O MITO DO MAU SELVAGEM: LITERATURA, TRADUÇÃO E REVOLUÇÃO NA PEÇA DE CHRISTOPHER HAMPTON (1974)

Autores

  • Davi Silva Gonçalves

Resumo

Por meio da tradução do livro Savages (HAMPTON, 1974), peça de onde retiro trechos para análise nessa comunicação, objetiva-se proporcionar aos leitores brasileiros, o contato com a obra por sua importância na abordagem da realidade política e social durante o período do golpe militar no Brasil, pela perspectiva de um autor estrangeiro. Com isso, os leitores poderão ter acesso a um material que discorre sobre um fato histórico pouco lembrado (como os últimos eventos políticos tem demonstrado) em nossa sociedade e acerca do qual se pensa ainda com muita superficialidade. Propondo um paralelo entre a chacina de indígenas, o sequestro de um norte-americano por um grupo comunista, os interesses financeiros do governo brasileiro e do exterior, dentre outros temas, Christopher Hampton (1974) cria um texto hipertextual – ou seja, no qual se faz menção a diversas outras fontes. Assim, a compilação de um glossário explicativo ao final da peça traduzida busca auxiliar o acesso do leitor contemporâneo, dando maior explanação sobre figuras históricas, pessoas reais cujos nomes são mencionados, e de termos, principalmente os característicos das línguas das tribos autóctones, presentes tanto nas notas anteriores ao texto em si como na própria narrativa. A metamorfose de questões culturais me parece inerente à manutenção da carga de sentido desta obra, respeitando-se o momento social mais do que o histórico na escolha de palavras na língua portuguesa – isto é, considerando mais o efeito da linguagem utilizada pelos personagens do que a etimologia destas palavras. Apesar de ser um escritor inglês, Christopher Hampton (1974) mergulha a fundo nos eventos que antecederam, seguiram e circundaram o golpe militar no Brasil. Através de uma narrativa que se constrói permeada por tal atmosfera, Savages (HAMPTON, 1974) discute a implantação forçada do sistema capitalista no modelo estadunidense em comunidades que não pediram por ele. Assim, o autor nos traz uma ficção que se confunde com a realidade, com os sequestros, as movimentações que tentaram medidas extremas para resistir àquilo de que hoje parecemos já não sentir falta. Humanizando os indígenas brasileiros e animalizando o homem branco, a peça sugere que o nosso instinto selvagem estaria associado mais a nossos interesses e ambições hegemônicas do que à falta de acesso aos bens de consumo. A análise da narrativa e das escolhas tradutórias de Savages (HAMPTON, 1974) evidencia o quanto seria impossível atribuir sentido ao texto que disseco através da exclusão de fatores “externos” como cultura, política e história. Desde a escolha dessa obra – que, em sua cultura de origem nunca chegou a fazer sucesso tremendo, provavelmente em função da própria narrativa, por demais politizada, e que tenta polemizar e mostrar o lado desumano da globalização. Também curioso é fato de que a peça tampouco chegou a ser traduzida para a língua portuguesa (apesar de já ter sido ao menos montada em Portugal), fato que também acreditamos estar relacionado aos problemas que a crítica de Hampton (1974) poderia causar na época. Assim, lidando com uma obra que seria muito provavelmente censurada na cultura de chegada, caso editada quando de sua produção, se torna claro o fato de que o tradutor não desempenha papel passivo ao transmitir o que Venuti (2002) chama de “resíduo” da obra. Durante a propagação desse resíduo, que surge através do fazer tradutório, o tradutor precisa estar ciente de seu papel ético tanto na escolha do texto que traduz quanto na maneira que o traduz. Literatura invoca dever e autocrítica, e, ao traduzir, tento cumprir com essa função ética que, sabe-se, cabe tanto ao autor quanto ao tradutor. A leitura, análise e tradução de Savages (HAMPTON, 1974) me convence de que trata-se essa de uma obra de enorme carga cultural e política, que coloca em cheque a narrativa hegemônica que adjetiva como “selvagem” o guerrilheiro, militante de esquerda, indígena, etc., enquanto coloca em um pedestal os representantes dos interesses imperialistas. Obviamente, traduzir esse texto é gratificante naquilo que concerne a função de formação do cidadão crítico, já que, como tradutor, posso acreditar estar fazendo alguma diferença nesse sentido, como acho que faz o autor da obra original. Muito daquilo que Hampton traz em Savages (1974) pode, de fato, ser repensado na contemporaneidade, momento onde não somente continuamos a ter ainda um problema sério no que diz respeito a maneira capitalista de dominação de terras e populações como também optamos por reviver o absurdo do golpe antidemocrático – sendo o apreço pelos militares algo compartilhado pela maioria conservadora da população, que nada aprendeu com nossa história. Os abusos da política nacional não foram superados, suprimidos ou derrotados – eles estão logo ali nos arredores do texto, e lá devem permanecer. Em um mundo doente, falamos também da integração dos indígenas na sociedade sem notar a hipocrisia que permeia tal discurso. Ainda é possível encontrar realidades como esta, de indígenas ou descendentes de indígenas trabalhando em regime de semiescravidão, só recebendo da globalização o que ela tem de pior a oferecer, como álcool, drogas e doenças responsáveis (direta e indiretamente) por seu extermínio. Sendo o “traduzir” muitas vezes sinônimo do “politizar”, trata-se este debate do foco principal desta comunicação – em um momento político que carece de diálogo e no qual reina o esquecimento com relação àquilo que meu objeto nos lembra.

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Publicado

2017-09-27

Edição

Seção

Comunicações Breves Eixo Tradução e Análise Textual