicados na
epistemologia dos programas de pesquisa de Michael Burawoy, o que nos permite avaliar, de
maneira sistemática, em que medida a teoria das classes de Wright se distancia ou se concilia
com o postulado teórico central do programa marxista de pesquisa da luta de classes como
motor da história. A proposta de Burawoy inscreve-se em uma tradição epistemológica que se
estende dos trabalhos de Thomas Kuhn a Imre Lakatos; seguindo-a, nosso autor afirma que
há, em todo campo científico, um certo dogmatismo e convenção que guiam o avanço da
ciência (Burawoy, 1995). Portanto, se por um lado avaliar o distanciamento teórico de Wright
do programa de pesquisa marxista não invalida a sua relevância para outros campos de
pesquisa, a exemplo da teoria da estratificação, por outro, nos permite avaliar em que medida
as contribuições do autor possui relevância para o desenvolvimento interno à teoria marxista.
O desenvolvimento teórico é, para qualquer teoria social, uma tarefa de primeira hora. A
―régua epistemológica‖ de Burawoy, portanto, nos será muito útil.
Assim, no intuito de fazer avançar a teoria das classes sociais no geral e a teoria
marxista das classes sociais, em específico, o principal objetivo do artigo é analisar quais
aspectos específicos e conceitos mobilizados pelo sociólogo estadunidense Erik Olin Wright
em sua teoria das classes sociais possuem maior relevância e consistência, segundo o
programa de pesquisa marxista elaborado pelo sociólogo estadunidense Michael Burawoy em
____________
1
Este texto é parte revisada e modificada da dissertação de mestrado intitulada ―A teoria das classes sociais no
marxismo: um estudo comparativo das abordagens de Nicos Poulantzas e Erik Olin Wright‖, defendida por
Mateus Azevedo, no ano de 2022, no Programa de Pós-graduação em Sociologia da USP.
227
Cosmovisões e territórios:
Abya Yala como Território Epistêmico
1990, no tratamento de dois temas que envolvem um dos postulados teóricos centrais do
marxismo, qual seja, aquele que afirma que a luta de classes é o motor da história. Os dois
temas são: i) o papel das classes na reprodução e na transição entre modos de produção e ii) o
―problema das classes médias‖ para o marxismo, isto é, a expansão de posições interpostas
entre burguesia e proletariado na divisão social do trabalho em sociedades capitalistas
avançadas algo que, a princípio, contesta a tese marxista da polarização de classes,
presente, por exemplo, em O Manifesto Comunista. O primeiro tema envolve diretamente o
postulado da luta de classes como motor da história, pois trata da relação entre a transição e as
classes, o que, por consequência, cria a necessidade de se pensar as classes em períodos de
reprodução do modo de produção. O segundo tema, o problema das classes médias, por sua
vez, refere-se diretamente a uma anomalia (refutação), ou instância empírica contestatória,
que se impôs à teoria de classes marxista durante o século XX. Essa anomalia contestava a
hipótese de polarização das classes entre burguesia e proletariado, pois o próprio
desenvolvimento histórico do capitalismo teria impulsionado a expansão de um terceiro
conjunto de trabalhadores assalariados, a classe média. A expansão histórica dessa classe foi
utilizada como instrumento de contestação da tese da polarização de classes e,
consequentemente, da ideia de que a luta de classes é o motor da história. Isso porque, sem a
polarização e o conflito entre as duas classes fundamentais do capitalismo, o haveria
transição para uma outra forma de sociedade.
Marxismo e ciência: o programa marxista de pesquisa científica em Michael Burawoy
Na década de 1990, Burawoy elaborou uma epistemologia e uma concepção de
desenvolvimento da ciência por meio da incorporação crítica da metodologia dos programas
de pesquisa científica desenvolvida pelo filósofo húngaro Imre Lakatos (1989). A onde
sabemos, Burawoy (1990) é o primeiro e único autor, no campo de debates em epistemologia
marxista, a sistematizar o que seriam os postulados teóricos centrais de um programa marxista
de pesquisas. Devemos admitir que, de certa maneira, em Althusser (2017) formulações
que se aproximam da elaboração de tal programa, visto que o autor estabelece o parâmetro de
desenvolvimento da teoria marxista assentado em um certo conjunto de obras (teóricas e
práticas), conceitos e teses que servem como ponto de referência e partida para o
desenvolvimento do marxismo.
De acordo com Althusser (2017), o marxismo deve se desenvolver a partir da
resolução das inadequações de determinados conceitos encontrados em estado ptico nas
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AZEVEDO, M.; MARCELINO, P.
__________________
obras clássicas. Dessa forma, por meio da retificação, produção e sistematização, esses
conceitos devem ser transformados em conceitos novos e mais adequados. A epistemologia de
Althusser (2017) guarda semelhanças com a noção de programa de pesquisa em Burawoy (e
Lakatos) na medida em que propõe um referencial teórico, as obras clássicas de Marx e
Engels, sobre o qual a ciência deve se desenvolver. Entretanto, ao contrário de Burawoy
(1990), Althusser (2017) não chega a estabelecer os postulados que devem ser defendidos e
desenvolvidos pelo marxismo. Os postulados apontados por Burawoy, assim, permitem a
agenda de pesquisa na qual se insere o presente texto: analisar em que medida a teoria das
classes sociais de Erik Olin Wright é mais ou menos progressiva em relação aos postulados
centrais do que seria, de fato, um programa marxista de pesquisa. Ela está inserida no corpo
teórico marxista? Contribui para avançá-lo?
Para Lakatos (1989), inspiração de Burawoy na determinação do programa marxista
de pesquisa, a ciência se desenvolve por meio da refutação das refutações dos postulados
centrais do núcleo teórico de um programa. Nesse sentido, a ciência não se desenvolveria a
partir de refutações de conjecturas especulativas o que define o conceito de falsificação em
Popper (1972), por exemplo mas pela defesa de um núcleo teórico contra anomalias que se
dirigem aos postulados desse núcleo. Como aponta Burawoy (1990), Lakatos (1989) não
defende que os cientistas devem apenas resolver instâncias contestatórias que coloquem em
xeque o núcleo central do programa de pesquisa, mas sim perseguir constantemente novas
anomalias, que o próprio desenvolvimento da ciência aconteceria a partir das resoluções
sucessivas delas. Na visão de Lakatos (1989), portanto, são as anomalias que impulsionam o
programa de pesquisa e permitem a expansão de seu conteúdo empírico.
Lakatos (1989, p. 4) argumenta que todo programa de pesquisa possui uma
heurística, um ―maquinário poderoso‖ para resolução de problemas que é capaz de ―digerir‖
as anomalias e até mesmo transformá-las em evidência. Conforme afirma Burawoy (1990), a
heurística dos programas de pesquisa estabelece os seus princípios de desenvolvimento.
Lakatos (1989, p. 47) desenvolve dois tipos principais de heurística, a negativa e a positiva.
A heurística negativa seria responsável por estabelecer que o núcleo duro‖ do programa de
pesquisa deve ser defendido a qualquer custo. a heurística positiva determina as
ferramentas e caminhos de pesquisa mediante os quais o núcleo duro do programa deve ser
defendido (Lakatos, 1987, 1989). Ou seja, essa heurística define os modelos e hipóteses
auxiliares o cinturão de defesa que são desenvolvidos para lidar com as anomalias que
ameaçam o núcleo central do programa. A heurística positiva é responsável, também, por
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Cosmovisões e territórios:
Abya Yala como Território Epistêmico
estabelecer os problemas e guiar os cientistas na busca das anomalias mais importantes a
serem resolvidas (Lakatos, 1987, p. 25-26).
A partir do estabelecimento da heurística dos programas de pesquisa, Lakatos (1987,
p. 28) desenvolve uma distinção entre dois tipos de programas: os progressivos e os
degenerados. Nos programas de pesquisa progressivos, a expansão dos cinturões teóricos
deve levar ao aumento do conteúdo empírico do programa. Isso acontece não pela
resolução de anomalias, mas também pela capacidade de antecipar e predizer um certo
número de fatos com sucesso. Já os programas de pesquisa degenerados ou estagnados barram
anomalias por intermédio de explicações ad hoc ou da ―redução do escopo teórico‖ do
programa, muitas vezes cedendo explicações e hipóteses aos programas de pesquisa rivais
(Burawoy, 1990, p. 778).
Com o objetivo de estabelecer um programa de pesquisa marxista, Burawoy (1990)
expande certos aspectos epistemológicos que, segundo ele, não foram bem desenvolvidos por
Lakatos (1987, 1989). Segundo Burawoy, a teoria dos programas de pesquisa de Lakatos foi
pensada para a compreensão das ciências exatas, abordando as ciências humanas apenas de
forma indireta. Ainda, para esse autor, tanto o núcleo duro quanto o cinturão protetivo dos
programas de pesquisa em ciências humanas/sociais se estabelecem lentamente, mediante
sucessivas tentativas e erros. Ao longo de seu processo de formação, o núcleo duro deve ser
entendido como uma família de núcleos que se sobrepõem e, normalmente, competem entre
si, dando origem, dessa maneira, a diferentes ramificações em um único programa de
pesquisa. Cada uma dessas ramificações, segundo o autor, reconstrói o núcleo de uma forma
diferente.
Ainda tratando das ciências sociais, Burawoy (1990) afirma que as anomalias são
geradas mais externamente do que internamente. Na perspectiva dele, as mudanças históricas
são as principais fontes externas de anomalias que impõem a construção de novos cinturões
teóricos aos programas de pesquisa. Como veremos posteriormente, esse é o caso justamente
de um dos temas que abordamos neste artigo: o tratamento dado por Wright ao problema das
classes médias.
Consideramos ser preciso ainda justificar um último aspecto de nossa escolha em
relação à teoria dos programas de pesquisa marxista propostos por Burawoy (1990).
Obviamente o postulado da luta de classes como motor da história não é o único apresentado
por ele. seis outros postulados propostos pelo autor (Burawoy, 1990, p. 780, grifos do
autor): 1) ―para que haja história, homens e mulheres devem transformar a natureza em meios
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de sobrevivência, ou seja, eles devem produzir seus meios de existência‖; 2) ―a ‗base
econômica‘ ou modo de produção define os limites de variação da superestrutura‖; 3) ―um
modo de produção se desenvolve através da interação entre as forças produtivas (como
produzimos os meios de existência) e as relações de produção (como o produto do trabalho é
apropriado)‖ (terceiro postulado); 4) ―uma transição bem sucedida pode ocorrer quando as
condições materiais estão presentes‖; 5) ―a história é progressiva, na medida em que segue a
expansão das forças produtivas‖ ; por fim, 6) ―o comunismo prediz o fim dos antagonismos
sociais e o início da emancipação do indivíduo‖. Diante de todos esses postulados,
escolhemos o postulado da luta de classes como motor da história como parâmetro de
avaliação das abordagens de classes de Wright em função de ele ser o único que versa
diretamente sobre as classes sociais.
Wright e o marxismo analítico: o compromisso com normas científicas convencionais
Wright (1997) afirma que o principal objetivo da análise das classes sociais é tentar
compreender tal noção como uma variável independente, capaz de explicar uma ampla gama
de fenômenos sociais. Podemos afirmar, portanto, que esse é realmente um fator distintivo de
sua obra em relação à noção de classes sociais, na medida em que esse controle teórico e de
definição de variáveis será uma preocupação constante do autor. Burawoy (2020) traz uma
explicação para essa preocupação na obra de Wright: ela estaria ligada à necessidade de
aproximar o marxismo do campo intelectual acadêmico norte-americano, então dominado
pelo funcionalismo de Talcott Parsons e Paul Lazarsfeld. Burawoy (2020) destaca que essa
preocupação tem reflexos significativos na obra de Wright, uma vez que o autor centra grande
parte de suas escolhas metodológicas em pesquisas quantitativas. Seu objetivo seria conferir
legitimidade ao marxismo em um ambiente a ele hostil e, para isso, Wright teria aderido ao
marxismo analítico
2
, igualmente preocupado com normas científicas convencionais da
sociologia.
Assim, Wright (1995, p. 16) e o marxismo analítico nutrem ceticismo em relação a
uma suposta ―metodologia marxista distintiva‖, isto é, uma metodologia única ―dialética,
____________
2
Para Wright (1995), o marxismo analítico nasce do campo mais amplo do marxismo acadêmico nos anos 1970.
Naquela época, o filósofo inglês Gerald Cohen organiza, juntamente com John Roemer, encontros, reunindo os
principais teóricos do que viria a ser o marxismo analítico, tais como Adam Przeworski, John Ester e Erik Olin
Wright. Apenas em 1986, o termo marxismo analítico apareceria; isso em uma coletânea organizada por Roemer
(1986).
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Abya Yala como Território Epistêmico
histórica, materialista, antipositivista e holista‖ em contraposição à ―ciência social burguesa‖
―não dialética, a-histórica, idealista, positivista e individualista.‖ Ao mesmo tempo, Wright
insiste que ―o mais valioso no marxismo são suas afirmações substantivas sobre o mundo, não
sua metodologia‖. Para Cohen (2013, p. 20), o marxismo analítico pode ser entendido em dois
sentidos: um amplo, que faz oposição ao termo dialético, e um estrito, que seria o oposto de
um pensamento holístico. Essas duas compreensões analíticas teriam possibilitado a fuga dos
marxistas em direção a metodologias científicas convencionais pouco aceitas pelo campo
marxista ―tradicional‖. A abordagem de classes de Wright seria um exemplo disso.
Como veremos nas próximas seções, o compromisso de Wright com as normas
científicas convencionais influenciou suas escolhas metodológicas em relação à abordagem de
classes. Entendemos que essa noção de compromisso com normas científicas convencionais
leva Wright a se apropriar da teoria da estratificação social, elemento que julgamos pouco
consistente com a ideia marxista de classe social, ou seja, de que as classes se conformam
relacionalmente e em oposição. Para compreendermos a apropriação de Wright da teoria da
estratificação, é preciso entender seu conceito de exploração.
O conceito de exploração de Erik Olin Wright
Podemos afirmar que o conceito de exploração se encontra na origem da teoria das
classes sociais de Wright (1997). Para o autor, é através da relação específica de exploração
que se conformam os interesses antagônicos determinantes das diferentes localizações de
classe em distintos modos de produção. Será, portanto, através de certas modificações na
teoria da exploração do economista estadunidense John Roemer (1982a, 1982b) para quem
a desigualdade em torno de ativos ou recursos produtivos de diversos tipos pode ser entendida
como o elemento central da teoria da exploração que Wright (1997, 1998) construirá seu
modelo de análise de classes.
Roemer (1982b, p. 276) utiliza a teoria dos jogos cooperativos para construir sua
teoria geral da exploração. O autor parte da seguinte condição para definir se um indivíduo ou
um grupo de indivíduos é ou não explorado: ―eu proponho que um grupo pode ser concebido
como explorado caso haja alguma alternativa condicionalmente factível sob a qual seus
membros estariam em uma situação melhor‖ (Roemer, 1982b, p. 276). A partir dessa
premissa, o autor propõe um jogo performado por uma coalizão de agentes em determinado
tipo de economia. Uma coalizão de agentes teria o direito de se retirar ou de participar da
economia específica que está sendo tratada (Roemer, 1982b, p. 276). Assim, se uma
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determinada coalizão consegue melhorar a condição de seus membros por meio de sua
retirada da economia (ou do jogo), podemos dizer que essa coalizão é explorada. Para
que a definição de exploração em Roemer (1982a, 1982b) se conclua, é importante que se
preencha uma outra premissa: o complemento da coalizão explorada deve ter sua situação
piorada caso se retire do jogo.
Wright (1998) inicia uma reelaboração da teoria de Roemer partindo da reformulação
do ativo produtivo em torno do qual acontece a exploração feudal. Esses ativos se consistem
nos recursos próprios dos servos e no lote familiar. Para Roemer (1982), a exploração feudal
ocorreria se uma coalizão feudal fosse capaz de melhorar sua situação depois de se retirar do
jogo feudal e levar consigo seus ativos pessoais. Wright (1998), por sua vez, entende que a
exploração feudal pode ser caracterizada de outra maneira e toma a força de trabalho como o
recurso produtivo em torno do qual a exploração feudal se desenvolve. O autor argumenta que
a força de trabalho no feudalismo seria um recurso produtivo dividido desigualmente. Os
servos o possuíam propriedade total sobre a sua força de trabalho, pois parte do controle
desse recurso se encontraria nas mãos dos senhores feudais (Wright, 1998). Essa situação
difere do capitalismo, em que todos os indivíduos possuem o controle total sobre a sua força
de trabalho e todos os trabalhadores possuem ao menos uma unidade de força de trabalho
(Wright, 1998). Já no feudalismo isso não ocorreria, pois os servos possuíam menos de uma
unidade de força de trabalho. Dessa maneira, a exploração feudal é compreendida como a
desigualdade na distribuição de ativos em força de trabalho (Wright, 1998). Essa
reformulação de Wright (1998) traz simetria aos diferentes tipos de exploração analisados na
obra de Roemer (1982a), pois cada ativo produtivo passa a ser entendido por meio de uma
relação de propriedade. Dessa forma, Wright (1998) pôde estabelecer a correspondência entre
os diferentes tipos de exploração e as relações de classes específicas que cada tipo de
exploração estabelece. Ou seja, Wright (1998) pôde definir as duas classes principais de cada
modo de produção: no feudalismo, senhores e servos; no capitalismo, burguesia e
proletariado; e, no socialismo, especialistas e trabalhadores (Wright, 1998).
Contudo, para Wright (1998), ainda existe um segundo problema na teoria da
exploração de Roemer (1982a) que estaria relacionado à exploração no socialismo ―realmente
existente‖, ou seja, a União Soviética. Segundo Roemer (1982a), nessa sociedade onde a
propriedade privada dos meios de produção havia sido abolida, persistiam desigualdades que
dificilmente poderiam ser associadas apenas às desigualdades em relação a ativos de
qualificação não alienáveis, ou seja, às credenciais escolares e habilidades escassas dos
233
Cosmovisões e territórios:
Abya Yala como Território Epistêmico
trabalhadores. Assim, para dar tratos à questão da exploração no ―socialismo existente‖,
Roemer (1982a, p. 243) mobiliza o conceito de exploração de status, cuja figura típica seria
a exploração exercida pela burocracia estatal sobre os trabalhadores. Nesse tipo de
exploração, as desigualdades de remuneração estariam ligadas às posições ocupadas por
certos indivíduos no aparelho burocrático, o que não teria necessariamente a ver com as
qualificações necessárias para exercer as funções demandadas por tais posições. Caso as
remunerações estivessem associadas ao nível de qualificação dos agentes que ocupam
determinadas posições, poder-se-ia afirmar que este seria um aspecto do tipo de exploração
socialista. Contudo, para Roemer (1982a, p. 243) esse não seria necessariamente o caso do
―socialismo realmente existente‖, em que as remunerações especiais dos detentores de
determinadas posições na burocracia dariam origem à exploração de status.
Assim, Roemer (1982a) aplica o dispositivo da teoria dos jogos para avaliar se
determinada coalizão é status-explorada (status-exploited). Podemos considerar tal coalizão
como explorada caso ela consiga melhorar a situação de seus membros retirando-se do jogo
do ―socialismo existente‖, levando consigo apenas seus ativos pessoais e isentando-se
totalmente das obrigações de status. Wright (1998, p. 15), entretanto, demonstra que essa
definição de exploração de status em Roemer (1982a) é insatisfatória por duas razões
principais: a primeira estaria associada ao fato de que cada tipo de exploração apresentado por
Roemer (1982a, 1982b) possui uma relação direta com as forças produtivas. Isso quer dizer
que seriam conceitos materialistas, ou seja, capazes de explicar a distribuição de recursos
produtivos das sociedades (Wright, 1998, p. 15-16). A segunda razão diz respeito ao fato de
que seria difícil distinguir esse tipo de exploração da exploração feudal. Os senhores feudais
são remunerados o por suas qualificações escassas ou pela propriedade privada de capital,
mas sim pela incumbência de sua posição. Ainda assim, segundo Wright (1998), não seria
razoável considerar igualmente a lógica da exploração de classe na União Soviética e na
Europa do século XIV.
Wright (1998) resolve o problema da exploração de status mediante a introdução de
um quarto ativo de produção designado de ativos de organização. A base para essa
reformulação estaria na compreensão de que a divisão técnica do trabalho, enquanto a forma
pela qual o processo produtivo é organizado, pode ser considerada como uma fonte de
produtividade (Wright, 1998). No capitalismo contemporâneo, os ativos de organização são
controlados pelas gerências e pelos capitalistas. Para Wright (1998), apesar de controlarem a
organização da produção, os gerentes estariam em uma posição de classe inferior à dos
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AZEVEDO, M.; MARCELINO, P.
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capitalistas, que controlam a organização dentro de unidades produtivas sob
constrangimentos da propriedade econômica do capital. no socialismo burocrático de
Estado, tal como entende Wright, os ativos de organização assumem um papel mais
importante, pois o controle técnico da produção passa a ser uma tarefa organizada de forma
centralizada (planificação econômica central) (Wright, 1998). Segundo Wright (1998), a
exploração no socialismo burocrático de Estado tem como base o poder burocrático ligado aos
órgãos estatais de planificação econômica. Assim, a base material para as relações de classe
passa a ser os ativos de organização.
Após determinar os ativos produtivos em torno dos quais a exploração se dá em
diferentes tipos de sociedade, Wright (2015, p. 38) elabora três princípios fundamentais para
estabelecer se realmente há relação de exploração: i) ―o princípio do bem-estar
interdependente inverso‖, o que significa que o bem-estar de um (explorador) depende
causalmente da privação de outros (explorados); ii) ―o princípio da exclusão‖, ou seja, a
exclusão de acesso dos explorados a certos ativos de produção é condição da interdependência
inversa, tal como visto acima; e, por fim, iii) ―o princípio da apropriação‖ relacionado à
apropriação dos resultados do esforço de trabalho dos explorados pelos exploradores. A
exploração, nesse sentido, é compreendida como uma relação de necessidade e dependência
do explorador em relação ao explorado. Esses elementos da teoria da exploração de Wright
são importantes para nosso argumento porque veremos como a apropriação da teoria da
estratificação contradiz, em grande medida, seus próprios princípios e, ao mesmo tempo, está
na base de seu distanciamento do postulado marxista da luta de classes como motor da
história.
Exploração e estrutura de classes
Como descrevemos na seção anterior, Wright (1998) afirma que, no capitalismo, a
exploração ocorre em torno de três ativos produtivos principais, que estão distribuídos
desigualmente ao longo da estrutura de classes: os meios de produção, os ativos de
organização e os ativos de qualificação. A partir da exploração em torno desses três ativos,
Wright (1997) deriva seu conceito de estrutura de classes em sociedades capitalistas
avançadas. Primeiramente, teríamos duas localizações de classe principais polarizadas entre
proprietários e não proprietários, ou seja, ligadas à distribuição desigual de direitos e poderes
sobre os meios de produção. A ―classe média‖ ocuparia localizações contraditórias na
estrutura de classes. Segundo Wright (1998), essa localização contraditória é dada tanto por
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Cosmovisões e territórios:
Abya Yala como Território Epistêmico
ela estar excluídas da propriedade dos meios de produção (como os trabalhadores) quanto por
terem interesses divergentes da classe trabalhadora em função de seus direitos e poderes sobre
ativos de organização e ativos de qualificação. Essa tese permite a Wright (1997, p. 25)
elaborar seu mapa de localizações de classe em sociedades capitalistas avançadas que, em sua
forma principal, possui seis localizações de classe: no campo dos detentores dos meios de
produção, teríamos, a pequena burguesia (nenhum empregado) e os capitalistas (muitos
empregados). No campo dos ativos de organização e qualificação teríamos os gerentes
especializados, especialistas, gerentes não especializados e os trabalhadores. É por meio
desse mapa que Wright (1997) terá o instrumental teórico capaz de controlar o papel do
conceito de classe social como variável independente em suas análises empíricas.
No que diz respeito à noção de qualificação em Wright (1997), acreditamos que
uma divergência em relação ao postulado teórico da luta de classes como motor da história.
Essa divergência ocorre porque a posição dos ativos de qualificação não se concilia bem com
os critérios da teoria da exploração do próprio Wright (1997), ao mesmo tempo que não é
coerente com a noção relacional das classes sociais no marxismo. Desse modo, a exploração
socialista, entendida como um critério de análise das classes segundo o qual se possui mais ou
menos qualificações, indica uma apropriação da abordagem da estratificação social por
Wright (1997). Nele, as classes sociais são pensadas enquanto estratos em uma hierarquia
contínua de níveis. Em Class Counts, Wright (1997) deixa clara essa posição:
Incorporar habilidades dessa maneira à análise de classes, de certa forma, borra a
distinção aguda entre uma análise de classes relacional e uma análise de classes
gradual estratificada. Habilidades, antes de tudo, variam mais ou menos de forma
contínua alguém pode ter mais ou menos habilidades. ―Níveis‖ de habilidades,
assim, sugerem estratificação em uma estrutura de desigualdade, mais do que
localizações em uma estrutura de relação de classes. A análise de classes proposta
aqui, portanto, tenta combinar uma explicação das relações sociais que constituem o
atributo de classe da estrutura de classes com uma explicação dos processos que
geram estratificação nas localizações de classe (Wright, 1997, p. 19, grifos do autor).
A partir disso, podemos elencar alguns problemas da apropriação por Wright (1997)
da teoria da estratificação. Em primeiro lugar, a abordagem da estratificação se concilia mal
com os próprios pressupostos teóricos da exploração, vistos na seção anterior. É difícil
compreender como haveria exploração em torno de qualificações mediante o princípio do
bem-estar interdependente inverso. Isto é, como o bem-estar de indivíduos mais qualificados
dependeria da privação dos menos qualificados? Do mesmo modo, não é clara a maneira pela
qual os mais qualificados excluem os menos qualificados dos ativos de qualificação. Esse
236
AZEVEDO, M.; MARCELINO, P.
__________________
elemento de exclusão, por exemplo, é claro em relação aos meios de produção, pois os
proprietários dos meios de produção realmente excluem os não proprietários de seu acesso;
mas não é tão evidente em outros, como no caso da relação entre especialistas e não
especialistas, por exemplo, de um professor universitário e um operário. Por fim, no que diz
respeito à apropriação do sobretrabalho, Wright (1998) ainda tenta argumentar que poderia
haver apropriação pelos mais qualificados dos menos qualificados em situações em que
escassez de certas qualificações em relação à demanda. Os portadores de qualificações
escassas receberiam uma remuneração maior que os custos de reprodução da sua força de
trabalho, o que, segundo Wright (1998), demonstraria a transferência de trabalho entre esses
agentes. Contudo, de acordo com os critérios do próprio Wright (2015), não é possível afirmar
que realmente uma relação de exploração em torno dos ativos de qualificação, mesmo que
haja apropriação. Isso porque, como ele argumenta, todos os três critérios bem-estar
interdependente, exclusão e apropriação devem ser preenchidos para que se possa realizar
um diagnóstico de exploração (Wright, 2015).
De fato, não fomos os primeiros a notar problemas nessa formulação de Wright sobre
a exploração. Santos (2002) e Bertoncelo (2009) também apontam para o fato de que não fica
claro, nas formulações de Wright (1997), como o processo de exploração se em torno dos
ativos de qualificação. Portanto, concordamos com Bertoncelo (2009) quando afirma que,
pela maneira como Wright (1997) aborda o problema das qualificações, parece que os
portadores desse ativo produtivo estão apenas em melhores condições de resistir à exploração
capitalista.
Assim, consideramos que a noção de qualificação construída por Wright a partir da
problemática da estratificação social está em desacordo com um dos postulados teóricos do
programa de pesquisa marxista: a luta de classes é o motor da história. A concepção das
classes enquanto estratos não consegue estabelecer interesses contraditórios, que são a base do
conceito de luta de classes. Nesse sentido, o conceito de exploração em torno de recursos de
qualificação pode ser apreendido como um elemento degenerativo para o programa de
pesquisa marxista tal como proposto por Burawoy (2020).
Para além dos problemas mais específicos do conceito de exploração, numerosas
críticas foram dirigidas ao procedimento metodológico de formulação dos mapas de classes
elaborados por Wright. Críticas que, em certo sentido, fazem eco as nossas conclusões sobre o
elemento degenerativo da apropriação da teoria da estratificação pelo autor. Como salientou
Bertoncelo (2009), os mapas de classe acabam sendo proxy de posições em uma hierarquia
237
Cosmovisões e territórios:
Abya Yala como Território Epistêmico
ocupacional. O mesmo argumento é levantado de outra forma por Cavalcante (2012, p. 274),
para quem a pretensão de mapear as classes teve como resultado, no máximo, a produção de
um ―mapa profissional‖. Carchedi (1989) avança outro argumento contra os procedimentos
metodológicos utilizados por Wright (1997). O autor demonstra que, ao preencher as posições
de classe de seu mapa com categorias ocupacionais retiradas de um survey sobre condições
de trabalho realizado pela Universidade de Michigan em seus estudos empíricos sobre
classes e consciência, Wright (1997) iguala praticamente toda a sua abordagem de classes a
uma teoria da estratificação social. Segundo Carchedi (1989), com esse procedimento
metodológico (quantitativo), Wright (1997) conseguiria alcançar apenas uma posição estática
e determinística, tanto da estrutura como da consciência de classe.
Dessa forma, se o objetivo de Wright era propor uma solução (refutação da anomalia)
ao problema das classes médias (anomalia), apropriar-se da teoria da estratificação social nos
parece ter antes afastado Wright do marxismo do que ter refutado a anomalia a partir da
proteção do núcleo desse corpo teórico.
Classes e transição
Para compreender os problemas da noção de transição em Wright, precisamos explorar
brevemente as trajetórias de dois conceitos básicos que sofreram modificações ao longo da
obra do autor: interesses de classe e capacidades de classe. Wright (2015, p. 35) define
interesse de classe como ―os interesses materiais das pessoas decorrentes de suas situações
materiais dentro das relações de classe‖. Dessa forma, interesses materiais podem ser
entendidos como ―padrões de vida, condições de trabalho, nível de esforço, lazer, segurança
material e outras coisas‖ (Wright, 2015, p. 35). Os interesses dos agentes sobre esses fatores
podem ser descritos como interesses de classe na medida em que as oportunidades‖ e as
escolhas que as pessoas têm e realizam na busca desses interesses são estruturados pela sua
localização de classe. Segundo Wright (2015, p. 35), entender e descrever o interesse de
classes constitui o elo fundamental, entre ―as relações de classe e as ações dos indivíduos
dentro dessas relações de classe‖. Nesse sentido, a consciência de classe deve ser entendida
como ―o conhecimento subjetivo que as pessoas têm dos seus interesses de classe e das
condições para favorecê-los‖ (Wright, 2015, p. 35).
Um aspecto importante que devemos destacar sobre o elo entre estrutura e práticas de
classe está relacionado à maneira como Wright (2015) define a noção de interesses de classe e
238
AZEVEDO, M.; MARCELINO, P.
__________________
as consequências teóricas que essa definição possui para a formulação de seu conceito de luta
de classes. O interesse de classe, tal como desenvolvido pelo autor, engloba uma ampla gama
de atividades, o que, a nosso ver, faz com que se perca o conteúdo específico da noção de luta
de classes. Ou seja, em Wright (2015), como definido acima, o conceito de interesses de
classe faz referência a uma gama de aspectos da vida social que podem ser das mais diversas
ordens econômica, política, ideológica etc. Por isso, entendemos que a luta de classes
associada à realização desses interesses perde sua especificidade, pois pode versar sobre
qualquer âmbito da vida social. Wright (1997, 2015) perde de vista uma das distinções mais
importantes da teoria marxista concernente ao escopo da luta de classes: a distinção entre luta
política e luta econômica, ou seja, a luta que visa ao poder de Estado, realizada pelos
trabalhadores em torno de um partido político; e a luta econômica, realizada, principalmente,
pelos sindicatos. Acreditamos que o conceito de luta de classes em Wright (1997, 2015) perde
força, já que assume uma acepção genérica e ampliada, isto é, não deixa claro os objetivos aos
quais essa luta faz referência.
Todavia, devemos destacar que o autor nem sempre sustentou essa acepção genérica e
ampliada do conceito de interesses de classe. Em Class, Crisis and the State, de 1978, Wright
(1993) elabora uma diferenciação entre interesses imediatos e fundamentais de classe que se
aproxima muito da distinção entre luta econômica e luta política (Wright, 1993). Segundo
Wright (1993, p. 89-90), os interesses imediatos de classe podem ser definidos como
―interesses dentro dos limites de uma dada estrutura de relações sociais‖. os interesses
fundamentais seriam definidos pelos interesses que colocam em questão a própria estrutura
de relações sociais‖. Os exemplos trazidos pelo autor esclarecem a questão: os interesses
imediatos estariam ligados aos interesses econômicos dos trabalhadores, como lutas por
salário e melhores condições de vida e os interesses fundamentais estariam ligados, por
exemplo, à luta pelo socialismo (Wright, 1993). Ainda no centro dessa discussão, Wright
(1993) demonstra que esses dois tipos de interesse fazem referência a registros distintos da
análise: os interesses imediatos a um modo de produção dado (reprodução) e os fundamentais
à passagem entre os modos de produção (transição). Podemos notar que essa distinção entre
interesses imediatos e fundamentais é abandonada pelo autor a partir dos anos 1980, quando
ele define o conceito de interesses de classe de uma maneira, podemos dizer, ampliada
(Wright, 1997, 1998, 2015). Merece destaque, nesse aspecto, a obra Class Counts (1997), seu
trabalho de maior repercussão, no qual o autor define de maneira ampla o conceito de
interesses de classe. Nossa hipótese para o autor ter abandonado os conceitos de interesses
239
Cosmovisões e territórios:
Abya Yala como Território Epistêmico
imediatos e fundamentais está relacionada às pressões e à integração de Wright, como
afirmamos, ao contexto intelectual norte-americano. A teoria da estratificação social estava no
―coração‖ da teoria sociológica nos anos 1970 naquele país (Burawoy, 2020, p. 74). Segundo
Burawoy (2020), um processo geral na trajetória da abordagem de classes de Wright que o
leva progressivamente a se distanciar dos debates marxistas clássicos e a adotar uma posição
que conciliava diversas abordagens de classe (Wright, 2015).
Dessa forma, acreditamos que o abandono da distinção entre interesses imediatos e
fundamentais tenha feito parte desse processo, no qual o autor assume uma postura
desconcertantemente eclética e pouco atenta aos enquadramentos que derivam de uma
problemática teórica, como diria Althusser, ou de um programa específico de pesquisa
científica: ―Podemos ser weberianos no estudo da mobilidade de classe, adeptos de Bourdieu
no estudo dos determinantes classistas dos estilos de vida ou marxistas na crítica do
capitalismo (Wright, 2015, p. 209). Na nossa compreensão, não é possível nem desejável
escolher tão livremente ―o que há de melhor‖ em cada autor ou corrente teórica. A retificação
teórica, procedimento necessário para fazer avançar um corpo teórico diante de novas
evidências e até de conceitos exógenos, não é tão aberta assim.
Para dar sequência a nossa análise do elemento da transição na teoria das classes
sociais de Wright, devemos abordar as críticas que esse autor fez em trabalhos conjuntos
(Wright; Levine, 1980; Wright; Levine; Sober, 1992) à teoria do materialismo histórico
proposta por Gerald Cohen (2013). A crítica e os argumentos de Wright e Levine (1980) à
teoria da transição de Cohen desenvolvem-se mediante a introdução do conceito de
capacidades de classe na teoria da mudança histórica. Na visão desses autores, para a
construção de qualquer teoria da história adequada e consistente, é central entender como os
interesses de classe são traduzidos e transformados em práticas, o que ocorre através da
capacidade de classe, ou seja, aqueles recursos organizacionais, ideológicos e materiais
disponíveis para as classes na luta de classes‖ (Wright; Levine, 1980, p. 58).
A partir da noção de capacidades de classe, Wright e Levine (1980) atacam o
argumento de Cohen (2013) segundo o qual a transformação social dependeria, em primeiro
lugar, do desenvolvimento das forças produtivas. Para Cohen (2013), o desenvolvimento das
forças produtivas levaria, inexoravelmente, à formação da capacidade de classe necessária à
transformação social. Ou seja, na perspectiva do autor, o haveria espaço para qualquer tipo
de constrangimento ou coação social historicamente concreta que pudesse bloquear esse
processo. Isso ocorreria, segundo Wright e Levine (1980), porque a tese de Cohen (2013) é
240
AZEVEDO, M.; MARCELINO, P.
__________________
construída em cima de categorias trans-históricas. O elemento crucial da crítica aqui é a
utilização das categorias trans-históricas de escassez‖ e ―racionalidade instrumental‖ que
sustentam e são centrais para o argumento de Cohen (2013). Essas categorias não admitem
intervenção das condições concretas e dos contextos historicamente específicos, onde
poderiam estar envolvidas diversas formas de coação social capazes de constranger o
desenvolvimento da capacidade de classe.
Segundo Wright e Levine (1980), Cohen (2013) erra também ao reduzir a ideia de
capacidade de classes à de interesses de classe. Cohen (2013) pressupõe, segundo os autores,
que o desenvolvimento das forças produtivas levaria as classes dominadas a perseguirem
automaticamente e mecanicamente tais interesses. Cohen (2013) ainda defende que, em
momentos de transição, os interesses da classe mais adequada para dirigir o desenvolvimento
das forças produtivas acabam, em certa medida, por se identificar com os interesses gerais da
sociedade. Isso levaria as classes, até então apoiadoras da classe dominante no regime
anterior, a mudar de lado e passar a apoiar a nova classe que emerge triunfante do período de
mudança. Portanto, Wright e Levine (1980) depreendem que, para Cohen (2013), a
capacidade de classe está inteiramente atrelada aos interesses de classe e ao desenvolvimento
das forças produtivas. De acordo com a crítica elaborada por Wright e Levine (1980, p. 59) à
posição de Cohen (2013), não haveria um ―processo automático de desenvolvimento das
capacidades de classe enquanto consequência direta do desenvolvimento das forças
produtivas‖.
Wright e Levine (1980), portanto, apresentam uma crítica ao modelo de transição
exposto por Cohen (2013) que coloca no centro do debate sobre a transição a categoria de
capacidades de classe. O problema central identificado ao final da nossa análise estaria no fato
de que Wright e Levine (1980) não definem o escopo ao qual essa capacidade de classes faz
referência, ou seja, se faz referência à luta econômica ou à luta política. Wright e Levine
(1980) não desenvolvem profundamente esse tema dos objetos específicos da capacidade de
classe. Porém, como vimos, esse conceito vem sempre associado, nos autores, à noção de luta
de classes, e, conforme Wright (1997) desenvolve posteriormente, assume uma acepção que
poderíamos chamar de ampliada. Queremos dizer com isso que a luta de classes em Wright
(1997) não possui um objeto específico, tal como se apresenta em outros autores do
marxismo, como Lenin (2006) e Poulantzas (2019) ou seja, a luta política de classes que
objetiva o poder de Estado. Enquanto macroconceito derivado da noção de práticas de classe,
241
Cosmovisões e territórios:
Abya Yala como Território Epistêmico
a luta de classes em Wright (1997) pode assumir, desde que coletivamente, um caráter
econômico ou político ou ideológico na medida em que está associada diretamente a uma
noção ampliada de interesses de classe, tal como já definimos.
Acreditamos que a luta sindical/econômica não pode ser entendida, como Wright
(1997) o faz, como luta de classes; não, ao menos sem ser, antes, objeto de uma retificação
para que sua incorporação não cause contradições no núcleo da teoria marxista
3
. A luta
sindical/econômica, assim, o é ―o motor da história‖. Considerar a luta econômica por
aumento de salários como luta de classes stricto sensu está, a nosso ver, em contradição com
o postulado teórico da luta de classes. A luta por salários no capitalismo faz parte do conflito
reprodutivo ou funcional, como prefere Saes (2003). Tratá-la, portanto, como ―a‖ luta de
classes implicaria, na leitura que fazemos de Burawoy, abdicar da característica de motor da
história proposta pelo postulado do programa marxista de pesquisa. Ou melhor, ao considerar
qualquer tipo de conflito como luta de classes, Wright torna genérico o postulado teórico da
luta de classes e, em sua perspectiva, ela passa a ser também o motor da história e não mais o
motor da história.
Em nossa compreensão, nos textos após Class, Crisis and state, Wright (1993)
abandona a distinção entre interesses imediatos (reprodução) e interesses fundamentais
(transição) de classe. Essa distinção implicava, ainda no texto de 1978, uma diferenciação do
conceito de capacidade de classe. Wright (1993), naquele momento, dividia esse conceito em
dois: as capacidades de classe estruturais, ligadas ao próprio desenvolvimento histórico e
estrutural das sociedades, e as capacidades de classe organizacionais, derivadas da
organização consciente dos integrantes de determinada classe social (Wright, 1993, p. 99).
Assim, as capacidades organizacionais ―os vínculos reais entre os membros de uma classe
criados através da direção consciente de organizações de classe‖ (Wright, 1993, p. 101)
podiam ser entendidas como a noção de partido político distinto, diferente da organização que
realiza a luta de tipo econômico, o sindicato. Portanto, naqueles trabalhos, Wright mobilizava
conceitos que, a nosso ver, indicam uma defesa forte do postulado da luta de classes como
motor da história. Após esses textos, consideramos que Wright (1997, 1998) atenua esse
postulado mediante a utilização de um conceito ampliado de interesses de classe. A
____________
3
Entendemos que Boito Jr. (2018) busca fazer tal retificação. Deixaremos uma discussão pormenorizada sobre
esse tema para o futuro. Ela pode ser analisada, tal como o fizemos aqui, a partir da proposta de Burawoy para
um programa marxista de pesquisa.
242
AZEVEDO, M.; MARCELINO, P.
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abordagem ampliada de Wright (1997) do conceito de interesse de classe é um aspecto
menos progressivo de sua teoria de classes em relação ao programa marxista de
pesquisa.
Conclusões
Com o intuito de finalizar nossa discussão, devemos retomar em linhas gerais os
desenvolvimentos e as conclusões abordadas no artigo. Nosso trabalho teve como objetivo
avaliar de que maneira Wright se afastou ou se manteve em acordo com o postulado marxista
da luta de classes como motor da história. Primeiramente, a partir do instrumental
epistemológico de Burawoy (1990), tentamos demonstrar que Wright, ao tratar da exploração
em torno de recursos de qualificação, acaba se apropriando da problemática da estratificação
social. Ou seja, da ideia de que as classes sociais, enquanto portadoras de ativos de
qualificação desiguais, constituem estratos em uma escala linear dos mais aos menos
qualificados. Sustentamos que a apropriação da problemática da estratificação estaria, por um
lado, em desacordo com os próprios fundamentos da teoria da exploração do autor e, por
outro, com o postulado marxista da luta de classes como motor da história.
Assim, pensamos que é difícil comprovar que o princípio do bem-estar
interdependente inverso o bem-estar de um agente depende invariavelmente da privação de
outro seja válido no caso de agentes portadores de distintos graus de qualificação. Não é
possível afirmar sem incorrer em imprecisões comprometedoras que o bem-estar de pessoas
mais qualificadas é garantido pela privação de pessoas menos qualificadas.
Da mesma maneira, o critério da exclusão dificilmente se apresentaria na exploração
em torno de ativos de qualificação. Ou seja, pessoas mais qualificadas, apenas por serem mais
qualificadas, o excluem necessariamente as pessoas menos qualificadas da possibilidade de
conquistar uma maior qualificação. Relação de exclusão que é muito clara quando falamos em
proprietários dos meios de produção e o proprietários. Wright (1997) ainda tenta
demonstrar como haveria apropriação de sobretrabalho dos mais qualificados em relação aos
menos qualificados, que ocorreria pelo fato de as remunerações (skill rent) dos mais
qualificados ultrapassarem os custos da produção de suas qualificações e de sua reprodução.
Contudo, mesmo que se aceite essa ideia, como defende o próprio autor, para que haja
exploração, o princípio do bem-estar interdependente inverso, o princípio da exclusão e o
princípio da apropriação devem ser preenchidos.
243
Cosmovisões e territórios:
Abya Yala como Território Epistêmico
Nesse sentido, o caráter relacional da determinação de classes se perde na formulação
de Wright (1997) acerca da exploração em torno das qualificações. Isso nos levou a defender
o argumento de que tal critério estaria em desacordo com o postulado da luta de classes como
motor da história, que não havendo antagonismo e contradição de interesses, não haveria,
consequentemente, luta de classes para tomada do poder de Estado. Concluímos, portanto,
que tomar as classes sociais, no caso das qualificações, enquanto estratos em um contínuo
linear, seria uma apropriação degenerativa da teoria das classes de Wright (1997) em relação
ao programa marxista de pesquisa, já que Wright cede parte de sua explicação a um programa
de pesquisa rival (problemática da estratificação) que é incapaz de pensar de forma apropriada
o caráter relacional de constituição das classes e do conflito de classes.
Vale lembrar que Wright, em suas últimas obras ver, por exemplo, o livro de 2010
Envisioning real utopias , vai trabalhar de maneira mais aprofundada seu entendimento
sobre as formas de superação do capitalismo através da noção de utopias reais. Contudo,
nossa análise o aborda esse período da obra do autor, pois entendemos que o conceito de
utopias reais, enquanto instituições que realizam ―prefigurações socialistas dentro do
capitalismo‖ (Burawoy, 2020, p. 84), abandona a noção de classe social como elemento
central da transição entre modos e produção. O interesse do autor, naquele período, se volta
para processos de desmercantilização do trabalho, do dinheiro, da natureza e do conhecimento
que estariam sendo encampados por certas instituições: renda mínima universal (trabalho),
orçamento participativo (dinheiro), cooperativismo (natureza) e Wikipedia (conhecimento)
(Burawoy, 2020, p. 93). Portanto, as classes perdem seu espaço nos processos de superação
do capitalismo dando lugar às chamadas utopias reais, o que nos fez optar por não avaliar as
consequências teóricas e epistemológicas dessas últimas formulações do autor. Arriscamos a
dizer, contudo, que a ausência da problemática das classes sociais nessa última fase da
produção de Wright pode reforçar a tese que defendemos nesse artigo, a de que o autor se
distancia de um programa marxista de pesquisa científica.
A segunda questão importante que desenvolvemos ao longo do artigo está relacionada
diretamente às relações entre estrutura de classes e transição por meio do conceito de
interesses de classe na obra de Wright (1997). O problema que apresentamos é que Wright,
após os anos 1980, vai definir interesses de classe de modo ampliado. O conceito passa, então,
a versar sobre qualquer tipo de conflito, cultural, econômico, político, etc., ou seja, não versa
sobre conflitos que engendrariam, de fato, transições de modo de produção.
244
AZEVEDO, M.; MARCELINO, P.
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Na teoria do autor, a luta de classes passa a ser também o motor da história, ou seja,
um dentre outros, o que enfraquece um dos principais postulados marxistas. Isso ocorre
porque certos tipos de conflito englobados pelo conceito não estariam ligados à transformação
social, mas justamente ao seu contrário, à reprodução, como é o caso típico da luta sindical
por salários. A partir do momento em que os interesses de classe e a luta de classes podem
versar sobre praticamente todos os conflitos de interesse de uma sociedade, o espaço
reservado à transformação parece ser demasiadamente reduzido ou encoberto na teoria de
Wright (1997).
Dessa forma, concluímos que a concepção de Wright sobre as classes sociais e a
transição poderia ser caracterizada como um traço menos progressivo de sua teoria em
relação ao programa marxista de pesquisa, mais precisamente, em relação ao postulado da luta
de classes enquanto motor da história. Wright (1997) parece evitar a ideia marxista de luta de
classes enquanto luta revolucionária capaz de engendrar a transição entre modos de produção.
De fato, não fomos os primeiros a notar esse elemento da abordagem de classes do
autor. Como aponta Burawoy (2020), a grande aceitação da teoria de classes de Wright (1997)
no ambiente acadêmico norte-americano pode ser entendida a partir desses recuos realizados
pelo autor frente ao programa marxista de pesquisa. Recuos encontrados, por meio de nosso
trabalho, também na apropriação da teoria da estratificação e na construção de um conceito
ampliado de interesses de classe que encobre o caráter transformador da luta de classes. Como
afirma Burawoy (2020):
Tendo retirado a política do Marxismo, tendo deixado para trás as contradições do
capitalismo, tendo abandonado a história especialmente história no sentido da luta
de classes e tendo reduzido a análise de classes a uma série de variáveis
independentes, sociólogos do mainstream se sentiam em casa com o Marxismo de
multivariáveis de Erik. Se isso é marxismo, pode vir [bring it on] (Burawoy, 2020,
p. 75).
O próprio Wright (1998), em entrevista concedida ao Berkley Journal of Sociology
(1987), admite, por meio de uma ―honestidade desarmante‖, como descreve Burawoy (2020,
p. 75), a curiosa aceitação do seu marxismo pelo mainstream sociológico e acadêmico de sua
época:
O que tem sido curioso ao longo da última década é como houve pouco debate sério
realizado pelo mainstream sociológico acerca da efusão da pesquisa neomarxista.
Eu, em geral, fui incapaz de provocar respostas sistemáticas à minha pesquisa entre
sociólogos do mainstream [acadêmico], sejam elas teóricas ou empíricas. Um
silêncio similar parece ter sido a resposta geral a outros estudiosos radicais. O
principal efeito da minha pesquisa no mainstream, até onde consigo enxergar, foi
que certas ―variáveis‖ passaram a ser mais incluídas em equações regressivas. O que
245
Cosmovisões e territórios:
Abya Yala como Território Epistêmico
eu pensei ser um amplo desafio teórico à ―sociologia burguesa‖, desafio respaldado
por pesquisas quantitativas sistemáticas, resultou em uma abordagem pragmática de
certos elementos isolados do modelo conceitual operacionalizado sem muita atenção
a problemas teóricos abstratos (Wright, 1998, p. 76).
Entendemos que Wright (1993), ao tentar definir metodologicamente fronteiras rígidas
entre as classes através de seus famosos mapas de classe, cede à teoria da estratificação. A
escolha metodológica de Wright (1997) acaba por enquadrar toda sua teoria de classes na
perspectiva da estratificação, que o autor operacionaliza seu mapa de classes mediante o
preenchimento das diversas localizações de classe por categorias profissionais, com um
intuito de realizar pesquisas quantitativas de multivariáveis. Essa escolha metodológica,
podemos afirmar, está alinhada ao compromisso do marxismo analítico com as normas
científicas convencionais, pois a pesquisa quantitativa das classes sociais (surveys) era vista
pelo autor como um dos recursos metodológicos mais compensatórios em sociologia (Wright,
2003, p. 26). Contudo, como afirmamos seguindo Cavalcante (2012), essa mesma escolha
pela pesquisa quantitativa de multivariáveis transforma o mapa de classes de Wright (1997)
em um mapa de categorias profissionais. Fica de lado o aspecto relacional e conflitual da
constituição das classes sociais dentro de uma perspectiva marxista. Dessa forma,
argumentamos que Wright (1997) de fato se afasta do postulado da luta de classes como
motor da história, o que enfraquece sua solução específica ao problema das classes médias. A
teoria da estratificação, ao final da análise, não consegue dar uma resposta adequada à relação
entre as classes sociais e o conflito transformador, que nega o caráter contraditório e
antagônico da formação das classes sociais.
Como comenta Burawoy (2020, p. 74-75), Wright acreditava que a utilização de
pesquisas quantitativas poderia ―legitimar o marxismo na sociologia, ou mesmo demonstrar a
superioridade do marxismo enquanto ciência‖. De fato, concordamos com a crença do autor,
ou mesmo com a intuição mais geral do marxismo analítico em firmar um compromisso com
normas científicas. Contudo, e aqui queremos propor uma diretriz metodológica, a adoção de
normas científicas não pode ser defendida à revelia de um programa de pesquisa
marxista e de seus postulados teóricos. É o próprio programa de pesquisa que identifica as
principais anomalias ou instâncias contestatórias que devem ser combatidas. As escolhas
metodológicas, portanto, devem levar em conta os postulados desse programa para não
corrermos o risco de identificar problemas que, fora do seu quadro, não são problemas como
é o caso emblemático do ―problema das classes médias‖, que faz sentido dentro do
programa marxista de pesquisa.
246
AZEVEDO, M.; MARCELINO, P.
__________________
A crítica que elaboramos acima, vale dizer, segue a mesma linha daquelas feitas por
Burawoy (1990) ao marxismo analítico em geral. Para Burawoy (1990, p. 790), a pretensão
em adotar normas científicas convencionais e transformar o marxismo em uma ciência
―verdadeira‖, no caso do marxismo analítico, termina por retirar o marxismo da história,
―eclipsando os desafios históricos que foram o ‗motor‘ de seu desenvolvimento teórico‖.
Como tentamos demonstrar ao analisar a teoria de Wright (1997), esses fatores limitam a
capacidade do marxismo ―primeiro em reconhecer e depois digerir anomalias‖ (Burawoy,
1990, p. 790). Em linhas gerais, Burawoy sintetiza sua crítica ao marxismo analítico da
seguinte forma: ―Se separando da política, daqueles que escrevem sobre [ela] e de uma
tradição intelectual evolutiva, eles facilmente sucumbem ao reino da ortodoxia acadêmica‖
(Burawoy, 1995, p. 198-199)
Na postura científica defendida por Burawoy (1995), um certo nível de convenção e
dogmatismo devem ser aceitos, não somente em ciências sociais, como também nas ciências
exatas; no marxismo, são os sete postulados citados no início deste texto. Seria ingênuo,
portanto, imaginar uma ciência que se projeta em tábula rasa, produzindo conhecimento a
partir apenas de testes e inquirições empíricas convencionais, tal como pretende Wright e o
marxismo analítico. Assim, se o propósito é pensar o marxismo enquanto ciência social,
enquanto sociologia, se é fazer avançar o conhecimento no geral e o marxista em particular, se
é pensar uma teoria científica das classes sociais, o enquadramento dos programas de
pesquisa, a defesa de seus postulados, a identificação (refutação) e absorção (refutação da
refutação) das anomalias são tarefas de primeira ordem.
Referências
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Brasileira de Informação Bibliográfica em Ciências Sociais, São Paulo, n. 67, p. 25-49, 2009.
BOITO JR., Armando. Reforma e crie política no Brasil: os conflitos de classe nos governos do PT. Campinas:
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Recebido em: 15/08/2023
Aceito em: 25/09/2023
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