ENTRE A MORAL E A IMAGINAÇÃO: AS TRANSFORMAÇÕES DE MEMÓRIAS DE UM BURRO, DA CONDESSA DE SÉGUR, NA COLEÇÃO BIBLIOTECA INFANTIL, DA EDITORA MELHORAMENTOS

Autores

  • Vera Chacham

Resumo

Esta comunicação resulta de uma pesquisa sobre as traduções da Condessa de Ségur no Brasil. O objetivo é explicitar as transformações do que Roger Chartier denomina registros da tradução em uma obra, mas dentro de uma mesma coleção. O idealizador e primeiro editor da coleção Biblioteca Infantil foi o professor Arnaldo Barreto (1869-1925), responsável por 28 títulos (publicados de 1915 a 1925) dos 100 títulos que a coleção alcançou em 1958. Entre eles, Memórias de um Burro. Com sua morte, a Coleção passou para as mãos do educador Manuel Bergstrom Lourenço Filho (1897-1970), que a partir de 1926 realiza uma “revisão completa” nos volumes já publicados. Já em Cultura Escrita, Literatura e História,” Roger Chartier propunha uma história da circulação e das apropriações culturais. No livro A mão do autor e a mente do editor, Roger Chartier considera a tradução como algo que “sempre implica uma apropriação especial de textos”. Abordando as transformações de obras escritas em espanhol ̶ Cervantes, mas também Quevedo ̶ por meio de suas traduções para o francês ao longo do século XVII, Chartier percebe, na tradução francesa de 1633 de L’Aventurier Buscon, de Quevedo, que o tradutor “deturpa completamente a natureza do final da história dado por Quevedo”, deixando-o conforme um “sistema de convenções”, “que requer um final feliz e uma moralidade exemplar. ” O estudo das traduções como parte integrante de uma história da leitura e da edição parece-nos relativamente recente, embora a tarefa de tratar histórica e socialmente a tradução já venha sendo muito bem desenvolvida no campo dos estudos literários e mesmo sociológicos. Não podemos deixar de fazer referência, nesse sentido, a alguns autores como Emer O’Sullivan e Zohar Shavit. No período em que a Coleção é dirigida pelo professor Arnaldo Barreto, acreditamos que a adaptação de Memórias de um burro visa sobretudo captar a atenção do jovem leitor, dentro de uma concepção pedagógica ligada ao chamado método intuitivo e em um contexto, segundo Maria de Paula Razzini, de estreita relação entre a expansão da escola pública primária no Estado de São Paulo e a expansão editorial no período da primeira república. Quando passa a ser dirigida pelo educador Manoel Bergstrõm Lourenço Filho, um dos representantes da chamada Escola Nova, a adaptação do texto torna-se mais preocupada) com o ideal de uma “boa mensagem”. O dilema – a função moral e pedagógica em confronto com a imaginação, que atravessa a história da literatura infantil, se transforma de um editor para outro. Pretendemos mostrar como “na prática”, isto é, nas várias adaptações de Memórias de um Burro dentro da coleção são sensíveis as mudanças nas edições do livro. Ao compararmos a 4ª edição, ainda sob o controle de Arnaldo Barreto (e mesmo a oitava edição) com uma das edições já bastante revisada por Lourenço Filho, a 14ª, podemos perceber que, mesmo quando se trata de uma série de mudanças técnicas, ou até mesmo modernizadoras, há uma clara preocupação em mudar o tom da história, por meio de ilustrações, as censuras a qualquer juízo ou expressão mais ambíguos, política e moralmente. Esta intenção de Lourenço Filho há de confirmar-se em seus futuros pareceres para a editora Melhoramentos. Trabalhando com os pareceres que Lourenço Filho produziu para a Editora entre 1938 e 1943, Gabriela Soares aponta para a visão política conservadora de um dos nomes da Escola Nova– Lourenço Filho “considerava a crítica social como temática inadequada para a literatura infantil”. Em um parecer de 1950, Lourenço Filho torna mais explicitas as razões para suas opções como revisor: “Como expressão de arte, que é, a leitura para crianças deve [...] tender a fornecer ao espírito infantil certa provisão de beleza, de graça, de harmonia, a fim de que não agrave os conflitos mentais e sentimentais, mas procure resolvê-los de forma suave e criadora. A criança precisa acreditar na vida, acreditar no bem, na bondade, na justiça, nas formas criadoras da vida social e não nas forças que a corrompem e destroem”. Embora os pareceres citados sejam da década de 50 e 60, é possível reencontrar neles a prática da concepção de tradução de Lourenço Filho, em edições como a décima quarta.

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Publicado

2017-09-27

Edição

Seção

Comunicações Longas Eixo Tradução, Transferência Cultural e Circulação