Paisagem e Sepultamentos nas Terras Altas
do Sul do Brasil

João Darcy de Moura Saldanha1

Resumo

O presente artigo tem como objetivo explorar dados arqueológicos em duas regiões das terras altas do sul do Brasil, através de dois vetores de variabilidade: os sítios e as práticas funerárias, entendidos a partir de uma perspectiva interpretativa.
Através da exploração destes dois vetores, é sugerida uma diferença significativa nas formas de implantação na paisagem e no tratamento aos mortos, apesar da semelhança na cultura material nas duas regiões. Com isto, o artigo contribui para problematizar a equação cultura material versus grupo étnico, tão utilizada na arqueologia das terras altas do sul do Brasil. Palavras-chave: Práticas funerárias, arqueologia da paisagem, arqueologia das terras altas do sul do Brasil.

Abstract

This article’s main goal is exploring archaeological data from two particular regions of southern Brazilian
high plains, by using two vectors of varia-bility: sites and funerary practices, understood through an interpretive perspective. Through the exploration of these two vectors, it is suggested a significant difference on landscape implantations of archaeological sites and the treatment of the dead, in spite of a resemblance of material culture in both regions. In doing so, the article contri-butes for questioning the correspondence bet-ween material culture and ethnic group, as used in southern Brazilian high plains archaeology.

Key-words: Funerary practices, landscape archaeo-logy, southern Brazilian high plains archaeology.

A partir dos trabalhos do Programa Nacional de Pesquisas Arqueológicas (PRONAPA) foi definida uma ocupação humana nas Terras Altas do Sul do Brasil, caracterizada a partir de um estilo particular de cerâmica, aliada à presença nos sítios arqueológicos de diferentes tipos de estruturas de terra, tais como casas subterrâneas, montículos e áreas entaipadas (Schmitz, 1988; 2002). Desde o início destas pesquisas, dentro de um paradigma que misturava as correntes do Evolucionismo Cultural e do Histórico Culturalismo, houve uma grande preocupação em delinear o espaço e o tempo de ocorrência destes fenômenos, considerando-os implicitamente como reflexo ou marcador da presença de grupos étnicos específicos.

Nas pesquisas mais recentes, dentro de uma arqueologia que poderíamos denominar como Processual, a abordagem mudou para a caracterização do funcionamento de estruturas e assentamentos (Reis, 1980; Schmitz, 2002). Entretanto, a equação cultura material = grupo étnico foi considerada como válida e não pro-blemática, e a análise levada a cabo foi feita dentro das unidades “Fases” e “Tradições”.

Este pode ser considerado um fardo conceitual que até hoje se impõe sobre a maneira como pensamos a pré-história das terras altas do sul do Brasil. Lidar com as evidências materiais desta forma tem levado a uma tendência homogeneizante de interpretar o passado, considerando que formas materiais compartilhadas sejam indicadores de identidades específicas espalhadas
sobre uma vasta área geográfica como o planalto sul-brasileiro. Assim, procuram-se elementos de semelhanças destas entidades, na busca de uma união de culturas arqueológicas. Tal esforço implica na transposição automática de elementos interpretados em áreas específicas, como por exemplo, um sistema econômico integrando terras altas e litoral (Schmitz, 1988), para regiões distantes entre si, criando um mito de estabilidade e simplicidade cultural.

Mas, e se rejeitássemos esta concepção de cultura material como um reflexo direto de sociedades humanas? Tendências teóricas iniciadas na década de 1990 apontam como uma grave falha de inúmeras arqueologias considerar a cultura material como algo passivo, desprovido de significados, indicando simplesmente formas derivadas de uma norma cultural ou refletindo a economia de grupos (Hodder, 1992; Shanks & Tilley, 1992; Tilley, 1996; Thomas, 1996).

Aliada a esta perspectiva de cultura material está uma forte tendência da arqueologia brasileira de definição e delimitação de grupos humanos a partir de fósseis-guias2. A mera presença destes elementos em sítios arqueológicos, não importa o quão pequena e pouco representativa ela seja, é considerada como diagnóstico da presença de identidades específicas nestes locais.

Rejeitamos estes postulados a fim de procurar diferentes perspectivas para a arqueologia da região. A cultura material, incluindo a paisagem, é aqui considerada como um elemento ativo na relação entre os seres humanos, sendo capaz de criar, manter e transformar relações sociais. A partir deste ponto de vista, a cultura material pode ser manipulada por atores sociais com o objetivo de expor símbolos sociais, formar e negar fronteiras, legitimar e impor poder (Hodder, 1992; Shanks & Tilley, 1987, 1992).

Mas de que forma a cultura material participa na criação de significados? Thomas (1996) argumenta que é a partir de uma série de padrões de associação da cultura material que seus significados emergem. Este é um ponto que Hodder (1992) já deixava explícito. Para ele, o significado da cultura material, diferentemente dos significados lingüísticos, emerge das associações
derivadas de sua produção, uso e descarte, sendo desta forma não arbitrário e contingencial. Fica, assim, claro que uma abordagem contextual dos objetos, procurando sua gênese, seu uso e padronização do descarte, é fundamental para entendermos os grupos humanos do passado. Desta forma, uma arqueologia que leve em conta a espacialidade envolvida nas evidências materiais possui uma grande possibilidade interpretativa para as sociedades do passado.

Ao fazer uma arqueologia interpretativa, procurando estruturas e práticas nas terras altas do sul do Brasil, partimos do princípio, defendido principalmente por Christopher Tilley (1996), que a grande força desta abordagem é a preocupação diferenciada com a relação entre pessoas e cultura material, ou seja “a maneira na qual formas materiais constituem um meio vital através do qual as pessoas constróem, manipulam e transformam seus mundos na longa duração” (op.cit: 3).

Assim concebida, a arqueologia deveria envolver uma etnografia temporal dos artefatos e da maneira como eles se relacionam com estruturas e eventos, procurando ler as evidências em termos de interações entre componentes normativos e expedientes na produção e descarte destes artefatos. Neste processo, a cultura material é ativa na construção dos sistemas de significação: “o humilde artefato não é um mero adjunto para o que realmente interessa – pessoas e relações sociais – mas é fundamentalmente envolvido na construção destas relações. A cultura material é tão importante, e tão fundamental, para a constituição do mundo social quanto a linguagem” (Tilley, 1996: 3).

Entendendo a Arqueologia desta forma, ficamos em uma posição privilegiada para o estudo de grupos humanos. Não só a evidência arqueo-lógica deixa de ser pobre em informações, mas também ela nos oferece uma habilidade única de monitorar continuidades e mudanças estruturais e sua relação com a experiência e a prática em uma longa duração.

Os debates mais recentes na arqueologia têm dado grande ênfase na consideração das práticas diárias para leitura de estruturas e eventos. O destaque nesta leitura é como as regras sociais, si-gnificados e relações de poder estão embebidos nas práticas mundanas da vida diária. Pierre Bourdieu (1977) demonstrou como atividades diárias como comer, sentar, dormir e se movimentar no espaço doméstico podem ser mecanismos através dos quais as pessoas são socializadas em regras e orientações particulares. Desenvolvendo suas atividades diárias, as pessoas podem apreender regras através dos movimentos do corpo, se tornando,
assim, “corporificadas”. Assim as regras e disposições sociais se tornam embebidas nas práticas corporais mundanas. Desta forma, as práticas diárias se tornam práticas sociais – elas possuem uma dimensão que se relaciona com estruturações e re-estruturações sociais.

Com a emergência da chamada Nova Arqueologia, ou Arqueologia Processual, iniciou-se uma série de procedimentos para estudar as dimensões quantificáveis e materiais do espaço, com o objetivo de obter informações sobre processos sociais, função e ecologia. A adoção desta abordagem ao estudo do espaço foi vista como um meio de entender sítios arqueológicos e sua inter-relação (Aston, 1989). Entretanto, como bem colocado por Richards (1996), esta abordagem nada mais significou do que um exame arqueológico da paisagem como uma modificação cultural seqüencial do mundo natural. Assim, a ênfase nestes estudos é colocada na inclusão de sítios de diferentes tamanhos, funções e padrões de uso da terra, plotados em um mapa como em um pano de fundo neutro. Neste sentido, muito foi desenvolvido em uma arqueologia espacial com procedimentos estatísticos (Hodder & Orton, 1976; Clarke, 1977), como uma panacéia para uma ciência espacial objetiva da paisagem arqueológica.

Com o advento da arqueologia pós-processual floresceram diversas perspectivas no estudo da paisagem. Por detrás destas novas pers-pectivas estava a percepção de que a paisagem não era constituída por um mero cenário onde se desenvolviam as relações humanas, mas que ela era constituída por significados e pelas ações sociais dos indivíduos que nela habitam. Assim, o espaço
é um meio para a prática, sendo socialmente produzido. Desta forma, diferentes sociedades, grupos e indivíduos atuam suas vidas em diferentes espaços.

Aqui tomamos como perspectiva considerar a paisagem como um mundo conhecido pelos que nela residem, que habitam seus lugares e que se movem ao longo dos caminhos que conectam estes lugares, perspectiva esta que é empregada por diversos arqueólogos (Richards, 1993, 1996; Tilley, 1994, 1998; Thomas, 1996). A atenção é dirigida para as práticas diárias (Bourdieu, 1977) ocorrendo na paisagem: suas características, sua localização, sua natureza, as mudanças através do tempo e como sua distribuição fornece significado a determinados lugares. É reconhecido que esta distribuição no tempo e no espaço das práticas é integral para o processo de reprodução e transformação das relações sociais.

A paisagem é então participante ativa da ação social humana. Isto significa que ela, encarada como uma forma de cultura material, participa ativamente das relações entre indivíduos, criando, mantendo ou negando laços sociais, podendo ser entendida tanto como sujeito, quanto como objeto da ação social humana. Neste sentido, partimos do entendimento de que sepultamentos, habitações e áreas de atividades na paisagem possuem um caráter especial na compreensão do significado do passado. A organização do espaço não apenas reflete, mas também gera práticas e estruturas sociais, em uma relação que pode ser vista como discursiva (Shanks & Tilley, 1987). Estes discursos são criados a partir das experiências sociais daqueles agentes que vivem nas casas, se movem ao redor dos assentamentos e entendem a organização e classificação do mundo (Richards, 1990). A produção da forma de uma organização espacial reconhecível e apropriada deve necessariamente ser baseada em princípios estabelecidos de ordem social e cosmológica (Richards, 1993: 148).

Assim compreendida, o estudo de paisagens arqueológicas possui a chave para ultrapassarmos a equação cultura material = grupo étnico, ao nos centrarmos nas práticas sociais ocorrendo na paisagem. A seguir procuramos explorar estas idéias, ao oferecer uma interpretação sobre a paisagem e as práticas funerárias de po-pulações das terras altas do sul do Brasil através de dois estudos de caso. Em arqueologia, estas práticas funerárias foram até agora interpretadas como reflexo de condutas destes grupos no passado (Schmitz, 1988; Mentz Ribeiro & Ribeiro, 1985) ou, mais recentemente, como possíveis indicadores de hierarquia social (Beber, 2004).

Pesquisas coordenadas por Sílvia Moehlecke Copé, desenvolvidas desde 1999 pela equipe do Núcleo de Pesquisas Arqueológicas (NUPArq)


Figura 1
Fig. 1 - Estruturas de terra associadas com sepultamentos em Pinhal da Serra e sua localização na paisagem.


Figura 2
Fig. 2 – Abrigo sob rocha utilizado para deposição de ossos em Bom Jesus.


da UFRGS em duas regiões das terras altas do sul do Brasil - Bom Jesus3 e Pinhal da Serra4 - demonstraram dois padrões distintos e contemporâneos de práticas funerárias. Na primeira, os sepultamentos são realizados em abrigos sob rocha, sem enterramento dos corpos. Na segunda região, os indivíduos são cremados e seus restos são depositados em montículos cercados por muros de terra formando figuras geométricas.

Neste artigo procuramos entender as diferenças entre as regiões, ao compararmos a implantação dos sítios na paisagem e as práticas funerárias. Será argumentado que as diferenças evidenciadas se relacionam com diferentes práticas sociais conduzidas por grupos das terras altas do sul do Brasil, onde a relação entre os vivos e os mortos seria fundamental na estruturação social destes grupos.

Implantação dos sítios na paisagem

Aqui procuramos analisar a distribuição dos sítios em ambas as regiões, com o objetivo de identificar possíveis arranjos que permitam compreender a estrutura e funcionamento dos sítios. Foram comparados os padrões de localização de sítios entre as regiões de Pinhal da Serra e Bom Jesus, através da análise espacial desenvolvida em um Sistema de Informação Geográfica (SIG). A dispersão espacial dos sítios permitiu identificar agrupamentos principais que foram interpretados como comunidades específicas distribuídas na área.


Figura 3
Fig. 3 - Mapa mostrando o tamanho das estruturas subterrâneas em Pinhal da Serra. As barras representam o tamanho. Os pontos representam as estruturas funerárias (áreas entaipadas).


Na região de Pinhal da Serra, cada agrupamento foi caracterizado pela presença de unidades domésticas (casas subterrâneas e sítios lito-cerâmicos densos), áreas de atividades líticas e estruturas funerárias.

Com o objetivo de entender a distribuição dos sítios, trabalhamos com a perspectiva de hierarquia de sítios. O termo hierarquia de sítios é amplamente utilizado na arqueologia espacial como forma de compreensão da forma da distribuição das comunidades pré-históricas. Uma hierarquia de sítios pode nos informar a existência de centros sócio-políticos ou de lugares preferenciais de ocupação na paisagem (Hodder & Orton, 1976). De acordo com Wason (1996), a existência de uma hierarquia pode ser baseada no tamanho dos assentamentos ou na própria complexidade das estruturas presentes.

Para investigar estas evidências na área de Pinhal da Serra, quantificamos o tamanho das estruturas subterrâneas presentes em cada agrupamento para elaboração de um mapa-gráfico mostrando a distribuição das maiores estruturas ao longo da área sob investigação, o que poderia indicar lugares preferenciais de ocorrência de estruturas maiores, que precisariam de um maior esforço para sua construção. O gráfico no mapa mostrou-se disperso, indicando uma distribuição contínua e não estruturada em relação ao tamanho das unidades domésticas.

Por outro lado, foi verificado que pelo menos um dos agrupamentos tinha uma posição especial frente aos outros, pela presença restrita de uma grande estrutura funerária, que requereria esforço coordenativo e cooperativo, ultrapassando certamente um trabalho no nível do grupo doméstico. Sugerimos que este se trata de um sítio hierarquicamente superior, na forma de acesso desigual à força de trabalho, evidenciando que estes grupos possuíam certa centra-lização sócio-econômica.

A análise da paisagem onde estes sítios se encontravam permitiu caracterizar os padrões de inserção dos sítios e sua relação com os lugares naturais, como topografia, vegetação, altitude e acidentes geográficos. A maior parte dos sítios está inserida em uma zona intermediária, heterogênea, com áreas de declive suave e abrupto, com formação vegetal do tipo alto-montana, formando agrupamentos específicos em unidades fisiográficas menores nos platôs sobre os divisores de água. Os agrupamentos são formados por unidades habitacionais, estruturas funerárias e áreas de atividade.

Ao se movimentar na região, indo de um agrupamento de sítios para outro, o primeiro tipo de sítio a se encontrar seria uma estrutura funerária, pois estas se inseriam sobre os pontos nodais, localizados sempre na intersecção das unidades fisiográficas menores, territórios de agrupamentos de sítios. Assim, eles podem ser entendidos como marcadores dos agrupamentos de sítios, indicando a quem se movimenta se ele está saindo ou entrando em um território de sítio.

Assim, interpretamos a paisagem arqueológica na região de Pinhal da Serra como sendo basicamente voltada para apropriação e domínio de espaços menores, definidores de áreas domésticas. Cada área seria propriedade de grupos domésticos específicos que nestes locais desempenhariam suas atividades cotidianas e enterrariam seus mortos.

Nos voltamos agora para entender os padrões em Bom Jesus, onde uma análise seme-lhante foi realizada. Assim, inicialmente, caracterizamos os agrupamentos de sítios. Na região de Bom Jesus, cada agrupamento foi caracte-rizado pela presença de unidades domésticas (casas subterrâneas) e áreas de atividades externas. Foram localizados em toda área apenas dois abrigos
utilizados para deposição de ossos humanos e nenhum outro tipo de estrutura funerária.

Com objetivo de procurar entender a distribuição dos sítios, também trabalhamos com a hierarquia de sítios. Para tanto, quantificamos o tamanho das estruturas subterrâneas presentes em cada agrupamento para elaboração de um mapa–gráfico mostrando a distribuição das maiores estruturas ao longo da área sob investigação. O mapa mostrou uma concentração significativa de grandes estruturas subterrâneas, superiores a 20 metros de diâmetro, no limite norte dos divisores de água presentes na área sob investigação. É sugerido que estes se tratam de sítios hierarquicamente superiores, na forma de acesso desigual à força de trabalho.

Figura 4
Fig. 4 - Mapa mostrando o tamanho das estruturas subterrâneas em Bom Jesus. As barras representam o tamanho. Os retângulos representam os abrigos funerários.


A análise da paisagem onde estes sítios encontram-se permitiu verificar que estes estão distribuídos ao longo dos divisores de água, formando agrupamentos específicos em unidades fisiográficas menores nos platôs sobre os divisores de água. Os agrupamentos são formados por unidades habitacionais e áreas de atividade. Foi notado que as maiores estruturas subterrâneas estão localizadas de forma a dominar os divisores de água, em pontos considerados nodais, obrigando que grupos que quiserem se movimentar de um divisor para o outro cruzem os territórios das grandes estruturas. Assim, estas grandes estruturas subterrâneas podem ser entendidas como marcadores territoriais dos agrupamentos de sítios, indicando
a quem se movimenta se ele está saindo ou entrando em um território.

Assim interpretamos a paisagem arqueológica na região de Bom Jesus como sendo basicamente voltada para apropriação e domínio de espaços menores, delimitados pelos divisores de águas. Cada área não seria propriedade de grupos domésticos específicos, como na região de Pinhal da Serra, mas caracterizariam territó-rios mais extensos que congregariam unidades maiores formadas por diversas famílias. Os abrigos rochosos seriam, assim, propriedade de uma união de grupos domésticos.

Sepultamentos nas terras altas Até agora trabalhamos com as evidências de práticas relacionadas com a distribuição de sítios ao longo da paisagem nas duas regiões trabalhadas. Chega o momento de explorarmos as diferenças entre as práticas funerárias. Uma óbvia diferença reside na própria constituição do sítio e no tratamento dos corpos. Em Pinhal da Serra, as estruturas funerárias são formadas pela construção de uma taipa de terra formando figuras geométricas, em cujo interior são depositados restos de cremações. Em Bom Jesus, são utilizados lugares naturais, os abrigos rochosos, que são monumentalizados pela própria prática funerária. No interior são depositados os restos humanos, sem enterrar.

Primeiramente, consideremos a diferenciação teórica dos rituais mortuários oferecida por Barret (1990). Estes rituais, segundo ele, não são nem um reflexo passivo de filiação étnica, nem um meio de representar o prestígio relativo do morto. Antes disto, eles constituem um elemento de um conjunto de práticas através das quais o social é continuamente trabalhado (Barret, 1990). A performance destes rituais possui o efeito de renegociar as relações entre os vivos e os mortos e as relações entre os próprios vivos. Dívidas, autoridade e filiações podem ser transformadas ou reinscritas durante o curso dos rituais.

De acordo com Barret (1994), de um lado existem rituais de ancestrais, que trazem os vivos para a presença dos mortos ancestrais. Este tipo de ritual nem sempre precisa envolver o se-pultamento de um morto. Os ancestrais podem ser invocados durante atividades funerárias e a deposição de mortos serve para produzir os restos, mas este tipo de ritual é fundamentalmente preocupado em invocar a presença dos mortos com o objetivo de estruturar as atividades entre os vivos. Esta invocação deve acontecer em um local especialmente destinado a este objetivo, que irá conter os restos dos ancestrais, que podem ser fisicamente encontrados, manuseados durante o curso destes ritos.

Acredito que este é especificamente o caso dos abrigos rochosos localizados na região de Bom Jesus. São locais abertos, com possibilidade de manuseio dos restos mortais dispostos no seu interior. Em um dos abrigos rochosos foram identificados vestígios de rituais, como restos de milho, porongo e cabaças (Miller, 1971), bem como uma enorme quantidade cerâmica, cuja análise tecno-funcional demonstrou terem sido especificamente produzidas para os rituais performados no abrigo (Saldanha, 2001). Esta análise indicou que a cerâmica foi produzida com certa urgência (como indicado pela grande quantidade de evidências de acidentes de fabricação, como má obliteração de roletes e rachaduras térmicas), mas com alto esforço na produção de uma boa aparência (grande índice de polimento e brunidura, não verificado nos sítios domésticos). Além disto, o baixo índice de marcas de utilização indicou que a vida útil das vasilhas dentro do abrigo não foi grande.

Por outro lado, voltando a Barret (1990), existem os rituais funerários explicitamente preocupados com o sepultamento e com a reorganização das relações entre os acompanhantes do sepultamento de uma determinada pessoa. A sepultura onde o morto é colocado representa o ponto final de uma série de ritos de passagem, o local onde a morte social foi colocada.

Argumento aqui que este é o caso das áreas entaipadas em Pinhal da Serra. A posição da sepultura, do montículo e da taipa de terra que caracte-rizam estas estruturas, fixa na paisagem o ponto da separação entre uma pessoa e a comunidade. Eventos subseqüentes no entorno podem envolver a abertura do montículo para outros sepultamentos ou a cons-trução de outras estruturas de terra.

Assim, as diferenças observadas entre as duas regiões parecem envolver uma diferença nos conceitos de ancestralidade. Em Bom Jesus, os mortos estão de certa forma junto aos vivos, no presente, com a possibilidade de encontro e manuseio de seus restos materiais. Em Pinhal da Serra os restos mortais são fisicamente destruídos pela cremação e encerrados em montículos de terra delimitados por taipas, criando ancestrais que estavam fixos na paisagem e no tempo. O rito funerário realizado nesta região identifica a localização da morte de uma pessoa e o coloca no passado.

Assim as práticas funerárias realizadas nas duas regiões parecem cumprir um papel de mediador ideológico para estruturação social dos grupos. Em Bom Jesus, local onde o padrão de assentamento interpretado parece voltado para apropriação e domínio de territórios extensos que congregariam unidades maiores formadas por diversas famílias, as identidades das pessoas seriam negociadas através do uso de abrigos para sepultamentos coletivos, construindo laços e um sentido de comunidade amplo.

Em Pinhal da Serra, por outro lado, mais do que negociar identidades amplas, as estruturas funerárias, exclusivas de grupos domésticos específicos, delimitariam identidades relacionadas a uma série de ancestrais identificáveis. A identidade pessoal se daria menos através de amplas filiações grupais, e mais através de descendências, o que torna imperativo identificar o morto como um ponto de origem de onde o presente descende.

Conclusões

Através desta contribuição tentamos demonstrar o potencial da exploração de dois vetores de variabilidade: os sítios e as práticas funerárias. Estes dois vetores foram trabalhados contextualmente, unindo os dados empíricos levantados com as propostas teóricas aqui explicitadas. Foi sugerida uma diferença significativa na organização dos assentamentos entre as regiões, com Pinhal da Serra possuindo uma organização mais fechada, com unidades domésticas em territórios delimitados, e Bom Jesus voltado para uma organização mais envolvente, unindo agrupamentos de sítios em territórios mais amplos.

Foi também verificada a presença de estruturas de terra de tamanhos avantajados, que sugerem desigual acesso à força de trabalho, mas com diferentes ênfases, conforme a região: em Pinhal da Serra a ênfase é dada às estruturas funerárias, enquanto em Bom Jesus são as casas subterrâneas que exibem uma maior complexidade, indicando certa centralização sócio-política.

Para legitimação desta centralização, sugiro que um tipo de discurso material pode ter surgido centrado em práticas diárias, onde a regulação de disciplinas espaciais naturaliza a constituição social de grupos. Neste sentido é que as práticas relacionadas ao tratamento dos mortos e sua relação com a paisagem são extremamente importantes, na medida em que a relação entre os vivos e os mortos se torna fundamental na estruturação social. Acreditamos que, à medida que mais áreas arqueológicas da região forem exploradas a partir das evidências materiais distribuídas ao longo da Paisagem, uma interpretação mais rica sobre o passado nas Terras Altas irá surgir.

Agradecimentos

Ao Núcleo de Pesquisas Arqueológicas da UFRGS e sua coordenadora Sílvia Moehlecke Copé. A José Alberione dos Reis, ao revisor(a) anônimo(a) pelas críticas e sugestões e a Mariana Petry Cabral pela revisão do texto.

Artigo submetido à Revista da SAB em abril de 2008. Aprovado em junho de 2008.

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