ISSN 1517-5901 (online)
POLÍTICA & TRABALHO
Revista de Ciências Sociais, nº 59, Julho/Dezembro de 2023, p. 315-320
A SOCIOLOGIA DO TRABALHO VAI AOS MERCADOS POPULARES
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SOCIOLOGY OF WORK GOES TO THE POPULAR MARKETS
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Tiago Magaldi
RANGEL, Felipe. A empresarização dos mercados populares: trabalho e formalização
excludente. Belo Horizonte: Fino Traço, 2021.
O livro toma por objeto o processo de “empresarização” do comércio popular
brasileiro a partir da análise das transformações no setor observadas no contexto paulistano,
em um esforço de interpretação do processo de reordenamento desse tipo de atividade nas
capitais brasileiras. Recorrendo a uma abordagem fundamentalmente etnográfica, e tomando a
Feirinha da Madrugada como espaço privilegiado de análise, Rangel reconstrói as
intrincadas relações sociais e comerciais desenvolvidas nas feiras e shoppings populares da
região do Brás, no centro da cidade de São Paulo, buscando o sentido das mudanças em curso
na região, tanto em termos “objetivos”, isto é, econômico (formas de entrada nas diferentes
atividades comerciais, relação dos comerciantes com os clientes e entre si, estratégias de
gerenciamento do negócio, seleção de produtos, magnitude do capital envolvido) e
administrativo (modelos de organização do espaço e da atividade comercial) quanto
“subjetivos” (hierarquias nativas estabelecidas entre os comerciantes, fundamentos
normativos acoplados à atividade, expectativas para o futuro, disciplinamento para o trabalho
no comércio). O intuito foi o de retratar o fenômeno da “empresarização” enquanto uma
forma contemporânea de expropriação, destacando seu movimento de conjunto e as
assimetrias de poder dos atores envolvidos sem descuidar da relevância sociológica da
agência dos comerciantes no chão de loja”, isto é, daqueles que historicamente criaram o
Brás enquanto ponto comercial visado e rentável.
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O presente trabalho foi realizado com apoio da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior
(CAPES). Código de Financiamento 001.
Professor substituto da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), doutor em Sociologia pela
Universidade Federal de São Carlos (UFSCar). E-mail: tmgranato@gmail.com
MAGALDI, T.
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Nesse sentido, trata-se de um trabalho que investiga as dinâmicas do trabalho informal
sobretudo a partir da perspectiva de seus protagonistas cotidianos, na trilha classicamente
aberta, no Brasil, por Luiz Antônio Machado da Silva (1979, 2002, 2018), e que recebeu
contribuições importantes nas últimas duas décadas (Durães, 2013; Kopper, 2015; Sakai,
2011). Essa perspectiva é enriquecida por dois movimentos teóricos que visam a informar o
sentido da análise e a ampliar o seu alcance: o primeiro é uma aposta sobre as mudanças em
curso no horizonte de expectativas do mundo do trabalho brasileiro, no sentido de uma cultura
do trabalho mais individualista e instável (Lima, 2010), um desencantamento da relação
salarial clássica descrita por Castel (1998); o segundo é adoção da tese da expansão mundial
de uma “racionalidade neoliberal”, isto é, a tendência à universalização do princípio de
concorrência tanto como razão de governo quanto como mediador normativo das relações
sociais na contemporaneidade (Dardot; Laval, 2016).
O argumento do autor é conduzido por duas linhas de análise: na primeira, busca
descrever a experiência de trabalho no comércio popular informalizado em seus detalhes e
compreender quais percepções e horizontes de expectativas estão entrelaçados nos
protagonistas da atividade, e em que medida tais dimensões aparecem e se modificam no
decorrer da trajetória dos trabalhadores, tendo por referência de comparação, por contraste, o
trabalho assalariado formal clássico; na segunda, de maior nível de abstração, o autor
investiga se e em que medida os projetos de “reordenamento” do comércio popular da cidade
de São Paulo produzem uma espécie de gentrificação do trabalho, isto é, a substituição, nos
pontos de venda, de trabalhadores com pouco capital escolar e financeiro por outros, melhor
equipados em ambas as dimensões, e que se identificam enquanto empresários (Rangel,
2021, p. 29). Esse processo teria como resultado e símbolo maior a construção de grandes
shoppings populares, administrados por conglomerados empresariais atraídos pelas
oportunidades de lucro gestadas naqueles espaços. Ambas as linhas se encontram no objetivo
de analisar as mudanças no comércio popular brasileiro como um todo, tanto no que tange ao
processo de trabalho em si quanto às condições de trabalho (incluindo os complexos estatutos
jurídicos dos trabalhadores/comerciantes), passando pelas interpretações dos trabalhadores
sobre a sua atividade. A motivação de conjunto do autor é a intuição de que uma profunda
reestruturação objetiva e subjetiva no comércio popular com o surgimento das galerias e
shoppings populares, iniciativas que projetam uma imagem dessa atividade que em nada se
assemelha à do senso comum, isto é, como algo feito exclusivamente para a sobrevivência,
que envolve valores módicos, sendo caótico e sujo, uma atividade “marginal” (no duplo
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(Resenha)
sentido de ilegal e realizada por populações marginalizadas). Tal conjunto de mudanças é
sintetizado na expressão empresarização do comércio popular, na qual está embutido um
processo de “formalização excludente” (Rangel, 2021, p. 145).
A metodologia é de inspiração etnográfica, tendo sido desenvolvida na Feirinha da
Madrugada” e nas galerias e shoppings populares do bairro do Brás, no centro de São Paulo.
Os atores postos em cena são apresentados sobre o pano de fundo de suas trajetórias, bastante
diversas entre si, mas cujas atividades, seus sucessos e fracassos estão interligados pelas
tramas do comércio popular na região. A cuidadosa análise da prática comercial dos sujeitos
pesquisados proporciona o estofo sociológico que justifica o trabalho: trata-se de,
reconhecendo-se que se es diante de um fenômeno relativamente novo, compreender e
explicar em que medida o emaranhado de práticas e expectativas que constitui o comércio
popular atual constrói “relações, estilos de vida e subjetividades” (Lima; Pires, 2017, p. 774)
no contexto do capitalismo brasileiro contemporâneo de corte neoliberal, e não apenas de
denunciar a precariedade da situação dos trabalhadores analisados embora isso também seja
feito.
Assim, conhecemos as trajetórias de Davi, Omar, Vicente, Claudia, e de outros
trabalhadores, bem como as suas próprias interpretações sobre elas. Somos apresentados ao
modo como chegaram ao Brás, a como se instalaram, aprenderam os rudimentos da atividade,
ganharam ou perderam dinheiro; a como criaram expectativas com o negócio ou se
frustraram; a como se reinventaram para driblar as dificuldades, fossem elas práticas
relativas a capital, à escolha de mercadorias ou às ondas de imposição normativa do poder
público ou de agentes privados “reguladores” do espaço ou subjetivas, como, por exemplo,
a importância do autodisciplinamento na organização estratégica dos investimentos em
momentos-chave do ano, ou a tentativa de realizar uma “limpeza simbólica” (Silva, 2008)
presente na distinção hierárquica entre “camelôs”, comerciantes” e “fabricantes”
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, estando os
primeiros na posição mais vulnerável, reprimidos pelas autoridades públicas e estigmatizados
por todos, incluindo os segundos. Em seu conjunto, oferecem um retrato multifacetado das
suas duras condições de trabalho e de sua vulnerabilidade.
Na segunda parte da obra, somos apresentados aos movimentos sociológicos mais
amplos nos quais tais atores típicos estão inseridos. Podemos pensá-la como uma sociologia
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2
Distinção esta que, a propósito, permite à análise ir além do que permitiria o recurso à noção de um
“trabalhador do comércio popular” genérico, analiticamente reconhecível apenas por sua condição de
“trabalhador”.
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da mudança da inserção no trabalho dos comerciantes apresentados na primeira parte. Trata-
se, então, de apresentar a empresarização do comércio popular propriamente dita enquanto
movimento que se estende para além das fronteiras do Brás e mesmo de São Paulo: enquanto
uma faceta do capitalismo brasileiro. Da Feirinha da Madrugada, de origem quase
improvisada no início dos anos 2000, o autor nos conduz aos grandes shoppings populares do
final dos anos 10, resultados de investimentos massivos por parte de grandes grupos
empresariais de atuação nacionalizada e com livre trânsito nos governos municipais e
estaduais. São empreendimentos que significam “muito mais do que simples espaços
comerciais”. Eles funcionariam enquanto “dispositivos econômicos e de disciplinamento do
trabalhador comerciante” (Rangel, 2021, p. 160). Aqui somos apresentados a um “novo
perfil” de trabalhador nessa atividade, que representa, na prática, o trabalhador do comércio
popular “empresarisado”. É um trabalhador que se certifica em cursos do SENAI e do Sebrae
e tem grandes empresários por referência pessoal e profissional de sucesso. Como eles, esses
trabalhadores se veem como “empresários” em busca de “oportunidades”. Nos shoppings
populares, os custos do empreendimento tornam-se impeditivos para os comerciantes
“tradicionais”, como os que transformaram o Brás e seus arredores em um ponto pujante do
comércio popular paulistano e brasileiro. Rangel apresenta a trajetória da Feirinha da
Madrugada, portanto, como uma síntese do processo de empresarização do comércio popular:
gentrificação do trabalho, formalização excludente e disciplinamento subjetivo para uma
lógica empreendedora.
A despeito do percurso muito bem construído do livro teórica, analítica e
empiricamente , um ponto sobre o qual, creio, cabe uma reflexão crítica. Enxergo pelo
menos duas posições contra as quais o autor frequentemente argumenta, mas que me
pareceram pouco explicitadas no texto. A primeira advém do campo empírico: trata-se do
discurso que estigmatizaria o comércio popular como sujo, ilegal, marginal, atividade de
pessoas “pobres” em geral, caótico etc. O leitor encontrará uma referência empírica a isso
no capítulo 5, em uma seção rápida e, no entanto, o autor afirma estar procurando desconstruir
o que chama de “discurso hegemônico” sobre o comércio popular. Se assim for, seria
importante não apenas afirmar a existência desse discurso, como comprová-lo empiricamente:
como e por quais meios torna-se real, isto é, uma força social capaz de produzir efeitos, a
visão de que o comércio popular é tudo isso que o autor diz que dizem dele? Frise-se que
Rangel não descuida inteiramente dessa dimensão, trazendo perspicazmente o discurso
higienista presente em um relatório da “Associação Viva o Centro” (Rangel, 2021, p. 147).
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(Resenha)
Trata-se apenas aqui de sugerir que esse ponto da análise seja adensado, de modo a que o
argumento se torne polemicamente mais agudo.
A segunda posição não explicitada se encontra no nível teórico. É o diálogo velado
com um tipo de marxismo muito presente nos estudos brasileiros do trabalho. O autor
explicita logo na introdução a tradição de estudos do trabalho à qual se filia, valendo-se de
autores que privilegiam uma abordagem metodológica rente aos agentes investigados (Luiz
Antônio Machado da Silva, Reginaldo Prandi, Vera Telles, Fernando Rabossi, Jacob Lima,
dentre muitos outros), fazendo largo uso de interpretações nativas. Isso não significa que não
esteja atento a fenômenos macroestruturais, como já indiquei acima, mas sim que a pedra de
toque do estudo são os próprios sujeitos inseridos em seus campos de possibilidades objetivas
e nas suas expectativas subjetivas. Além disso, o autor compreensivelmente critica as
abordagens que tendem a “caracterizar o momento presente pela „falta‟, em relação à
idealização de uma sociedade salarial nunca efetivada” (Rangel, 2021, p. 23): investigar o
comércio popular percebendo nele apenas as ausências em relação ao trabalho protegido seria
ignorar alguns dos elementos mais característicos da atividade. No entanto, Rangel parece ter
preferido o travar um embate direto com essa tradição
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. Ter abertamente se posicionado no
interior da bibliografia auxiliaria aqueles que se debatem com um problema semelhante
como o autor desta resenha , qual seja, o de como produzir uma sociologia do trabalho que
reconheça e problematize a precariedade da condição de trabalhador no Brasil ao mesmo
tempo em que se coloque rente aos sujeitos, tomando suas interpretações como legítimas, e as
variações e limites dessas enquanto conformadores da situação de classe particular ao
contexto pesquisado, indo além da mera denúncia dos meandros e da intensidade da
exploração capitalista. Trata-se de uma questão quase lateral à análise propriamente dita, que
não necessita de tal transparência para se sustentar, mas cujo enfrentamento aberto
contribuiria para o fortalecimento do fecundo veio de análise no qual se inspira.
Tais observações críticas obrigação do resenhista o devem obscurecer o fato de
que estamos diante de uma análise brilhante. Rangel é cuidadoso ao entretecer elementos
objetivos e subjetivos em um resultado admiravelmente equilibrado. A análise aponta para a
mudança não apenas dos mecanismos concretos pelos quais se organiza o trabalho no
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Encontramos um exemplo cristalino desse “diálogo veladona seguinte passagem: “Vale dizer que analisar
essas práticas comerciais e os sentidos atribuídos a elas a partir da atenção às formas pelas quais os sujeitos
conferem plausibilidade às suas vidas certamente nos leva a caminhos diferentes daqueles encontrados, por
exemplo nas análises que tratam os significados atribuídos às práticas como efeitos diretos dos processos
ideológicos, em que a preocupação maior é com as conexões que os indivíduos não seriam capazes de fazer, em
detrimento das formas em que se elaboram efetiva e cotidianamente as experiências” (Rangel, 2021, p. 26).
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comércio popular hoje das feirinhas informais aos shoppings (a empresarização) , e que
produz novas modalidades de exclusão e de apropriação dos frutos do trabalho (a
formalização excludente), mas também da própria identidade do trabalhador enquanto tal,
que, para ter acesso aos espaços “formalizados” do comércio popular se insere em um
processo de disciplinamento de si e de sua atividade, abandonando sua identidade de
“comerciante” e produzindo a de empresário”. É, sem dúvida, uma abordagem que
aprofunda a compreensão da sociologia do trabalho acerca de como os trabalhadores do
comércio popular, por vezes invisibilizados e/ou homogeneizados em sua condição de
“informais”, interpretam, em seus termos, o mundo do trabalho brasileiro e seus desafios, e
como são por ele afetados.
Referências
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RANGEL, Felipe. A empresarização dos mercados populares: trabalho e formalização excludente. Belo
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Recebida em: 01/03/2023
Aceita em: 06/06/2023
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