v. 23 n. 1 (2021): O Fantástico e a (de)formação do riso
As múltiplas faces teóricas do fantástico, desde as primeiras efetivas sistematizações promovidas por Tzvetan Todorov (1970), passando por Irène Bessière (1974), e chegando até as reflexões de David Roas (2014), possibilitam um entendimento de como esse modo literário se relaciona de diferentes maneiras, seja no plano do conteúdo, seja no plano da forma, com fenômenos estéticos literários como o maravilhoso, o estranho, o fantasy, o grotesco e o absurdo. Convém lembrar que estes dois últimos, não raro, se avizinham do risível. Mas em que medida o riso pode ser um componente de narrativas fantásticas?
Em 1940, ao publicar sua antologia L´Humour noir, o poeta francês André Breton demonstrou interesse por um tipo de comicidade que se manifesta em forma de resistência e de crítica às convenções sociais. Nesse volume, observa-se a inclusão de escritores diretamente associados ao fantástico, como Franz Kafka, Villiers de L´Isle-Adam, Charles Baudelaire, Edgar Allan Poe, entre outros. A fortuna crítica de Poe, por exemplo, contempla uma significativa lista de estudos que engloba a sátira, a paródia, a ironia e o “humor diabólico”, presentes ao longo de sua obra. Recentemente, a Editora 34 publicou a Antologia do humor russo (2019), organizada por Arlete Cavaliere. No prefácio, Cavaliere assinala que o matiz do riso na literatura russa é de natureza “irreverente e crítica (...) insubmissa e contestadora” (p. 9). É justamente essa tonalidade do cômico que se faz presente em clássicas narrativas fantásticas russas, cuja plenitude é alcançada por Gógol, em "O nariz" (1836), e Dostoiévski, em O duplo (1846). Na mesma perspectiva, Georges Desmeules (1997) evidencia a discussão aqui proposta quando se refere ao riso como uma faceta oculta da narrativa fantástica. Para o autor, o humor se constitui de uma realidade ambígua, de onde pode aflorar tanto o cômico quanto o trágico.
Levando em consideração essas possibilidades, este dossiê é sobre o fantástico e suas interfaces com o riso, que se estende mais amplamente para a caricatura, o grotesco, a hipérbole, o cômico, o burlesco, a ironia, a sátira, a paródia e outras formas conexas que produzam a distorção do risível em narrativas fantásticas de qualquer época. Serão aceitas também contribuições de textos que, dentro da temática sugerida, dialoguem com outras linguagens, como o cinema, a HQ, a fotografia e a pintura.