ISSN 1517-5901 (online)
POLÍTICA & TRABALHO
Revista de Ciências Sociais, nº 59, Julho/Dezembro de 2023, p. 282-313
DILEMAS DE COPRODUÇÃO
1
:
como catadores de rua em São Paulo foram excluídos da reciclagem inclusiva
DILEMMAS OF CO-PRODUCTION:
How Street Waste Pickers Became Ex/cluded from Inclusive Recycling in São Paulo
____________________________________
Manuel Rosaldo
(Tradução de Leda Beck)
Resumo
No serviço público, sob quais condições a colaboração entre os trabalhadores informais e o Estado leva a
sinergias socialmente benéficas e quando podem intensificar as desigualdades? Este artigo, baseado em 14 meses
de pesquisa etnográfica, trata dessa questão por meio de um estudo de caso comparativo de duas tentativas de
coproduzir serviços de reciclagem em São Paulo. A primeira, um esforço de organização de base nos anos 1980
e 1990, melhorou a renda e as condições de trabalho de centenas de catadores e inspirou uma proliferação de
organizações de catadores por todo o país. A segunda, uma ambiciosa revisão da gestão dos resíduos lidos no
início dos anos 2000, gerou cerca de 1.500 empregos, mas, na prática, excluiu a população de catadores de rua
que pretendia beneficiar. A pesquisa sugere que a coprodução tem maior probabilidade de levar a resultados pró-
pobres se forem feitos esforços para nivelar desigualdades entre os participantes pobres e outros, mais poderosos,
durante os processos de projeto e implementação da política pública.
Palavras-chave: Coprodução. Catadores. Movimentos de trabalhadores informais. Brasil.
Abstract
Under what conditions do collaborations between informal workers and the state in public service provision lead
to socially beneficial synergies, and when might they intensify inequalities? This article, based on 14 months of
ethnographic research, addresses this question through a comparative case study of two attempts to co-produce
recycling services in São Paulo. The first, agrassroots organizing e ort in the 1980s and 1990s, improved the
incomes and conditions of hundreds of waste pickers and inspired a national upsurge of waste picker organizing.
The second, an ambitious overhaul of waste management in the early 2000s, generated about 1,500 jobs but
functionally excluded the very population of street waste pickers it was designed to benefit. The findings suggest
that co-production is most likely to lead to pro-poor outcomes if concerted e orts are made to level inequalities
between poor constituents and more powerful stakeholders during processes of policy design and
implementation.
Keywords: Co-production. Waste pickers. Informal worker movements. Brazil.
____________
1
Originalmente publicado pela Cambridge University Press em nome da Universidade de Miami. DOI
10.1017/lap.2022.
Manuel Rosaldo é professor assistente de Relações do Trabalho e Sociologia na Escola de Relações de
Trabalho e Emprego da Universidade Estadual da Pensilvânia, situada em University Park, PA, EUA. E-mail:
mxr1225@psu.edu
ROSALDO, M.
__________________
Em 1982, um grupo de freiras de uma ONG de São Paulo começou a trabalhar com
oito moradores de rua que ganhavam a vida recuperando papelão, papel e metais de lixeiras
das ruas e dos prédios. Por meio de um processo pertinaz de reflexões e experimentos, os oito
homens desenvolveram estratégias para defender e, aos poucos, aperfeiçoar seu trabalho.
Começaram a compartilhar ferramentas e o espaço de trabalho, vender coletivamente os
materiais coletados, organizar eventos sociais e protestos contra autoridades municipais que
buscavam criminalizar sua atividade. Em 1989, eles fundaram a Coopamare, a primeira
cooperativa de catadores, e logo, em seguida, negociaram com o município para fornecer
espaço, equipamento, suporte técnico e contratos de serviço.
Evidência anedótica sugere que essa iniciativa elevou moderadamente a renda e as
condições de trabalho de centenas de catadores de rua e aumentou as taxas de reciclagem.
Durante a década seguinte, a Coopamare ajudou a inspirar a criação de 70 organizações de
catadores na cidade de São Paulo e outras centenas pelo país (Grimberg, 2007). Foi uma
iniciativa de escala relativamente pequena, mas marcou uma mudança paradigmática em um
país que historicamente trata os catadores como criminosos e o lixo apenas como um
problema sanitário, não social, ambiental e cultural.
No começo dos anos 2000, autoridades municipais tomaram uma iniciativa muito mais
ambiciosa pelos direitos dos catadores. Àquela altura, muitas autoridades e membros de
organizações não governamentais (ONGs) já achavam que o trabalho dos catadores era
degradado e degradante, uma forma anárquica de oferecer um serviço moderno de reciclagem.
O município criou, portanto, uma rota formal de reciclagem, administrada por empresas
privadas de gestão
dos resíduos sólidos
que passaram a fazer a coleta e o transporte de
recicláveis, ocupando o papel tradicional dos catadores. Novos empregos foram criados para
os catadores em cooperativas de triagem, onde trabalhariam em linhas de montagem
instaladas em armazéns, separando os recicláveis.
Essas políticas públicas são muito celebradas por melhorarem tanto as taxas de
reciclagem como as vidas dos catadores, mas a pesquisa para este artigo revela uma realidade
mais complexa. Por volta de 2017, depois de 15 anos de implementação, menos de 1% dos
catadores da cidade haviam sido integrados à gestão formal
dos resíduos sólidos
. Dois
problemas explicam essa baixa taxa de inclusão. Em primeiro lugar, as cooperativas de
triagem geraram apenas 1.500 empregos, um número muito distante dos estimados 20 mil
catadores da cidade
2
.
____________
2
De acordo com a pesquisa de campo para este artigo, as 21 cooperativas de triagem formalizadas em São Paulo
(as conveniadas) tinham 1.020 membros em 2016. Além disso, 16 cooperativas de triagem semiformais (as não
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como catadores de rua em São Paulo foram excluídos da reciclagem inclusiva
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Em segundo lugar, 93% dos empregos nas cooperativas de triagem formais eram
ocupados por gente que nunca tinha trabalhado como catador de rua. Claro, criar empregos
para esses trabalhadores carentes a maioria dos quais eram negros, mulheres e chefes de
família era um projeto altamente louvável. Porém, milhares de catadores continuaram a
trabalhar informalmente nas ruas, onde coletavam a maior parte dos recicláveis da cidade sem
reconhecimento oficial. A perversidade da situação pode ser percebida pelos relatos de muitos
deles, que afirmaram que suas rendas tinham caído, devido à concorrência justamente com a
rota de reciclagem que fora projetada para beneficiá-los.
Essas duas iniciativas pelos direitos dos catadores podem ser consideradas tentativas
de coprodução”, ou seja, colaboração entre cidadãos comuns, o Estado e outros atores para
oferecer serviços públicos (Mitlin; Bartlett, 2018). Mas por que os serviços de reciclagem em
coprodução nos anos 1980 e 1990 elevaram a renda e as condições de trabalho de centenas de
catadores, enquanto as iniciativas dos anos 2000, com muito mais recursos, fracassaram? E o
que isso revela sobre as condições em que a coprodução tem mais probabilidade de promover
justiça social e sustentabilidade urbana?
A primeira seção deste artigo revisa a literatura sobre coprodução, que sugere que os
resultados em favor dos pobres ocorrem apenas se as iniciativas concertadas buscarem nivelar
as desigualdades entre os participantes pobres e os mais poderosos. Em seguida, discute a
seleção de casos e os todos da pesquisa. As seções seguintes ponderam que os diferentes
resultados das políticas de coprodução do final do século XX e começo do XXI foram
consequência dos níveis relativos de voz e poder dos catadores tanto no projeto quanto na
implementação dessas políticas. Durante os anos 1980 e 1990, as propostas de políticas
públicas foram feitas com base num processo plurianual de experimentos de base e
implementadas por uma prefeita que tratava os movimentos populares como seus
interlocutores mais importantes. Em contraste, durante os anos 2000, as propostas foram
feitas por fóruns com múltiplos interessados, que buscaram incluir as vozes dos catadores,
mas, na verdade, favoreceram a especialidade técnica de consultores profissionais. Essa
discrepância de poder foi amplificada por autoridades municipais que priorizavam interesses
de empresas de gestão
dos resíduos sólidos
e de empreiteiros privados. Este artigo conclui com
uma reflexão sobre como os processos de coprodução foram estruturados não apenas pelas
escolhas de atores locais, mas também pelos contextos globais em que operavam.
conveniadas) recebiam materiais, equipamento e apoio do município em bases mais limitadas. Autoridades
estaduais estimavam que as organizações semiformais tinham 450 membros, e a evidência anedótica sugeria que
as taxas de inclusão dos catadores de rua eram similares às das cooperativas formais. Esses números não incluem
os membros de duas cooperativas dos próprios catadores e de uma cooperativa de reciclagem de eletrônicos.
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ROSALDO, M.
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As antinomias da coprodução
Coprodução é definida como “produção conjunta de serviços públicos entre cidadãos e
Estado, com o compartilhamento de um ou mais elementos do processo de produção” (Mitlin
2008, p. 340). A expressão foi cunhada nos anos 1970 em círculos desenvolvimentistas e
circulou entre eles entre os anos de 1990 e 2000. Seu recente status de palavra da moda
refletiu uma tendência para longe da formulação de políticas públicas centradas no Estado e
mais focada em parcerias com múltiplos interessados e com participação da sociedade civil.
Estudos clássicos de coprodução concentraram-se em arranjos nos quais os cidadãos
têm um papel ativo na produção de serviços públicos que eles mesmos usam, como saúde,
educação e infraestrutura (Joshi; Moore, 2004; Ostrom, 1996). A literatura mais recente
examina outros tipos de colaboração, como aquela com movimentos sociais, enfatizando “a
importância da sociedade civil não apenas para fazer demandas, mas também participando em
todas as fases do processo de formulação de políticas públicas” (Tarlau, 2013, p. 17). Essa
literatura mais recente também analisa a coprodução em grupos organizados de trabalhadores
informais (Song, 2016) e catadores (Gutberlet;
Besen; Morais,
2020; Navarrete-Hernández;
Navarrete-Hernández, 2018).
Quem propõe a coprodução costuma elogiar seu potencial participativo e igualitário,
particularmente no contexto do Sul Global, onde muitos Estados carecem da capacidade de
oferecer serviços públicos a residentes de baixa renda. Argumenta-se que processos de
coprodução bem projetados podem baixar os custos, expandir o alcance e melhorar os
próprios serviços públicos (Ostrom, 1996). Já os críticos veem a coprodução, em seu melhor
cenário, como um remendo tecnocrático insuficiente para desigualdades estruturais profundas
e, na pior das hipóteses, como uma manobra para cortar custos e transferir as
responsabilidades do Estado para seus cidadãos mais marginalizados.
3
Mesmo aqueles que
defendem a coprodução reconhecem que a melhoria dos serviços e uma cidadania renovada
não são propriamente resultados inevitáveis (Joshi; Moore, 2004). Em alguns casos, a
coprodução levou a “serviços de qualidade, corrupção, abusos de direitos humanos e
exclusão de populações marginalizadas” (Meagher, 2013, p. 14).
Watson (2014) identifica dois campos de pesquisadores que estudam o tema e
advogam abordagens distintas à coprodução, consequentemente diferindo em sua análise dos
____________
3
Para um sumário das críticas e defesas da coprodução com trabalhadores informais, ver Meagher (2013).
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fatores que determinam os resultados. Em primeiro lugar, o campo da coprodução iniciada
pelo Estado (CIE) concentra-se em casos de coprodução conduzida por autoridades do Estado,
que diretamente engajam seus eleitores, com um pequeno papel aparente de intermediação
para movimentos sociais ou ONGs. Eles identificam práticas institucionais que habilitam
agências estatais e cidadãos comuns a reunir recursos distintos, mas complementares, assim
gerando sinergias. Essa abordagem foi desenvolvida pelos primeiros estudiosos da
coprodução, principalmente nos campos da administração pública e dos estudos de
desenvolvimento (Ostrom, 1996; Joshi; Moore, 2004).
Num trabalho fundamental, Ostrom (1996) identifica quatro condições básicas para
aumentar a probabilidade de sinergias. Em primeiro lugar, tanto as agências estatais quanto os
cidadãos comuns devem contribuir com os recursos necessários, sem que nenhuma das duas
partes tente suplantar o papel da outra. Em segundo lugar, estruturas legais devem ser criadas
para apoiar os participantes locais. Em terceiro lugar, as partes devem usar contratos
executáveis para estabelecer um compromisso crível entre elas. E, em quarto lugar, devem ser
estabelecidos incentivos para estimular a participação de todos os envolvidos.
Um segundo grupo de pesquisadores favorece uma abordagem pela coprodução
iniciada por movimento social (CIMS) ou coprodução radical ou de baixo para cima (Mitlin,
2008; Watson, 2014; King; Kasaija, 2018). Esses pesquisadores concentram-se nos casos em
que residentes de baixa renda se organizam em movimentos sociais, usando a coprodução
para atrair novos membros, mobilizar recursos e construir alianças. O objetivo de tais
processos não é apenas melhorar a oferta de serviços aos pobres, mas transformar as relações
de poder subjacentes aos investimentos desiguais em serviços públicos. Esse grupo de
pesquisadores não questiona a sabedoria das recomendações técnicas de Ostrom, mas pondera
que elas não produzirão os resultados desejados sem uma mudança nas relações de poder
subjacentes (King; Kasaija, 2018). Portanto, Watson alerta que a falta de análise do poder leva
a autora a presumir equivocadamente que
[...] todos os membros da comunidade e os residentes ganhariam acesso igual a esses
serviços, a exclusão com base em renda, gênero ou etnia, por exemplo, não teria um
papel e a relação entre o Estado e os cidadãos seria justa, consensual e não corrupta
ou politizada (Watson, 2014, p. 65).
Dois relacionamentos essenciais na coprodução iniciada por movimento social
Este artigo analisa dois processos de coprodução envolvendo trabalhadores da mesma
profissão na mesma cidade, sob prefeitos do mesmo partido. O primeiro processo aproxima-se
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ROSALDO, M.
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do ideal da CIMS, de baixo para cima, enquanto o segundo evoluiu lentamente em direção à
orientação da CIE, de cima para baixo. Como dizem Mitlin & Bartlett (2018), a abordagem da
CIMS implica uma compreensão “relacional” da pobreza. Ou seja, pobreza persistente é vista
como consequência de relações econômicas e poticas desenvolvidas historicamente, não
como traços endógenos dos pobres. Portanto, em vez de prescrever intervenções específicas
de política pública, essa literatura enfatiza a importância de nivelar as assimetrias de poder,
particularmente em dois conjuntos de relações.
O primeiro é entre os eleitores pobres e as ONGs que os apoiam. As ONGs podem
oferecer apoio técnico, financeiro, político e simbólico às organizações dos pobres e também
podem intermediar relações com o Estado e com o setor privado. Alguns pesquisadores,
porém, alertam para o fato de que as ONGs com frequência priorizam os desejos dos doadores
sobre os da comunidade e podem ser cooptadas por autoridades do Estado para servir às
necessidades delas.
Então, como os benfeitores da elite podem evitar aprofundar as hierarquias do poder?
Pesquisadores enfatizam a necessidade de incluir os próprios benfeitores nas comunidades
carentes, orientar os membros dessas comunidades a avaliarem as próprias prioridades e
necessidades, e a reconhecerem que os pobres é que sabem como sobreviver na pobreza”
(Watson, 2014, p. 69). Essa abordagem é, às vezes, descrita como “coprodução de
conhecimento” (Mitlin; Bartlett, 2018). Num estudo de caso muito citado, Archer,
Luansang e
Boonmahathanakorn
(2012) descrevem como profissionais de ONGs trabalham com membros
de baixa renda da Coalizão Asiática pelo Direito à Moradia (ACHR, na sigla em inglês).
Juntos, mapeiam favelas, diagnosticam problemas, projetam programas-piloto inovadores e
negociam com autoridades do Estado para expandir esses programas. Como Archer,
Luansang
e Boonmahathanakorn
(2012, p. 127) explicam, em vez de dar todas as respostas, os
profissionais deveriam fazer as perguntas certas, o que levará a própria comunidade a
encontrar as respostas e a aprender no processo”.
Uma segunda relação-chave é entre os pobres e as autoridades do Estado. A literatura
sobre a CIE encoraja a levar o poder de decisão do nível nacional para o nível local (Ostrom,
1996). os estudiosos da CIMS enfatizam a importância de um nível adicional de
relacionamento: o das autoridades do Estado com os movimentos populares. A existência de
movimentos bem-organizados, que combinam ações contenciosas e colaborativas, é uma pré-
condição necessária para esse relacionamento. Por exemplo, Tarlau (2013) constata que
governos de esquerda tendem a promover arranjos de cogestão de escolas públicas com o
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Movimento dos Trabalhadores Sem Terra (MST) no Brasil. Mesmo governos de direita com
baixa capacidade, porém, podem apoiar a coprodução nas escolas como um meio de oferecer
os serviços necessários e de minimizar conflitos.
Catadores de São Paulo e a coprodução
Um argumento central deste artigo, em linha com a literatura CIMS, é que os
resultados de processos de coprodução estão articulados com os veis de voz e poder dos
catadores em relação a influentes participantes da sociedade civil, do Estado e do setor
privado. Inspirado por uma compreensão relacional da pobreza (Mosse, 2010), entendo que
voz e poder não são traços endógenos dos catadores, mas sim interações dinâmicas entre eles
e os participantes mais influentes (por ex., ONGs, prefeituras, empresas de gestão de resíduos
sólidos). Portanto, por voz, entendo a habilidade dos catadores para articular coletivamente
suas demandas e apresentá-las às partes influentes. Um indício importante de voz é a
habilidade dos catadores para contribuir significativamente com projetos de políticas públicas.
Por poder, entendo a capacidade dos catadores para levar esses outros atores a concordarem
com suas demandas. Um indício importante de poder é a habilidade dos catadores para
implementar suas propostas, especialmente diante da resistência política.
Os catadores podem ser considerados um caso “muito improvável” de sucesso na
organização e na iniciativa política pelos direitos trabalhistas, devido à sua extrema
marginalização e atomização (Rosaldo, 2016). Não obstante, desde os anos 1980, catadores de
centenas de cidades em toda a América Latina, na Ásia e na África mobilizaram-se para
aumentar sua influência econômica e sua voz política. Associações de bairro foram
conectadas por redes de catadores regionais, nacionais e transnacionais, que formaram
parcerias com ONGs, agências estatais, universidades, fundos de desenvolvimento e ramos
filantrópicos das indústrias que produzem resíduos sólidos (Samson, 2009). Juntos, todos
esses atores estimularam políticas de “reciclagem inclusiva”, que expandem serviços oficiais
de reciclagem e contratam catadores antes informais para prover esses serviços. Essas
políticas são celebradas como “triplamente vitoriosas”, beneficiando os catadores, o meio
ambiente e a economia.
Na prática, porém, a reciclagem em coprodução é um processo contestado, criativo e
contraditório, que pode melhorar as condições de trabalho e a ressonância da voz dos
catadores, mas que também produz resultados perversos. Os catadores enfrentam três desafios
principais. O primeiro é o possível conflito entre seus interesses e os interesses dos demais
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participantes do processo. Por exemplo: autoridades do Estado podem ter por objetivo a
remoção dos catadores dos bairros mais prósperos, onde são considerados um empecilho para
a produção de paisagens urbanas modernas, “verdes e limpas”. Empresas privadas de gestão
de
resíduos sólidos
podem tentar controlar uma indústria de reciclagem cada vez mais lucrativa.
E a indústria de manufatura tem pouco incentivo para pagar mais aos catadores pelos
materiais recicláveis, muito menos para oferecer benefícios e proteções (Parra, 2016).
O segundo desafio é que os catadores enfrentam barreiras para exercer uma poderosa
voz coletiva, porque não dispõem de locais de trabalho centralizados, empregadores
reconhecidos, proteções legais, tempo e dinheiro. Participantes mais poderosos podem
explorar essas fraquezas para privilegiar seus próprios interesses (Rosaldo, 2019). Mesmo que
todos os participantes ajam de boa-fé, um terceiro desafio: as lógicas institucionais podem
colidir. Serviços formais de reciclagem tipicamente requerem planejamento e gestão
centralizados, responsabilidade hierárquica e padronização de turnos de trabalho e conduta.
No entanto, muitos catadores carecem da capacidade ou de vontade de seguir regras e horários
rígidos (Millar, 2018).
São Paulo é um estudo de caso ideal para estudar os desafios e oportunidades da
coprodução em reciclagem. Está em São Paulo a sede do maior movimento nacional de
catadores e a Unidade de Inteligência da revista Economist (Economist Intelligence Unit,
2017) considera que as políticas inclusivas de reciclagem na cidade estão entre as melhores da
América Latina. Estima-se que os catadores coletam quase 90% do material que é reciclado
no Brasil e ajudaram o país a atingir o recorde mundial de reciclagem de latas, coletando
98,2% delas (Silva;
Goes; Álvarez,
2013). Mesmo assim, os catadores de rua são
sistematicamente excluídos das estatísticas oficiais. As atuais estimativas sobre a quantidade
de catadores de rua em São Paulo oscilam entre dez mil (CIPMRS, 2014) e 38 mil (Burgos,
2008).
Este estudo usa a estimativa de 20 mil catadores de rua (Grimberg, 2007), que
considero conservadora o número real é provavelmente maior. Não obstante, é a estimativa
mais citada nas pesquisas e é a preferida do Movimento Nacional de Catadores de Materiais
Recicláveis (MNCR) e suas ONGs aliadas. De acordo com esses dados, o sistema informal de
reciclagem coletou 15% do total
dos resíduos sólidos
produzidos pela cidade no início dos anos
2000.
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Métodos de pesquisa
Este estudo é uma etnografia política (Tilly, 2007) sobre as políticas públicas de
reciclagem em São Paulo. De 2014 a 2017, trabalhei 14 meses nesse levantamento, incluindo
observação participante, entrevistas e pesquisa em arquivos. Uma explicação completa do
processo de política pública de gestão
de resíduos sólidos
em São Paulo precisaria de uma
análise das interações com uma grande constelação de participantes, leis e normas nos níveis
local, nacional e supranacional. O presente relato, porém, concentra-se em três grupos de
participantes no nível municipal para entender as relações entre os catadores de rua e as
cooperativas concebidas para beneficiá-los.
Primeiro, procurei entender a dinâmica das cooperativas de triagem. De novembro de
2016 a março de 2017, visitei todas as 21 cooperativas formais de São Paulo e apliquei um
questionário de 75 perguntas a seus líderes, cada entrevista consumindo de 50 a 80 minutos.
Nessas visitas, além de aplicar o questionário, também fiz 10 breves entrevistas e mantive
muitas conversas informais com outros membros da cooperativa, o que ajudou a confirmar
informações obtidas no levantamento formal. Fiz novas visitas a seis cooperativas para
entrevistas adicionais. Para aprofundar meu entendimento das práticas e perspectivas dos
catadores, também passei 5 dias trabalhando nas cooperativas de triagem.
Em segundo lugar, busquei estudar as práticas e as perspectivas dos catadores de rua,
uma população mais difícil de estudar, porque seus locais de trabalho são dispersos e eles são
menos organizados. Nessa época, só duas organizações semiformais de catadores de rua
operavam em São Paulo. Passei 6 dias trabalhando com os catadores dessas organizações e
entrevistei vários de seus membros. Também entrevistei 8 pessoas que haviam trabalhado
como catadores de rua e então trabalhavam nas cooperativas de triagem ou para o MNCR.
Para melhor entender as perspectivas dos catadores de rua desorganizados, conduzi uma breve
pesquisa (cerca de 8 minutos) com uma amostra adequada de 40 deles, trabalhando no centro
da cidade.
Em terceiro lugar, busquei entender um ecossistema mais abrangente de protagonistas
em políticas inclusivas de reciclagem. Para isso, assisti a 8 reuniões internas, 6 conferências e
5 protestos do MNCR. Além disso, fiz 15 entrevistas com lideranças paulistanas do MNCR,
12 entrevistas com funcionários de ONGs aliadas e 8 entrevistas com autoridades
governamentais relevantes. Enfim, pesquisei decisões judiciais, relatórios municipais e
jornais. Uso pseudônimos para os entrevistados que não são figuras públicas.
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ROSALDO, M.
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O paradigma do reconhecimento do catador
Nos anos 1980 e 1990, desenvolveu-se em São Paulo uma abordagem do salário
mínimo que defino como reconhecimento do catador. Buscava reconhecer os catadores legal,
econômica e socialmente por seus serviços ambientais, mesmo que eles continuassem
trabalhando autonomamente nas ruas. Essa abordagem tratou a atividade dos catadores como
fonte de resiliência e resistência para populações oprimidas. Portanto, buscava defender e
melhorar recorrentemente o trabalho dos catadores nas ruas, em vez de superá-lo. Esse
paradigmático modelo organizador do reconhecimento era a cooperativa do carroceiro, que
combinava as lógicas da autonomia e da coletividade. Ele permitia que cada membro
decidisse quando, onde e como trabalhava, mas, ao mesmo tempo, engajava todos em vendas
coletivas, projetos empreendedores, ações políticas e formação (habilidades, liderança e
educação política).
A abordagem do reconhecimento foi criada ao longo de vários anos e de um processo
de experimentos de campo que priorizava as experiências vividas pelos catadores e o
conhecimento prático. O processo teve duas fases. Na primeira, um grupo de freiras de uma
ONG católica inseriu-se no trabalho e nas vidas de catadores sem teto para ajudá-los a
desenvolver estratégias de empoderamento. Na segunda, a prefeita Luiza Erundina (PT, 1989-
1992) implementou políticas públicas propostas pelos próprios catadores e seus aliados,
apesar das críticas de eleitores ricos. Evidências anedóticas sugerem que esse experimento
social melhorou moderadamente as rendas e as condições de trabalho de centenas desses
trabalhadores, elevou substancialmente as taxas de reciclagem e inspirou a criação de
organizações e políticas públicas paralelas por todo o Brasil. Críticos afirmavam, porém, que
catar lixo na rua mesmo em cooperativas de carroceiros era um meio explorador, perigoso
e pré-moderno de oferecer serviços de reciclagem.
Criar um modelo organizador por colaboração de baixo para cima
A criação da primeira cooperativa de catadores em 1989 foi fruto inesperado de um
experimento social radical iniciado 12 anos antes por um pequeno grupo de freiras. Elas
ajudavam a coordenar uma importante instituição católica de caridade, a Organização de
Auxílio Fraterno (OAF). Com o tempo, essas freiras tornaram-se críticas do modelo
caritativo, que deixava o sem-teto sentindo-se culpado por suas circunstâncias, sozinho e
impotente” (Grimberg, 1994, p. 4).
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como catadores de rua em São Paulo foram excluídos da reciclagem inclusiva
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Em 1978, as freiras adotaram uma nova e controversa abordagem, exigindo que
funcionários e voluntários inserissem a si mesmos na vida cotidiana dos sem-teto. O resultado
imediato foi que 90% dos funcionários demitiram-se. Restaram 12 funcionários, que passaram
dois meses vivendo nas ruas para “obter uma compreensão das pessoas da rua de muito perto,
conhecendo a realidade por baixo” (Manuel, 2017). Para se sustentar, venderam sangue,
recorreram a serviços sociais, coletaram recicláveis e venderam miudezas tiradas do lixo.
Durante esse período, os funcionários da OAF concluíram que recolher materiais recicláveis
não era uma fonte de vulnerabilidade, mas sim um recurso de pessoas vulneráveis para
sobreviver à opressão estrutural e, às vezes, até recuperar alguma dignidade (Manuel, 2017).
Em seguida, as freiras alugaram cinco casas numa área de concentração de pobreza,
onde realizavam eventos sociais e debates entre os sem-teto locais e voluntários da
comunidade. A ideia de construir uma cooperativa de catadores de rua era recorrente nessas
conversas e uma série de experimentos práticos foi desenvolvida. Tradicionalmente, os
catadores carregavam os materiais em sacos sobre suas cabeças, mas em 1982 um sem-teto
sugeriu que seria mais eficiente transportar os materiais em carroças. As freiras levantaram
dinheiro para construir a primeira carroça, inicialmente compartilhada por dez catadores até
que conseguissem mais dinheiro para construir outras carroças. Todos os meses, os homens
separavam alguns materiais a serem vendidos no final do ano para promover um festival de
rua. Aprenderam que podiam subir seus preços quando vendiam coletivamente, eliminando os
intermediários. Um dos homens, Amado Teodoro, lembrou, numa entrevista a um jornal em
1993, que os catadores notaram que “era muito melhor trabalhar em mutirão do que vender de
pouquinho ao depósito”
4
.
Em 1985, os catadores ocuparam um edifício abandonado, onde armazenavam e
separavam coletivamente os materiais. Mais tarde, as freiras negociaram com os proprietários
do edifício para permitir que os catadores permanecessem ali e pagassem um aluguel. Os
próprios catadores começaram a se referir a si mesmos como uma “associação”, um título que
pretendia indicar que tinham uma profissão séria, o apenas um “bico”. Por volta de 1989, a
associação tinha mais de 50 membros. Naquele ano, um advogado voluntário ajudou a
formalizar uma Cooperativa de Catadores Autônomos de Papel, Papelão, Aparas e Materiais
Reaproveitáveis (Coopamare), a primeira cooperativa brasileira de catadores de rua
(Carvalhaes, 2017).
____________
4
Jornal
Comunitário,
São
Paulo,
setembro de
1993,
12 (Scarpinatti,
2008).
292
ROSALDO, M.
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Traduzindo para a política pública o paradigma do reconhecimento
Em meados dos anos 1980, os catadores começaram a se engajar em atividades
políticas, defendendo o direito ao trabalho contra autoridades que os viam como fontes de
crime e desordem. Por exemplo, a associação organizou protestos de rua em 1986, depois que
o prefeito Jânio Quadros, de direita, instruiu a polícia para prender os catadores sob o pretexto
de que a atividade deles espalhava lixo, promovia a embriaguez pública e outras formas de
imoralidade. “As dificuldades e injustiças de trabalho são demais e não podemos permitir que
o prefeito nos impeça de trabalhar para dar sustento às nossas famílias... Somos trabalhadores
e queremos trabalhar e viver dignamente.”
5
Em 1988, a surpreendente eleição de Luiza Erundina para prefeita de São Paulo criou
uma oportunidade para promover as primeiras políticas públicas de direitos dos catadores.
Erundina era um membro fundador do Partido dos Trabalhadores (PT), que foi criado em
1980 por meio da confluência entre sindicatos, movimentos sociais e ativismo religioso. Essa
assistente social, então com 54 anos, veterana militante de movimentos de base, oriunda de
uma família humilde do Nordeste do Brasil, uma região devastada pela fome, elegeu-se com
uma plataforma claramente pró-pobres. A vitória de Erundina foi descrita na época como “o
maior avanço eleitoral para a esquerda latino-americana desde que Salvador Allende se tornou
presidente do Chile em 1970” (Hinchberger, 1989, p. 4).
A Coopamare tinha ligação direta com Erundina, que, como vereadora, tinha
colaborado com a OAF em campanhas para expandir a oferta de moradias populares. Logo
depois de sua eleição, lideranças da OAF e da Coopamare começaram a propor iniciativas
pelos direitos dos catadores, a mais urgente delas sendo um local permanente para a
Coopamare. Sugeriram que a cidade cedesse espaços vazios em Pinheiros e Vila Mariana,
dois bairros afluentes. Parlamentares eleitos por esses bairros protestaram, temendo
retaliações de eleitores de classe média que desprezavam os catadores. Destemida, Erundina
pressionou as subprefeituras para cederem dois grandes espaços sob viadutos, que seriam
usados pela Coopamare sob a supervisão da OAF (Grimberg, 1994). Juntas, a Prefeitura e a
OAF construíram barracas para armazenar as carroças dos catadores e separar os materiais,
com banheiros, espaços de lazer, escritórios e salas de reunião. Também forneceram balanças,
prensas, empilhadeiras e computadores.
____________
5
Folha de S. Paulo, 29 de março de 1986 (Scarpinatti, 2008, p. 37).
293
Dilemas de Coprodução:
como catadores de rua em São Paulo foram excluídos da reciclagem inclusiva
(Tradução)
Ao longo dos dois anos seguintes, Erundina criou outras quatro políticas públicas em
torno dos direitos dos catadores, as primeiras na história do Brasil. Primeiro, ela fez um
decreto que reconhecia a coleta de materiais recicláveis como uma profissão legítima e
delineava os termos para as parcerias entre as cooperativas e a Prefeitura. Em seguida,
Erundina começou a remunerar a Coopamare por seus serviços, ajudando a cobrir os custos
administrativos e de manutenção. Em terceiro lugar, a Prefeitura subsidiou, para os membros
da Coopamare, cursos de direitos humanos, gestão cooperativa, segurança do trabalho e
cadeia de valor da reciclagem. Por último, a Prefeitura fez um censo dos catadores de rua nas
vizinhanças da Coopamare que poderiam um dia ser integrados a cooperativas.
Resultados das políticas de reconhecimento
Em suas dimensões simbólicas, as políticas de Erundina romperam o paradigma: elas
elevaram os catadores, social e legalmente, de párias criminosos a provedores de serviços
públicos. Em suas dimensões materiais, porém, essas políticas foram modestas. Seu governo
trabalhou com uma organização de catadores para melhorar gradualmente as condições dos
membros, em vez de transformá-las radicalmente. Como a própria Erundina recordou numa
entrevista de 2007:
Nossas poticas eram o nimo que se poderia esperar de um governo popular (...)
Então, nossa iniciativa representava uma tentativa de, a partir da condição em que
eles estavam, melhorar essa condição e promovê-los a uma condição um pouco
melhor, com perspectivas de outros avanços no futuro (Scarpinatti 2008, p. 38).
Relatos de pesquisadores, trabalhadores da ONG e lideranças dos catadores sugerem
que, apesar disso, essas políticas foram de um sucesso retumbante, ajudando centenas de
catadores a melhorar renda, condições de trabalho e status social (Grimberg, 1994).
O modelo de organização da Coopamare conseguiu um equilíbrio entre dois objetivos
aparentemente contraditórios: reconhecer e acomodar o todo tradicional de trabalho dos
catadores, de acordo com lógicas informais, individualistas; e, lentamente, incentivá-los a agir
como um coletivo político e econômico. Assim, os membros da cooperativa coletavam e
separavam os materiais individualmente, mas participavam coletivamente de vendas,
treinamentos, ações políticas e tomada de decisões. Como explicou uma liderança da
Coopamare, “na cooperativa todo mundo faz seu próprio horário e não existe patrão; as regras
são criadas pelo grupo” (Scarpinatti, 2008, p. 59).
294
ROSALDO, M.
__________________
No final do governo Erundina, em 1992, cerca de 200 catadores participavam do ramo
da Coopamare em Pinheiros, processando ao redor de oito toneladas de materiais por dia
(Scarpinatti, 2008, p. 56). Múltiplos níveis de participação surgiram para acomodar as
necessidades e capacidades heterogêneas. Cinquenta membros da cooperativa alugaram
espaço dentro das instalações para armazenar suas carroças e materiais, e cerca de 15 deles
detinham posições de liderança. Além disso, 150 catadores vendiam seus materiais à
Coopamare, que pagava melhor do que os sucateiros. Aos poucos, muitos desses catadores
foram integrados em atividades centrais da cooperativa (Ferreira de Paula, 2017).
Dois funcionários da OAF continuaram a trabalhar com a Coopamare para ajudar com
tarefas administrativas e planejamento estratégico, mas um deles observou que:
[...] os catadores cuidavam das vendas, da contabilidade, do orçamento. Nosso papel
era, no máximo, se eles pedissem, guardar o dinheiro em segurança (...) A
perspectiva adotada era de que os catadores sabiam fazer tudo e nós
participávamos em debates com o grupo sobre formação (Manuel, 2017).
Essa restituição das responsabilidades aumentou o sentido de agência e competência
dos membros. A Coopamare buscava manter sua autonomia do governo, mesmo sob a
simpática gestão de Erundina. Portanto, em 1989, quando Erundina lançou o piloto das rotas
de reciclagem e ofereceu entregar recicláveis à Coopamare, seus membros declinaram,
preferindo coletar seus próprios materiais. Assim, a Coopamare diferia das cooperativas que
foram criadas depois de 2000, que dependiam muito das entregas vindas da rota oficial de
reciclagem da Prefeitura.
Essa autonomia seria crucial nos oito anos seguintes, quando dois prefeitos de direita
acabaram com a rota-piloto de reciclagem, encerraram o apoio à Coopamare e tentaram
despejar a cooperativa. A Coopamare pôde suportar esses ataques graças à sua autonomia do
Estado e ao apoio de aliados da sociedade civil. De fato, a cooperativa não apenas sobreviveu
à perseguição, mas também cresceu: tinha 350 membros por volta do ano 2000 (Grimberg,
2006). Além disso, o modelo da Coopamare ajudou a inspirar a criação de outras 70
organizações de carroceiros em São Paulo até o final da década, de cooperativas formais a
pequenos grupos informais. Outras ONGs católicas, também inspiradas pela experiência
paulistana, começaram a organizar catadores em cidades como Porto Alegre e Belo
Horizonte, onde prefeitos do PT criaram políticas de direitos dos catadores que superavam
aquelas de Erundina em seu escopo e profundidade (Dias, 2006).
295
Dilemas de Coprodução:
como catadores de rua em São Paulo foram excluídos da reciclagem inclusiva
(Tradução)
O paradigma da reciclagem inclusiva
Hoje eu penso diferente sobre como a gente deve tratar essas pessoas.
Naquela época, 15 ou 20 anos atrás,
a gente achava que era simples assim: “Tem um galpão aqui, vocês
vêm, formam uma cooperativa, a gente treina, capacita e tal” (…) A
gente achava que todo mundo tinha que estar dentro do barracão, dentro
de uma caixinha quadrada, e ficar lá.
A gente achava que, naturalmente, eles ficariam, por conta de que iam
ganhar mais, em um lugar mais seguro.
E a gente foi vendo que, com o passar
do tempo, as pessoas saíam,
não ficavam ou nem entravam.
Enrique Ribeiro (2017), funcionário de uma ONG, consultor na criação
das cooperativas de triagem para o governo Marta Suplicy.
No começo dos anos 2000, um novo paradigma para coproduzir reciclagem surgiu em
São Paulo, ao qual as autoridades municipais se referiam como reciclagem inclusiva”.
Enquanto o paradigma do reconhecimento dos anos 1980 e 1990 buscava reconhecer legal,
econômica e socialmente o trabalho dos catadores nas ruas, a nova abordagem pretendia criar
um sistema de reciclagem moderno, para incluir catadores antes informais. Durante esse
período, muitas autoridades municipais viam o trabalho dos catadores de rua como degradado
e degradante, um modelo anárquico e desagradável para oferecer serviços de reciclagem.
Portanto, projetaram uma rota formal de reciclagem, modelada nos modelos do Norte global,
e contrataram empresas privadas de gestão
de resíduos sólidos
para absorver o papel tradicional
dos catadores na coleta e transporte de recicláveis. Novos empregos foram criados para eles
nas “cooperativas de triagem”, onde trabalhavam ao longo de linhas de montagem, dentro de
armazéns industriais, separando e enfardando recicláveis coletados pela rota oficial.
Ao engajar-se em trabalho e treinamento coletivos, essas cooperativas buscavam
aumentar a agência política e econômica dos catadores um processo a que alguns se
referiam como “reciclar vidas”. Essa coprodução entre agências do Estado, ONGs, empresas
privadas, catadores e residentes recebeu aplausos internacionais. A Unidade de Inteligência da
revista Economist, por exemplo, ao levantar os esquemas regulatórios de reciclagem inclusiva
em 17 cidades latino-americanas e do Caribe, classificou São Paulo em primeiro lugar,
afirmando que “a interação entre usuários [os catadores] e empresas privadas de gestão de
resíduos sólidos foi aperfeiçoada graças a [15] anos de implementação de rotas seletivas de
coleta, com a participação das cooperativas” (Economist, 2017, p. 64).
296
ROSALDO, M.
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Essa celebração, porém, embute uma realidade mais complexa, que é raramente
discutida na academia. Por volta de 2017, menos de 1% dos catadores de rua de São Paulo
haviam sido integrados à gestão formal dos resíduos sólidos. Havia duas razões para a baixa
taxa de inclusão. Primeiro, a quantidade de empregos criados nas cooperativas de triagem:
apenas 1.500, nem de longe capaz de absorver os estimados 20 mil catadores da cidade.
Segundo, e ainda mais vexatório, a qualidade dos empregos colidia com as necessidades,
capacidades e lógicas dos catadores de rua. Contrariamente às expectativas das autoridades
municipais e de funcionários de ONGs como Ribeiro, os catadores de rua rejeitaram em
massa os convites para trabalhar nas cooperativas e os que aceitaram acabaram abandonando
esses empregos em algumas semanas. Para substituí-los, as cooperativas contrataram outros
trabalhadores precários, 93% dos quais nunca tinha trabalhado como catador e a maioria deles
não se identificava como catador. Sem dúvida, gerar empregos na economia solidária e verde
para esses trabalhadores carentes era um projeto altamente meritório. No entanto, milhares de
catadores continuavam a trabalhar nas ruas, onde eles coletavam muito mais materiais do que
a rota oficial, sem nenhum reconhecimento. Em entrevistas, muitos catadores afirmavam que
a concorrência da rota oficial havia reduzido seus ganhos.
Por que essas políticas inclusivas de reciclagem nos anos 2000 falharam em beneficiar
justamente a população que buscavam beneficiar? Esse dilema torna-se ainda mais intrigante
quando se considera que tais políticas nasceram sob condições aparentemente favoráveis:
durante a gestão de Marta Suplicy (2001-2004), do PT, um partido de esquerda, em meio a
um excelente momento da economia, que permitiu ao Estado brasileiro investir centenas de
milhões de dólares em iniciativas inclusivas de reciclagem, e através de processos
participativos que visavam a incluir os catadores e seus aliados da sociedade civil.
Considero que esse resultado perverso foi consequência da falta de voz e poder dos
próprios catadores nas fases mais importantes do processo de criação da política. Em primeiro
lugar, durante a fase de projeto, em 2000 e 2001, as ONGs reuniram fóruns de todos os
interessados para estabelecer os propósitos da política. Esses fóruns visavam a elevar as vozes
dos catadores de rua, mas acabaram por favorecer a expertise cnica das equipes das ONGs,
dos consultores e das autoridades governamentais. Em segundo lugar, durante a fase de
implementação, a prefeita Marta Suplicy (ligada a uma ala centrista do PT) priorizou os
interesses de corporações de gestão de resíduos sólidos e de empreiteiros privados. Portanto,
embora esse processo buscasse os ideais de-baixo-para-cima da coprodução iniciada por
297
Dilemas de Coprodução:
como catadores de rua em São Paulo foram excluídos da reciclagem inclusiva
(Tradução)
movimento social (CIMS), aos poucos desviou-se para a orientação de-cima-para-baixo da
coprodução iniciada pelo Estado (CIE).
Propostas de política pública através de fóruns com múltiplos interessados
Movimentos sociais latino-americanos de muito recebem apoio de ONGs, mas a
natureza desse apoio mudou no final do século XX. Se, nos anos 1970 e 1980, predominavam
as ONGs fragmentárias, com foco na organização de base, nas décadas seguintes essas
tornaram-se cada vez mais superadas por ONGs mais formais e mais profissionais
(Markowitz; Tice, 2002). O novo tipo de ONG foca no discurso político, na produção de
conhecimento especializado e na entrega de projetos para ajudar a traduzir demandas
populares por transformação sociocultural em produtos mensuráveis e ganhos políticos
concretos. A mudança foi parcialmente uma resposta estratégica a oportunidades criadas pela
democratização e por novas fontes de recursos. Alguns detratores afirmam, porém, que o
novo tipo de ONG despolitizou os movimentos sociais, apoiando com recursos somente as
atividades não ameaçadoras, e desmobilizou os movimentos sociais ao preterir a organização
de base (Petras, 1997).
O caso do movimento de catadores em São Paulo encaixa-se bem na tendência à
“profissionalização”, mas contradiz as teses de despolitização e desmobilização pelo menos
em suas formas mais restritas. No começo dos anos 2000, ONGs mais profissionalizadas
começaram a coordenar fóruns com múltiplos interessados para projetar e defender
cooperativas de catadores de rua sustentadas pelo Estado. Tratava-se de uma estratégia
explicitamente política para aumentar a capacidade de mobilização do movimento. Não
obstante, embora os fóruns tivessem sido planejados para incluir os catadores de rua, na
prática favoreceram a expertise técnica do pessoal das ONGs, consultores e representantes do
Estado. Portanto, esse caso destaca um outro risco da profissionalização: a criação de espaços
formais para projetar políticas públicas acaba por impedir, de fato, a participação de cidadãos
pobres.
Na virada do século, novas possibilidades políticas abriram-se pela ascensão do PT e
mudanças globais nas normas sobre ambientalismo e cidadania participativa. As ONGs
focadas em justiça social e ambiental usaram essa oportunidade para pressionar por uma
revisão radical da gestão
de resíduos sólidos
, com o objetivo de expandir imensamente os
298
ROSALDO, M.
__________________
serviços formais de reciclagem e de contratar as cooperativas de catadores para prover esses
serviços. Dada a complexidade e a magnitude desse projeto, as ONGs tentaram obter
contribuições e recursos de um leque de atores do Estado, do setor privado e da sociedade
civil. Um momento divisor de águas veio em 1998, com o lançamento do Fórum Nacional
Lixo & Cidadania, que reuniu 56 grandes instituições, incluindo agências do Estado,
organizações de catadores, ONGs e associações empresariais (Dias, 2006). Logo em seguida,
outros 23 fóruns estaduais e cem fóruns municipais de Lixo & Cidadania foram criados. Esse
período também viu a inauguração de duas instituições fundamentais para os direitos dos
catadores: o Movimento Nacional de Catadores de Materiais Recicláveis (MNCR) em 2001 e,
em 2003, o Comitê Interministerial para Inclusão Social e Econômica dos Catadores de
Materiais Reutilizáveis e Recicláveis (CIISC).
O Fórum Municipal de Lixo & Cidadania de São Paulo foi fundado em 2000. Naquele
ano, a cidade também viu o lançamento de duas outras alianças intersetoriais para promover
uma reciclagem inclusiva e uma rede municipal de organizações de catadores. Este estudo
concentra-se nesse Fórum, que desempenhou um papel central na coordenação das partes
envolvidas e na negociação com o governo municipal.
O evento foi constituído pelo Instituto Pólis
6
, uma organização da sociedade civil
(OSC) sem fins lucrativos, baseada em São Paulo, para democratizar a administração pública
e promover políticas públicas socialmente inclusivas. No ano 2000, a Pólis ajudou a organizar
uma série de oficinas, encontros de cúpula e reuniões de planejamento estratégico com
representantes de mais de 85 organizações, incluindo agências estatais, empresas,
organizações de catadores, ONGs e universidades. De acordo com Elisabeth Grimberg,
coordenadora de gestão de
resíduos sólidos
na Pólis e autora dos relatos mais abrangentes do
período, o Fórum usou uma “metodologia da moderação, que permitiu a construção coletiva
de proposições, a valorização de todas as intervenções sem hierarquizações, a formulação e
registro de consensos e dissensos” (Grimberg, 2007, p. 29).
O Fórum desenvolveu dois objetivos centrais de política pública: o lançamento de uma
campanha de educação pública de massa para ensinar o grupo de residentes a separar seus
resíduos e doar para os catadores”; e “a criação de um sistema de coleta, triagem,
comercialização de resíduos que integrasse os cerca de 20 mil catadores que atuavam nas
____________
6
Mais informações disponíveis em: <polis.org.br>.
299
Dilemas de Coprodução:
como catadores de rua em São Paulo foram excluídos da reciclagem inclusiva
(Tradução)
ruas” (Grimberg, 2007, p. 36). Para criar esse sistema, as lideranças do Fórum propuseram
que o governo municipal fizesse um grande censo dos catadores de rua da cidade. Esses
catadores recenseados seriam, em seguida, organizados num modelo de dois níveis, que
combinaria elementos de dois paradigmas: aquele que chamo de reconhecimento do catador
(cooperativas de carroceiros); e o da reciclagem inclusiva (cooperativas de triagem).
No primeiro nível, cooperativas formais de catadores ajudariam as empresas de gestão
de resíduos sólidos a coletar recicláveis ao longo de uma rota oficial e esse material seria
entregue a armazéns industriais, onde membros de cooperativas poderiam separá-los, enfardá-
los e vendê-los. A Secretaria Municipal de Infraestrutura Urbana e Obras pagaria o aluguel e
as contas de luz, água e gás, e compraria equipamentos para as cooperativas. As lideranças do
Fórum previram, porém, que os catadores de rua poderiam ter dificuldade para ajustar-se a
horários fixos, regras rígidas, normas profissionais, trabalho coletivo e tomada de decisões
democráticas. Por isso, propuseram um segundo nível, uma forma de organização
intermediária chamada núcleo ou seja, um grupo informal de três a dez catadores de rua. A
Prefeitura ofereceria aos núcleos treinamento, equipamento, espaços para separar recicláveis,
serviços sociais e a oportunidade de aderir às cooperativas formais de reciclagem. Em troca,
os núcleos recrutariam catadores para fora da rua, treinaria esses catadores e os
encaminhariam para o trabalho nas cooperativas. Os organizadores do Fórum chamaram essa
estratégia de catador-a-catador.
As lideranças do Fórum estavam certas em prever a dificuldade para levar os catadores
da rua para as cooperativas. Mas, como pondero, eles subestimaram a magnitude política e
logística desse desafio e superestimaram o desejo de e a capacidade dos catadores para
trabalhar nas cooperativas de triagem. Durante minha pesquisa de campo, alguns catadores
ativos naquela época reclamaram da falta de consulta no processo. Marco Bastos, por
exemplo, um catador da Zona Leste de São Paulo, disse:
Essas poticas foram ideia dos ricos, que não têm nada a ver com a nossa realidade.
(...) Colocaram um monte de técnico que nunca foi para a rua, que não sabe o que é
puxar uma carroça na rua. mandam para inventar uma moda, uma lei que não
tem como. Nunca foi feito um estudo com catador de verdade, uma pesquisa. Então,
acham que devem chegar lá, da cabeça deles e dizer que o catador está sofrendo, que
não pode viver desta maneira. Nunca pararam para pensar se o catador está contente
daquele jeito (Bastos, 2017).
Embora a frustração de Bastos seja compreensível, as lideranças do Fórum
conversaram com grupos de catadores organizados, alguns dos quais participaram
300
ROSALDO, M.
__________________
regularmente do Fórum. Então, por que tais equívocos não foram esclarecidos por meio de
diálogo? Em retrospectiva, alguns organizadores do Fórum questionaram a qualidade e a
quantidade da representação dos catadores de rua. Ribeiro, por exemplo, lembra que:
(...) organizações ambientais, instituições acadêmicas esse era o universo do
Fórum de Lixo & Cidadania. (...) Havia um pequeno contingente de catadores. E
os que ficaram o tempo todo já tinham sido organizados em cooperativas, então
estavam imersos nesse jeito de pensar. (...) Acredito que catadores autônomos
tinham dificuldade para representar a si mesmos (Ribeiro, 2017).
Grimberg concorda que catadores desorganizados tinham dificuldade para participar
em “espaços políticos formais” como o Fórum. Devido à ausência deles, admitiu, “nós
superestimamos sua prontidão para deixar as ruas e trabalhar em cooperativas de triagem”.
Mas, Grimberg observa que esse descuido também foi resultado dos limites em que o Fórum
operava:
Éramos um grupo de instituições da sociedade civil e de organizações de
catadores em busca de uma transformação radical da gestão
de resíduos sólidos
na
maior cidade do Hemisfério Sul. A dificuldade para estabelecer um novo sistema de
gestão
de resíduos sólidos
, combinado com a prestação de serviços de maneira
cooperativa, algo totalmente novo, absorveu quase todas as nossas energias. Então
pedimos à Prefeitura para fazer um censo e criar as condições para um engajamento
apropriado dos catadores de rua (Grimberg, 2020).
Ela também explicou que, no início dos anos 2000, São Paulo criaria um sistema
formal de reciclagem de qualquer maneira. O Fórum buscou garantir que os catadores fossem
incluídos no processo, mas o tinha a capacidade interna para identificar milhares de
catadores, consul-los e organizá-los. Então pediu ajuda ao Estado para essas tarefas, o que
nunca ocorreu.
Desafios para implementar as propostas do Fórum em políticas de Estado
A data de lançamento do Fórum parecia aleatória, mas apenas seis meses depois, em
outubro de 2000, as eleições para a Prefeitura de São Paulo foram vencidas por Marta
Suplicy, candidata do PT. Não obstante, as relações dos catadores com a nova prefeita seriam
tensas, em parte devido a uma mudança na agenda programática do partido. No final dos anos
1990, o PT começou a estabelecer alianças com partidos políticos de centro e com poderosos
lobbies empresariais para conseguir chegar ao poder federal. Isso levou a complexas
concessões de classe que combinavam política macroeconômica para agradar as empresas,
301
Dilemas de Coprodução:
como catadores de rua em São Paulo foram excluídos da reciclagem inclusiva
(Tradução)
programas redistributivos para os pobres e plataformas institucionalizadas para participação
dos movimentos sociais (Tarlau, 2019). Dentro desse vasto acordo, os movimentos populares
viveram um acesso sem precedentes ao Estado, mas com uma capacidade limitada para
avançar com políticas que conflitavam com os interesses empresariais.
Membro de uma das famílias mais ricas do Brasil, Marta Suplicy representava a
emergente face centrista do partido. Portanto, num momento em que prefeitos petistas de
cidades como Porto Alegre estavam recebendo aplausos internacionais por suas ousadas
políticas participativas e democráticas, Marta centralizou as decisões em seu gabinete,
delegando muito pouco poder a plataformas participativas e movimentos populares (Wampler,
2007).
Como candidata, ela prometeu apoiar a plataforma e os princípios do Fórum. Mas, no
segundo mês de sua gestão, em fevereiro de 2001, seu governo apresentou um modelo de rota
de reciclagem administrado exclusivamente por empresas de gestão privada, sem a
participação dos catadores. Grimberg lembra que:
(...) a [Secretaria Municipal de Infraestrutura e Obras] apresentava como modelo de
coleta seletiva soluções com tecnologias sofisticadas que não contemplavam a
participação dos catadores (...) que atua há décadas na cidade e no país, num esforço
de autoinclusão, praticamente sem apoios de governos (Grimberg, 2007, p. 32).
Ao longo dos meses seguintes, várias reuniões públicas foram realizadas para discutir
as propostas de gestão
de resíduos sólidos
e surgiram conflitos entre os militantes do Fórum e as
empresas de gestão
de resíduos sólidos
. Os militantes argumentavam que o município não
deveria contratar essas empresas sem antes delinear claramente um papel central para as
organizações de catadores. Representantes das empresas questionaram a eficiência e a eficácia
das propostas do Fórum (Manetti, 2016).
As autoridades municipais adotaram posições contraditórias nesse debate. Então, em
outubro de 2002, o governo municipal ignorou os militantes do Fórum ao anunciar uma lei
criada secretamente, que ameaçava entregar a indústria de reciclagem para as empresas do
setor com um papel apenas marginal para os catadores. Além disso, a lei estendia os contratos
com as empresas de quatro para 20 anos, com o argumento de que isso ajudaria a incentivar
investimentos de longo prazo em infraestrutura. Mas a lei não dava função alguma às
cooperativas de catadores nas rotas de reciclagem e estabelecia que a permissão” para que
trabalhassem nos armazéns de triagem dos recicláveis poderia ser revogada a qualquer
momento e por qualquer razão.
302
ROSALDO, M.
__________________
Em seguida, a Prefeitura abriu uma licitação para coleta de lixo e recicláveis e deu
concessões de 20 anos para duas empresas de gestão
de resíduos sólidos
. Também lançou uma
campanha de educação pública para ensinar os residentes a separarem recicláveis, que eram
coletados pelas empresas vencedoras da licitação ao longo de rotas específicas. Os recicláveis
eram entregues às cooperativas de triagem para separação e enfardamento. A gestão de Marta
Suplicy pretendia construir 31 cooperativas desse tipo, mas construiu apenas 15, onde cerca
de 814 pessoas trabalhavam (Jacobi; Besen, 2011). Enquanto Erundina cedeu espaço para a
Coopamare num bairro central da cidade, com muitos catadores de rua, Marta construiu as
cooperativas de triagem em bairros periféricos, onde o aluguel era mais barato e os vizinhos
não reclamariam. A Prefeitura pagou o aluguel e os serviços públicos (luz, água, gás etc.) das
cooperativas de triagem e forneceu os equipamentos, apoio técnico, treinamento e entregas
regulares dos materiais, mas não remunerou os empregados dessas cooperativas por seus
serviços ambientais, forçando-os a buscar sozinhos uma receita com as vendas dos
recicláveis.
Em suma, quem ganhou com as políticas de reciclagem inclusiva de Marta Suplicy
foram as empresas privadas de gestão
de resíduos sólidos
, que receberam lucrativos contratos de
20 anos para controlar o mercado de coleta de recicláveis. Para os membros das cooperativas
de triagem, esse período foi ambíguo. Marta construiu as primeiras 15 cooperativas de
triagem da cidade e forneceu infraestrutura e assistência técnica, mas rejeitou as demandas do
Fórum para que as cooperativas dos catadores recebessem contratos de longo prazo, uma
função na rota de reciclagem e remuneração por seus serviços ambientais
7
. Tudo isso deixou
as cooperativas de triagem num estado permanente de insegurança e dependência, confiando
nas entregas das empresas de gestão
de resíduos sólidos
e na boa vontade dos prefeitos para
sobreviver. A receita variava muito entre as cooperativas de triagem e ao longo do tempo, mas
a maioria pagava o salário mínimo, um valor insuficiente para viver na cidade mais cara da
América Latina. No processo, os maiores perdedores foram os catadores de rua organizados.
Resultados: marginalização política dos catadores de rua
Por volta de 2017, depois de 15 anos de políticas inclusivas de reciclagem, menos de
1% dos catadores de rua tinham sido incluídos na gestão formal
de resíduos sólidos
. Em vez
____________
7
Em 2015, a Prefeitura de São Paulo começou a contratar as cooperativas de catadores para coletar recicláveis
em bairros que o eram cobertos pela rota oficial.
303
Dilemas de Coprodução:
como catadores de rua em São Paulo foram excluídos da reciclagem inclusiva
(Tradução)
disso, o número de catadores de rua organizados declinou expressivamente desde o começo
dos anos 2000. Reconheça-se que as novas políticas públicas atingiram outros objetivos
importantes: produziram cerca de 1.500 empregos em cooperativas de triagem, educaram
milhões de residente sobre como separar recicláveis e aumentaram moderadamente as taxas
de reciclagem, mas o sistema informal de reciclagem continuava bem maior do que o sistema
formal em termos de quantidade de materiais reciclados, redução de gases do efeito estufa,
número de empregos gerados e custo-benefício para o público. Mesmo assim, os milhares de
catadores de rua que desempenhavam esse trabalho não recebiam reconhecimento oficial ou
remuneração.
Dois fatores levaram à exclusão funcional dos catadores de rua das políticas de
reciclagem inclusiva. O primeiro foi a negligência e a perseguição das organizações de
catadores de rua. No começo dessas políticas de inclusão, em 2003, a Prefeitura trabalhava
com 30 núcleos, representando perto de mil catadores de rua. Mas em 2004, quando foram
instaladas as 15 cooperativas de triagem, a cidade cortou relações com todos os núcleos.
Grimberg descreve a situação, percebida como uma traição:
Nas inúmeras reuniões que foram realizadas pelos fóruns… os integrantes dos
núcleos de catadores reiteravam seu desespero quanto à situação de abandono em
que viviam, especialmente após a criação das centrais. Sob forte angústia, os
catadores dos núcleos apontavam que a Prefeitura priorizara a estruturação da
infraestrutura pública, do sistema de coleta seletiva para a disponibilização de
materiais, além de um certo suporte na capacitação das cooperativas que operavam
nas centrais. Mas criticavam o fato de os núcleos terem ficado fora deste processo
(Grimberg, 2007, p. 89).
Sem apoio do poder público, a maioria dos núcleos debandou.
Marta Suplicy foi sucedida por dois prefeitos conservadores, que continuaram a apoiar
e gradualmente expandir as cooperativas de triagem, mas despejaram de suas sedes a maioria
das organizações de catadores de rua. Esses despejos costumavam ter duas justificativas: as
organizações de carroceiros eram anti-higiênicas” e apresentavam “riscos de incêndio”. Os
carroceiros, porém, achavam que o motivo era outro: higienização, ou seja, limpeza social de
populações indesejadas no espaço público. Não por acaso, os prefeitos conservadores também
montaram “uma ofensiva completa, bem planejada e administrativamente hermética” contra
camelôs (Cuvi, 2016, p. 396), reprimiram grafiteiros e despejaram acampamentos de sem-
teto.
Naquele período, a maioria das organizações de catadores de rua se viu forçada a
fechar ou mudar para o modelo da cooperativa de triagem. Em 2005, por exemplo, a
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ROSALDO, M.
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Coopamare trabalhou com cerca de 300 catadores que eram membros das cooperativas de
triagem ou vendiam materiais lá. Mas, naquele ano, a Prefeitura pressionou a Coopamare para
não mais comprar materiais dos catadores de rua e mudar para o modelo de triagem, sob
ameaça de despejo. Por volta de 2017, restavam 23 membros na Coopamare, muitos dos
quais nunca tinham trabalhado como catadores de rua. Na época, duas organizações de
carroceiros ainda funcionavam em São Paulo e ambas estavam sofrendo processos de
despejo.
8
O outro fator que levou à exclusão dos catadores de rua das políticas inclusivas foi a
rejeição das cooperativas de triagem. A vasta maioria dos 814 membros das 15 cooperativas
iniciais eram catadores de rua, mas quase todos saíram logo. Um pequeno grupo permaneceu,
em geral ocupando posições de liderança, mas o conseguiram atrair mais catadores de rua.
Em vez disso, acabaram contratando outros trabalhadores precários, que eram oficialmente
classificados como catadores, embora nunca tivessem trabalhado com isso.
Nos anos que se seguiram ao mandato de Marta Suplicy, houve um único esforço
de larga escala para recrutar catadores de rua para as cooperativas de triagem. Entre 2012 e
2014, o MNCR operou um programa federal chamado CataRua: uma equipe de três líderes do
MNCR (todos ex-catadores de rua) e três técnicos percorreram as ruas de São Paulo em busca
de catadores de rua. Eles encontraram 815 e convidaram todos a entrar para cooperativas.
seis deles aceitaram o convite e não houve acompanhamento posterior para saber quantos
permaneceram nas cooperativas de triagem (Manetti, 2016).
Em 2016 e 2017, meu levantamento dos líderes das 21 cooperativas de triagem
formais constatou que apenas 7% dos membros já haviam trabalhado como catadores de rua.
A maioria dos deres dessas cooperativas desistiram de recrutar catadores de rua. Eles
acreditavam, então, que a missão social de suas cooperativas era criar empregos para
desempregados, em vez de melhorar as vidas dos catadores de rua. Dezessete dos
entrevistados disseram que o faziam qualquer esforço especial para recrutar catadores de
rua. Os outros quatro disseram que, de vez em quando, convidavam catadores de rua para as
cooperativas, mas os convites eram quase sempre rejeitados. Como explicou um deles, que já
havia trabalhado como catador de rua, “o catador de rua trabalha quando quer, onde quer. Ele
não presta contas a ninguém. Faz tudo como lhe agrada. E, de repente, você tenta colocá-lo
num trabalho coletivo. O catador não se encaixa nesse cenário, então ele sai” (Pedro, 2016).
____________
8
Graças, em parte, ao apoio político do MNCR, as duas cooperativas de catadores de rua acabaram evitando o
despejo. No entanto, seu futuro permanece incerto.
305
Dilemas de Coprodução:
como catadores de rua em São Paulo foram excluídos da reciclagem inclusiva
(Tradução)
Discussão: a rejeição dos catadores às cooperativas de triagem
O cara que diz que tem que acabar com catador e carroceiro nunca foi
carroceiro, só sabe criticar, é um opositor do trabalho que a pessoa faz. É um
grande idiota que não sabe nem o que é puxar uma carroça no meio da rua.
Não sabe o que é ter a liberdade de trabalhar e não ter patrão enchendo o
saco e falando na sua orelha… quando a pessoa está trabalhando com sua
carroça na rua, não tem ninguém para cobrá-la e nem encher o saco, de dar
um horário ou regra para ela. Por isso que o carroceiro se torna carroceiro. O
carroceiro de verdade não aceita ser mandado, ele é livre. Não é porque ele
quer fazer do jeito que ele acha que é certo, o carroceiro de verdade sabe
trabalhar. E o ganho dele é muito maior do que quem está trabalhando dentro
de uma cooperativa, com certeza.
Marco Bastos (2017),
catador de rua, Zona Leste de São Paulo
Por que os catadores de rua sempre rejeitam as oportunidades para trabalhar nas
cooperativas de triagem? Marco Bastos destaca duas razões, repetidas nas entrevistas com
muitos catadores e líderes de cooperativas. Em primeiro lugar, embora muitos catadores de
rua tivessem uma visão mais crítica de seu trabalho do que Bastos, a maioria concordou que
tinham uma vantagem sobre outros empregos disponíveis: uma certa medida de controle sobre
quando, onde e como trabalhavam. Como diz a antropóloga Kathleen Millar (2018), essa
“autonomia relacional” ajuda os catadores a se adaptarem às urgências cotidianas da vida.
Uma catadora de rua explicou que, se seu filho ficasse doente, por exemplo, ela tirava o dia
para cuidar dele ou trabalhava horas extras para pagar pelos remédios. Importante notar que a
autonomia relacional facilita não apenas a sobrevivência dos catadores, mas também sua
busca de sentido. Embora os ideais burgueses de sucesso estivessem para além da percepção
de Bastos, ele buscava sua própria visão do que Millar (2018) chama de “boa vida”, com foco
em valores de independência, coragem e usufruto do presente.
Em segundo lugar, como Bastos sugere, os catadores de rua tinham uma renda
moderadamente maior do que os salários médios dos membros das cooperativas de triagem.
De acordo com meu levantamento, em 2016 quase metade das 21 cooperativas de triagem
pagavam o salário mínimo federal (US$ 220 por mês) ou menos e muitas desistiram de pagar
os trabalhadores por muitos meses, devido a déficits no orçamento. A maioria das
cooperativas ofereciam benefícios sociais e seguro de saúde. Os catadores de rua não recebem
nada disso, mas muitos afirmaram ganhar entre 1,5 e 2 salários nimos, uma renda advinda
da venda de recicláveis, que eles suplementavam com biscates ou recuperando certos itens do
306
ROSALDO, M.
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lixo para reuso ou revenda. Uma causa básica para os salários relativamente baixos nas
cooperativas de triagem era a quantidade inconstante e a baixa qualidade dos materiais
entregues pela rota oficial de reciclagem, a maioria dos quais precisava ser jogada fora. Os
catadores de rua, porém, coletavam materiais valiosos. Como disse um deles, “o poder
público está sufocando as cooperativas, forçando-as a suplicar por mais materiais... Nós, os
catadores, ganhamos mais porque não dependemos da Prefeitura” (Soares, 2017).
Quando perguntei a funcionários das ONGs e líderes do MNCR sobre a baixa
participação de catadores nas cooperativas de triagem, alguns culparam a Prefeitura por seu
recorrente fracasso na implementação das propostas apresentadas pelo Fórum 15 anos antes.
Afinal, argumentaram, com mais apoio do governo os núcleos teriam recrutado os catadores
de rua e preparado todos eles para trabalhar nas cooperativas de triagem. Se o governo tivesse
aplicado recursos para melhorar a renda e as condições de trabalho nas cooperativas de
triagem, os catadores teriam tido mais incentivos para aderir. E, se o governo tivesse
construído mais cooperativas de triagem, elas poderiam ter empregado uma parcela maior dos
20 mil catadores de rua da cidade.
Em contraste, minha própria pesquisa sugere que, embora essas políticas pudessem ter
gerado significativos benefícios sociais e ambientais, elas provavelmente levariam somente a
um aumento marginal na inclusão de catadores nas cooperativas de triagem, pois o projeto das
cooperativas de triagem colidia com as necessidades, capacidades e lógicas da maioria dos
catadores de rua. Afinal, em 2003, no auge do apoio da Prefeitura aos núcleos, os catadores de
rua ainda rejeitavam esmagadoramente os empregos nas cooperativas de triagem.
Minha pesquisa também descobriu que as cooperativas que ofereciam os melhores
salários e condições de trabalho tinham as mais baixas taxas médias de inclusão de catadores
de rua provavelmente porque atraíam mais concorrência pelos empregos. Além disso, a
rejeição das cooperativas de triagem pelos catadores de rua o parecia limitada a São Paulo.
Fiz algumas entrevistas com o pessoal das ONGs e das cooperativas em outras grandes
cidades brasileiras, como Rio de Janeiro, Belo Horizonte e Porto Alegre, e eles reportaram
baixas taxas de participação de catadores de rua, semelhantes às de São Paulo. Mas os
catadores de lixões, acostumados a trabalhar coletivamente em espaços mais confinados,
pareciam aceitar melhor as cooperativas de triagem. Mais pesquisas de acompanhamento sãos
necessárias para testar se é possível generalizar essa constatação para todas as grandes cidades
brasileiras.
307
Dilemas de Coprodução:
como catadores de rua em São Paulo foram excluídos da reciclagem inclusiva
(Tradução)
Conclusões
Sob quais condições a colaboração entre precários trabalhadores informais e o Estado
para oferta de serviço público pode produzir sinergias socialmente benéficas e quando pode
intensificar as desigualdades? Este artigo abordou essa questão por meio de um estudo de
caso comparativo entre dois esforços para coproduzir serviços de reciclagem em São Paulo,
com resultados completamente diferentes. Evidências anedóticas sugerem que o primeiro, um
esforço de organização de base nos anos 1980 e 1990, elevou a renda, as condições de
trabalho e as vozes de centenas de catadores e inspirou um movimento nacional. O segundo,
uma revisão ambiciosa da gestão de resíduos no começo dos anos 2000, gerou cerca de 1.500
novos empregos para residentes de baixa renda, mas funcionalmente excluiu justamente a
população de catadores de rua que seria a principal beneficiária do projeto. A análise desses
resultados diferentes confirma um conceito central dos estudos sobre coprodução iniciada por
movimento social (CIMS): resultados favoráveis aos pobres são mais prováveis quando
esforços conjuntos para nivelar as relações de poder assimétricas entre os participantes
pobres, de um lado, e, de outro, os mais poderosos, como as equipes das ONGs e as
autoridades do Estado. Estendo essa percepção ao identificar estratégias e contextos
específicos em que é mais provável que a coprodução promova justiça social e
sustentabilidade urbana.
Em primeiro lugar, resultados que beneficiam os pobres são mais prováveis quando
emergem de processos de projeto de política pública apoiados por ONGs que priorizam o
conhecimento prático e a experiência de vida dos pobres. Nos anos 1980 e 1990, freiras de
uma ONG católica fizeram isso ao se inserirem nas vidas e no trabalho dos catadores e pela
criação conjunta de um modelo de organização, por meio de anos de processo de
experimentos de campo e reflexão coletiva. No início dos anos 2000, em contraposição, o
pessoal das ONGs organizou fóruns e oficinas com múltiplos interessados para projetar
propostas abstratas de política pública para uma revisão radical da indústria de reciclagem.
Esse processo pretendia incluir as vozes dos catadores, mas acabou favorecendo a expertise
técnica do pessoal das ONGs, da academia e das autoridades do Estado e todos
superestimaram o desejo e a capacidade dos catadores para trabalhar em cooperativas
industriais. É importante notar que esse resultado também refletiu uma vasta mudança na
natureza das ONGs latino-americanas. Nos anos 1970 e 1980, a maioria dessas ONGs era
fragmentária e estava focada na organização de base, mas, nas duas décadas seguintes, foram
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ROSALDO, M.
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superadas por ONGs profissionais, com foco em discurso político, produção de conhecimento
especializado e entrega de projetos (Markowitz; Tice, 2002). Portanto, esse caso destaca como
a profissionalização das ONGs pode ser um risco para a CIMS: a criação de espaços formais
para o projeto de políticas públicas dificulta a participação dos pobres.
Em segundo lugar, é preciso empenho para elevar a voz e o poder dos pobres, não
apenas no propostas de políticas públicas, mas também em sua implementação. Nesse quesito,
os catadores de São Paulo dependeram muito da boa vontade de autoridades eleitas, pois
tinham pouca influência política externa. Assim, não é surpresa que as duas iniciativas de
coprodução discutidas neste artigo tenham sido implementadas por prefeitas de um partido
socialista e democrático, o PT. As prefeitas, porém, representavam correntes muito diferentes
dentro do partido. Erundina (1989-1992) pertencia à ala mais à esquerda do PT, que acabou
sendo cada vez mais marginalizada, levando-a a deixar o partido em 1997. Como prefeita, ela
tratou os movimentos populares como seus eleitores mais importantes e até cedeu um terreno,
em bairro afluente, para a primeira cooperativa de catadores do Brasil, a despeito da reação
NIMBY
9
. Já Marta Suplicy (2001-2004) representava uma nova face do partido, mais
centrista, que buscava combinar políticas macroeconômicas favoráveis aos negócios com
programas sociais redistributivos. Ela fez concessões a algumas das demandas dos catadores,
mas priorizou os interesses de empresas privadas de gestão de resíduos e praticamente
abandonou o apoio oficial às organizações dos catadores de rua a maioria das quais foi
perseguida e despejada pelos subsequentes prefeitos de direita. Esse caso, portanto, ilustra o
perigo de que as alianças de autoridades do Estado com lobbies empresariais possam minar o
potencial da coprodução favorável aos pobres.
Em terceiro lugar, o caso demonstra como as estratégias de coprodução são
formuladas não apenas pelas escolhas de atores locais, mas também pelos contextos nacional
e global em que operam. Além da profissionalização das ONGs e do acordo de classes do PT,
uma terceira mudança estrutural que restringiu as estratégias de coprodução foi a
formalização da coleta de recicláveis. Nos anos 1980 e 1990, a indústria de reciclagem ainda
era pequena e informal, e essa obscuridade relativa deu aos catadores e a seus aliados uma
margem de manobra para fazer experiências com projetos-piloto de base. Essas estratégias
não seriam viáveis nos anos 2000, quando a crescente produção de resíduos, a demanda
____________
9
Nota da Tradutora: em inglês, NIMBY significa “not in my backyard” (não no meu quintal).
309
Dilemas de Coprodução:
como catadores de rua em São Paulo foram excluídos da reciclagem inclusiva
(Tradução)
industrial e a consciência ambiental levaram cidades em toda a América Latina a começar a
formalizar os serviços de reciclagem.
Rotas formais de reciclagem e usinas de processamento seriam implementadas de
qualquer maneira, pois eram marcas do status de “cidades de primeira classe” e
representavam oportunidades lucrativas para empresas de gestão de resíduos. Portanto, os
organizadores do Fórum trataram de garantir que o sistema formal de reciclagem incluísse os
catadores. Por causa da complexidade e da magnitude do projeto, eles acreditavam que era
necessário ouvir e obter o apoio de um leque de atores do Estado, do setor privado e da
sociedade civil por meio de fóruns com múltiplos interessados. Esse processo não deu certo
para formalizar um grande número de catadores, mas o está claro quais estratégias
alternativas poderiam ter produzido resultados melhores.
Embora restrições estruturais tenham contribuído para a marginalização política dos
catadores paulistanos, é necessária uma ação deliberada para reverter a tendência. Um
primeiro passo seria uma discussão mais sincera sobre as deficiências das atuais políticas de
coprodução da cidade. Na literatura acadêmica, na mídia popular e nas publicações das
ONGs, a impressão prevalente é de que muitos catadores estavam fazendo a transição da rua
para as cooperativas de triagem, onde podiam ter condições de trabalho e renda superiores.
Essas alegações precisam ser testadas por meio de pesquisa empírica rigorosa.
Como segundo passo, devemos questionar premissas que são a base do atual modelo
de inclusão de catadores. Muitas autoridades municipais continuam a ver os catadores como
uma profissão de último recurso, e partem da ideia de que os catadores de rua vão correr para
a oportunidade de trabalhar nas cooperativas de triagem. Em contraste, minha pesquisa sugere
que a maioria dos catadores tem acesso a outros empregos de baixa renda, mas não têm
vontade ou capacidade para seguir horários e regras rígidos. Esses fatos não devem nos levar
a romantizar a profissão uma forma de trabalho de baixa remuneração, perigosa e
estigmatizada. Em vez disso, devemos ser mais críticos das formas disponíveis de emprego de
baixa renda, em cooperativas ou o. Como me disse Isabella Vallin (2017), técnica do
MNCR, “no capitalismo, a insegurança, o perigo e a humilhação não são características
apenas dos catadores, mas de toda a classe trabalhadora”.
Um terceiro passo: catadores organizados e seus aliados devem identificar modelos de
política pública que visem a reconhecer e fortalecer o trabalho dos catadores nas ruas, em vez
de apagá-lo e substituí-lo. muitos exemplos internacionais atraentes desse tipo de
abordagem, de Bogotá a Pune. Mas pode estar no passado da própria cidade o ponto de
310
ROSALDO, M.
__________________
partida mais promissor para pensar sobre um futuro modelo de inclusão de catadores em São
Paulo.
Agradecimento
Estou grato aos muitos catadores e aliados que compartilharam comigo suas percepções e
experiências. Estou especialmente grato a Davi Amorim, Beth Grimberg, Rizpah Besen e
Sonia Dias por suas ajudas na pesquisa. Comentários valiosos nas primeiras versões deste
artigo foram feitos por Calla Hummel, Katy Fox Hodess, Pablo Gaston e Peter Evans. Por
fim, agradeço a Leda Beck por seu cuidadoso e belo trabalho de tradução.
Entrevistas
Todas as entrevistas foram pessoais, em São Paulo; uma delas foi por telefone, como
indicado.
BASTOS, Marco. 2017. Catador de rua. 5 de julho.
CARVALHAES, Paulo de Tarso. 2017. Assistente jurídico da Coopamare. 1º de junho.
FERREIRA DE PAULA, Eduardo. 2017. Membro da Coopamare. 21 de junho.
GRIMBERG, Elisabeth. 2020. Por telefone. 17 de fevereiro.
MANETTI, Viviane. 2016. Funcionária de ONG. 3 de julho.
MANUEL, Maria Regina. 2017. Membro da equipe da OAF. 8 de maio.
PEDRO, Wilson. 2016. Líder de cooperativa de triagem. 17 de junho.
RIBEIRO, Enrique. 2017. Funcionário de ONG. 7 de março.
SOARES, Philippe. 2017. Catador de rua. 24 de setembro.
VALLIN, Isabella. 2017. Membro do MNCR. 22 de junho.
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Dilemas de Coprodução:
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