Vol. 4 No. 1 (2024): Dossiê "Corpos atraídos pela dor, semblantes devotados ao prazer: a guerra entre Marte e Vênus ou, tão somente, gramáticas do sadomasoquismo nos expedientes literários"
O “indefectível” arregimento pulsional (teatro montado para além do princípio do prazer, em cujo tablado bailam o masoquismo e seu algoz consorte, o sadismo) encena um problema econômico arraigado ao primado dos desejos, um drama deveras (im)previsível que alberga uma “diegese” inexoravelmente edípica. A poiésis da carne reclama, pois, os suplícios do outrora, ecos de “uma criança espancada”, imersa em reminiscências cruéis, vítima incauta dos acoites, fantasisticamente, perpetrados pelos carrascos genitores. Nessa dramaturgia, Cupido perde suas céleres asas, e a Dor infiltra-se, com assaz selvageria, em suas feridas; apascenta-lhe o desespero e, com esmerado zelo, tinge, com o sangue que desce aos ombros do doravante deus desalado, as flechas imperiosas da atração, tornando-as lanças odiosamente sedutoras. Aos amantes, resta, diante de tal tragédia, o culto vivificante à Morte, companheiro solícito, capaz de engalaná-los com os mais exuberantes andrajos, indispensáveis a uma corporeidade raquítica (em termos emocionais), forjada ao labor de confissões lúgubres e lamúrias festivas, numa dança ritualística no palco (nada) ilibado da fantasmagoria erótica. Em cerimônias assim, conquanto pareçam inusuais e esdrúxulas (na claridade das esferas públicas), prorrompem-se “subjetivações”, possíveis e criativas, arqueadas sob o movediço solo do desejo, no qual germinam laços enovelados, fortemente, pelos fios depauperados da angústia, do ressentimento, da culpa, do remorso, dos descendentes diretos da Ira e da Inveja. Cumpre salientar que o calvário do corpo (e a agonia do espírito), longe de encontrar guarida apenas na alcova ou nos aposentos íntimos, excidem, amiúde, nas tapeçarias literárias, onde uma cartografia abundante de gêneros e personagens figuram a excentricidade das subjetividades, em estratagemas imagéticos, discursivos, psíquicos por excelência. Na psicopatologia da vida cotidiana, aos que “fracassam”, aos que são tiranizados pela penitência e, em suplementaridade, aos que atormentam e flagelam “seus mártires”, a arte oferece plagas benfazejas, na medida em que a efabulação estética abomina as manobras ardilosas de conservadores hipócritas e moralismos obsoletos. A partir do “Ato” – Eros agrilhoado a Thânatos, (in)sensatamente cúmplices –, em que a palavra artística cede suas prerrogativas simbólicas aos domínios da destruição criadora, o presente dossiê albergará trabalhos/pesquisas que se debrucem sobre os alfarrábios literários, no intento de investigar as “formas eróticas do sofrimento”, a saber, o masoquismo e o sadismo – em seus semblantes sublimes e terríficos –, seja enquanto atores de uma pantomima psíquica seja como agentes (des)estruturantes da narrativa. Esse empreendimento, inolvidável em seu âmago, desidera explorar exsudantes elaborações, que constituem o arcabouço literário, nas quais o sadismo e o masoquismo, como componentes constitutivos das experiências humanas e confecções poéticas, laçam-se à ribalta, com fulgor de agentes (narradores, personagens, sujeitos líricos etc), delineando um diáfano panorama de contrastes entre a fragrância sutil da devoção ao outro e a aspereza crua da aflição.